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Processo n.º 921/2021
(Autos de recurso cível)

Data: 29/Julho/2022

Recorrente dos recursos interlocutórios:
- Farmácia X Limitada (ré)

Recorrente do recurso da decisão final:
- A (autor)

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
Inconformada com a decisão proferida no despacho saneador que julgou improcedentes as excepções invocadas pela ré Farmácia X Limitada no respeitante às questões de inviabilidade da acção e de ilegitimidade substantiva do autor quanto ao segundo pedido formulado na petição inicial, interpôs a ré recurso jurisdicional para este TSI, tendo formulado nas alegações de recuso as seguintes conclusões:
     “a. O Recorrido não pode reivindicar qualquer quota-parte de nenhum bem determinado que faça parte do acervo de bens comuns do ex-casal e ainda não partilhado, como se dele já fosse titular, antes de saber se nesse bem determinado será encabeçado no acto da partilha.
     b. A única forma de pôr termo à comunhão conjugal, após o termo das relações patrimoniais dos cônjuges (designadamente, pelo divórcio) e de os interessados ingressarem na titularidade de algum bem em concreto é através da partilha (art.º 1556º, n.º 1, al. b) e 1940º, n.º 1, ambos do CC), pelo que a acção de reivindicação proposta pelo Recorrido é manifestamente inviável.
     c. Ao pretender com a acção um resultado ao qual só poderá aceder por via da partilha o Recorrente quis uma solução que configura uma fraude à lei.
     d. Sucede que, a decisão recorrida, ao acolher a pretensão do Recorrido fez, com a devida vénia, uma errada interpretação e aplicação do disposto no art.º 1300º do CC, porque não respeita o elemento literal da norma.
     e. Nem respeita os elementos lógicos da norma, na medida em que está desenquadrada das normas que definem os regimes conjugais de comunhão bens (de adquiridos e geral) e o modo de partilha dos bens do casal no regimes de comunhão, expressamente definido no art.º 1556º, n.º 1, alínea b) do CC, não respeitando, por isso, a própria unidade do sistema jurídico.
     f. A comunhão conjugal constitui um património de mão comum ou propriedade colectiva, dando origem a um único direito encabeçado pelos dois cônjuges: não se trata, portanto, de cada cônjuge ter direito a metade de cada bem concreto dos que integram o património comum do casal, mas antes do direito ao valor de metade deste património.
     g. Ao contrário do que acontece no regime de compropriedade, aos titulares do património colectivo não pertencem direitos específicos, designadamente uma quota, sobre cada um dos bens que integram o património global.
     h. O único direito que o Recorrido é titular é o direito à meação no acervo dos bens comuns do ex-casal, que se traduz num “direito ao valor de metade” e que recai sobre todo o património colectivo no seu conjunto e nunca sobre certos e determinados bens.
     i. A meação nos bens comuns consiste no direito ao valor de metade do património comum. Nada mais.
     j. Mesmo após a extinção do casamento, os bens comuns que integram o património comum do casal mantêm-se nessa qualidade até ocorrer a sua divisão e partilha, judicial (inventário) ou extrajudicialmente.
     k. O tertium genus, que constitui o património comum após a dissolução da comunhão conjugal, consiste numa situação semelhante à sucessão mortis causa, ou seja, a uma herança, e é entendimento pacífico que esta, antes da partilha, constitui uma universitas juris, um património autónomo, com conteúdo próprio e por isso, à partilha dos bens comuns do casal subsequente ao divórcio se aplicam as mesmas regras do processo de inventário destinado pôr termo à comunhão hereditária (art.ºs 1028º, n.º 4 e 963º, n.º 1, ambos do CPC).
     l. Até à partilha, os direitos dos herdeiros recaem sobre o conjunto da herança; cada herdeiro apenas tem direito a uma parte ideal da herança e não a bens certos e determinados.
     m. Antes da partilha o cônjuge meeiro não tem um direito de propriedade sobre concretos bens do património conjugal, mas apenas um direito à meação nos bens comuns do casal, tal como o herdeiro não tem um direito real sobre bens concretos da herança, detendo apenas o direito a um quinhão hereditário, a uma quota-parte ideal da herança global em si mesma.
     n. Por isso, face ao disposto na norma imperativa do art.º 1556º, n.º 1, al. b) do CC, nunca o ex-cônjuge, pelo facto de ser meeiro, se pode arrogar do direito de compropriedade sobre um bem determinado do acervo de bens comuns, como faz o Recorrido nos presente autos, até que pela partilha de todos os bens comuns do casal, essa situação venha a verificar-se.
     o. Acresce que, a acção movida pela Recorrido é uma acção de reivindicação tal como ela se encontra configurada nos artigos 1235º e ss do CC.
     p. Ora, nas acções de reivindicação, a procedência do pedido de condenação do réu a entregar ao autor a coisa (por si possuída ou detida) depende absolutamente do reconhecimento judicial do direito real (de propriedade ou outro; art.º 1240º do CC) cuja titularidade o reivindicante se arroga (o art.º 1235º, n.º 1 do CC).
     q. Na partilha dos bens subsequente à dissolução da comunhão ou destinada a pôr-lhe fim, os contitulares (ou os respectivos herdeiros) têm apenas direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar.
     r. Por isso o art.º 1300º do CC manda aplicar as regras da compropriedade à comunhão de quaisquer outros direitos, mas com as necessárias adaptações e sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles, designadamente o disposto no art.º 1556º, n.º 1, al. b) do CC.
     s. O Recorrido é apenas o titular do direito a uma quota ideal do património comum, que só com a partilha subsequente ao divórcio se vai (ou não) concretizar em bens concretos e individualizados.
     t. É, pois, inócua a invocação do artigo 1301º, n.º 2 do CC face ao disposto no artigo 1240º do mesmo diploma, dado o Recorrido não ter direito a nenhum bem em concreto e individualizado do acervo conjugal, não sendo, por conseguinte, titular qualquer direito de propriedade (ou equiparado) sobre o bem ora reivindicando na presente acção.
     u. No que concerne à excepção de ilegitimidade substantiva do Recorrido para segundo pedido formulado, a decisão ora em crise, usando os mesmos argumentos considerados para legitimar o direito do Recorrido a exercer, por si só, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular, limitou-se a considerar que o Recorrido teria o direito a pedir tal indemnização.
     v. Acontece que o Recorrido não tem legitimidade para chamar a si qualquer direito de crédito (real ou imaginário) relativo a qualquer bem determinado que faça parte do acervo de bens comuns dos ex-cônjuges.
     w. Primeiro, porque nos inventários, tanto por divórcio como por mortis causa, a regra é de que os direitos de crédito da titularidade do património colectivo devem ser cobrados por quem neles tenha sido encabeçado no acto de partilha.
     x. Ora, o Recorrido não foi encabeçado nesse crédito na sequência da partilha, pelo não tem legitimidade para o tentar cobrar.
     y. Segundo, porque o Recorrido renunciou à cobrança de quaisquer rendas à Ré em duas ocasiões distintas.
     z. Na verdade, embora o valor das rendas relativas à fracção ora reivindicanda haja sido, num primeiro, momento, descrito na relação de bens sob a verba 1ª como sendo um crédito pertencente ao acervo dos bens comuns do casal, tal verba foi eliminada da relação de bens por decisão judicial proferida no inventário no decurso da conferência de interessados realizada em 6/12/2016, sem que o Recorrido ou a sua ex-mulher a ela se tenham oposto, pelo que a mesma transitou em julgado em 16/12/2016.
     aa. Na sentença proferida em 03/05/2018 no Apenso da prestação de contas (FM1-10-0002-CDL-C), o Juízo de Família e de Menores julgou que “針對財產目錄內第1項債權,即財產目錄內第22項不動產之租金收益,根據第FM1-10-0002-CDL-B號卷宗第1024頁及第1025頁之會議紀錄顯示,法庭經審閱該卷宗第215頁之文件及聽取待分割財管理人之聲明後,認定自2010年7月起,相關獨立單位已沒有出租,並命令刪除財產目錄內第1項之債權。故此,針對財產目錄內第22項不動產,被告不存在提交帳目之義務。” (ut fls. 79 a 82v)
     bb. Mais uma vez, nem o Recorrido nem a sua ex-mulher impugnaram a decisão referida, tendo-se com ela conformado.
     cc. Consequentemente, perante a comprovada renúncia antecipada do Recorrido ao direito de indemnização que veio reclamar nos presentes autos, o Tribunal a quo, usando os mesmos fundamentos considerados para julgar improcedente a exceção da inviabilidade da acção, manteve uma errada interpretação e aplicação do disposto no art.º 1300º.
     dd. Terceiro, porque o pedido acessório formulado na alínea B) do Petitório da petição inicial não tem autonomia, estando dependente do pedido principal de entrega da coisa formulado na alínea A) que lhe serve de suporte e sem o qual perde o seu sentido.
     ee. Assim, não tendo o Autor legitimidade substantiva para exigir, para si, a restituição da coisa reivindicanda ou de qualquer bem móvel ou imóvel da relação de bens de fls. fls. 67 a 72v, não faz sentido que possa deduzir quaisquer outros pedidos dele acessórios, como o pedido desferido na alínea B) do Petitório da petição inicial.
     ff. Mas mesmo que se admitisse, por mero benefício de raciocínio, a aplicação do regime de compropriedade ao património comum do casal após a dissolução da comunhão conjugal, então a decisão de reconhecimento do direito de Recorrido a pedir uma indemnização pela alegada ocupação indevida do imóvel, contraria o disposto no art.º 1301º, n.º 1 do CC, precisamente porque o Recorrido tenta exercer esse direito desacompanhado do seu ex-cônjuge, quando só o podia fazer conjuntamente.
