Processo nº 665/2019
Data do Acórdão: 28JUL2022
Assuntos:
Curso de formação de notários privados
Concurso para a atribuição das licenças de notário privado
Discricionariedade técnica
SUMÁRIO
1. Inserindo-se no domínio da discricionariedade técnica reservada à Administração e subtraída aos poderes de controlo jurisdicional, a actividade de avaliação e classificação do mérito das provas em matéria concursal, só pode ser sindicada nos seus aspectos vinculados ou quando no seu exercício ocorra erro manifesto de apreciação ou se infrinjam os princípios gerais reguladores da actividade administrativa.
2. Diz-se o erro ser manifesto quando é tão grosseiro e flagrante que se torne evidente nos olhos de um leigo não detentor do conhecimento técnico da matéria em causa
3. Tendo sido adoptado pelo júri o mesmo critério a aplicar a todos os candidatos segundo o qual quer as ressalvas específicas quer as suas omissões, não influem na valoração das respostas dadas pelos candidatos, a não “compensação” da recorrente pelas ressalvas específicas que fez não violou os princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça.
4. Desde que não tenha sido questionada a fidelidade substancial das traduções ao teor dos textos de partida e mesmo que as rasuras, palavras riscadas e emendas contidas nas respostas redigidas em chinês não tenham sido talqualmente reproduzidas nas traduções para português, estas traduções, de forma alguma, podem aperfeiçoar o conteúdo material das respostas originalmente redigidas em chinês. Portanto, as tais traduções, com base nas quais fizeram a valoração os notadores que não dominam a língua chinesa, não beneficiam injusta e injustificadamente os candidatos que optaram pelo uso da língua chinesa nas respostas.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 665/2019
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, devidamente identificada nos autos, candidata ao Curso de Formação de Notários Privados, notificada e inconformada com o despacho de provimento parcial proferido pelo Chefe do Executivo que, em sede de recurso gracioso interposto da lista de classificação final dos candidatos do mesmo concurso, veio interpor recurso contencioso de anulação daquele despacho para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo que:
I. A Recorrente foi a candidata número 108 do Curso de Formação de Notários Privados, tendo sido graduada em 45.º lugar da lista final, com a classificação final de 51,115, conforme resulta da Lista de Classificação Final dos Candidatos ao Curso de Formação de Notários Privados, publicada no Boletim Oficial n.º 46, Série II, de 14 de Novembro de 2018;
II. Sucede que a Recorrente não se conformou com a respectiva classificação final, pelo que interpôs o recurso hierárquico necessário da Lista de Classificação Final dos Candidatos ao Curso de Formação de Notários Privados, dirigido a S. Exa o Chefe do Executivo, na medida em que foi este quem determinou a abertura do concurso e o autor do acto de homologação;
III. No apontado recurso hierárquico a Recorrente requereu a procedência do recurso em causa e que, obtido provimento, fosse em consequência determinado:
1 - A anulação da Lista de Classificação Final dos Candidatos ao Curso de Formação de Notários Privados, objecto de homologação pelo Senhor Chefe do Executivo da RAEM, a qual foi publicada no Boletim Oficial n.º 46, Série II, de 14 de Novembro de 2018;
2 - Ordenar-se a correcção das pontuações atribuídas às respostas dadas pela Recorrente, elevando-se os valores em causa de forma a que às respostas dadas fossea atribuída a justa pontuação, a saber:
- Na resposta à Questão 2 c) do Grupo I da prova escrita final - primeira fase (fase teórica), deveria ser atribuída a pontuação de 2 (dois) valores.
- Na resposta à Questão 3 a) do Grupo II da prova escrita final - primeira fase (fase teórica), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 4 (quatro) valores.
- Na resposta à Questão 3 b) do Grupo II da prova escrita final - primeira fase (fase teórica), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 4 (quatro) valores.
- Na resposta à Questão 5 do Grupo III da prova escrita final - primeira fase (fase teórica), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 7 (sete) valores.
- Na resposta à Questão 6 do Grupo III da prova escrita final - primeira fase (fase teórica), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 7 (sete) valores.
