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Processo nº 849/2021
(Autos de Recurso Contencioso)

Data do Acórdão: 28 de Julho de 2022

ASSUNTO:
- Renovação de autorização de residência
- Residência habitual

SUMÁRIO:
1. A norma do artigo 30.º do Código Civil, sendo embora uma norma de conflitos, fornece um importante contributo no sentido do que seja a residência habitual: «considera-se residência habitual o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal». A residência habitual é o centro em torno do qual gravitam as ligações existenciais de uma determinada pessoa;
2. Uma vez assente que o Recorrido não tem residência habitual em Macau e que a mesma é um pressuposto da manutenção e da renovação da autorização de residência, não resta à Administração senão indeferir o pedido de renovação pelas mesmas razões que a vinculariam a declarar a caducidade do acto autorizativo.

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Rui Pereira Ribeiro

Processo nº 849/2021
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 28 de Julho de 2022
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Economia e Finanças
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem interpor recurso contencioso do indeferimento tácito do Recurso Hierárquico interposto para o Senhor Secretário para a Economia e Finanças do despacho que indeferiu o pedido de renovação de autorização de residência temporária do seu filho B, formulando as seguintes conclusões:
1. A recorrente pediu a autorização de residência com fundamento em aquisição de bens imóveis ao abrigo dos art.º 1.º alínea 4) e 3.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 (regime de fixação de residência temporária de investidores, quadros dirigentes e técnicos especializados), por conseguinte, a autorização estendeu-se ao seu filho ao abrigo do art.º 5.º.
2. Em 5 de Maio de 2016 foi emitido à recorrente o BIR permanente de Macau.
3. Por despacho de 18 de Agosto de 2020, o Presidente da Comissão de Administração do IPIM decidiu indeferir o último pedido de renovação da autorização de residência temporária de B com fundamento em que era insuficiente o seu tempo de residência habitual em Macau durante o prazo de titularidade da autorização de residência temporária.
4. Em 23 de Setembro de 2020, a recorrente interpôs ao Secretário para a Economia e Finanças o recurso hierárquico necessário contra a referida decisão, até hoje não recebeu resposta, portanto, o recurso hierárquico necessário deve ser considerado tacitamente indeferido.
5. Entretanto, não se conformando com a decisão do Secretário, vem a recorrente interpor o presente recurso contencioso.
6. Antes de mais, como acima disse, a recorrente pediu a autorização de residência em Macau com fundamento em aquisição de bens imóveis, por conseguinte, a autorização estendeu-se ao seu filho, conforme os autos, a recorrente tem sempre mantido as condições para pedir a autorização de residência, incluindo a titularidade continuada de bem imóvel e depósito bancário, tais situações satisfazem a disposição do art.º 19.º n.º 2, sobre a concessão de renovação, do Regulamento Administrativo n.º 3/2005 (regime de fixação de residência temporária de investidores, quadros dirigentes e técnicos especializados).
7. A recorrente entende que, excepto a norma referida, não se deve exigir à recorrente ou ao seu filho o preenchimento das outras condições, nomeadamente a de “residência habitual na RAEM”, uma vez que nunca foi exigida essa condição desde o início.
8. E mais, não há definição jurídica concreta da “residência habitual”, por isso, não se deve chegar à conclusão puramente tendo em conta o número dos dias de permanência do interessado em Macau, mas sim deve-se fazer análise sintetizada em função das situações concretas.
9. No caso, a recorrente já justificou que, o interessado é ainda pequeno, neste momento não pode viver independentemente em Macau, mas isso não significa que se renuncia à fixação de residência em Macau, a recorrente já começou a procurar domicílio e escola em Macau, pode-se ver que, eles não estão preparados para se deslocar a Macau para fixar a residência.
10. Por isso, a decisão, proferida pelo IPIM, de indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária do interessado tem erro na aplicação da lei, deve ser anulado, deste modo, também deve ser anulada a decisão, proferida pela entidade recorrida, de indeferimento tácito do recurso hierárquico necessário da recorrente.
11. Por outro lado, em 10 de Janeiro de 2014, foi deferido pela 1ª vez o pedido de extensão da autorização de residência para o filho da recorrente, em seguida, a recorrente pediu por 2 vezes ao IPIM a renovação da autorização, ambos pedidos foram deferidos. Na altura desses 2 pedidos, o filho tem sempre ficado e estudado no Interior da China e morado com os pais.
12. Durante tantos anos, o IPIM nunca questionou a referida situação, até concedeu sempre a renovação, gerando a confiança da recorrente e fazendo com que a recorrente tenha achado que é permitido para o interessado estudar e morar com os pais no Interior da China, a recorrente até nunca pensou em que tal situação iria influenciar a renovação da autorização de residência do interessado.
13. Todavia, o IPIM alterou de repente a sua posição original, mas não notificou a recorrente, nem lhe exigiu fazer melhoramento, ao contrário, recolheu provas desfavoráveis, por conseguinte, indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência temporária do interessado com fundamento em que era insuficiente o seu tempo de permanência em Macau, lesando a esperança e a confiança da recorrente e do interessado, tal acto viola obviamente o princípio da boa fé.
14. E mais, o interessado ainda é pequeno, a sua vida quotidiana e o estudo dependem necessariamente da recorrente, frequenta escola no Interior da China por vários anos, são elogiados os seus esforços pelos professores em muitos aspectos, foi evidentemente inadequado exigir ao interessado antes de vários anos vir a Macau viver e estudar (sic.).
15. Na altura do último pedido de renovação da autorização de residência do interessado, toda a família da recorrente já planeou vir a Macau fixar a residência, o interessado poderia obter a qualidade de residente permanente depois de vários meses, o indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária do interessado vai sabotar o plano de fixação de residência da família da recorrente em Macau, destruir a esperança desta dum período de 7 anos e lesar os interesses da recorrente e do interessado.
16. Pelo que, o acto do IPIM viola os princípios da adequação e da proporcionalidade.
17. No fim, os residentes de Macau têm liberdade de sair da Região e regressar a esta, gozam da liberdade de escolha de profissão e de emprego, as crianças devem ficar com os pais para ser cuidadas, alimentadas e educadas.
18. Pelo que, seja quando for, é injusto e viola a Lei Básica e a Convenção sobre os Direitos da Criança exigir aos pais do interessado deixar de trabalhar no Interior da China, ou exigir ao interessado abandonar-se dos pais e vir viver a Macau.
19. Pelo exposto, a decisão, proferida pelo Presidente da Comissão de Administração do IPIM, de indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária do interessado tem erro na aplicação da lei, viola os princípios da boa fé, da adequação e da proporcionalidade, lesa os direitos fundamentais de cidadãos e crianças, conferidos pela Lei Básica e pela Convenção sobre os Direitos da Criança, por isso, não deve ser mantida. Deste modo, deve ser anulado o acto, proferido pelo Secretário para a Economia e Finanças, de indeferimento tácito do recurso hierárquico necessário da recorrente.
  
  Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Economia e Finanças contestar apresentando as seguintes conclusões:
1. Por força do art.º 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005, ora Regime de Fixação de Residência Temporária de Investidores, Quadros Dirigentes e Técnicos Especializados, é subsidiariamente aplicável aos interessados que requeiram autorização de residência temporária nos termos do presente diploma o regime geral de entrada, permanência e fixação de residência na Região Administrativa Especial de Macau, incluindo a Lei n.º 4/2003, ora Princípios Gerais do Regime de Entrada, Permanência e Autorização de Residência, e o Regulamento Administrativo n.º 5/2003, ora Regulamento sobre a Entrada, Permanência e Autorização de Residência.
2. Nos termos do art.º 9.º n.º 3 da Lei n.º 4/2003, ora Princípios Gerais do Regime de Entrada, Permanência e Autorização de Residência, é muito claro e expresso que o recorrente e o seu membro do agregado familiar extensivo devem cumprir os requisitos de residência habitual.
3. A residência habitual na RAEM prevista no art.º 9.º n.º 3 da Lei n.º 4/2003 aplica-se à autorização de residência temporária do recorrente.
4. Entende o recorrente que o seu descendente não pode viver sozinho em Macau devido à sua idade jovem, pretende mudar com a família para Macau no futuro, mas por enquanto não vive em Macau temporariamente. O que demonstra que a família do recorrente nunca viveu em Macau, o recorrente optou por deixar o descendente a viver no Interior da China e não pretende mudar para Macau, não estabeleceu qualquer ligação com Macau.
5. O descendente do recorrente não está temporariamente fora de Macau, mas sim nunca mudou para Macau e nunca estabeleceu qualquer ligação com Macau.
6. Para efeitos da autorização de residência, o descendente não vive habitualmente em Macau for força do art.º 4.º n.º 4 da Lei n.º 8/1999.
7. Tal como se refere, nos termos do art.º 9.º n.º 3 da Lei n.º 4/2003, a residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência.
8. Nos termos do art.º 22.º n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 572003, a renovação da autorização do recorrente depende da verificação dos pressupostos e requisitos previstos na lei de princípios e no presente regulamento, in casu, especialmente depende da referida disposição sobre a residência habitual em Macau.
9. In casu, o legislador prevê expressamente os pressupostos e a consequência jurídica, por outra palavra, neste caso, está em causa um acto administrativo vinculado.
10. Por outro lado, o recorrente não deve gerir confiança através das renovações anteriores.
11. Para efeitos da manutenção da autorização de residência concedida, o recorrente deve cumprir toda a lei, a violação da lei não é justificada pelo decurso do tempo ou por falta da execução da lei por parte da Administração.
12. O recorrente não deve depositar confiança no acto não correspondente às disposições legais, nem deve ter pensamento de convicção ilusória de se ser bafejado pela sorte quando sabe que a residência do seu descendente não satisfaz as disposições legais.
13. In casu, quando o recorrente não satisfaz as disposições legais, a Administração não tem outra alternativa senão executa a lei e não tem poder discricionário, pelo que não viola o princípio da boa fé.
14. Assim, a decisão de não autorização da renovação foi feita com base na violação das disposições legais pelo recorrente nos termos do art.º 9.º n.º 3 da Lei n.º 4/2003, subsidiariamente aplicável pelos art.ºs 22.º n.º 2 e 23.º do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, a entidade recorrida apenas tem possibilidade de fazer decisão de autorização ou não autorização da renovação, sem nenhum poder discricionário ou sem considerar o grau leve ou grave.
15. De acordo com a jurisprudência anterior, não existe poder discriminatório da Administração neste tipo de casos.
16. Além disso, nos pontos 59 a 61 da petição inicial, o recorrente também indicou que a sua família vive sempre no Interior da China e por enquanto não é adequado mudar para Macau, o que é a escolha da vida por vontade pessoal do recorrente.
17. O que mostra que os registos de entrada e saída verificados pela Administração são correctos e o facto de o seu descendente vir raramente a Macau para julgar que ele não reside habitualmente em Macau também é correcto, a execução da lei corresponde à finalidade prevista no art.º 9.º n.º 3 da Lei n.º 4/2003.
18. Portanto, a decisão recorrida não é incorrecta, nem viola os princípios da adequação e da proporcionalidade.
19. Assim, não se verifica que os direitos do descendente são violados.
20. Antes de mais nada, é impossível jugar conforme os elementos dos autos se a família do recorrente virá realmente a residir em Macau no futuro próximo e a presunção de falta de base fáctica não ajuda nem serve do motivo justo do incumprimento dos requisitos legais.
21. Além disso, o recorrente não apresentou provas materiais para provar a violação do seu direito da reunião familiar, pelo contrário, se o seu descendente virá a residir em Macau no futuro, não prejudicará a residência do seu descendente em Macau através da reunião familiar conforme o vigente regime geral de migração quando o recorrente é residente permanente de Macau.
  
