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Processo n.º 464/2022 Data do acórdão: 2022-9-8 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– reclamação da decisão sumária do recurso
– questão colocada no recurso
– razão alegada para sustentar a questão colocada
– âmbito do dever de decisão do tribunal sobre o recurso
S U M Á R I O
1. A reclamação da decisão sumária do recurso não pode implicar, seja como for, a alteração do objecto do recurso aí decidido pelo relator.
2. Uma coisa é questão posta como objecto do recurso, e outra, bem diferente, é razão alegada pelo recorrente para sustentar a procedência da questão posta como objecto do recurso.
3. Mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador de recurso cumpre só resolver as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao - mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 464/2022
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação da decisão sumária do relator)
Recorrentes:
1.o arguido (e ora reclamante) A
2.o arguido (e ora reclamante) B
17.o arguido C





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 26071 a 26312v do ora subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR5-21-0049-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base:
– o 1.o arguido A ficou condenado como co-autor material, na forma consumada, de 45 crimes de usura para jogo, p. e p. sobretudo pelo art.o 13.o da Lei n.o 8/96/M, em nove meses de prisão com dois anos de proibição de entrada nos casinos por cada, e de um crime de sequestro do art.o 152.o, n.o 1, do Código Penal (CP), em um ano e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 13 anos de prisão, com 20 anos de proibição de entrada nos casinos (não sendo contado o período da prisão), e, em cúmulo jurídico com as penas então já aplicadas a ele, com decisão transitada em julgado no Processo n.o CR3-19-0039-PCC, por prática de um crime de exercício de funções de direcção ou chefia em associação secreta (então punido com dez anos de prisão) e 17 crimes de usura para jogo (então punidos com nove meses de prisão por cada, com um total de 20 anos de proibição de entrada nos casinos), finalmente na pena única de 22 anos de prisão, com proibição de entrada nos casinos por 40 anos (não sendo contado o período da prisão).
– o 2.o arguido B ficou condenado pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de quinze crimes de usura para o jogo, p. e p. pelos art.os 13.o e 15.o da Lei n.o 8/96/M, cada um dos quais na pena de nove meses de prisão e na pena acessória de dois anos de proibição de entrada nos casinos, e, em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão, com proibição de entrada nos casinos por sete anos (não sendo contado, para este efeito, o período da prisão), e, em cúmulo jurídico com as penas então impostas no anterior Processo n.o CR3-19-0039-PCC, finalmente na pena única de dez anos e seis meses de prisão, com 17 anos de proibição de entrada nos casinos (não sendo contado o período da prisão);
– o 17.o arguido C ficou condenado pela prática, em co-autoria material, na forma consumada, de dois crimes de usura para o jogo, p. e p. pelos art.os 13.o e 15.o da Lei n.o 8/96/M, cada um dos quais na pena de nove meses de prisão e na pena acessória de proibição, por dois anos, de entrada nos casinos, e de um crime de sequestro, p. e p. pelo art.o 152.o, n.o 1, do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de dois anos e três meses de prisão efectiva, com pena acessória de proibição de entrada nos casinos pelo período de dois anos (não sendo contado o período da prisão), e, em cúmulo jurídico com as penas então impostas no anterior Processo n.o CR3-19-0039-PCC (a saber: nove meses de prisão e dois anos de proibição de entrada nos casinos por cada um dos quatro crimes de usura para jogo, com imposição, a final, da pena única, suspensa na execução, de um ano e seis meses de prisão, com oito anos de proibição de entrada nos casinos), finalmente na pena única de três anos e seis meses de prisão, com quatro anos de proibição de entrada nos casinos (não sendo contado o período da prisão).
