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Processo nº 290/2022
Data do Acórdão: 28JUL2022


Assuntos:

Processo de insolvência
Acção pauliana
Diligências probatórias antecipadas
Princípio da proporcionalidade


SUMÁRIO

1. Estando pendente o processo de insolvência, a eventual procedência da acção pauliana intentada ao abrigo do disposto no artº 1105º do CPC pelo credor do insolvente para o efeito legitimado pelo artº 1108º/1 do CPC, tem por efeitos o regresso à massa insolvente do bem objecto do negócio anulado ou dos valores na medida do interesse do credor, e não aprova apenas este credor de acordo com a regra geral estabelecida no artº 612º do CC.

2. Desde que não vise tutelar valores absolutos, o direito pode sofrer restrições por forma a ceder perante a necessidade de salvaguardar outros valores dignos da tutela jurídica que se situam num patamar de interesse superior.

3. A descoberta da verdade material, indispensável à realização da justiça, prevalece sobre a reserva de sigilo bancário que não tem carácter absoluto.

4. Tendo em conta a susceptibilidade de se detectarem indícios pretium vilis da simulação ou da intenção de prejudicar os seus credores nos movimentos nas contas bancárias de um insolvente, ocorridos não só no próprio dia em que foi celebrado o negócio visado, como também nos momentos que o antecederam, não se mostram ofensivas ao princípio da proporcionalidade as diligências probatórias que incidem sobre os movimentos bancários do insolvente ocorridos desde 05NOV2013, requeridas para impugnar judicialmente um negócio celebrado em 2015.


O relator



Lai Kin Hong


Processo nº 290/2022


Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I

No âmbito dos autos da acção de insolvência nº CV2-20-0003-CFI, requerida por A Macau, S.A. contra B, ambos devidamente identificados nos autos, em que foi declarada a insolvência do requerido com fundamento na inferioridade do seu activo ao seu passivo, foi formulado pela requerente, ao abrigo do disposto no artº 444º do CPC, o pedido de produção antecipada de prova, consistente na obtenção de registos bancários e documentação material conexa nas contas nele identificadas abertas junto do Banco XXXX, S.A..

O pedido foi indeferido pelo seguinte despacho do Exmº Juiz titular do processo de insolvência:
  本案中,法庭已於2021年5月21日作出判決,裁定聲請人訴訟理由成立,並宣告被聲請人B(B)無償還能力。
  在判決中,根據《民事訴訟法典》第1089條第1款c項,法庭已命令扣押債務人的全部財產,包括已被假扣押、查封或以其他方式被扣押或扣留之財產,以便立即將該等財產交予無償還能力管理人。
  就此,XXXX銀行已於卷宗第379頁作出回覆。
  聲請人A澳門股份有限公司現再次申請(見卷宗第253頁及續後之聲請)調取被聲請人於XXXX銀行的帳戶自2013年11月5日起之全部交易紀錄。
  正如本法庭於卷宗第291頁的批示所述,在豁免銀行保密義務方面,法庭一貫採取嚴格謹慎的態度,且必須符合必要及適度原則。就案件目前所處的階段,聲請人欲調查的銀行帳戶交易紀錄對本案而言非屬必要。如聲請人欲就被聲請人的某些行為提出爭執,不論是認為該等行為因屬虛偽而無效,或欲行使債權人撤銷權,或為破產財產之利益而提出爭執,應透過適當的途徑處理或提出聲請。再者,按照聲請人所述,有關移轉行為發生在2015年,聲請人卻要求被聲請人有關銀行帳戶自2013年11月5日起的全部交易紀錄,顯然亦不符合適度原則。
  基於此,法庭決定駁回聲請人的聲請。
  作出適當通知。