- Na resposta à Questão 9 do Grupo III da prova escrita final - primeira fase (fase teórica), deveria ser atribuída a pontuação de 7,5 (sete vírgula cinco) valores.
- Na resposta à Questão 10 do Grupo III da prova escrita final - primeira fase (fase teórica), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 3,5 (três vírgula cinco) valores.
- Na resposta à Questão 3 a) do Grupo I da prova escrita final - segunda fase (fase prática), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 4 (quatro) valores.
- Na resposta à Questão 3 b) do Grupo I da prova escrita final - segunda fase (fase prática), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 20 (vinte) valores.
- Na resposta à Questão 4) do Grupo II da prova escrita final - segunda fase (fase prática), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 8,5 (oito vírgula cinco) valores.
- Na resposta à Questão 5 d) do Grupo II da prova escrita final - segunda fase (fase prática), deveria ser atribuída pontuação não inferior a 1,5 (um vírgula cinco) valores.
3 - Efectuada a correcção das pontuações parcelares da Recorrente quanto às fases teórica e prática, dever-se-ia proceder à recontagem e reponderação das percentagens de cada uma das fases com a consequente reclassificação final da Recorrente no lugar correspondente;
4 - Ordenar-se a reelaboração da lista de classificação final depois de corrigida;
5 - Após o que deveria promover-se nova publicitação no Boletim Oficial da RAEM;
6 - Tudo com as respectivas consequências legais.
IV. No dia 21 de Maio de 2019, a Recorrente foi notificada por carta registada do teor do ofício n.º 215/DSAJ/DARN/2019, de 17/05/2019, dando conta da decisão proferida em 9/4/2019 por Sua Excelência o Chefe do Executivo sobre o recurso hierárquico necessário interposto em 28/11/2018.
V. Até à data não foi publicada no B.O. a nova lista classificativa final corrigida.
VI. S. Exa. o Chefe de Executivo decidiu em 9/4/2019 o seguinte: “同意。根據建議書的內容和所述理據,本人決定該上訴理由部分成” .
VII. O acto recorrido é o acto de indeferimento parcial proferido por S. Exa o Chefe do Executivo da RAEM (Recorrido), a coberto de Despacho de 9/4/2019, exarado sobre o Parecer da Exma. Secretária para a Administração e Justiça de 2 de Abril de 2019 e o Parecer n.º 10/DSAJ/DGAF/2019 de 15/03/2019, que concordando com os fundamentos aí referidos decidiu indeferir parcialmente o recurso hierárquico necessário interposto pela Recorrente em 28 de Novembro de 2018, da Lista de Classificação Final dos Candidatos ao Curso de Formação de Notários Privados, homologada por despacho de 30 de Outubro de 2018, publicada no Boletim Oficial n.º 46, Série II, de 14 de Novembro de 2018,
VIII. No recurso hierárquico apenas foi dado provimento interposto e à questão 2 do Grupo I da prova escrita final- primeira fase (fase teórica), e
IX. As demais pretensões e fundamentos invocados pela Recorrente no recurso hieráquico, sobre as questões (i) 3 a) e b) do Grupo II, (i) 5, 6, 9 e 10 do Grupo III, todas da prova escrita final - primeira fase (teórica), bem como as questões (iii) 3 a) e b) do Grupo I e (iv) 4) e 5 d) do Grupo II, todas da prova escrita final, segunda fase (prática), foram dados como improcedentes pelo Despacho recorrido.
X. O acto recorrido é recorrível e está em tempo.
XI. As respostas propostas às perguntas do enunciado deviam corresponder ao que foi perguntado, e isso devia ser feito de modo claro e que não levantasse dúvidas a quem as leia;
XII. A Recorrente respondeu de forma directa, clara e precisa às perguntas que lhe foram colocadas, não podendo, por isso mesmo, ser penalizada pelo facto de alguns outros candidatos terem dado respostas diferentes daquelas que lhes foram pedidas nos enunciados;
XIII. Os critérios de avaliação e a grelha de correcção estipulados no Plano de preparação da prova escrita final: 1.ª Fase e 2.a Fase do Curso do Formação de Notários Privados foram aprovados em 29/06/2018.