     Termos em que a decisão de fls. 169 a 171v deverá ser revogada e substituída por outra que, cumprindo os preceitos legais aplicáveis, julgue procedentes as excepções aduzidas pela Recorrente na sua contestação.”

Ao recurso respondeu o autor A nos seguintes termos conclusivos:
     “i. A decisão proferida pela Tribunal a quo fez uma correcta aplicação da lei aplicável ao caso em apreço.
     ii. A primeira questão que cumpre resolver por esta instância, é a de saber se o artigo 1301º do CC, por via do artigo 1300º do mesmo diploma, é ou aplicável aos casos de património comum, máxime os casos de património comum após a dissolução do matrimónio.
     iii. O património comum é um património em comunhão, sendo cada cônjuge titular dos bens comuns, em comunhão com o outro cônjuge, nos termos da 2ª parte do artigo 1603º do CC.
     iv. O património conjugal cessa com a dissolução do casamento (artigo 1643º do CC), mas não se transforma em compropriedade, constituindo antes um tertium genus, que se assemelha mais à propriedade colectiva até se proceder à partilha.
     v. Apesar dessa distinção, a comunhão acaba por ser uma figura mais ampla do que a compropriedade, sendo que lhe é também aplicável o artigo 1031º do Código Civil.
     vi. O facto de o bem ser detido em comunhão não o torna sem dono, nem permite que qualquer um o ocupe sem título para o efeito e, escudando-se em tal comunhão, defenda que os seus titulares não lhe possam exigir a sua devolução.
     vii. Não é, neste caso e como tenta fazer a Recorrente, de estabelecer um paralelismo entre aquilo que se passa na comunhão hereditária, porque aquela tem disposições especiais a afastar as regras da propriedade, esta não.
     viii. Mandando a lei expressamente aplicar as regras da compropriedade à comunhão conjugal, e não existindo no regime legal da comunhão conjugal qualquer norma especial que afaste tal determinação, não assiste direito à Recorrente de o fazer.
     ix. Assim, tem o Recorrido o direito de reivindicar de terceiro a fracção de que é proprietário em comunhão com a sua ex-mulher, nos termos do artigo 1301º, n.º 2 do CC, que estabelece que “Cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela não lhe pertence por inteiro”, bem como do artigo 1235º e ss. do CC.
     x. No que à legitimidade do Recorrido para reclamar créditos relativos a bens que façam parte do acervo de bens comuns dos ex-cônjuges, a Recorrente alega que aquele não foi encabeçado nesse crédito, que este renunciou às rendas e terceiro porque o pedido de condenação não tem autonomia, estando dependente do pedido principal.
     xi. Quanto ao primeiro argumento, diga-se que a lei não estabelece nenhuma regra relativa à existência de um litisconsórcio legal ou necessário em relação aos ex-cônjuges, relativo à reclamação de um terceiro da indemnização por danos de carácter patrimonial causados em bem comum.
     xii. A lei não regula genericamente o instituto da comunhão, mas estabelece como paradigma o regime da compropriedade, cujas regras “são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo de disposto especialmente para cada um deles” (art. 1300º do CC).
     xiii. Assim, ao prever “quaisquer outros direitos”, a norma não visa apenas os direitos reais, pelo que a contitularidade de um direito de crédito está subordinada, sempre que não exista regulamentação própria, também às regras da compropriedade.
     xiv. Assim, e também por via do artigo 1301º, n.º 2 do CC, sempre será de concluir pela possibilidade de um consorte poder reivindicar de terceiro a coisa comum, o que se aplica também, mediante uma interpretação extensiva da norma, ao direito de reclamar indemnização pelos danos causados na coisa comum.
     xv. Conclui-se, pois, que qualquer um dos cônjuges, mesmo que desacompanhado do outro, tem legitimidade para reclamar de um terceiro indemnização por danos de carácter patrimonial causados em bem comum, indemnização essa que será limitada ao valor da sua quota-parte.
     xvi. Quanto à alegação de que o Recorrido prescindiu do direito de reclamar a indemnização pela ocupação indevida da fracção em causa nos presentes autos, as decisões proferidas no âmbito dos processos de Inventário e Prestação de Contas diziam respeito a um crédito que o ora Recorrido sobre a sua ex-mulher, e que era relativo às rendas que esta havia alegadamente recebido da ora Recorrente, o que não se confunde com a indemnização devida pela ocupação ilegítima pela Recorrente, em causa nos presentes autos.
     xvii. Assim, o facto de o ora Recorrido naqueles autos se ter conformado com a justificação dada pela sua ex-mulher de que o crédito de rendas que reclamava não existia porque o contrato de arrendamento que era fonte das mesmas já havia cessado, não implica que tenha prescindido do direito de reclamar a indemnização que pretende agora receber.
     xviii. Quanto ao terceiro argumento apresentado pela Recorrente, diga-se que resulta inequívoco que, por não ter recebido os valores que poderia ter recebido com o arrendamento da fracção autónoma aqui em causa, o Recorrido teve um evidente prejuízo, do qual tem de ser indemnizado.
     xix. Ao mesmo tempo, teve a Recorrente um evidente locupletamento à custa de outrem.
     xx. Assim, esse prejuízo/enriquecimento terá de ser compensado, quer por via da reparação dos danos sofridos, quer pela via subsidiária do enriquecimento sem causa, sendo, como se viu, e nos termos do artigo 1302º, n.º 2 do CC, legítimo ao Recorrido reclamar essas mesmas quantias da Recorrente.
     Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso, a que ora se responde, ser julgado improcedente e consequentemente ser confirmada a douta decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base, assim fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”
*
Antes de realização da audiência de julgamento, a ré apresentou um requerimento pedindo que se julgasse extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide. Inconformada com o despacho que não conheceu e mandou desentranhar o pedido, recorreu a ré jurisdicionalmente para este TSI, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
     “A. O presente recurso tem por objecto a impugnação da decisão tomada no despacho de fls. 267, depois rectificado a fls. 269, que não conheceu e mandou desentranhar o pedido formulado no requerimento de fls. 234 a 241 de extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, e que mandou aguardar pelo julgamento.
     B. Outro, no entanto, podia e devia ter sido o sentido da decisão ora recorrida.
     C. Desde logo, porque a ilegitimidade activa superveniente do Autor resultante da alienação a terceiro da coisa ora reivindicanda na pendência da acção se trata de uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que impede a apreciação do mérito da relação material controvertida tal como foi configurada pelo Autor.
     D. Dito, por outras palavras, impede o julgamento.
     E. Não se trata, pois, de matéria que apenas possa/deva ser tratada após o julgamento, aquando da discussão do aspecto jurídico da causa (art.º 500º do CPC).
     F. O Tribunal a quo devia, pois, ter enfrentado a questão suscitada (e comprovada) no requerimento de fls. 234 e ss. em vez de o qualificar como uma “peça de alegações de direito” para dela se abster de conhecer.
     G. Em todo o caso, nunca poderia ter o Tribunal a quo ter mandado desentranhar o requerimento de fls. 234 a 235 por o mesmo não se inscrever em nenhuma das hipóteses do n.º 2 do art.º 9, do CPC.
     H. Tampouco, podia no despacho de rectificação de fls. 269 ter o Tribunal a quo alargado a decisão de desentranhamento ao documento de fls. 236 e ao documento de fls. 237 a 241 que instruíram o requerimento de fls. 234 a 235,
     I. Isto por tais documentos
     J. não só não serem intempestivos (art.º 450º, n.º 1 do CPC), impertinentes e/ou desnecessários ao exame e decisão da causa (art.º 468º, n.º 2 do CPC),
     K. como terem obrigatoriamente de ficar nos autos por força do princípio da aquisição processual (art.º 436º do CPC) por neles também se basear a redução do pedido formulado pelo Autor na sua resposta/requerimento de fls. 264 a 266.
     L. Por outro lado, tratando-se a presente acção da acção de reivindicação prevista nos artigos 1235º do Código Civil, nada impedia que ao “pedido principal” de reconhecimento do direito e consequente restituição da coisa reivindicada se acrescentassem “pedidos acessórios”, como o pedido de indemnização formulado na alínea B) do petitório.
     M. Tratam-se, porém, de pedidos que não têm autonomia entre si, por estarem dependentes do pedido principal que lhes serve de suporte e sem o qual perdem o seu sentido e, que, por isso, não configuram uma cumulação real de pedidos, mas antes uma mera pluralidade aparente.
     N. Sucede que, em 19/11/2019, a coisa reivindicada foi adjudicada pelo tribunal ao actual proprietário B (fls. 236 – Doc. 1) no âmbito do inventário judicial FM1-10-0002-CDL-B a que se refere o artigo 8º da p.i., como se deu conta no requerimento de fls. 235 e ss.
     O. Em 14/01/2020 a aquisição da fracão ora reivindicada pelo Autor A foi inscrita na Conservatória do Registo Predial a favor do B sob o n.º ... (fls. 237 a 241 – Doc. 2), como se deu conta no requerimento de fls. 235 e ss,
     P. o que, só por si, torna impossível a comprovação pela Autor do “requisito subjectivo” da acção de reivindicação, face ao disposto nos artigos 402º, n.º 1, e 869º, al. a) do Código Civil ex vi do art.º 795º, n.º 1 e 2 do CPC, e do art.º 7º do CRP.
     Q. Logo, caindo o pedido principal de entrega da coisa que lhes serve de suporte, caem necessariamente, por arrasto, os pedidos acessórios dele dependentes, máxime o pedido de indemnização formulado na alínea B) do petitório.