Notificada do despacho, e não se conformando com o nele decidido, veio a requerente A Macau, S.A. recorrer do mesmo para este Tribunal de recurso, concluindo e pedindo:
a. A Recorrente é titular de um crédito sobre o Recorrido.
b. Apurou-se, em Hong Kong, que houve movimentos bancários suspeitos entre um dos filhos do Recorrido e o próprio, para tanto utilizando uma conta aberta em Macau no XXXX.
c. A disposição de grandes quantias de dinheiro, por parte do Insolvente, é matéria que diz respeito e importa aos autos em recurso.
d. Todos os factos que impactem, ou que de alguma maneira, estejam relacionados com a afectação da massa insolvente, interessam aos autos recorridos, sendo esta a sede adequada para averiguar todos os factos que impeçam os credores do Recorrido de ver satisfeitos os seus créditos.
e. O Recorrido foi declarado insolvente, significando que o activo patrimonial até agora apurado, se mostra insuficiente para fazer face ao respectivo passivo.
f. O princípio da economia processual exige que cada processo resolva o maior número possível de litígios, assim evitando que os titulares de um ou mais direitos merecedores da tutela do Direito se tenham de multiplicar em distintas iniciativas processuais, que, por sua, multiplicam os custos a suportar.
g. Invocando, ainda, a desnecessidade do pedido da Recorrente, o Tribunal faz um pré-juízo que impacta negativamente as legítimas espectativas dos credores do Insolvente.
h. Sendo, o pedido da Recorrente, proporcional aos montantes que terão sido presumivelmente delapidados com dolo pelo Recorrido, e que hão-de reflectir um método que se terá distendido por um considerável período de tempo.
i. O direito ao sigilo bancário não é absoluto e deve ceder perante o direito de acesso à justiça.
j. Caberia ao XXXX, e não ao Tribunal a quo, argumentar contra o levantamento do sigilo bancário, invocando, para esse efeito, o que julgasse adequado e proporcional.
PELO EXPOSTO, e com o douto suprimento de V. Exas., deverá julgar-se procedente este recurso, revogando-se o Despacho recorrido e, em consequência, permitindo-se (i) a obtenção dos registos bancários junto do XXXX, e (ii) a dispensa do dever de sigilo bancário que sobre o banco recai, tudo nos exactos termos requeridos pela Recorrente, assim se fazendo
   Justiça!

II

Admitido e no Tribunal a quo, o recurso devidamente motivado foi feito subir a este Tribunal de recurso.

Nesta instância foi liminarmente admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Inexistindo questão de conhecimento oficioso e tendo em conta que o desfecho do pedido é o indeferimento com fundamento na não desnecessidade da realização antecipada das diligências probatórias em relação aos autos de insolvência, na existência de outros meios idóneos disponíveis para o efeito, assim como na não conformidade com o princípio da proporcionalidade.

Assim, são as seguintes questões que constituem o objecto da nossa apreciação:

1. Da necessidade da realização antecipada das diligências requeridas; e

2. Do princípio da proporcionalidade.

Então vejamos.

1. Da necessidade da realização antecipada das diligências requeridas

A produção antecipada de prova encontra-se regida no artº 444º do CPC, à luz do qual “havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de prova pericial ou inspecção, pode o depoimento, a perícia ou a inspecção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a acção.”.

Trata-se de uma norma excepcional à regra geral segundo a qual a realização das diligências com vista à obtenção das provas já constituídas e a produção de provas constituendas têm lugar na fase de saneamento e preparação do processo e na da discussão e julgamento da causa, respectivamente.

Como se sabe, a realização antecipada de diligências probatórias justifica-se quando esta apresente carácter de urgência por existir um justo receio de que a obtenção ou a produção de prova venha a tornar-se muito difícil senão impossível na fase processual onde normalmente tem lugar.

Do despacho recorrido resulta que, não tendo apreciado o pressuposto periculum in mora, o Tribunal a quo fundamentou, a título principal, o indeferimento das requeridas diligências probatórias na desnecessidade da sua realização nesta fase do processo de insolvência.