  As partes foram notificadas para apresentar alegações facultativas, tendo apenas o Senhor Secretário para a Economia e Finanças oferecido o merecimento dos autos.
  
  Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
  
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  
  O Tribunal é o competente.
  O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
  Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
  
  Cumpre assim apreciar e decidir.
  
III. FUNDAMENTAÇÃO

a) Dos factos
  
  Destes autos e do processo administrativo apenso foi apurada a seguinte factualidade:
a) B nasceu em 31.03.2012 filho de A – cf. fls. 7 do PA apenso -;
b) A desde 23.02.2009 que é titular de autorização de residência em Macau, tendo passado a ser residente permanente em 23.02.2016 – cf. fls. 37 do PA apenso -;
c) Em 10.1.2014 foi concedida a B a autorização de residência em Macau com o motivo de reunião familiar – cf. fls. 102 do PA apenso -:
d) No período de 01.01.2017 a 30.04.2020 a Recorrente esteve em Macau 21 dias e B 8 dias – cf. fls. 91 a 95 do PA apenso -;
e) Em 20.01.2020 a Recorrente requereu a renovação da autorização de residência de B – cf. fls. 47 a 53 do PA apenso -;
f) Por despacho do Presidente do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau datado de 18.08.2020 foi indeferido o pedido de renovação da autorização de residência de B com base nos fundamentos constantes da proposta nº 0293/2007/05R a qual consta de fls. 36 a 41 do PA apenso e aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais;
g) Notificada daquela decisão em 25.08.2020 – cf. fls. 34 do PA apenso -, em 23.09.2020 – cf. fls. 2 do PA apenso - pela ora Recorrente foi interposto Recurso hierárquico daquela decisão o qual ainda não teve decisão;
h) Em 18.10.2021 pela ora Recorrente foi interposto o presente Recurso – cf. fls. 2 -.

b) Do Direito.
  