     R. Quanto à decisão de mandar aguardar pelo julgamento também a mesma se mostra desconforme à lei por violar os princípios fundamentais da economia e celeridade processuais segundo os quais é proibida a prática de actos desnecessários e inúteis (art.º 87º do CPC).
     S. Tivesse o Tribunal a quo declarado a impossibilidade superveniente da lide, não seria necessário fazer avançar o processo para julgamento com intervenção do Tribunal Colectivo com todos os custos e actividade processual que isso implica, poupando-se tempo e recursos, quer humanos, quer materiais, tanto à RAEM como às partes.
     T. Destarte, a decisão ora recorrida violou o disposto nos art.ºs 229º, e), 413º, al. e), 230º, n.º 1, al. d) ex vi do art.º 414º, 9º, n.º 2, 450º, n.º 1, 468º, n.º 2, 436º todos do CPC, 1235º, n.º 1 ex vi do art.º 1240, do Código Civil, 402º, n.º 1, e 869º, al. a) do Código Civil ex vi do art.º 795º, n.º 1 e 2 do CPC, 7º e 3º, n.º 2, ambos do CRP (este último ex vi da al. a) do seu n.º 1) e 87º do CPC, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra que declare a extinção da instância, com as legais consequências.”

A este recurso respondeu o autor nos seguintes termos conclusivos:
     “I. Vem a Recorrente interpor recurso do douto Despacho proferido a fls. 267 dos presentes autos, rectificado depois a fls. 269, que mandou desentranhar o requerimento apresentado pela Recorrente a fls. 234 a 241 e a sua devolução à mesma por se tratar de uma peça de alegações de direito, bem como aguardar pelo julgamento.
     II. O despacho ora recorrido, na parte em que ordenou que se aguarde pelo julgamento, não é passível de recurso por constituir um despacho de mero expediente, e, em consequência, deve ser julgado improcedente o presente recurso respeitante a esta parte, nos termos do disposto nos arts. 584º e 106º, n.º 4 do CPC.
     III. Vem a ora Recorrente defender face à existência de uma excepção dilatória de ilegitimidade superveniente do ora Recorrido, a mesma impede a realização do julgamento, tratando-se de matéria que possa e deva ser apreciada e decidida neste momento.
     IV. Ainda que se estivesse efectivamente perante uma excepção dilatória de ilegitimidade do Autor, o que não se concede mas por mera cautela de patrocínio se equaciona, como é sabido, as excepções dilatórias não obstam à realização do julgamento (art. 412º, n.º 2 do CPC).
     V. Com efeito, face ao teor do n.º 1 do art. 563 do CPC, na sentença, e por isso após a realização do julgamento, podem ser apreciadas e decidias as questões suscitadas pelas partes, incluindo as questões prejudicais e as excepções dilatórias que importem a absolvição da instância e que, como tal, serão conhecidas e apreciadas sempre em primeiro lugar por obstarem à apreciação do mérito de causa.
     VI. Donde, ainda que se verificasse uma situação de ilegitimidade activa do ora Autor, que não se verifica, nada impede que o Tribunal a quo entenda que essa excepção só venha a ser conhecida em sede de sentença, depois de realizado o julgamento.
     VII. Vem a ora Recorrente alegar que o Tribunal a quo qualificou mal o requerimento de fls. 234 a 235 como uma peça de alegações de direito.
     Nos termos do disposto no art. 560º do CPC, as alegações de direito são definidas como uma peça na qual as partes alegam, interpretando e aplicando a lei aos factos que tiverem ficado assentes.
     VIII. De facto, o requerimento apresentado pela ora Recorrente a fls. 234 a 235, na sua esmagadora maioria, traduz-se semente na manifestação da sua opinião jurídica sobre todo o processo e como tal não é admissível na presente fase processual, na medida em que está desfasada da tramitação e sequência processual previstas na lei, só sendo possíveis os ajustamentos e desvios quando os mesmos forem impostos pelo princípio da adequação formal devido às especialidades da causa, o que, não é o caso.
     IX. Vem a ora Recorrente alegar que a acção devia ser declarada extinta por inutilidade superveniente, na medida em que tendo a coisa reivindicada sido já vendida a um terceiro, torna-se impossível a comprovação pelo ora Recorrido do “requisito subjectivo” exigido pela acção da reivindicação (ou seja, ser proprietário da coisa reivindicada) e, portanto, estes pedidos não podem ter procedência e,
     X. O pedido da indemnização a título de ressarcimento pelos danos sofridos ou, subsidiariamente, ao de enriquecimento sem causa, pela privação do uso da fracção no período em que o Recorrido e a C ainda eram proprietários do imóvel (i.e., os pedidos formulados na alínea B) na petição inicial), estes são “pedidos acessórios” e deduzidos através de uma cumulação aparente dos pedidos, e se caírem os pedidos principais, caem igualmente os pedidos acessórios.
     XI. Na sequência da venda judicial da coisa ora reivindicada a um terceiro, poderemos estar perante uma inutilidade superveniente da lide em relação aos pedidos do reconhecimento da propriedade da coisa e da sua restituição efectiva (pedidos da alínea A)), porém não existe nenhum motivo para que a presente lide se extinga em relação ao pedido de condenação no pagamento da indemnização ou do enriquecimento sem causa, pela privação do uso da fracção, no período em que o ora Recorrido e a sua ex-mulher ainda eram proprietários do imóvel (pedidos da alínea B)).
     XII. Existe nos presentes autos uma cumulação real de pedidos, tendo sido formulados dois pedidos autónomos e separados nas alíneas A) e B) na petição inicial alterada depois pela réplica ao abrigo do disposto no art. 391º do CPC.
     XIII. Embora seja verdade que um dos pressupostos para pedir a indemnização ou subsidiariamente o enriquecimento sem causa pelos danos derivados da privação do uso da fracção consiste na titularidade do direito da propriedade sobre a mesma, porém, os pedidos da indemnização ou do enriquecimento sem causa estão limitados somente ao período em que o ora Recorrido e a sua ex-mulher ainda eram proprietários do imóvel em causa, e não ao tempo ulterior em que a fracção em apreço já foi vendida ao terceiro.
     XIV. Assim, quanto muito, a venda da coisa ora reivindicada apenas poderia implicar a declaração da extinção parcial da instância por inutilidade superveniente da lide quanto aos pedidos de reconhecimento do direito de propriedade e da restituição da coisa, mas nunca podem ficar prejudicados o conhecimento e a apreciação dos pedidos formulados pelo ora Recorrido na alínea B) em relação ao período em que o ora Recorrido e a sua ex-mulher ainda eram proprietários do imóvel em causa.
     XV. A presente instância não pode ser declarada extinta na sua totalidade, devendo assim também improceder este fundamento do Recurso a que ora responde.
     Vem a ora Recorrente alegar que a acção, tal como foi configurada pelo Recorrido e sem que haja pronúncia sobre o requerido a fls. 264 a 266, não pode seguir para julgamento, porque não se mostra cumprido o disposto no art. 3º, n.º 1, a) do CRP por força do art. 3º, n.º 2 do mesmo diploma. Porém,
     XVI. A presente acção, ou melhor dito, os pedidos de reconhecimento da propriedade e da restituição, não estão legalmente sujeitos a qualquer registo predial, não sendo aplicável o disposto no n.º 2 do art. 3º do CPR, devendo ser ordenado o prosseguimento da presente acção.
     XVII. Por fim, vem a ora Recorrente alegar que a decisão recorrida viola os princípios de economia e celeridade processuais, já que o requerimento dele não era simplesmente fazer extinguir a instância, mas fazer com que isso acontecesse a tempo de evitar a realização do julgamento e a prolação da sentença final.
     XVIII. Os presentes autos, como já se explicou acima, devem prosseguir os seus demais termos até final, independentemente de declaração ou não da extinção parcial da instância por inutilidade superveniente.
     XIX. Pelo que, não há qualquer violação dos princípios da economia e celeridade processuais quando o Tribunal a quo mandou aguardar pelo julgamento.
     Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao presente Recurso, mantendo-se o Despacho ora recorrido.
     Termos em que farão V. Exas. a costumada Justiça!”
*
Na fase de discussão por escrito do aspecto jurídico da causa, a ré requereu a junção de duas certidões judiciais.
Inconformada com a decisão que indeferiu a junção das mesmas, recorreu a ré da decisão, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
     “A. O presente recurso tem por objecto a impugnação da decisão tomada no despacho de fls. 496, que mandou desentranhar as certidões judicias de fls. 406 a 411 e condenou a ora Recorrente na multa de 2UCs.
     B. Outro, no entanto, podia e devia ter sido o sentido da decisão ora recorrida.
     C. Primeiro, porque as certidões judicias de fls. 406 a 411 não constituem provas novas por os documentos a que respeitam já existirem nos autos antes do encerramento da discussão da matéria de facto em 2020/09/14.
     D. A acta de fls. 406 a 408 corresponde ao Doc. 4 da contestação de fls. 76 a 77 enquanto o despacho de fls. 409 a 410 de adjudicação da fracção reivindicanda ao seu actual proprietário B corresponde ao Doc. 1 de fls. 236 e, posteriormente, ao Doc. 1 de fls. 462 que instruiu o requerimento de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
     E. Logo, apesar de as fotocópias da acta de conferência de interessados e do despacho de adjudicação já constarem nos autos, não se pode dizer que a respectiva certidão judicial que acompanhou a discussão escrita do aspecto jurídico da causa nada seja susceptível de acrescentar no bom desfecho da lide, uma vez que a sua força probatória é superior às fotocópias anteriormente juntas.