Inconformados, recorreram esses três arguidos para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.o arguido A, na motivação de fls. 26481 a 26524 dos autos, alegou, no essencial, o seguinte, para pedir a sua absolvição total, ou, pelo menos, a aplicação da figura de crime continuado aos crimes de usura para jogo, com subsidiariamente peticionada revisão da pena única saída do cúmulo jurídico das penas do presente processo e das penas anteriormente impostas num outro processo seu, e com também pretendida revogação da pena acessória de 40 anos de proibição de entrada nos casinos:
– a decisão condenatória penal ora recorrida é parca ou deficiente na sua fundamentação quanto aos 45 crimes de usura de jogo e a um crime de sequestro, o que constitui insuficiência para a decisão da matéria de facto;
– e fosse como fosse, os seus crimes de usura de jogo, total ou parcialmente, deveriam ser considerados como cometidos sob a forma continuada à luz do art.o 29.o, n.o 2, do CP;
– nem se mostraria correcto nem proporcionalmente feito o cúmulo jurídico das penas dos dois processos em causa;
– uma pena de prisão não superior a 14 anos seria, pois, a mais aconselhável;
– finalmente, quanto à pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo, uma pena acessória deste tipo de 40 anos é ilegal porque excede o limite máximo da respectiva moldura de dois a dez anos, pelo que a mesma punição deve ser revogada.
O 2.o arguido B, na motivação de fls. 26428 a 26467 dos presentes autos, alegou, no essencial, o seguinte, para pretender a sua absolvição total, ou, pelo menos, a aplicação da figura de crime continuado aos factos dos seus crimes de usura para jogo:
– a decisão condenatória dele tomada no aresto recorrido viola o disposto nos art.os 321.o, n.o 1, e 336.o, n.o 1, do Código de Processo Penal (CPP);
– nem o mesmo Tribunal cumpriu o disposto no art.o 355.o, n.o 2, do CPP, pelo que a decisão condenatória recorrida também é nula, nos termos do art.o 360.o, n.o 1, alínea a), do CPP;
– por outro lado, o mesmo Tribunal cometeu insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova;
– e fosse como fosse, deveria ser aplicada a figura de crime continuado aos factos de usura para jogo do próprio recorrente.
O 17.o arguido C, na motivação de recurso apresentada a fls. 26401 a 26426 dos presentes autos correspondentes, alegou, no essencial, o seguinte, para rogar a sua absolvição total, ou, pelo menos, a suspensão da execução da sua pena de prisão:
– o Tribunal recorrido condenou o próprio recorrente, mas sem razão, pela prática de dois crimes de usura para o jogo, p. e p. pelos art.os 13.o e 15.o da Lei n.o 8/96/M, e de um crime de sequestro do art.o 152.o, n.o 1, do CP;
– com efeito, não houve prova suficiente nem resultou provada a verificação dos requisitos desses crimes, nem esse Tribunal fundamentou em que termos as provas referidas no seu acórdão foram capazes de sustentar a respectiva convicção, sendo que parece resultar que o mesmo Tribunal, no momento de condenação, não dispunha de todos os elementos essenciais para que assim tivesse decidido;
– deve o próprio recorrente passar a ser absolvido, em respeito do princípio de in dubio pro reo e também por falta de preenchimento de todos os elementos desses tipos de ilícito;
– o Tribunal recorrido formou a sua convicção em elementos probatórios que não foram analisados em audiência de julgamento, ao arrepio do art.o 336.o do CPP, sendo manifesta, pois, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
– e fosse como fosse, deveria sempre ser suspensa a execução da sua pena de prisão, à luz do art.o 48.o do CP.
Aos recursos dos 1.o, 2.o e 17.o arguidos, respondeu o Digno Delegado do Procurador correspondentemente a fls. 26606 a 26630, 26631 a 26657 e 26658 a 26672 dos autos, no sentido de provimento do recurso do 1.o arguido apenas na parte respeitante à duração da pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogo (opinando pela aplicação analógica do limite máximo previsto no art.o 41.o do CP), e de improcedência total dos outros dois recursos.
Subidos os autos, a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, emitiu parecer a fls. 26691 a 26700v, pugnando materialmente pela manutenção do julgado, com excepção da pena acessória da usura para jogo, opinando, pois, a propósito do recurso do 1.o arguido, pelo cúmulo jurídico de todas as penas acessórias de proibição de entrada nos casinos.