XIV. Houve dualidade de critérios de avaliação por parte do Júri do Concurso, bem como os formadores/examinadores na avaliação das respostas dos candidatos.
XV. Não podem ser utilizados critérios de avaliação diferentes dos previstos no Plano de preparação na apreciação das respostas dadas pelos candidatos;
XVI. Os pareceres em que se suporta o acto recorrido contêm falta de fundamentação ou contêm fundamentação obscura e deficiente;
XVII. Demonstra-se ainda que as respostas dadas pela Recorrente tinham conteúdo idêntico às dos outros candidatos para as mesmas questões, pelo que deviam ter merecido idêntica valoração.
XVIII. Em resultado de utilização de diferentes critérios de avaliação, o acto recorrido violou os princípios de justiça, igualdade e imparcialidade, transparência, isenção, consagrados nos art.ºs 5.º, 7.º do CPA, bem como, o n.º 3 do artigo 10.º Lei n.º 14/2009, ex vi n.º 1 do artigo 2.° do Decreto-Lei n.º 66/99/M, de 1 de Novembro (Estatuto dos Notários Privados), alterado pela Lei n.º 7/2016), razões pelas quais o acto de indeferimento parcial deve ser anulado o acto recorrido.
XIX. A Recorrente não pode ser penalizada pelas traduções realizadas das provas de alguns candidatos que se exprimiram em língua chinesa, e que nos originais fizeram rasuras e traçaram palavras que não só não foram objecto de ressalvas no original como depois não passaram para os textos traduzidos, dando a quem corrige e não domina a língua chinesa a ideia de que o original estava perfeito, sem gralhas, rasuras e palavras riscadas;
XX. É fácil verificar no processo concursal a existência das irregularidades invocadas pela Recorrente, bastando a um simples confronto da resposta originária com a tradução.
XXI. O Júri tendo sido alertado em sede de recurso hierárquico para as deficiências e irregularidades do processo de tradução das respostas dadas pelos candidatos que expressaram em língua chinesa era obrigado a tomar as diligências necessárias ao apuramento da existência e para correcção dessas deficiências, nada tendo feito sobre esta questão, o que inquina o acto recorrido.
XXII. Sob a pena de grave injustiça e de falseamento da própria avaliação dos conhecimentos dos candidatos, com benefícios para uns e prejuízos para outros,
XXIII. Fica uma rasto de dúvida, de falta de transparência que, pela incerteza, deixa espaço à desconfiança e pasto para a suspeita pública acerca da isenção da Administração, o que significa que, no caso concreto, está configurada uma situação de dúvida, de perigo de favorecimento pessoal que, contamina o procedimento e basta para anular o acto recorrido, em honra ao princípio da imparcialidade.
XXIV. A existência de erros no processo de tradução beneficiou os candidatos que se exprimiram em língua chinesa.
XXV. A existência de erros de correcção inquinou o processo de avaliação por assentar em erro sobre os pressupostos de facto.
XXVI. Não resta dúvidas que os erros acima alegados são grosseiros e manifestos.
XXVII. Essa violação foi flagrante e ostensiva, na medida em que se verifica uma actuação que favorece outros candidatos em detrimento da Recorrente;
XXVIII. O acto recorrido violou os princípios da imparcialidade, da isenção, da transparência, da justiça, da igualdade consagrados nos art.°s 5.°, 7.° todos do CPA, bem como, o n.º 3 do artigo 10.° Lei n.º 14/2009, ex vi n.º 1 do artigo 2.° do Decreto-Lei n.º 66/99/M, de 1 de Novembro (Estatuto dos Notários Privados), alterado pela Lei n.º 7/2016), razões pelas quais deverá ser anulado o acto recorrido.
Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser admitido o presente recurso e, dado como provado os vícios invocados pela Recorrente, ser anulado o acto de indeferimento parcial do recurso hierárquico necessário proferido por Sua Excelência o Chefe do Executivo de 9/4/2019.