     F. Segundo, porque no que toca à certidão judicial do título de transmissão (fls. 411), embora a ora Recorrente não tivesse apresentado esse título até ao encerramento da discussão da matéria de facto, tal documento não configura prova nova de um facto novo.
     G. Isto porque a passagem do “titulo de transmissão” é uma consequência necessária do “despacho judicial de adjudicação” de fls. 236, pelo que o título de transmissão de fls. 411 não constitui matéria nova nem um novo meio de prova que o juiz presidente do tribunal colectivo não possa apreciar para efeitos do conhecimento oficioso da questão prévia da extinção da instância, funcionando apenas como mera confirmação da emissão do despacho de adjudicação de fls. 410, conforme resulta do disposto no art.º 795, n.º 2 do CPC.
     H. Nem de outra maneira poderia ser. Isto por ser irrelevante para a determinação do momento em que se opera a transmissão do direito de propriedade da fracção reivindicada se, proferido despacho de adjudicação ao B de fls. 236 e de fls. 409 a 410, lhe foi ou não passado o competente título da transmissão previsto no art.º 795º, n.º 2 do CPC.
     I. Terceiro, porque não se verifica nenhum dos pressupostos do desentranhamento de documentos previsto nos artigos 115º, n.º 2 e/ou 468º, do CPC, os quais são as únicas normas adjectivas que prevêem a possibilidade de desentranhamento de documentos indevidamente recebidos ou tardiamente apresentados.
     J. Quarto, porque as certidões judiciais do despacho de adjudicação e do título de transmissão relevem para a resolução da questão prévia de conhecimento oficioso da extinção da instância por inutilidade superveniente objecto do recurso interposto do despacho de fls. 267 (posteriormente rectificado a fls. 269), o qual foi admitido com efeito meramente devolutivo pelo despacho de fls. 274.
     K. Nada obstava por isso à junção aos autos das certidões de fls. 406 a 411 aquando da discussão por escrito de fls. 392 a 405v do aspecto jurídico da causa por razões de economia processual.
     L. Isto para que:
     M. – o juiz presidente do tribunal colectivo possa, aquando da elaboração da sentença final em 1ª instância, apreciar a questão (prévia) da impossibilidade superveniente da lide nos termos do art.º 229º, alínea e) do CPC, em cumprimento do disposto no art.º 563º, n.º 3 do mesmo diploma.
     N. – ou se possa sindicar o (des)acerto da decisão de fls. 267 (depois rectificada a fls. 269), dado as causas de impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide serem do conhecimento oficioso (também em face de recurso), estando o seu julgamento pelo relator do processo no TSI expressamente previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 619º do CPC.
     O. Isto por as causas de impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, além de serem do conhecimento oficioso, estarem também conexionadas com o interesse processual ou interesse em agir, que é assumido pela doutrina como pressuposto processual ou condição da acção.
     P. E que não tem de existir apenas no momento em que o processo se inicia, mas também ao longo dele, justificando a sua falta a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide (ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, e SAMPAIO E NORA, “Manual de Processo Civil”, 1ª edição, página 179).
     Q. O artigo 468º, n.º 1 do CPC é o único normativo que prevê a probabilidade do desentranhamento de documentos já juntos aos autos, porém, no caso sub judice não se verifica nenhum dos seus pressupostos, pelo que não devia o Tribunal a quo ter mandado desentranhar as certidões de fls. 406 a 411.
     R. Quinto, porque ainda que a junção das certidões de fls. 406 a 411 fosse intempestiva e tais documentos tivessem que ser mandados desentranhar, nunca haveria lugar à condenação em multa, por, na própria perspectiva do tribunal a quo, não se verificar a hipótese prevista no artigo 450º, n.º 2 do CPC.
     S. Em suma, a decisão recorrida ao mandar desentranhar as certidões de fls. 406 a 411 relativas a documentos que já haviam sido juntos, por fotocópia, aos autos antes do encerramento da discussão da matéria de facto, violou o disposto nos artigos 6º, n.º 3, 436º, 115º, n.º 2 e/ou 468º, n.º 1, 619º, n.º 1, al. e), 229º, alínea e), 563º, n.º 3 e 450º, n.º 2, a contrario, todos do CPC, pelo que deverá ser revogada, e substituída por outra que admita a junção das certidões judiciais de fls. 406 a 411, sem multa, com as legais consequências.
     Termos em que, com o suprimento de V. Exas, deverá o recurso ser julgado procedente, revogando-se e substituindo-se a decisão de fls. 496 por outra que admita a junção das certidões judiciais de fls. 406 a 411, sem multa, com as legais consequências.
     Vossas Exas. decidirão, porém, como for de Direito e JUSTIÇA!”

Ao recurso respondeu o autor pela seguinte forma conclusiva:
     “i. Vem a presente resposta na sequência apresentada na sequência do recurso interposto pela Recorrente, Farmácia X, Lda., do despacho de fls. 496, através do qual foi ordenado o desentranhamento dos documentos juntos pela Recorrente a fls. 406 a 411.
     ii. A decisão proferida pelo Tribunal a quo fez uma correcta aplicação da lei, não merendo qualquer censura, porquanto.
     iii. Está em causa a junção de dois documentos, pela Requerente, na discussão do aspecto jurídico da causa, a que se refere este artigo 560º do CPC.
     iv. Nos termos do artigo 450º, n.º 1 do CPC, os documentos devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, podendo ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância sendo nesse caso, a parte que os apresentou tardiamente, condenada em multa.
     v. O encerramento da discussão em primeira instância dá-se no final dos debates a que alude o artigo 55º, n.º 7 do CPC, ou seja, até ao encerramento da discussão da matéria de facto, momento que já estava largamente ultrapassado aquando da apresentação dos documentos aqui em crise.
     vi. Os documentos de fls. 406 a 411 foram apresentados numa fase processual em que já não era admissível proceder-se a tal junção e em que já não suposto fazer-se prova de coisa alguma.
     vii. Estes documentos não podiam ser apresentados ao abrigo do disposto no artigo 451º do CPC, uma vez que, não obstante a sua certificação ser recente, os documentos juntos pela Recorrente não se destinavam a provar factos posteriores aos articulados, nem a sua apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.
     viii. Acresce que estes documentos só foram entregues na discussão do aspecto jurídico da causa, a que se refere o artigo 560º do Código de Processo Civil.
     ix. Aquilo que se pretende, em tal momento processual, é discutir o aspecto jurídico da causa e nada mais.
     x. Nesta fase do processo já estava concluído o julgamento da matéria de facto e, portanto, já estava decidido o que o Tribunal a quo tinha considerado como provado e não provado.
     xi. A junção dos documentos de fls. 406 a 411 era, pois, legalmente inadmissível (por intempestiva) e inútil.
     xii. Apesar de a Recorrente alegar que as certidões não constituem “provas novas”, a lei (neste caso o artigo 450º do CPC) nunca refere este critério de inadmissibilidade de documentos quando consistam em provas novas.
     xiii. Permitir o envio de provas não novas seria, aliás, permitir o envio de provas sem utilidade (por não serem novas no processo).
     xiv. E a pretensão afirmada pela Recorrente, de aumentar a força probatória de certas provas e de que as mesmas serão susceptíveis de influir no bom desfecho da causa não poderá vingar, uma vez que, no momento processual em que estas certidões foram juntas, já tinha sido proferida decisão sobre a matéria de facto.
     xv. O artigo 115º, n.º 2 do CPC, invocado pela Recorrente, não tem qualquer aplicabilidade ao presente caso, uma vez que se refere ao prazo para a secretaria submeter a despacho requerimento que não respeitem ao andamento de processos pendentes.
     xvi. No âmbito da gestão processual que terá de assumir e do poder de direcção (artigo 6º do CPC) que o juiz tem, este poderá, se assim o entender, determinar o desentranhamento de documentos, sem ter de enquadrar os seus motivos na “impertinência” ou na “desnecessidade” a que se refere o artigo 468º, n.º 1 do CPC (poderá fazê-lo, por exemplo, por inadmissibilidade legal, como é o caso).
     xvii. Os documentos de fls. 406º a 411 sempre poderiam ser, in casu, desentranhados, ao abrigo deste artigo 468º, n.º 1 do CPC, uma vez que, para além de inadmissíveis (em virtude da sua junção intempestiva), eram também “desnecessários” e “impertinentes”, pois já tinha sido proferida decisão sobre a matéria de facto.
     xviii. A eventual existência de uma questão prévia (quer seja, ou não, de conhecimento oficioso) não afasta a regra contida no artigo 450º do CPC.
     xix. Se existir uma questão de conhecimento oficioso, o juiz pode livremente notificar a parte, se nisso vir alguma pertinência ou necessidade, para vir aos autos juntar os documentos, independentemente da fase processual em que o processo se encontre.
     xx. Se for uma questão prévia invocada pelas partes, então aplicar-se-á o n.º 1 do artigo 450º, que dispõe que “[…] os documentos […] devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.”
     xxi. A junção dos documentos de fls. 406 a 411 não foi feita nem por ordem do Tribunal a quo, nem num articulado em que a Recorrente tenha requerido, pela primeira vez, a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
     xxii. Quanto à multa aplicada à Recorrente, o número 2 do artigo 450º pode estender-se aos casos em que os documentos acabem por não ser aceites, por ser uma situação mais grave do que a prevista naquele preceito legal (a minori, ad maius).
     xxiii. Mas nem será preciso, parece-nos, fazer este raciocínio de interpretação para se concluir que a decisão do Tribunal a quo, ao condenar a ora Recorrente em multa, está perfeitamente abrigada na lei, uma vez que a multa aplicada pelo Tribunal a quo encontra acolhimento legal no artigo 468º, n.º 1 do CPC.
     Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso, a que ora se responde, ser julgado improcedente e consequentemente ser confirmada a douta decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base,
     Assim fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”
*
Realizado o julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar improcedente a acção intentada pelo autor.
Inconformado, recorreu o autor jurisdicionalmente para este TSI, tendo formulado as seguintes conclusões alegatórias:
     “I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos, de fls. 538 a 883, na parte em que, apesar de se ter entendido que o ora Recorrente tinha direito a ser indemnizado, “compensou” esse direito por aplicação do instituto da compensatio lucri cum damno, e concluiu que nada havia a pagar ao Recorrente.
     II. A decisão recorrida padece de nulidade, por ter conhecimento de questões de que não se podia tomar conhecimento (art. 571º, n.º 1, al. d) do CPC).
     III. Se assim não se entender, e subsidiariamente, sempre estará a sentença recorrida inquinada de erro de julgamento, por incorrecta a aplicação, no caso concreto, do instituto da compensatio lucri cum damno.
     Concretizando:
     IV. A sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 571º, n.º 1, al. d) do CPC, por ter conhecido questões sobre as quais não podia tomar conhecimento.
     V. A personalidade (e o património) das sociedades comerciais não se confunde com a dos seus sócios e um “benefício” de uma sociedade comercial não se repercute automaticamente na esfera jurídica dos seus sócios.
     VI. Para que se entenda que dos “benefícios” da sociedade resultaram iguais “benefícios” para o sócio (que possam servir de base ao instituto da compensatio lucri cum damno), esses “benefícios” do sócio terão de ser alegados e provados.
     VII. Para que processualmente se possa valorar um eventual benefício de um sócio com a sua sociedade, esse benefício tem de ser concretizado no processo.
     VIII. Tais “benefícios” constituem um facto impeditivo do direito invocado pelo ora Recorrente.
     IX. Sendo um facto impeditivo, teriam de corresponder a um benefício real, concreto, demonstrável e processualmente demonstrado.
     X. De acordo com o princípio dispositivo (art. 5º, n.º 1 e 407º, n.º 2, al. b) do CPC), competia à Recorrida ter alegado tal facto impeditivo.
     XI. Cabendo-lhe também, nos termos do artigo 335º, n.º 2 do Código Civil, o ónus da prova desse mesmo facto.
     XII. Nos termos do artigo 567º do CPC, o juiz a quo só poderia ter-se servido dos factos articulados pelas partes e deveria ter-se abstido de ir buscar oficiosamente um eventual “benefício” do ora Recorrente, que pudesse servir de contrapeso ao prejuízo que este sofreu.
     XIII. In casu, a Recorrida não alegou nem provou tal “benefício”, como lhe competia.
     XIV. Esse “benefício”, alegadamente obtido pelo ora Recorrente, não consta dos factos assentes nem da base instrutória.
     XV. O Tribunal a quo proferiu assim uma decisão surpresa, extravasando aquilo que lhe foi trazido pelas partes, decidindo a questão da responsabilidade civil da ora Recorrida com base num pretenso “benefício” do Recorrente, que nunca foi alegado nem provado, que não consta dos factos assentes nem da base instrutória.
     XVI. Assim, e nos termos do artigo 571º, n.º 1, al. d) do CPC, a sentença recorrida é nula, por ter conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento, nulidade essa que desde já se invoca, para todos os efeitos legais.
     Subsidiariamente,
     XVII. A decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, por errada aplicação, no caso concreto, do instituto da compensatio lucri cum damno.
     XVIII. Se o Tribunal a quo segue a lógica de que um benefício da sociedade é um benefício (automático) do seu sócio, então teria também de aceitar o raciocínio inverso, de que um “prejuízo” da sociedade é um “prejuízo” do seu sócio.
     XIX. Caso a ora Recorrida tivesse sido condenada a pagar ao Recorrente a indemnização peticionada, então esse pagamento também poderia repercutir-se pela negativa no património do Recorrente, por via da sua participação social na Recorrida.
     XX. Esta desvalorização no património do Recorrente, por via da sua participação social na Recorrida, faria com que não ocorresse esse enriquecimento que o Tribunal a quo tanto quis evitar.
     XXI. Ao decidir com base no instituto da compensatio lucri cum damno, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento, uma vez que partiu do pressuposto errado de que o pagamento da indemnização devida levaria a um enriquecimento do ora Recorrente.
     XXII. Subsidiariamente à nulidade invocada no capítulo anterior, terá de se concluir que a decisão recorrida incorreu num erro de julgamento, devendo assim ser revogada e substituída por outra que se limite a fixar o direito de indemnização do ora Recorrente, sem aplicação do instituto da compensatio lucri cum damno.
     Em adição
     XXIII. Para cálculo da indemnização devida ao Recorrente, o Tribunal a quo considerou dois momentos distintos: um primeiro até ocorrer mora (que considerou existir apenas a partir da citação nos presentes autos), e um segundo desde a citação até ao registo de aquisição do imóvel por terceiros.
     XXIV. Ao primeiro momento aplicou o n.º 1 do artigo 1027º do CC, tendo determinado que a indemnização relativa a este primeiro período, deveria corresponder ao valor da renda do locado.
     XXV. Para o segundo momento, teve em consideração o valor de mercado e, por ser superior ao dobro do valor da renda (n.º 2 do artigo 1027º do CC), aplicou este valor e mercado como “prejuízo excedente”, por via do n.º 3 do mesmo artigo 1027º do CC.
     XXVI. A regra do n.º 3 do artigo 1027º do CC (consideração dos “prejuízos excedentes, se os houver”), deveria ter sido aplicada antes e depois da mora, e não apenas no momento posterior.
     XXVII. Os “prejuízos excedentes” (n.º 3) devem ter prevalência num e noutro caso: antes da mora (n.º 1) e depois da mora (n.º 2).
     XXVIII. A apontar para esta interpretação está, desde logo, o elemento literal presente no artigo 1027º do CC: o n.º 3 fala em prevalência da “indemnização dos prejuízos excedentes”, enquanto que tanto o n.º 1 como o n.º 2 deste artigo tratam a compensação devida como “indemnização”.
     XXIX. Se no n.º 3 do artigo 1027º do CC o legislador decidiu dar prevalência à “indemnização dos prejuízos excedentes”, não vemos na letra da lei qualquer elemento que leve a pensar que essa prevalência não deva ser dada no período anterior à mora.
     XXX. Para além disso, a própria lógica subjacente à razão de ser de imposição da obrigação de indemnizar aponta no sentido de que a obrigação de indemnização pressupõe a compensação por um dano.
     XXXI. Ora, se o dano é superior à cifra estipulada pelo n.º 1 ou pelo n.º 2 do artigo 1027º do CC, não há razão nenhuma para se compensar esse excesso nos casos do n.º 2 e não se compensar nos casos do n.º 1.
     XXXII. Assim, está a decisão recorrida inquinada de vício de erro de direito, por errada interpretação e aplicação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 1027º do CC, devendo os mesmos ser interpretados no sentido de que mesmo antes da mora, deve ser fixada a indemnização de acordo com os prejuízos que excedam (n.º 3) o valor da renda em singelo (n.º 1), e devendo a decisão recorrida ser alterada em conformidade.
     Da Cálculo da Indemnização:
     XXXIII. Procedendo os argumentos supra, será necessário apurar o valor da indemnização a atribuir ao Recorrente.
     XXXIV. Considerando os valores de mercado provados nos autos, tendo em conta a proporção da participação do ora Recorrente na meação do imóvel, e após (1) aplicar o n.º 3 do artigo 1027º do CC ao período anterior à mora; (2) desconsideração do instituto do compensatio lucri cum damno, resultará um valor total de indemnização de MOP$2.481.630,00 (dos milhões, quatrocentas e oitenta e uma mil e seiscentas e trinta patacas), devendo ser sentença recorrida alterada em conformidade, condenando-se a Recorrida a pagar à Recorrente a referida quantia, acrescida dos juros de mora calculados à taxa legal em vigor.
     Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base, e substituída por uma outra que dê provimento à pretensão do ora Recorrente e condene a Recorrida nos termos supra alegados,
     Assim fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”

Ao recurso respondeu a ré, bem como requereu a ampliação do âmbito do recurso, nos seguintes termos conclusivos:
     “a. Existe uma relação de prejudicialidade entre o recurso de fls. 217 a 226v contra o decidido do despacho saneador de fls. 169 a 170v – e o presente recurso contra a sentença ora recorrida.
     b. Por conseguinte, a julgar-se procedente o recurso contra a decisão tomada no despacho de fls. 169 a 170v interposto pela ora Recorrida a fls. 182, fica prejudicado o conhecimento do objecto do presente recurso interposto contra a sentença de fls. 538 a 553.
     c. Em todo o caso, importa dizer, por dever de patrocínio, que a sentença recorrida não incorreu na nulidade de excesso de pronúncia prevista na segunda parte da alínea d, do n.º 1 do art.º 571º do CPC.
     d. Primeiro, porque Autor não impugnou nenhum dos factos da defesa por excepção articulados nos artigos 73º a 88º e 106º da Contestação, como lhe impunha o art.º 424º do CPC, pelo que tais factos se consideram reconhecidos por força do art.º 410º, n.º 2 do CPC.
     e. Segundo, porque o princípio da compensatio lucri cum damno não constitui uma excepção que deva ser expressamente invocada pela parte que dela pretenda aproveitar-se.