Feito o exame preliminar dos autos, decidiu o relator sumariamente dos três recursos a fls. 26852 a 26859 dos autos, por entender serem manifestamente improcedentes os recursos dos 2.o e 17.o arguidos (cfr. o art.o 410.o, n.o 1, do CPP), por um lado, e, por outro, por achar não complexas as questões a decidir no recurso do 1.o arguido (cfr. o art.o 621.o, n.o 2, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP).
Assim, nessa decisão sumária, de 29 de Julho de 2022, julgou-se parcialmente procedente o recurso do 1.o arguido, com consequente redução da duração da sua proibição de entrada nos casinos de 40 anos para 30 apenas, e rejeitou-se os recursos dos 2.o e 17.o arguidos, com condenação do 1.o arguido no pagamento de 7/8 das custas do seu recurso (com sete UC de taxa de justiça), do 2.o arguido no pagamento da totalidade das custas do seu recurso (com oito UC de taxa de justiça e três UC de sanção pela rejeição do recurso), e do 17.o arguido no pagamento da totalidade das custas do seu recurso (com oito UC de taxa de justiça e três UC de sanção pela rejeição do recurso).
Vieram agora o 1.o arguido e o 2.o arguido reclamar dessa decisão sumária, através dos respectivos petitórios de fls. 26881 a 26884 e de fls. 26874 a 26880.
Alegou aí o 1.o arguido que a decisão sumária do seu recurso é nula, por omissão de pronúncia às questões então elencadas na sua motivação de recurso, respeitantes, inclusivamente, à insuficiência da fundamentação do acórdão recorrido, ao crime continuado e à medida da pena de prisão, tendo ele salientado “em tabela que reproduziu na sua motivação de recurso – se o crime continuado não fosse admitido – que não se tratavam de 45 crimes de usura; outrossim 17 crimes de usura”.
Por outra banda, defendeu o 2.o arguido que o seu recurso não deveria ter sido julgado manifestamente improcedente, por ser de proceder toda a posição jurídica por ele preconizada na sua motivação de recurso.
Sobre a matéria da reclamação dos 1.o e 2.o arguidos, opinou o Digno Procurador-Adjunto a fl. 26887 a 26887v e a fl. 26886 a 26886v, respectivamente, pelo indeferimento da reclamação daqueles.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão:
1. O acórdão final da Primeira Instância, então recorrido inclusivamente pelos 1.o e 2.o arguidos ora reclamantes, ficou proferido a fls. 26071 a 26312v, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. Na motivação do recurso do 1.o arguido de fls. 26481 a 26524, este teceu um conjunto de razões a propósito do tema de crime continuado (cfr. o teor das páginas 20 (a partir da sua linha 16) a 26 do respectivo texto), tendo defendido, mormente no seu ponto 27 (na página 26 do mesmo texto), que ele próprio teria cometido apenas 17 crimes de usura para jogo e não 45 crimes por que foi condenado, o que resulta, segundo alegou ele, do facto de 28 destes crimes terem sido cometidos, em diferente número de vezes, na pessoa do mesmo ofendido, sendo estes 17 crimes, na forma continuada (cfr. também a tabela constante da mesma página 26).
Na alínea z) da parte das conclusões da mesma motivação do recurso, o 1.o arguido falou do critério de “um crime por ofendido”, para defender a tese de aplicabilidade da figura de crime continuado pelo menos para os actos de usura para jogo praticados sobre um mesmo ofendido, e reafirmou, na alínea bb) da parte das conclusões da mesma motivação, a fl. 26519, que ele “teria cometido apenas 17 crimes de “usura para jogo” e não 45 crimes por que foi condenado, o que resulta do facto de 28 destes crimes terem sido cometidos, em diferente número de vezes, na pessoa do mesmo ofendido”.
3. A decisão sumária do relator ora sob reclamação pelos 1.o e 2.o arguidos recorrentes tem por fundamentação jurídica o seguinte:
De antemão, cabe observar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador de recurso cumpre só resolver as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, decidindo:
Do recurso do 1.o arguido:
Este recorrente começa por imputar à decisão condenatória penal recorrida o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto. E alega também que essa decisão condenatória é parca ou deficiente na sua fundamentação quanto aos 45 crimes de usura de jogo e a um crime de sequestro.
