Processo n.º 345/2022 Data do acórdão: 2022-7-7 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– decisão sumária de rejeição do recurso
– reclamação da decisão sumária do recurso
– objecto do recurso
S U M Á R I O
A reclamação da decisão sumária de rejeição do recurso não pode implicar a alteração do objecto do recurso.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 345/2022
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação da decisão sumária de rejeição do recurso)
Arguida recorrente e reclamante: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 414 a 431v do Processo Comum Colectivo n.o CR2-22-0002-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que a condenou como autora material de um crime consumado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de sete meses de prisão, de um crime consumado de burla, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 1, do CP, na pena de sete meses de prisão, e de um crime consumado de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo art.o 251.o, n.o 1, do CP, na pena de sete meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de um ano e seis meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de prestação, no prazo de um mês contado do trânsito em julgado da decisão, de dez mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau, veio a 1.a arguida desse processo chamadaA recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), assacando, na motivação apresentada a fls. 446 a 452 dos presentes autos correspondentes, àquela decisão condenatória penal, a título principal, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP) (por ser de entender pela existência de dúvida sobre a condenação com base apenas no depoimento da testemunha ofendida em causa), para rogar a sua absolvição total (por força do princípio de in dubio pro reo), para além de pedir, a título subsidiário, que passasse a ser condenada em pena mais leve, tida por adequada às circunstâncias do caso dela.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 458 a 463 dos presentes autos, no sentido de insubsistência manifesta dos argumentos do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer a fls. 476 a 479 dos autos, opinando pela manutenção da decisão recorrida.
Por decisão sumária proferida a fls. 481 a 483v, o ora relator rejeitou o recurso dada a sua manifesta improcedência, nos termos permitidos pelos art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do CPP, com custas do recurso pela arguida, com duas UC de taxa de justiça e três UC de sanção pecuniária pela rejeição do recurso.
Veio a arguida reclamar dessa decisão, através do petitório de fls. 491 a 496, afirmando reiterar toda a argumentação exposta na motivação do recurso, e salientando a sua discordância do resultado do julgamento judicial dos factos.
Sobre a reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 499 a 499v pela manutenção da decisão sumária do recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão:
1. O acórdão recorrido pela arguida ora recorrente ficou proferido a fls. 414 a 431v, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
2. A decisão sumária do relator ora sob reclamação pela mesma arguida tem por fundamentação jurídica o seguinte:
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente decisor do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que a arguida recorrente começou por imputar à decisão condenatória penal recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP. Entretanto, a fundamentação concretamente tecida por ela para sustentar a verificação deste vício já não tem a ver com o sentido e alcance próprios deste vício, mas sim com a questão de suficiência, ou não, da prova, questão esta que já tem a ver apenas com o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o do CPP.
Assim sendo, para efeitos de decisão sobre este materialmente esgrimido vício de erro notório na apreciação da prova, é de relembrar, desde já, os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso concreto dos autos, após vistos, em global e de modo crítico, os elementos probabórios referidos na fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que seja manifestamente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal recorrido a respeito dos três crimes por que vinha finalmente condenada a arguida recorrente, pelo que é de respeitar o julgado desse Tribunal sentenciador, o qual já explicou congruente e convincentemente, sobretudo a partir do 5.o parágrafo da página 29 até ao primeiro parágrafo da página 30 do mesmo texto decisório, a fl. 428 a 428v dos autos, as razões sustentadoras da sua livre convicção formada, sob aval do art.o 114.o do CPP, sobre os factos finalmente dados por provados e descritos sob os pontos 16 a 21 e 26 a 29 da fundamentação fáctica do aresto recorrido, conducentes à condenação penal da recorrente.
Naufraga manifestamente a primeira parte do recurso, por o Tribunal sentenciador não ter violado o princípio de in dubio pro reo aquando da valoração das provas dos autos.
E agora da rogada aplicação de pena mais leve:
Ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal recorrido em relação à arguida recorrente, com pertinência à medida da pena dos três crimes em causa dentro das respectivas molduras penais aplicáveis, e tendo em consideração as inegáveis necessidades de prevenção geral dos mesmos delitos penais, é de louvar toda a decisão já tomada pelo Tribunal sentenciador em matéria da medida da pena, pelo que nada há a alterar esse julgado.
É, pois, evidentemente infundado o recurso, sem mais indagação por desnecessária, até também pelo espírito da norma do n.o 2 do art.o 410.o do CPP.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Veio a recorrente reclamar da decisão de rejeição do seu recurso.
Cabe agora conhecer do objecto desse recurso, posto que, aliás, a reclamação da decisão de rejeição não pode implicar, seja como for, a alteração do objecto do recurso.