     f. Trata-se antes de um princípio informador da elaboração pelo tribunal dos cálculos (impostos pela teoria da diferença) da medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que ele teria nessa data se não existissem danos (art.ºs 556º e 560º, n.º 5 do Código Civil, do Código Civil), cuja aplicação a lei não torna dependente da vontade do interessado.
     g. Tal cálculo consiste num poder-dever do tribunal e não no conhecimento de uma excepção cuja invocação a lei faça depender da vontade do interessado, sendo meridiano que a “compensatio lucri cum damno” tem antes a ver com os pressupostos da responsabilidade civil por ilícito contratual, designadamente com a verificação do dano concreto, conforme consta da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (Proc.º 965/09.7TVLSB.L1.S1) citada na sentença recorrida.
     h. Também não houve errada aplicação do instituto da compensatio lucri cum damno.
     i. Primeiro, dado o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito e poder servir-se dos factos articulados pelas partes, designadamente nos artigos 73º a 88º e 106º da Contestação (art.º 567º do CPC) e ter de fazer o exame crítico das provas que lhe cumpria e conhecer (art.º 562º, n.º 3 do CPC), sem prejuízo do disposto no artigo 5º, n.º 2 do CPC, ou seja, da consideração oficiosa dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
     j. Segundo, porque a reconstituição da situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação pressupunha a aplicação ao caso concreto do princípio da “compensatio lucri cum damno”, sob pena de violação dos art.ºs 556º e 560º, n.º 5 do Código Civil.
     k. Também não se verifica a errada interpretação e aplicação do artigo 1027º, n.ºs 1 e 3 do CC.
     l. Primeiro, porque o pedido de indemnização no valor de MOP2.481.630,00 na conclusão XXXIV excede o limite peticionado pela Recorrente – na alínea B) do petitório apenas o Recorrente pediu o valor de MOP2.129.880,00.
     m. Segundo, porque o artigo 1027º, n.º 3 do CC só se aplica quando constituir a mora, na medida em que não se justifica considerar-se danos excedentes decorrentes antes da mora, se o Recorrente não exercer a faculdade de interpelação e, por isso, tornar a obrigação de indemnização exigível.
     n. Terceiro, porque, no caso concreto em causa, não se deve aplicar o artigo 1027º, n.º 3 do CC, quer ao período desde cessação de arrendamento até a citação da Recorrida, quer relativo ao desde citação da Recorrida até o registo da aquisição da fracção em causa pelo novo proprietário (certidão predial de fls. 467).
     o. Não se verificam os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos prevista no art.º 477º, n.º 1 do Código Civil.
     p. Isto por ser necessário mostrar-se alegada e provada a “efectiva” e “concreta” verificação destes “danos”, não bastando a (mera) alegação e prova, (como no caso sucede), do possível valor das “rendas de mercado”, sem que, efectivamente assente esteja, igualmente, uma “real possibilidade” de arrendamento a troco do seu pagamento, conforme referido na jurisprudência do TUI, designadamente no Ac. de 19.03.2021 (Proc.º 203/2020), in www.court.gov.mo.
     q. Quarto, porque o ora Recorrente já previra que “sofreria” certos “prejuízos” resultantes de menos rendimentos das rendas – i.e. diferença entre o valor fixado na assembleia geral referida na alínea v) dos factos assentes e o valor de mercado.
     r. Tal significa que ele arrendou a fracção em causa pelo preço mais baixo do que o de mercado em benefício à ora Recorrida.
     s. Pelo que não existe nexo de causalidade entre o facto de não pagamento das rendas e os danos excedentes supostamente produzidos.
     t. Nada obsta, pois, que seja negado provimento ao recurso do Autor seja com base nos mesmos fundamentos invocados na decisão impugnada (art.º 631º, n.º 5 do CPC).
     u. Subsidiariamente, prevenindo a hipótese de procedência das questões suscitadas pelo Recorrente argui-se, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do art.º 590º, do CPC, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia prevista no art.º 571º, n.º 1, alínea d), 1ª parte, do CPC, aplicável por força do art.º 410º, n.º 2, ex vi dos art.ºs 424º e 562º, n.º 3 todos do mesmo diploma, quanto à questão de conhecimento oficioso da confissão presumida (ou ficta) dos factos alegados nos artigos 64º, 65º, 66º, 67º, 70º, 71º, 73º, 74º, 75º, 76º, 77º, 79º, 81º, 87º e 88º da Contestação, que foi objecto da discussão jurídica do aspecto jurídico da causa apresentada em 15.10.2021 (entrada no: 96119/2020).
     v. Subsidiariamente, prevenindo a necessidade da sua apreciação no caso de Tribunal ad quem julgar procedente o recurso interposto pelo Recorrente, requer-se, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 590º, n.º 1 do CPC, sejam apreciados os fundamentos da defesa em que a parte vencedora decaiu na decisão relativa aos pedidos formulados pelo Autor na petição inicial, e depois parcialmente alterados na Réplica.
     w. Reportamo-nos expressamente às questões (i) da inviabilidade do pedido principal: artigos 1º, 59º da Contestação e 5º a 32º da Tréplica, (i) da ilegitimidade substantiva do Autor quanto ao 2º Pedido: artigo 60º a 91º da Contestação; (iii) do erro na forma do processo: artigos 96º a 98º da Contestação; (iv) da litigância de má-fé: artigos 33º a 44º da Tréplica, bem como às questões de direito tratadas na discussão jurídica do aspecto jurídico da causa de 15.10.2021 (entrada no: 96119/2020), cujo teor se dá por reproduzido.
     x. Assim, sempre seria de manter o sentido da decisão recorrida, ainda que por diverso fundamento.
     y. Primeiro, porque se verifica a situação de preterição do litisconsórcio necessário activo prevista no art.º 1929º, n.º 1 do Código Civil (aplicável por analogia) ou no artigo 61º, n.º 2 do CPC, por o Autor vir reivindicar um bem concreto e individualizado do património colectivo indiviso do casal e exercer contra a Ré, desacompanhado da sua ex-mulher C e na pendência do inventário facultativo FM1-10-0002-CDL-A, bem como um direito de crédito relativo a tal património autónoma, sem que nele haja sido encabeçado no acto da partilha.
     z. Segundo, porque na pendência do processo de inventário indicado na alínea H) dos Factos Assentes para pôr termo à comunhão conjugal, não era lícito ao Autor dispor de qualquer bem concreto e individualizado do património colectivo indiviso do casal, máxime da fracção reivindicada, ou onerá-lo, total ou parcialmente.
     aa. Terceiro, porque a venda da fracção ora reivindicada na pendência da presente acção determina a extinção superveniente do pedido principal por impossibilidade superveniente da lide e, por conseguinte, a impossibilidade do pedido acessório de indemnização que dele depende.
     bb. Quarto, porque após a dissolução do casamento na data especificada na alínea E) dos Factos Assentes até se proceder à partilha, o regime a aplicar à propriedade da fracção autónoma em causa nos presentes autos não é o regime da compropriedade, mas o do tertium genus semelhante à “propriedade colectiva” referido no Acórdão do TUI de 11/07/2018, Proc.º 12/2018, in www.court.gov.mo.
     cc. Quinto, porque enquanto não se proceder à liquidação e partilha dos bens comuns do casal no inventário facultativo FM1-10-0002-CDL-A, o Autor não tem direito a qualquer quota parte de algum bem concreto e individualizado, de entre os que integram o acervo conjugal indiviso.
     dd. Isto dado que, como dizem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA in Código Civil Anotado, Vol. IV, p. 437, “não há quotas pertencentes a cada um dos cônjuges, porque o património comum pertence, em bloco, a ambos eles (…). Quando, por conseguinte, no artº 1730º se prescreve que os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tem-se especialmente em vista fixar a quota parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum (…)”.
     ee. Por isso, como advertem FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, “Curso de Direito da Família”, 2ª ed., 2001, p. 510, “não se trata de cada cônjuge ter um direito a metade de cada bem concreto do património comum”; “o direito a metade é (…) um direito ao valor de metade.”
     ff. É que: Aos titulares do património coletivo não pertencem direitos específicos – designadamente uma quota – sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhe sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente, pelo que, na partilha dos bens destinada a pôr fim à comunhão, os respetivos titulares apenas têm direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objeto da partilha, o que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património.
     gg) Cf., na esteira de Pires de Lima e Antunes Varela, EVA DIAS (2013), in “Breves considerações acerca do regime transitório aplicável às relações patrimoniais dos ex-cônjuge entre a dissolução do casamento e a liquidação do património do casal”, RIDB, Ano 2, pp. 14817 a 14820, disponível no Repositório da UPT in http://hdl.handle.net/11328/665.
     hh. Sexto, porque a impossibilidade de o Autor gozar de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição da fracção reivindicanda até à liquidação e partilha dos bens comuns sob a administração do cabeça de casal, resulta da lei, designadamente do disposto no art.º 1907º do Código Civil, por força dos factos especificados sob as alíneas F), G) e H) dos Factos Assentes.
     ii. Sétimo, porque durante o período em causa, o Autor não se podia ter substituído ao cabeça de casal na administração dos bens comuns do casal, máxime na administração da fracção ora reivindicada.
     jj. Oitavo, porque do exame crítico das provas não resulta provado que o Autor tivesse exigido à sua ex-mulher C e cabeça-de-casal do acervo conjugal indiviso que esta (que também a administradora da Ré) não consentisse que a Ré continuasse a usar o bem descrito sob a verba 1ª da relação de bens de fls. 67 a 72v.