Então só vamos concentrar a nossa abordagem na necessidade das diligências probatórias requeridas no âmbito dos presentes autos de insolvência.

Ora, tendo em conta o alegado no pedido a fls. 449 a 451 dos autos de insolvência, cremos que as diligências probatórias antecipadas foram requeridas pela requerente, ora recorrente, com vista à obtenção dos elementos capazes de demonstrar factos necessários à impugnação da validade de um negócio de compra e venda de imóvel celebrado entre o ora requerido insolvente B e os seus filhos.

De acordo com os elementos existentes nos autos, a requerente, ora recorrente, é credor do insolvente.

Não é questionável a legitimidade da requerente, ora recorrente, para a instauração de uma acção de anulação do negócio, face ao disposto no artº 1108º/1 do CPC, que confere legitimidade não só ao administrador da insolvência, como também ao qualquer credor do insolvente.

Também sabemos que enquanto credor do insolvente, só pode reclamar o seu crédito contra o insolvente e ver satisfeito o seu crédito no âmbito do processo de insolvência.

Assim, a razão de ser da legitimação do credor do insolvente para intentar uma acção de impugnação pauliana é porque esta é uma acção em benefício da massa insolvente – artº 1105º do CPC, não obstante a regra geral prevista no artº 612º do CC à luz da qual a impugnação só aproveita o credor.

E desta maneira, uma vez julgada procedente a acção pauliana, o bem objecto do negócio anulado ou os seus valores na medida do interesse do respectivo credor terão de regressar à massa insolvente.

Destinando-se as diligências ora requeridas à preservação de provas da causa de pedir de uma acção pauliana, a propor por um credor para o efeito legitimado pelo artº 1108º/1 do CPC, em exclusivo benefício da massa insolvente, por força do disposto no artº 1105º do CPC, não vimos razões impeditivas da sua realização antecipada no âmbito do presente processo de insolvência.

2. Do princípio da proporcionalidade.

Subsidiariamente, o Tribunal entende que tendo em conta que foi celebrado em 2015 o negócio que a ora recorrente pretende ver anulado, é manifestamente desconforme ao princípio da proporcionalidade o pedido da obtenção dos registos de todos os movimentos nas contas bancárias ocorridos desde 05NOV2013.

Está em causa o acesso aos dados e informações que um banco possui relativamente às suas relações com um cliente seu.

Se é verdade que o segredo bancário visa garantir o respeito pela vida privada e a dignidade do indivíduo, não é menos certo que, não sendo de carácter absoluto, o direito à reserva de sigilo bancário pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos e interesses dignos de tutela jurídica.

Dentre esses valores relativamente superiores, temos a verdade material, indispensável à realização da justiça.

Foi justamente por isso, o nosso legislador teve o cuidado de estabelecer, quer no plano substantivo quer no processual, formas e critérios para resolver os eventuais conflitos entre os valores e interesses em confronto.

No plano substantivo, temos o artº 327º do CC, que reza:
(Colisão de direitos)
1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva em concreto considerar-se superior.
Já no plano processual, o CPC dispõe nos seus artºs 442º e 443º sobre quais os valores e em que termos podem sofrer restrições quando estiverem em colisão com o valor de verdade material e de justiça material.

Rezam os artigos que:
Artigo 442.º
(Dever de cooperação para a descoberta da verdade)
1. Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.
2. Aqueles que não prestem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que sejam legalmente possíveis; se a colaboração não for prestada pela parte, o tribunal aprecia livremente o valor da respectiva conduta para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do disposto no n.º 2 do artigo 337.º do Código Civil.
3. Cessa o dever de colaboração quando esta importe:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nos outros meios de comunicação;
c) Violação do segredo profissional ou de funcionário, ou do segredo do Território, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4. Pedida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto na lei processual penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de segredo invocado.
Artigo 443.º
(Dispensa da confidencialidade)
A confidencialidade de dados que se encontrem na disponibilidade de organismos oficiais e que se refiram à identificação, à residência, à profissão e entidade empregadora ou que permitam o apuramento da situação patrimonial de alguma das partes, não obsta a que o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, determine a prestação de informações essenciais para o regular andamento do processo ou para a justa composição do litígio.
Decorre desses normativos, quando globalmente interpretados, que foi concretizado no plano legislativo o que afirmamos supra, ou seja, desde que não visem tutelar valores absolutos, os direitos podem sofrer restrições por forma a ceder perante a necessidade de salvaguardar a justiça material.