Mas, não lhe assiste razão, porquanto da leitura atenta do acórdão recorrido, resulta que o Tribunal recorrido já investigou todo o objecto probando dos presentes autos penais, sem omissão alguma, pelo que não se pode dar por existente o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP (e sobre o sentido e alcance deste vício, pode referir-se, por exemplo, de entre outros, aos acórdãos do TSI, de 22 de Julho de 2010, do Processo n.o 441/2008, e de 17 de Maio de 2018, do Processo n.o 817/2014).
Outrossim, no teor da fundamentação fáctica, probatória e jurídica do acórdão recorrido, também se verifica que a decisão condenatória desse recorrente no respeitante aos seus crimes por que aí vinha condenado já tem fundamentação exposta em termos muito mais bastantes do que os exigidos pelo art.o 355.o, n.o 2, do CPP, sem, pois, qualquer deficiência nem obscuridade na mesma exposição escrita.
Já quanto à questão subsidiária de pretendida aplicação da figura de crime continuado a crimes de usura de jogo:
Da matéria de facto descrita como provada no aresto recorrido, não se vê, para os efeitos a relevar do n.o 2 do art.o 29.o do CP, qualquer situação exterior, explicada pela Doutrina penal jurídica (cfr. EDUADRO CORREIA, in DIREITO CRIMINAL, II, Livaria Almedina, Coimbra, 1992, reimpressão, pág. 208 e seguintes), que diminua consideravelmete o grau de culpa na prática dos crimes de usura.
É, portanto, infundado o recurso do 1.o arguido nesta parte em questão.
No que concerne ao alegado excesso na medida concreta da pena única saída do cúmulo jurídico das penas do presente processo penal e de um seu processo penal anterior: vistas e ponderadas, em conjunto, todas as circunstâncias fácticas já dadas por assentes no acórdão ora recorrido e nesse seu processo anterior (n.o CR3-19-0039-PCC), com consideração também da personalidade desse recorrente já reflectida pela prática dos factos delinquentes nos dois processos penais em causa, não se vê que haja qualquer injustiça notória, por parte do Tribunal ora recorrido, na fixação, para ele, da pena única de 22 anos de prisão, sob a égide sobretudo do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, pelo que é de respeitar o julgado já feito nesta parte no aresto recorrido.
Por fim, relativamente à sua proibição, por 40 anos, de entrada nos casinos:
Nota-se, desde já, que o Tribunal recorrido, ao proceder ao cúmulo jurídico das penas principais impostas ao mesmo recorrente nos dois processos penais em causa, operou também o cúmulo jurídico das penas acessórias de proibição de entrada nos casinos, o que não se afigura correcta, por este modo de fazer estar a comprometer a razão da lei através da norma do n.o 4 do art.o 71.o do CP (neste sentido, cfr. EDUADRO CORREIA, in DIREITO CRIMINAL, II, Livaria Almedina, Coimbra, 1992, reimpressão, pág. 224, linhas 11 a 21, citada por JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, in DIREITO PENAL PORTUGUÊS AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME, Aequitas e Editorial Notícias, 1993, pág. 292, nota 100 em rodapé).
Contudo, por causa do princípio de proibição de reforma da sanção para pior em caso de recurso interposto apenas pelo arguido, não se pode desfazer agora o cúmulo jurídico, feito pelo Tribunal recorrido, das penas acessórias de proibição de entrada nos casinos.
Entretanto, já se deve reduzir a duração da proibição de entrada nos casinos do mesmo 1.o arguido recorrente, de 40 anos para 30 anos apenas, através da aplicação analógica da norma do n.o 3 do art.o 41.o do CP.
Daí que, e em suma, procede o recurso deste arguido.