  Relativamente à matéria dos autos o Douto Parecer elaborado pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público tem o seguinte teor:
  «1.
  A, melhor identificada nos autos, veio instaurar o presente recurso contencioso do indeferimento tácito do recurso hierárquico por si interposto perante o Secretário para a Economia e Finanças do acto do Presidente do Conselho de Administração do Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau que indeferiu o pedido de renovação da autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM) do seu filho B, pedindo a respectiva anulação.
  A Entidade Recorrida, devidamente citada, apresentou contestação na qual pugnou pela improcedência do recurso contencioso.
  2.
  Está em causa no presente recurso contencioso o indeferimento tácito do recurso hierárquico interposto perante a Entidade Recorrida do acto que indeferiu o pedido formulado pela Recorrente de renovação da autorização de residência na RAEM do seu filho menor.
  Baseou-se o referido indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência na aplicação subsidiária da norma do n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, em vigor à data da prática do acto, por a administração ter considerado que o filho da Recorrente não tem residência habitual na RAEM.
  A Recorrente, na petição inicial, começou por imputar ao indeferimento tácito recorrido o vício de erro na aplicação da lei.
  Em seu entender, o deferimento do pedido de renovação da autorização de residência temporária na RAEM não depende da residência habitual na RAEM prevista no n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003.
  Além disso, a Recorrente considera que a ausência temporária do seu filho não significa que o mesmo tenha deixado de residir habitualmente em Macau.
  Finalmente, invoca a violação dos princípios da boa fé e da proporcionalidade e bem assim os direitos fundamentais previstos nos artigos 33.º e 35.º da Lei Básica e no artigo 9.º da Convenção sobre os Direitos da Criança.
  Salvo o devido respeito, parece-nos que nenhum dos fundamentos do presente recurso contencioso está em condições de proceder. Procuraremos, de modo breve, justificar.
  (i)
  A residência habitual na RAEM é um pressuposto da renovação da autorização de residência. É isso o que resulta das normas constante do n.º 3 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003 e da alínea 2) do artigo 24.º do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, diplomas entretanto revogados, mas aplicáveis à situação em apreço, em virtude da norma remissiva constante do artigo 23.º do Regulamento Administrativo n.º 3/2005. Com efeito, se a residência habitual constitui pressuposto da manutenção da autorização de residência, tal não pode deixar de significar que a mesma constitui pressuposto da respectiva renovação (o Tribunal de Última Instância vem, de modo reiterado, decidindo no sentido de que a falta de residência habitual em Macau é causa do cancelamento da autorização de residência, ainda que a mesma tenha sido concedida ao abrigo do Regulamento Administrativo n.º 3/2005: cfr., por exemplo, o acórdão tirado no processo n.º 182/2020).
  (ii)
  O conceito de residência habitual é um conceito jurídico indeterminado que não confere à Administração margem de livre apreciação e cujo preenchimento está, portanto, sujeito ao pleno controlo jurisdicional. Trata-se, a nosso modesto ver, de um conceito relativo ou de geometria variável em função, justamente, da teleologia própria das normas que dele fazem uso. Queremos com isto dizer que não nos parece possível definir aprioristicamente um conceito de residência habitual que se adeque a todas as situações, independentemente das finalidades normativas próprias que em cada caso se revelem.
  A norma do artigo 30.º do Código Civil, sendo embora uma norma de conflitos, fornece, como salienta o Recorrente, um importante contributo no sentido de uma densificação judicativamente relevante do que seja a residência habitual: «considera-se residência habitual o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal».