Requer-se a citação da S. Exa. O Chefe do Executivo, recorrido, para, querendo, contestar o presente recurso ao abrigo do artigo 53.º do CPAC;
Para tanto, e para efeitos de prova, requer-se a ainda V. Exa. se digne ordenar à Entidade Recorrida, nos termos do art.º 55.º do CPAC, a remessa do original do Processo Administrativo integral relativo ao concurso “Curso de Formaçao de Notános Privados”, aberto por aviso publicado no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau n.º 31, II Série, de 2 de Agosto de 2017, bem como os demais documentos atinentes à matéria do presente recurso, dele devendo constar, em especial, para uma correcta apreciação do presente recurso, os documentos que seguidamente se
referem:
a) O enunciado da prova escrita final (fase teórica) de 13/07/2018);
b) O enunciado da prova escrita final (fase prática) de 16/07/2018);
c) A “NOTA” de 17/07/2019 que acompanha o enunciado da prova escrita final (fase prática) de 16/07/2018);
d) As "folhas de resposta" da prova escrita final (fase teórica) de 13/07/2018 da Recorrente;
e) As “folhas de resposta” da prova escrita final (fase prática) de 16/07/2018 da Recorrente;
f) As grelhas de correcção da prova escrita final da primeira fase - fase teórica - e da segunda fase - fase prática, aprovadas pelo Júri;
g) As “folhas de resposta” da prova escrita final (fase teórica) de 13/07/2018 dos candidatos n.ºs 14, 17,73,82,87; 96,100 e 103;
h) As “folhas de resposta” da prova escrita final (fase prática) de 16/07/2018 dos candidatos n.ºs 16,23; 24; 28; 29; 63; 76; 83; 87, 95 e 111, 118 e 123;
i) O mapa de classificação final da avaliação da prova escrita final de onde constam os dados dos candidatos e as pontuações atribuídas às questões colocadas em crise por este recurso.
Citados para contestar, vieram a entidade recorrida e alguns dos contra-interessados contestar, todos pugnando pela improcedência do recurso.
Não houve lugar à produção de provas.
Notificados a recorrente, a entidade recorrida e os contra-interessados nos termos e para os efeitos do disposto no artº 68º do CPAC, dois dos contra-interessados apresentaram alegações facultativas.
Em sede de vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pela improcedência do presente recurso.
Colhidos os vistos, cumpre conhecer.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo é o próprio e inexistem nulidades e questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito do presente recurso.
Os sujeitos processuais gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
De acordo com os elementos existentes nos autos, é tida por assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* Por despacho do Chefe do Executivo n.º 231/2017, publicado no B. O. nº 29, II, 2017, foi autorizada a abertura de concurso para admissão ao curso de formação de notários privados, tendo-se fixado em 40 o número de licenças de notário privado a atribuir;
* A recorrente é um dos candidatos admitidos e frequentou o curso de formação;
* De acordo com o regime de frequência e de avaliação do curso, a avaliação dos candidatos é feita mediante a realização da prova escrita final que compreende duas fases, sendo a primeira a fase teórica e a segunda a fase prática;
* Realizada a prova escrita, foi publicada no B. O. nº 46, II, de 14NOV2018, a lista de classificação final dos candidatos ao Curso de Formação de Notários Privados, homologada por despacho do Chefe do Executivo, de 30 de Outubro de 2018;
* Inconformada, veio a recorrente interpor recurso gracioso da lista classificativa para o Chefe do Executivo que autorizou a abertura do concurso;
* Por despacho do Chefe do Executado exarado em 09ABR2019 na informação nº 10/DSAJ/DGAF/2019 de autoria do júri do concurso, decidiu conceder-se a provimento parcial ao recurso gracioso e determinar-se alteração parcial da lista e publicação da lista de classificação, reformulada nos termos decididos, passando a atribuir à recorrente a nota final de 51.415 valores;
* De novo inconformada, veio a recorrente interpor para este TSI recurso contencioso de anulação da decisão vertida naquele despacho datado de 09ABR2019 sobre o recurso gracioso;
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com o delimitado nas conclusões, a recorrente impugna o despacho do Chefe do Executivo de 09ABR2019 que, em sede de recurso gracioso, lhe atribuiu a nota final de 51.415 valores, de acordo com a proposta elaborada pelo júri do concurso que concordou.
Para o efeito, imputa-lhe uma série de vícios que podem ser redutíveis sinteticamente às questões do erro na avaliação de mérito das respostas dadas pela recorrente e da violação dos princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça.