Do recurso do 17.o arguido:
Ele imputa, materialmente, à decisão condenatória penal recorrida:
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
– violação do art.o 336.o do CPP;
– a violação do princípio de in dubio pro reo;
– falta de preenchimento de todos os elementos dos tipos-de-ilícito por que vinha condenado;
– e, seja como for, a violação do art.o 48.o do CP.
Pois bem, quanto à alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a razão não está no lado desse recorrente, precisamente pela identidade da razão já exposta acima aquando da resolução do recurso do 1.o arguido.
Por outro lado, na minuciosa fundamentação probatória do mesmo acórdão ora recorrido, também se mostra patente que não foi possível ao Tribunal recorrido seu autor violar o art.o 336.o do CPP.
A questão de violação do princípio de in dubio pro reo traz consigo a questão de erro notório na apreciação da prova.
Sempre se diz que há erro notório na apreciação da prova como vício aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– < […]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão condenatória penal ora recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente, e até com muita minúcia, as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos componentes do objecto probando dos autos.
Como o resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é patentemente desrazóavel, é de decidir juridicamente da causa de acordo com toda a factualidade já dada por apurada na fundamentação fáctica do aresto recorrido.
Assim, perante toda a factualidade já descrita como provada nesse acórdão, é acertada toda a qualificação jurídico-penal dos factos provados já feita pelo Tribunal recorrido, e com explicação adequada, na fundamentação jurídica da decisão penal condenatória recorrida.
Em suma, é evidente que já se fez prova bastante, na Primeira Instância, dos factos cabalmente integradores dos tipos-de-ilícito por que o 17.o arguido vinha condenado.
Por fim, é inviável, por inverificação, a montante, do requisito formal exigido no n.o 1 do art.o 48.o do CP, a pretendida suspensão da execução da pena de prisão desse recorrente, uma vez que o Tribunal recorrido acabou por aplicar-lhe a pena única – já superior a três anos – de três anos e seis meses de prisão, como resultante do cúmulo jurídico das penas impostas no presente processo com as penas impostas no seu anterior processo penal com o n.o CR3-19-0039-PCC.
É, pois, manifestamente improcedente o recurso desse 17.o arguido, recurso este que deve ser rejeitado.
Finalmente, do recurso do 2.o arguido:
Desde já, é obviamente infundado o seu recurso na parte em que alega que a decisão condenatória penal recorrida viola o disposto nos art.os 321.o, n.o 1, e 336.o, n.o 1, do CPP, porquanto do conteúdo da detalhada fundamentação probatória do aresto ora sob impugnação se vê que não foi possível ter o Tribunal recorrido violado estes dois preceitos penais processuais.
Por outro lado, da maneira como foi redigida pelo Tribunal recorrido a fundamentação fáctica, probatória e jurídica do seu acórdão, nem foi possível a violação do art.o 355.o, n.o 2, do CPP na elaboração desse aresto.
No tangente à alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, este vício não pode existir, tal como já se julgou acima, nomeadamente em sede da resolução do recurso do 1.o arguido.
E no que ao alegado erro notório na apreciação da prova diz respeito, também tem que naufragar o recurso do 2.o arguido, na esteira da análise das coisas já acima feita na decisão do recurso do 17.o arguido. Com efeito, também já se fez prova bastante dos factos relativamente ao próprio 2.o arguido.
Por fim, nem pode assistir razão ao 2.o arguido na subsidiária questão de crime continuado, por força da identidade da razão já exposta na resolução da idêntica questão colocada pelo 1.o arguido também recorrente.
É, pois, também manifestamente infundado o recurso do 2.o arguido, que deve ser rejeitado.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Tendo vindo os 1.o e 2.o arguidos recorrentes reclamar da decisão sumária dos seus recursos, cabe agora conhecer do objecto dos seus recursos (com excepção, óbvia, da parte referente à questão da duração da sanção de proibição de entrada nos casinos, cuja decisão, já feita na decisão sumária, não foi objecto de reclamação pelo 1.o arguido), posto que, aliás, a reclamação da decisão sumária não pode implicar, seja como for, a alteração do objecto dos recursos aí decididos pelo relator.