     kk. Nono, porque enquanto interessado na partilha, o Autor não tem legitimidade substantiva para, à margem e na pendência do processo de inventário de partilha dos bens comuns do casal (FM1-10-0002-CDL-B) e antes de se conhecer a composição dos respectivos quinhões, se substituir à sua ex-mulher C no exercício das suas funções de cabeça de casal no que respeita à cobrança de quaisquer créditos relativos a bens determinados do património colectivo indiviso, como o que surge peticionado na alínea B) do petitório.
     ll. Isto por tal violar o disposto no art.º 1907º e 1929º do Código Civil aplicável ao inventário para partilha dos bens comuns do casal por identidade de razão e o património indiviso não poder ser colocado, antes da partilha, ao serviço ou satisfação dos interesses do cônjuge meeiro, apenas tendo este a possibilidade de exigir do cabeça-de-casal a distribuição até metade dos rendimentos que lhe caibam (art.º 1930º do Código Civil).
     mm. Décimo, porque o Autor reconheceu tacitamente a inexistência de quaisquer rendas ou indemnizações em dívida pela Ré aquando da não impugnação da decisão de fls. 76v e da sentença de fls. 79 a 82v e da aceitação e desconto dos cheques no valor de MOP634.299,01 e de MOP1.200.000,00 referidos nos artigos 79º e 75º da Contestação relativos à parte que lhe competia na distribuição dos lucros acumulados da Ré.
     nn. Décimo primeiro, porque a decisão transitada em julgado de fls. 76v obsta a que, na presente acção, o Autor venha exigir “créditos” que não fazem parte do património colectivo por não constarem da relação de bens de fls. 67 a 72v nem das contas aprovadas pela sentença de fls. 79 a 82v.
     oo. Tanto assim é que a “objecção” suscitada pelo Autor referida na resposta ao quesito 3º da base instrutória foi dirimida na decisão de fls. 76v, transitada em julgado em 16/12/2016, enquanto a questão de saber se as rendas (e, por conseguinte, o valor locativo) da fracção reivindicada fazia (ou não) parte do acervo conjugal indiviso foi resolvida na sentença de fls. 79 a 82v, transitada em julgado, proferida em 03/05/2018 no Apenso da prestação de contas (FM1-10-0002-CDL-C) do processo de partilha dos bens comuns do casal indicado na alínea H) dos Factos Assentes.
     pp. Décimo segundo, porque a proposta feita pelo Recorrente à sua ex-mulher que não se cobrassem mais rendas referida na alínea o) dos Factos Assentes da fundamentação da sentença recorrida também produzem eficácia em relação à ora Recorrida.
     qq. Décimo terceiro, porque a sentença transitada em julgado de fls. 79 a 82v que aprovou o saldo resultante das entradas/receitas/créditos e das saídas/despesas/débitos do acervo conjugal indiviso no período 2010 a 2018, obsta por força da autoridade do caso julgado resultante do art.º 580º, n.º 1 ex vi do art.º 576º, n.º 1 do CPC, a que, na presente acção, o Autor venha exigir “créditos” que não fazem parte desse saldo, nem, por conseguinte, do património colectivo tal como ele foi configurado pelos ex-cônjuges na relação de bens de fls. 67 a 72v e na decisão de fls. 76v.
     rr. Décimo quarto, porque o contrato de arrendamento deu lugar a um contrato de comodato, quer por causa de proposta expressa pelo Recorrente referida na alínea o) dos Factos Assentes, quer por não oposição ou autorização tácita do Autor e do cabeça de casal encarregado da administração do património colectivo dos ex-cônjuges no inventário facultativo FM1-10-0002-CDL-B.
     ss. Décimo quinto, porque o crédito invocado pelo Recorrente, a ser devido (e não é) teria prescrito por força dos artigos 303º, n.º al. b) ou 491º, n.º 1 ambos do CC.
     tt. Décimo sexto, porque não impende sobre a Ré a obrigação de restituir ao Autor o valor subsidiariamente peticionado a título de por enriquecimento sem causa por tal instituto ser inaplicável face ao disposto n art.º 468º do Código Civil ou por não se verificarem cumulativamente os pressupostos do art.º 468º do Código Civil ou por tal direito, se existisse – e não existe – já ter prescrito.
     uu. Décimo quarto, porque, subsidiariamente, o exercício do direito de acção pelo Autor em 19/02/2019 foi ilegítimo por configurar um abuso de direito (artigo 326º do CC) na modalidade de “venire contra factum proprium” ou “supressio” ou “surrectio”, conforme, nos termos do art.º 410º, n.º 2, ex vi dos art.ºs 424º e 562º, n.º 3, todos do CPC, resulta do reconhecimento pelo Autor dos factos pessoais alegados pela Ré nos artigos 64º, 65º, 66º, 67º, 70º, 71º, 73º, 74º, 75º, 76º, 77º, 79º, 81º, 87º e 88º da Contestação.
     vv. Até porque, se por absurdo, da resposta ao quesito 1º da base instrutória, não resultasse uma situação de comodato, sempre o arrendamento original se teria renovado nos termos e para os efeitos do art.º 1037º, n.º 1 do Código Civil, pelo que a ocupação da fracção pela Ré sempre teria sido lícita.
     ww. É, pois, ilegítima, a actuação do Autor, o qual não pode ignorar que a aceitação e o desconto pelo Autor do cheque bancário n.º ... relativo ao valor da sua participação na parte dos lucros acumulados (da Ré) que lhe competia no exercício da de 2017 configuram o seu acordo não só relativamente às contas do exercício da Ré de 2017, bem como também às dos anos passados, por tal desconto ao abrigo de uma deliberação válida pressupor o reconhecimento do acerto da conta de ganhos e perdas, do balancete anual e de deliberado pelos sócios da Ré quanto ao relatório da administração e à aplicação dos resultados.
     xx. Isto por as deliberações sociais que aprovam as contas anuais, o relatório da administração e a proposta de aplicação dos resultados possuírem eficácia instantânea, dispondo de intrínseca executividade ou pronta exequibilidade contra todos os sócios, inclusivamente os ausentes e os dissidentes, impondo-se, por igual a todos. Cf. – JORGE PINTO FURTADO, “Deliberação dos Sócios”, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Coimbra 1993, pag. 258 e 39.
     yy. Acresce que para atingir o objectivo ilegal de retaliação contra a sua ex-mulher e os seus filhos e perturbar o funcionamento da Recorrida, instaurou a presente acção sem causa justificada e temerariamente omitiu a alegação de factos relevantes para o mérito da causa – i.e. a proposta referida na alínea o) dos factos assentes da fundamentação da sentença recorrida, impondo-se, pois, a sua condenação em multa e litigância de má fé nos termos peticionados na Tréplica.
     zz. Deve, pois, ser confirmada a sentença recorrida, ainda que por diverso fundamento.
     Nestes termos e com o mais que V. Exas., muito doutamente, não deixarão de suprir, o recurso do Autor deverá ser julgado improcedente, com as legais consequências.”
*
Ao pedido de ampliação respondeu o autor o seguinte:
     “I. Vem a presente resposta apresentada relativamente à ampliação do âmbito do recurso, feita pela Recorrida nos termos do artigo 590º do CPC.
     II. Quanto à alegada omissão de pronúncia alegada pela Recorrida, e ao contrário do entendimento por aquela defendido, não houve qualquer confissão dos factos alegados pela Recorrida nos referidos artigos da contestação (vide artigos 34º a 47º da Réplica, e considere-se ainda que os factos alegados pela Recorrida estão em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, o que, nos termos do artigo 410º, n.º 1 do CPC, sempre afastaria o efeito cominatório) e tais factos não revelam nenhuma “renúncia” do Recorrente à cobrança de rendas à Recorrida.
     III. E para o que neste primeiro ponto interessa, cumpre referir que o Tribunal a quo se pronunciou expressamente sobre essas questões, não incorrendo na omissão de pronúncia que agora lhe é apontada.
     IV. O Tribunal a quo julgou a excepção improcedente logo no despacho saneador.
     V. Mas mais do que isso, pronunciou-se exaustivamente sobre aqueles factos na sentença que proferiu. (cfr. pp. 14, 15 e 16 da sentença).
     VI. Atendendo à impugnação expressa que foi feita pela ora Recorrida dos factos vertidos nos artigos 64º, 65º, 66º, 67º, 70º, 71º, 73º, 74º, 75º, 76º, 77º, 79º, 81º, 87º, e 88º da Contestação, não se vislumbra de onde retira a Recorrida a existência de qualquer efeito cominatório.
     VII. E temos também que, atendendo à decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre o alegado naqueles artigos da Contestação, não se percebe também de onde tira a Recorrida uma nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
     VIII. Face ao exposto, deverá improceder a nulidade por omissão de pronúncia alegada pela Recorrida (cfr. art. 571º, n.º 1, al. d) do CPC, aplicável por força do art. 410º, n.º 2, ex vi artigos 424º e 562º, n.º 3, todos do CPC).
     Por outro lado,
     IX. A ampliação do âmbito do recurso feira pela Recorrida, nos termos do artigo 590º do CPC, incide sobre pontos que correspondem às excepções invocadas pela Recorrida na Contestação, a saber: a) inviabilidade do pedido principal; b) ilegitimidade substantiva do Autor quanto ao 2º pedido; e c) erro na forma do processo.
     X. Estas questões foram decididas no despacho saneador, de fls. 169-173, e a ora Recorrida interpôs recurso daquela decisão.
     XI. Tendo sido interposto recurso do despacho saneador, é nesse recurso que devem ser apreciados os argumentos alegados que levaram à discordância da agora Recorrida, ali Recorrente.