Vejamos.
1. Erro na avaliação de mérito
A recorrente começa por questionar a bondade da avaliação feita pelo júri das repostas por ela dadas às questões 3-a) e b) do Grupo II, 5, 6, 9 e 10 do Grupo III, da prova escrita final – fase teórica, e às questões 3-a) e b) do Grupo I e 5-d) do Grupo II da prova escrita final – fase prática, tendo para o efeito alegado, em síntese, que, embora algo diversas das respostas indicadas na grelha de correcção, as suas respostas, fundamentadas e coerentes, não foram correctamente avaliadas pelo júri, e que houve um tratamento desigual em relação a outros candidatos, pois algumas das suas respostas foram subavaliadas se comparadas com as respostas dadas por alguns outros candidatos, que, não obstante incompletas e menos fundamentadas ou não semelhantes às da grelha de correcção, mereceram melhores notas do que as obtidas por ela, o que, na sua óptica, consubstancia erro grosseiro e manifesto na avaliação e consequentemente violação dos princípios de igualdade, justiça, isenção, imparcialidade.
A propósito dessas questões suscitadas pela recorrente, o Ministério Público, em sede de vista final, opinou:
Na petição inicial a recorrente solicitou a anulação do despacho de indeferimento parcial proferido pelo Exmo. Sr. o Chefe do Executivo, arrogando a violação dos princípios da imparcialidade, da isenção, da transparência, da justiça e da igualdade consagrados nos arts.5º e 7º do CPA, bem como o n.º3 do art.10.º da Lei n.º14/2019 ex vi n.º1 do art.2.º do D.L. n.º66/99/M alterado pela Lei n.º7/2016.
*
Adverte o saudoso Professor Freitas do Amaral (Direito Administrativo, Vol. II, Lisboa 1989, pp.180 a 188): A classificação de candidatos em concurso público de recrutamento ou provimento é uma das modalidades exemplares da figura de “justiça administrativa”, em recurso contencioso o tribunal não pode apreciar o conteúdo das decisões tomadas pela Administração neste domínio, no fundo não pode fiscalizar a justeza dessas decisões.
No vertente caso, a petição inicial, de per si, patenteia, com toda a clareza, que a recorrente criticou, tão-só e simplesmente, as pontuações quantitativas efectuadas pelos ilustres formadores/examinadores quem tinham apreciado e pontuado as respostas da recorrente nas provas finais do Curso de Formação de Notários Privados.
Com efeito, não há dúvida de que a recorrente não invocou o vício de forma, incompetência ou desvio de poder. O que implica que à luz do sagaz ensinamento do saudoso Professor Freitas do Amaral (Direito Administrativo, Vol. II, Lisboa 1989, pp.183 a 184), a recorrente não alegou matéria fiscalizável pelo poder judicial em sede de recurso contencioso.
……
*
Bem, estamos tranquilamente convictos de que é plenamente válida no caso sub judice a jurisprudência mais autorizada da RAEM que vem asseverando que na notação de funcionários os tribunais podem sindicar os aspectos vinculados do acto, mas não os que se referem ao mérito ou à justiça da classificação, a menos que se demonstre o uso de um critério ostensivamente inadmissível ou erro manifesto de apreciação. (vide. arestos do TUI nos Processos n.º33/2006 e n.º32/2008, do TSI nos Processos n.º79/2001, n.º1/2004 e n.º207/2005)
Analisando cuidadosamente as matérias aduzidas pela recorrente nos arts.30º a 35º, 54º a 58º ex vi 63º a 64º, 70º a 74º ex vi 76º a 77º, 85º a 87º ex vi 89º a 91º, 102º a 106º ex vi 108º, 126º a 131º, 137º a 144º, 149º a 155º, 185º a 193º e 214º a 220º, todos da petição, inclinamos a colher que nenhum dos prudentes formadores-examinadores usou um critério ostensivamente inadmissível ou erro manifesto de apreciação, e as respectivas pontuações criticadas não colidem comos princípios da imparcialidade, da isenção, da transparência, da justiça e da igualdade.