Entretanto, é mister decidir primeiro se tenha havido, como diz o 1.o arguido na sua reclamação, omissão de pronúncia na decisão sumária do seu recurso.
A este propósito, visto o teor integral da sua motivação do recurso, as questões materialmente colocadas aí pelo 1.o arguido como objecto do recurso já se encontraram identificadas, sem omissão alguma, na parte do relatório da decisão sumária do relator ora sob reclamação, e também subsequentemente decididas, sem omissão, na fundamentação da própria decisão sumária, pelo que a decisão sumária do seu recurso não pode ter enfermado do vício de omissão de pronúncia.
Sendo outrossim de frisar o seguinte:
Na motivação do recurso desse arguido, foi tecido um conjunto de razões a propósito do tema de crime continuado (cfr. o teor das páginas 20 a 26 do respectivo texto, a fls. 26500 a 26506), tendo ele defendido, mormente no ponto 27 (na página 26 do mesmo texto), que ele próprio teria cometido apenas 17 crimes de usura para jogo e não 45 crimes por que foi condenado, o que resulta, segundo afirmou ele, do facto de 28 destes crimes terem sido cometidos, em diferente número de vezes, na pessoa do mesmo ofendido, sendo estes 17 crimes, na forma continuada (cfr. também a tabela feita pelo mesmo recorrente e constante da mesma página 26 da motivação).
Assim sendo, do contexto dessa alegação do 1.o arguido, resulta que a invocação da circunstância de 28 desses 45 crimes de usura para jogo terem sido cometidos na pessoa do mesmo ofendido é destinada pelo mesmo recorrente a preconizar a tese de aplicabilidade da figura de crime continuado, pelo menos, para esses 28 crimes de usura para jogo cometidos sobre um mesmo ofendido.
É certo que na parte final da alínea z) da parte das conclusões da mesma motivação, o 1.o arguido falou do critério de “um crime por ofendido”. Mas, este critério não deixa de constituir materialmente uma das razões por ele tecidas para sustentar a tese de crime continuado inclusivamente para os actos de usura para jogo praticados sobre um mesmo ofendido (como prova disso, pode ler-se o escrito na alínea bb) da parte das conclusões da mesma motivação, a fl. 26519, onde o mesmo arguido reafirmou que ele “teria cometido apenas 17 crimes de “usura para jogo” e não 45 crimes por que foi condenado, o que resulta do facto de 28 destes crimes terem sido cometidos, em diferente número de vezes, na pessoa do mesmo ofendido”).
Entretanto, uma coisa é questão posta como objecto do recurso, e outra, bem diferente, é razão alegada para sustentar a procedência da questão posta como objecto do recurso. Tendo o relator decidido na decisão sumária do recurso do 1.o arguido que “Da matéria de facto descrita como provada no aresto recorrido, não se vê, para os efeitos a relevar do n.o 2 do art.o 19.o do CP, qualquer situação exterior […] que diminua consideravelmente o grau de culpa na prática dos crimes de usura”, há que improceder a alegada omissão de pronúncia na mesma decisão sumária sobre a questão de crime continuado posta na motivação do seu recurso.
É que tal como já se notou de antemão na fundamentação jurídica dessa decisão sumária, “mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador de recurso cumpre só resolver as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001)”.
E finalmente, vistos todos os elementos dos autos, é de improceder in totum a reclamação dos 1.o e 2.o arguidos, porquanto a decisão sumária tomada pelo relator na parte ora sob reclamação por esses dois arguidos também está conforme com os elementos fácticos dos autos e o direito aplicável aplicado concretamente na fundamentação jurídica da própria decisão sumária.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a reclamação dos 1.o e 2.o arguidos.
Para além de todas as quantias por que já vinham condenados no dispositivo da decisão sumária ora reclamada, pagarão ainda os dois arguidos reclamantes as custas da respectiva reclamação, com seis UC de taxa de justiça para o 1.o arguido e quatro UC de taxa de justiça para o 2.o arguido.
Macau, 8 de Setembro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)


Processo n.º 464/2022 Pág. 9/17