  A residência habitual é o centro em torno do qual gravitam as ligações existenciais de uma determinada pessoa. Por isso se pode dizer, pela negativa, que não constitui lugar da residência habitual aquele que serve de mera passagem, ou aquele no qual uma pessoa está por curtos períodos de tempo, pois que aí se não encontra a estabilidade indispensável a radicar um centro existencial a partir do qual se possa fundar a formação paulatina, mas consistente, de um vínculo de pertença à comunidade que constitui o substrato pessoal da Região e que, a final, vá culminar na aquisição do estatuto de residente permanente, pois que, como sabemos, tal aquisição, de acordo com o artigo 24.º da Lei Básica pressupõe, justamente, a residência habitual em Macau.
  Face aos elementos de facto que fluem dos autos e que constituíram os pressupostos de facto do acto recorrido que, como a Administração concluiu, o filho da Recorrente não tem residência habitual em Macau.
  Com efeito, quer a própria Recorrente, quer o seu filho, entre 1 de Janeiro de 2017 e 30 de Abril de 2020, praticamente não permaneceram em Macau. Aquela permaneceu um total de 21 dias e este um total de 8 dias. Ora, como bem se compreende, uma tão escassa permanência em Macau, tendo em conta a caracterização do conceito indeterminado da residência habitual que antes fizemos, está longe de ser suficiente para poder suportar a conclusão de que o filho da Recorrente aqui tem a sua residência habitual.
  Não se contesta que, como refere a Recorrente, a residência habitual não implica nem pressupõe uma presença contínua ou constante em Macau. Implica, no entanto, estamos em crer, um substrato presencial mínimo, seja do próprio, seja do núcleo familiar (cônjuge, filhos, pais) que permita vislumbrar a manutenção dos tais laços pessoais de ligação à Região. No caso, isso manifestamente não ocorre.
  Deste modo, cremos justificada a conclusão da Administração no sentido de que faltava um pressuposto indispensável à renovação da autorização de residência do filho da Recorrente, qual seja a sua residência habitual em Macau.
  (iii)
  A inverificação de um dos pressupostos da renovação da autorização de residência vincula legalmente a Administração ao respectivo indeferimento.
  Por isso, a invocada violação do princípio da boa fé e bem assim do princípio da proporcionalidade não possuem relevância invalidante autónomas do indeferimento tácito aqui impugnado, uma vez que a Administração, nos termos do disposto no artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) está estritamente obrigada a observar a lei.
  Uma vez assente que o Recorrido não tem residência habitual em Macau e que a mesma é um pressuposto da manutenção e da renovação da autorização de residência, não resta à Administração senão indeferir o pedido de renovação pelas mesmas razões que a vinculariam a declarar a caducidade do acto autorizativo, não podendo a prática desse acto ser neutralizada pela invocação do princípio da tutela da confiança, uma vez que este constitui um limite da margem de livre decisão administrativa. O princípio da tutela da confiança apenas pode bloquear a adopção de uma conduta administrativa incompatível com a confiança suscitada na medida em que tal conduta se encontre naquele espaço de livre decisão (assim, MARCELO REBELO DE SOUSA – ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 221). O mesmo vale relativamente ao princípio da proporcionalidade cuja violação também foi invocada pela Recorrente.
  (iv)
  Finalmente, a questão relativa à violação dos direitos fundamentais.
  Salvo o devido respeito, não vemos que o acto recorrido tenha violado os direitos fundamentais consagrados nas normas dos artigos 33.º e 35.º da Lei Básica, os quais consagram a liberdade de circulação e a liberdade de escolha de profissão e de emprego, nem que tenha contrariado a Convenção sobre os Direitos da Criança.
  A Administração, por força do princípio da legalidade, consagrado expressamente no já antes por nós referido artigo 3.º do CPA, aplica a lei ordinária e não directamente a lei fundamental. Por isso, em princípio, o juízo de inconstitucionalidade não pode ser formulado directamente sobre o acto, mas sobre a norma legal ou regulamentar que o mesmo interpreta e aplica no caso concreto. A Administração relaciona-se em regra directamente com a lei e só excepcionalmente o faz com a Constituição.