Salvo merecido respeito pela opinião diferente, afigura-se-nos que todas as pontuações dadas aos restantes candidatos chamadas à colação na petição inicial para sustentar o pedido de anulação não são capazes de demonstrem que as pontuações obtidas pela recorrente padeçam do erro grosseiro ou da total desrazoabilidade, nem têm virtude de justificar as suas pretensões respeitantes ao aumento das suas pontuações.
Concordamos inteiramente com o douto parecer do Ministério Público.
Na verdade, está em causa uma actividade de avaliação e classificação do mérito das provas em matéria concursal, que se inserindo no domínio da discricionariedade técnica reservada à Administração e subtraída aos poderes de controlo jurisdicional, só pode ser sindicada nos seus aspectos vinculados do acto ou quando no seu exercício ocorra erro manifesto de apreciação ou infrinja os princípios gerais reguladores da actividade administrativa.
Assim, quando chamados para se pronunciarem sobre a bondade de um acto administrativo praticado no âmbito da denominada discricionariedade técnica, para além dos aspectos vinculados que se prendem com a legalidade externa do acto, nomeadamente os vícios de forma, incompetência ou desvio de poder, os Tribunais só ficam habilitados a sindicar o acto quando o juízo nele vertido incorra num erro flagrante, isto é, num erro tão grosseiro e manifesto que se torne evidente nos olhos de um leigo não detentor do conhecimento técnico da matéria em causa, ou quando representa a utilização de critérios de avaliação ostensivamente inadequados ou manifestamente desacertados e a violação dos princípios gerais reguladores da actividade administrativa.
Ao que parece, in casu, a recorrente fez por um lado uma auto-valoração das suas respostas e depois tomou como correctos os juízos valorativos que fez sobre as suas respostas para tentar convencer este Tribunal de que as suas respostas foram subavaliadas, e por outro, fez uma comparação entre as suas respostas e as de alguns dos outros candidatos, e entre as notas que ela obteve e as que outros candidatos obtiveram, para dai retirar a conclusão de que houve erro na avaliação das suas respostas e foram infringidos os princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça.
E com fundamento nisso, pediu ao Tribunal não só para analisar se as suas respostas devem merecer notas diversas e superiores às que lhe foram atribuídas pelo júri, como também para confrontá-las com as respostas de alguns dos restantes candidatos, a fim de ajuizar se as suas respostas estão realmente mais conformes com a grelha de correcção, ou se se mostram subavaliadas em comparação com as respostas de outros candidatos, por forma a confirmar a existência dos erros e ofensa dos tais princípios gerais do direito administrativo, tal como ela defende.
Se agíssemos nos termos pretendidos, estaríamos a intrometer-se no domínio da dita discricionariedade técnica, exclusivamente confiada à Administração e a substituir-nos à Administração, procedendo à avaliação das provas de conhecimento prestadas pelos candidatos, atribuindo a classificação que entenderiamos ser justa.
Obviamente não estamos habilitados a agir desta maneira.
Em relação à tese da recorrente de que sendo algumas das suas respostas semelhantes ou melhores em comparação com as respostas de alguns dos outros candidatos, ela deveria obter notas iguais ou melhores do que estes outros candidatos, temos de salientar que, se estivéssemos perante um enunciado das ciências exactas, onde as respostas poderiam ser encontradas mediante exercício de cálculos precisos com a aplicação de fórmulas matemáticas ou uso de métodos rigorosos baseados em experimentos reprodutíveis e quantificáveis, portanto a correcção de uma resposta dependeria unicamente dos parâmetros ou critérios previamente determinados por aquele tipo de cálculos e métodos.
Estaríamos portanto em condições para fazer uma mera operação linear e mecânica no sentido de verificar se os candidatos acertaram, com as suas respostas, as respostas-padrão propostas na grelha de correcção, ou medir o grau da semelhança das respostas da recorrente com as respostas de outros candidatos e o grau da proximidade relativa das suas respostas às propostas nas grelhas de correcção em comparação com as de outros, como se estivéssemos a ajuizar a legalidade dos actos administrativos praticados no exercício de poderes vinculados.