Voltemos ao caso em apreço, cremos que a descoberta da verdade material com vista à realização da justiça torna necessária a quebra do sigilo bancário.

Porquanto com a obtenção dos dados e informações relativas aos movimentos activos e passivos nas contas bancárias do insolvente, o Tribunal ficará a conhecer os fluxos de dinheiro nelas registados e a identificação dos sujeitos neles intervenientes, o que o habilita a ajuizar, na acção de impugnação pauliana a propor, se o insolvente e os seus filhos agiram dolosamente com o fim de diminuir ou fazer desaparecer o bem imóvel na esfera jurídica do insolvente, por forma a impedir o cumprimento da obrigação para com a requerente, seu credor.

Quanto à razoabilidade da extensão temporal das informações bancárias que a requerente pretende obter, é de entender procedentes os argumentos deduzidos pela ora recorrente, no sentido de que é necessária uma sucessão de comportamentos bem articulados temporalmente e que …… deixaram “rasto” para execução de tamanho perecimento de património.

Na verdade, tendo em conta a susceptibilidade de se detectarem indícios pretium vilis da simulação ou da intenção de prejudicar os seus credores nos movimentos nas contas bancárias ocorridos, não só no próprio dia em que foi celebrado o negócio, como também nos momentos que o antecederam, compreende-se a razão que levou a requerente a fazer incidir as diligências probatórias requeridas sobre o curto período de tempo anterior à celebração do negócio que pretende impugnar.

Portanto, não se nos mostra excessiva a extensão temporal em que a requerente pretende obter os dados e informações bancárias para instruir a acção de impugnação a intentar.


Em conclusão:

1. Estando pendente o processo de insolvência, a eventual procedência da acção pauliana intentada ao abrigo do disposto no artº 1105º do CPC pelo credor do insolvente para o efeito legitimado pelo artº 1108º/1 do CPC, tem por efeitos o regresso à massa insolvente do bem objecto do negócio anulado ou dos valores na medida do interesse do credor, e não aprova apenas este credor de acordo com a regra geral estabelecida no artº 612º do CC.

2. Desde que não vise tutelar valores absolutos, o direito pode sofrer restrições por forma a ceder perante a necessidade de salvaguardar outros valores dignos da tutela jurídica que se situam num patamar de interesse superior.

3. A descoberta da verdade material, indispensável à realização da justiça, prevalece sobre a reserva de sigilo bancário que não tem carácter absoluto.

4. Tendo em conta a susceptibilidade de se detectarem indícios pretium vilis da simulação ou da intenção de prejudicar os seus credores nos movimentos nas contas bancárias de um insolvente, ocorridos não só no próprio dia em que foi celebrado o negócio visado, como também nos momentos que o antecederam, não se mostram ofensivas ao princípio da proporcionalidade as diligências probatórias que incidem sobre os movimentos bancários do insolvente ocorridos desde 05NOV2013, requeridas para impugnar judicialmente um negócio celebrado em 2015.

Resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar procedente o recurso, revogando o despacho recorrido e determinando a baixa dos autos à 1ª instância a fim de ordenar a realização antecipada das diligências probatórias nos termos requeridos, caso inexistam outros motivos impeditivos.

Sem custas.

Registe e notifique.

RAEM, 28JUL2022

(Relator)
Lai Kin Hong

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong

(Segundo Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
290/2022-1