  Deste modo se tem decidido pacificamente que no «domínio da prática de actos administrativos no exercício de poderes vinculados, o juízo de inconstitucionalidade não pode ser formulado, directamente, sobre os actos ou sobre as decisões que, contenciosamente os apreciem, mas sim e apenas sobre as normas jurídicas aplicadas, quer no seu teor, quer na interpretação adoptada em eventual violação de normas ou princípios constitucionais» (assim, na jurisprudência portuguesa, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13.3.2003, processo n.º 035590, disponível em www.dgsi.pt).
  No âmbito do recurso contencioso de um acto administrativo, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Tribunal de Última Instância no seu acórdão de 4 de Julho de 2012, tirado no processo n.º 33/2012, o juiz pode conhecer, incidentalmente, da ilegalidade de um regulamento administrativo ou da violação da Lei Básica por parte de lei ordinária com fundamento no princípio da hierarquia das normas. Cremos, no entanto, que, no caso, as normas legais e regulamentares aplicadas pela Administração não colidem com as normas dos artigos 33.º e 35.º da Lei Básica.
  Parece-nos constitucionalmente legítimo que o legislador faça depender a renovação da autorização de residência da manutenção da residência habitual por parte do interessado. Compreende-se, aliás, que assim seja. Na verdade, o estatuto de residente não permanente que resulta da autorização de residência tende, pelo decurso do tempo, à sua transformação no estatuto de residente permanente. Como tal, justifica-se que a aquisição desta última qualidade dependa não só da existência de um vínculo jurídico meramente formal (o acto administrativo de autorização de residência), mas, mais do isso, de uma efectiva ligação substantiva à Região resultante da circunstância de esta ser o lugar da residência habitual.
  Não enfermando as normas regulamentares e legais aplicadas pela Administração de qualquer desconformidade com as referidas normas dos artigos 33.º e 35.º da Lei Básica e estando em causa uma actuação vinculada, não se vê, pois, que tal actuação possa ser inválida.
  Finalmente, uma referência sucinta à alegada violação da Convenção sobre os Direitos da Criança, para dizer que nos parece evidente que a mesma de modo nenhum ocorre. Ao contrário daquilo que é alegado, a Administração não exigiu nem exige que a Recorrente e o seu filho menor vivam separados. Antes, limitou-se a extrair a consequência legalmente prevista para o facto objectivo de o filho da Recorrente, juntamente com esta, se ter ausentado de Macau e aqui ter deixado de residir habitualmente.
  3.
  Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
  Acrescentaríamos apenas a título de esclarecimento que a Recorrente parece confundir o pressuposto que esteve na origem da sua autorização de residência que foi o investimento realizado, com o fundamento da autorização de residência do seu filho que é o da reunião familiar, sendo que este último pressupõe que quer a Requerente quer o filho tenham a residência habitual na RAEM.
  Se a Requerente e ora Recorrente – mãe – não reside habitualmente na RAEM não há fundamento – neste momento - para que peça autorização para o seu filho aqui viver consigo tendo em vista a reunião familiar, logicamente porque a família aqui não reside.
  
  Destarte, concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público, supra reproduzido, à qual aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta entendemos que o acto impugnado não enferma dos vícios que a Recorrente lhe assaca, sendo de negar provimento ao recurso contencioso.
  
  No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
  
IV. DECISÃO

  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, negando-se provimento ao recurso mantém-se o acto impugnado.
  
  Custas pela Recorrente fixando-se a taxa de justiça em 5UC´s.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 28 de Julho de 2022
  
(Relator) Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong

(Segundo Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong


Mai Man Ieng

849/2021 REC CONT 13