Só que, no caso sub judice, estamos a lidar com a matéria do notariado, integrável nas ciências jurídicas, onde o mais vulgar fenómeno é a existência possível da alternatividade ou multiplicidade das soluções, todas tecnicamente plausíveis, a aplicar a uma mesma questão, portanto nem sempre, ou na maioria de vezes, se admite a unicidade das respostas correctas.
Assim, o valor qualitativo das respostas não se pode medir ou não se pode comparar linear e mecanicamente.
Por outro lado, não obstante fornecidas as grelhas de correcção sobre os enunciados das provas, o certo é que a mera existência das mesmas não retire a autonomia e a liberdade de apreciar e valorar as respostas dadas às perguntas nos enunciados, em função do grau da adequação e do rigor técnico das expressões utilizadas, da sistematização e da forma da exposição das razões de facto e de direito para a fundamentação das respostas, do grau da clareza e da coerência da sua exposição, da economia das palavras, assim como da sua pertinência à essencialidade das questões.
O que para nós, justifica que a actividade de avaliação das provas na matéria concursal se deva situar fora do domínio do controlo jurisdicional e que a dita discricionariedade técnica deva ser reconhecida aos notadores que, segundo cremos, estão em melhores condições técnicas para proceder à valoração das provas e ajuizar as aptidões dos candidatos.
Sendo inserida na matéria sujeita à discricionariedade técnica, subtraída aos poderes de sindicância jurisdicional e não tendo demonstrado erro manifesto de avaliação ou violação de qualquer dos princípios gerais reguladores da actividade administrativa, esta parte do recurso não pode proceder.
2. Violação dos princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça.
Imputa a recorrente ao acto recorrido ainda a violação dos princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça.
Para o efeito, a recorrente alega que ela fez ressalvas detalhadas das rasuras e emendas nas suas respostas da prova prática, ao passo que alguns outros candidatos não o fizeram. Ao confrontar as suas respostas com as dos candidatos que não fizeram ressalvas específicas, verificou que, não obstante serem semelhantes as respostas, as respostas sem as devidas ressalvas acabaram por ser valoradas com notas superiores às obtidas pela recorrente.
Defende ainda que ela não pode ser penalizada pelas traduções realizadas das provas de alguns candidatos que se exprimiram em língua chinesa, e que nos originais fizeram rasuras e traçaram palavras que não só não foram objecto de ressalvas no original como depois não passaram para os textos traduzidos, dando a quem corrige e não domina a língua chinesa a ideia de que o original estava perfeito, sem gralhas, rasuras e palavras riscadas.
Trata-se de uma questão já suscitada em sede de recurso gracioso, onde foi decidida nos termos seguintes:
有關塗改、插行書寫及表示曾作出更改的更改聲明,在筆試期間已表示不需要在公證書完結部分中特別註明,因為理解到准考人在有限時間內需要用手書寫的情況,故只需要以概括方式表示相關更改聲明。因此,就有關公證書這一部分內容,評卷導師不予特別的加分或減分。"(參見卷宗第159頁至第159V頁),委員會認為A(A)就實踐試第3b)題所作的上訴理由不成立,建議維持得分不變。
Em face do assim decidido no recurso gracioso, a recorrente argumentou em sede do presente contencioso de anulação, que, se soubesse da desnecessidade de referir especificamente no final do texto da escritura as rasuras, entrelinhas e eliminação de palavras, apenas bastando uma menção geral à necessidade da sua ressalva, ela não teria perdido tempo a detalhar as ressalvas.
Antes de mais, é de salientar que as respostas não se podem considerar melhores pura e simplesmente por não conter nelas gralhas, rasuras e palavras riscadas, é preciso que sejam consideradas boas pelos notadores quanto ao mérito do seu conteúdo.
Portanto, não se pode acusar os notadores de ter tratado injustamente os candidatos que apresentaram respostas sem gralhas, rasuras e palavras riscadas por terem obtido melhores notas os candidatos que fizeram rasuras nas suas respostas.
Do decidido em sede de recurso gracioso, ficamos a saber que as ressalvas específicas, efectuadas ou omissas, não foram levadas em conta pelos notadores para o efeito de quantificação dos valores a dar às respostas.