Nota-se, de antemão, que ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, tal como já se observou na decisão de rejeição do recurso, vê-se que a arguida, na sua motivação, começou por imputar à decisão condenatória penal da Primeira Instância o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas a fundamentação concretamente tecida por ela para sustentar a verificação deste vício não tem a ver com o sentido e alcance próprios deste vício, mas sim com a suficiência, ou não, da prova, questão esta que já tem a ver apenas com o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o do CPP.
E quanto à existência efectiva, ou não, do vício de erro notório na apreciação da prova, o presente Tribunal de recurso confirma a análise das coisas e o juízo de valor já veiculados na fundamentação jurídica da decisão sumária do recurso, sem mais achega por desnecessária.
Naufraga, assim, a primeira parte do recurso, por o Tribunal sentenciador não ter violado, efectivamente, o princípio de in dubio pro reo aquando da valoração das provas dos autos.
Outrossim, rogou a arguida recorente a aplicação de pena mais leve.
Ela ficou condenada na Primeira Instância como autora material de um crime consumado de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP, na pena de sete meses de prisão, de um crime consumado de burla, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 1, do CP, na pena de sete meses de prisão, e de um crime consumado de uso de documento de identificação alheio, p. e p. pelo art.o 251.o, n.o 1, do CP, na pena de sete meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de um ano e seis meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de prestação, no prazo de um mês contado do trânsito em julgado da decisão, de dez mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau.
Antes de decidir daquela questão subsdiária de redução da pena, é de absolver oficiosamente a recorrente do crime de falsificação de documento (p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do CP), por ser de entender que no caso concreto dos autos este delito penal deve ser absorvido pelo crime consumado de burla (p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 1, do CP).
Assim sendo, para efeitos da medida concreta da pena, só subsistem este crime de burla e o crime consumado de uso de documento de identificação alheio (p. e p. pelo art.o 251.o, n.o 1, do CP).
A estes dois crimes consumados, o Tribunal recorrido aplicou igualmente sete meses de prisão.
Pois bem, ponderadas todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal recorrido em relação à arguida recorrente, com pertinência à medida da pena destes dois crimes em causa dentro das respectivas molduras penais aplicáveis, e tendo em consideração as inegáveis necessidades de prevenção geral dos mesmos delitos penais, não se acha que haja ainda mais margem para a redução da dose da pena de sete meses de prisão já fixada no aresto recorrido para cada um destes dois crimes.
Em cúmulo jurídico feito nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, com consideração, em global, dos factos provados e da personalidade da recorrente reflectida pelos mesmos, é de passar a aplicar-lhe a pena única de nove meses de prisão, a ser suspensa, nos termos do art.o 48.o do CP, na sua execução por dois anos, sob condição de prestação, no prazo de um mês contado do trânsito em julgado da decisão, de dez mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau.
Em suma, o pedido de absolvição penal total formulado na motivação do recurso é tão-só parcialmente procedente, não por razões aduzidas nessa motivação, mas sim por decisão oficiosa do presente Tribunal de recurso acima feita. E como consequência lógica desta decisão oficiosa, a recorrente também vê a sua pena única de prisão finalmente reduzida, mas também não por razões invocadas na sua motivação.
IV – DECISÃO
Dest’arte, e ainda que por fundamentos diversos dos alegados pela arguida recorrenteA, acordam em julgar parcialmente procedente o pedido formulado na sua reclamação da decisão sumária do recurso e na motivação do recurso, passando a absolvê-la do crime de falsificação de documento do art.o 244.o, n.o 1, alínea b), do Código Penal, mantendo a pena de sete meses de prisão aplicada no acórdão recorrido para o crime de burla do art.o 211.o, n.o 1, do Código Penal e o crime de uso de documento de identificação alheio do art.o 251.o, n.o 1, do Código Penal, e impondo, finalmente, a pena única de nove meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, sob condição de prestação, no prazo de um mês contado do trânsito em julgado da decisão, de dez mil patacas de contribuição a favor da Região Administrativa Especial de Macau.
Apesar de não precisar de pagar as custas, taxa de justiça e sanção pecuniária referidas no dispositivo da decisão sumária do recurso, deverá a arguida recorrente pagar ainda a metade das custas do seu recurso (com uma UC de taxa de justiça pelo decaimento parcial do recurso) e a metade das custas da sua reclamação (com uma UC de taxa de justiça pelo decaimento parcial da reclamação).
Comunique a presente decisão, com cópia do acórdão recorrido, à ofendida e à Direcção dos Serviços de Educação e de Desenvolvimento da Juventude.
Macau, 7 de Julho de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator) (com declaração de que fica vencido parcialmente na decisão da reclamação e do recurso, por entender que deve ser mantida toda a decisão condenatória penal da Primeira Instância, nos termos já veiculados materialmente na decisão sumária do recurso).
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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