Foi adoptado o mesmo critério segundo o qual quer as ressalvas específicas quer as suas omissões, não influem na valoração das respostas dadas pelos candidatos.
Sendo assim um mesmo critério aplicado a todos os candidatos, não se vê em que termos foram violados os princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça.
Quanto ao argumento da perda do tempo para detalhar as ressalvas, continuamos a entender que não obstante mais trabalho feito pela recorrente, desde que tenha sido o mesmo critério a aplicar a todos candidatos, não vimos em que termos viola os tais princípios a não “compensação” da recorrente pelo trabalho a mais, feito pela recorrente, mas inócuo para o efeito da avaliação.
Improcede portanto essa parte do recurso.
Finalmente, insistindo na imputação ao júri a violação dos princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça, alegou a recorrente que sendo alguns dos formadores não bilingues, as respostas redigidas em chinês foram traduzidas para a língua oficial que os formadores dominam e que como as traduções não têm palavras riscadas, emendas e/ou rasuras, não existem dúvidas de que se verifica um erro grosseiro e grave na classificação das respostas dadas pelos candidatos que redigiram em língua chinesa as respostas, já que as traduções para a língua portuguesa que expurgaram palavras riscadas, emendas e rasuras do texto das respostas originais e que surgiram limpas, sem as diversas emendas, palavras riscadas e rasuras, alteraram o conteúdo da prova, induzindo o júri em claro e gravíssimo erro relativamente ao que havia sido escrito em língua chinesa, de modo a afectar gravemente a valoração das respostas e a classificação dos candidatos.
Não tem razão a recorrente.
Para nós as meras rasuras, palavras riscadas e emendas não se prendem com a qualidade substancial das respostas, e nunca afectar a sua rectidão material e quanto muito, podem influir no seu aspecto estético que, segundo os elementos dos autos, não releva à determinação do quantum das notas a atribuir.
Assim, desde que não tenha sido questionada a fidelidade substancial das traduções ao teor dos textos de partida e mesmo que as rasuras, palavras riscadas e emendas contidas nas respostas redigidas em chinês não tenham sido talqualmente reproduzidas nas traduções para português, estas traduções, de forma alguma, podem aperfeiçoar o conteúdo material das respostas originalmente redigidas em chinês, de modo a beneficiar injusta e injustificadamente os candidatos que optaram pelo uso da língua chinesa nas respostas, nem alterar o conteúdo da prova desses candidatos, tal como assim entende a recorrente.
Em conclusão:
5. Inserindo-se no domínio da discricionariedade técnica reservada à Administração e subtraída aos poderes de controlo jurisdicional, a actividade de avaliação e classificação do mérito das provas em matéria concursal, só pode ser sindicada nos seus aspectos vinculados ou quando no seu exercício ocorra erro manifesto de apreciação ou se infrinjam os princípios gerais reguladores da actividade administrativa.
6. Diz-se o erro ser manifesto quando é tão grosseiro e flagrante que se torne evidente nos olhos de um leigo não detentor do conhecimento técnico da matéria em causa
7. Tendo sido adoptado pelo júri o mesmo critério a aplicar a todos os candidatos segundo o qual quer as ressalvas específicas quer as suas omissões, não influem na valoração das respostas dadas pelos candidatos, a não “compensação” da recorrente pelas ressalvas específicas que fez não violou os princípios da igualdade, da imparcialidade e da justiça.
8. Desde que não tenha sido questionada a fidelidade substancial das traduções ao teor dos textos de partida e mesmo que as rasuras, palavras riscadas e emendas contidas nas respostas redigidas em chinês não tenham sido talqualmente reproduzidas nas traduções para português, estas traduções, de forma alguma, podem aperfeiçoar o conteúdo material das respostas originalmente redigidas em chinês. Portanto, as tais traduções, com base nas quais fizeram a valoração os notadores que não dominam a língua chinesa, não beneficiam injusta e injustificadamente os candidatos que optaram pelo uso da língua chinesa nas respostas.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos na apreciação da primeira questão, acordam em conferência julgar improcedente o recurso.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça fixada em 10UC.
Registe e notifique.
RAEM, 28JUL2022
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
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Mai Man Ieng
665/2019-1