     XII. A ampliação do âmbito do recurso prevista no artigo 590º do CPC não serve para repetir argumentos do recurso contra a decisão proferida no despacho saneador; uma coisa é o recurso desse despacho saneador, outra coisa, completamente diferente, é a ampliação do âmbito do recurso quanto à parte em que a Recorrida decaiu.
     XIII. Aliás, não se percebe como pode a Recorrida pretender uma ampliação do âmbito do recurso da sentença, quanto esta nem sequer se pronunciou – como não tinha de se pronunciar, por as questões estarem resolvidas – sobre os pontos que a Recorrida tenta agora reavivar, tendo referido apenas que “A instância mantém-se válida e regular, como decidido no despacho saneador.”
     XIV. As questões relativas às excepções invocadas pela Recorrida, e resolvidas no despacho saneador, devem ser apreciadas no recurso próprio, e não em sede de ampliação do âmbito do recurso, pelo que deve a ampliação do âmbito do recurso requerida, quanto às excepções invocadas pela Recorrida, ser rejeitada.
     Sem conceder, e sobre a alegada inviabilidade da acção principal:
     XV. Parte dos argumentos defendidos pela Recorrida perdem desde logo a relevância com o facto de o imóvel em causa ter sido vendido na pendência da presente acção, e de o próprio Recorrente ter desistido do primeiro pedido que havia feito na Petição Inicial, passando a estar apenas em discussão a questão de saber se o ora Recorrente tinha, ou não, direito a ser indemnizado pelos anos em que a Recorrida ocupou a fracção sem pagar qualquer contrapartida.
     XVI. Estando em causa apenas a reparação de um dano próprio do Recorrente, não interessará discutir o regime aplicável ao património comum do casal entre o divórcio e a partilha, e concluir-se-á necessariamente que o Recorrente tem direito a reclamar um direito que é seu.
     XVII. Por outro lado, o pedido de condenação, quer a título de danos sofridos, quer a título de enriquecimento sem causa, não é dependente da procedência do pedido de reconhecimento da propriedade e de entrega da cosia.
     XVIII. A Recorrida durante vários anos, ocupou um espaço comercial que não era seu, sem suportar qualquer custo relativo à utilização desse espaço e nada impede que o Recorrido pretenda ser ressarcido pelo prejuízo que teve com essa utilização gratuita de que a Recorrida beneficiou (ou pelo valor com que aquela se locupletou à sua custa).
     XIX. O facto de a fracção autónoma ter entretanto sido alienada não prejudica, em nada, o direito do Recorrente a ser indemnizado.
     XX. As questões de saber se é ou não aplicável o regime da compropriedade ou o do “tertium genus semelhante à “propriedade colectiva” e se o Recorrente tem ou não direito a qualquer quota parte de um bem concreto (neste caso do imóvel), ficam também prejudicadas pelo facto de o imóvel em causa ter sido vendido na pendência da presente acção, e de o próprio Recorrente ter desistido do primeiro pedido que havia feito na Petição Inicial.
     XXI. Mesmo que assim não fosse, o facto de o bem ser detido em comunhão não o torna sem dono, nem permite que qualquer um o ocupe sem título para o efeito.
     XXII. Aplica-se ao presente litígio o artigo 1300º do Código Civil, aplica-se igualmente o artigo 1301º do mesmo diploma, cujo n.ºs 1 e 2, que mandam expressamente aplicar as regras da compropriedade à comunhão conjugal (não existindo no regime legal da comunhão conjugal qualquer norma especial que afaste tal determinação).
      XXIII. Por via daquele artigo 1300º do Código Civil, aplica-se igualmente o artigo 1301º do mesmo diploma, cujo n.ºs 1 e 2, que mandam expressamente aplicar as regras da compropriedade à comunhão conjugal (não existindo no regime legal da comunhão conjugal qualquer norma especial que afaste tal determinação).
     XXIV. A comunhão é apenas uma das modalidades que pode revestir o direito de propriedade que seja detido por mais do que uma pessoa sobre o mesmo bem, pelo que, embora em regime de comunhão, o imóvel em causa nos presentes autos efectivamente pertence e é propriedade (comum) também do ora Recorrido (e da sua ex-mulher).
     XXV. Ao contrário do que sucede com a comunhão hereditária (tantas vezes é invocada pela Ré para estabelecer um paralelismo com a comunhão conjugal), o certo é que para esta última não existem disposições especiais que se lhe apliquem e que afastem a aplicação das regras da compropriedade.
     XXVI. Não é, nomeadamente, aplicável o artigo 1907º do CC, invocado pelo Recorrida, por ser um preceito relativo à comunhão hereditária, a qual não se confunde com a comunhão conjugal.
     XXVII. Por tudo o exposto, deverá também ser julgada improcedente a excepção da inviabilidade da acção invocada pela Recorrida.
     Sobre a alegada ilegitimidade substantiva do Recorrente:
     XXVIII. O facto de o Recorrente não ser cabeça-de-casal é irrelevante para o que aqui tratamos, uma vez que, ao exigir o pagamento da indemnização, não o fez para o casal, mas para si próprio (é um dano próprio).
     XXIX. A lei não estabelece nenhuma regra relativa à existência de um litisconsórcio legal ou necessário em relação aos ex-cônjuges quanto à reclamação de um terceiro da indemnização por danos de carácter patrimonial causados em bem comum.
     XXX. Quando o artigo 1300º do CC refere “quaisquer outros direitos”, não visa apenas os direitos reais, pelo que a contitularidade de um direito de crédito está subordinada, sempre que não exista regulamentação própria (como é o caso) também às regras da compropriedade.
     XXXI. À reclamação da indemnização que se peticionou nos presentes autos, aplica-se o n.º 2 do artigo 1301º do CC, podendo o Recorrente reclamar a indemnização pelos danos causados na coisa comum, mesmo não sendo cabeça-de-casal.
     XXXII. Quanto à alegada renúncia do pelo Recorrente à cobrança às rendas, para além do que já atrás foi dito (e que se reproduz in totum), essa renúncia nunca existiu.
     XXXIII. As decisões proferidas nos processos de Inventário e de Prestação de Contas diziam ambas respeito a um crédito que o ora Recorrente reclamava sobre a sua ex-mulher, relativo às rendas que esta havia alegadamente recebido da ora Recorrida como contrapartida do contrato de arrendamento que o ora Recorrente julgava existir na altura em que as reclamou.
     XXXIV. O que se reclama nos presentes autos é uma indemnização devida pela ocupação ilegítima pela Recorrida da fracção autónoma em causa nos presentes autos, o que é distinto do que estava em causa naqueles outros processos.
     XXXV. O facto de o ora Recorrente se ter “conformado” naqueles autos com a justificação dada pela sua ex-mulher, de que o crédito de rendas que reclamava não existia porque o contrato de arrendamento que era fonte das mesmas já havia cessado, não implica nem de direito nem de facto que tenha prescindido do direito de reclamar a indemnização que pretende receber nos presentes autos.
     XXXVI. O ora Recorrido nunca autorizou, expressa ou tacitamente, a Recorrente a ocupar a fracção em causa nos presentes autos sem qualquer contrapartida.
     XXXVII. Mais, há muito que os interesses entre o Recorrente e a sua ex-mulher, quer os pessoais, quer enquanto sócios da própria Recorrida, são avessos e, por assim o serem, têm sido em diversas sedes alvo de litígio – quer no âmbito de processos de natureza criminal, quer no âmbito de processos de natureza cível, o que faz com que seja descabido o exercício de se fazer corresponder a aceitação por parte do Recorrente dos dividendos que lhe foram distribuídos à aceitação da situação que o levou a insurgir-se nos presentes autos, ou seja, a ocupação sem título e gratuita da fracção autónoma pela Recorrida.
     XXXVIII. Nunca em qualquer assembleia da Recorrida em que o Recorrente tenha livremente participado se discutiu a questão da ocupação da fracção em causa nos presentes autos seja a que título for – arrendamento, onerosa, gratuita, tolerada, emprestada, doada, de presente ou por caridade…
     XXXIX. Face ao exposto, para além de nunca ter havido a “renúncia às rendas” alegada pela Recorrida, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não violou também qualquer “autoridade do caso julgado” das decisões proferidas no âmbito dos processos de Inventário e Prestação de Contas.
     XL. As referidas decisões eram relativas a um crédito que o ora Recorrente reclamava sobre a sua ex-mulher das rendas que esta havia alegadamente recebido da ora Recorrida como contrapartida do contrato de arrendamento que o ora Recorrente julgava existir na altura em que as reclamou, ao passo que o que se reclamou nos presentes autos é uma indemnização devida pela ocupação ilegítima pela Recorrida da fracção autónoma.
     XLI. Por tudo o exposto, deverá igualmente improceder o argumento da ilegitimidade substantiva do Recorrente, alegado pela Recorrida.
     Quanto à alegada interpretação errada da declaração negocial do Recorrente em relação à sua ex-mulher:
     XLII. Não há um acto negocial entre Recorrente e Recorrida, de onde se possa tirar eficácia extintiva de qualquer obrigação da Recorrida, nem nada foi alegado/provado quanto a esse alegado facto.
     XLIII. Aliás, o contrário resulta evidente dos factos provados p) e q), de onde se retira “C confirmou, na Assembleia Geral da sociedade Farmácia X Lda. realizada no dia 2 de Dezembro de 2011, que a referida sociedade paga o valor de MOP$15.000,00 relativo à renda das instalações que ocupa” e que “A Ré tem pleno conhecimento da objecção apresentada pelo Autor no âmbito do processo de inventário entre o Autor e a sua ex-mulher.”
     XLIV. São relevantes também os factos provados r) e v), de onde resulta que “Depois de cessado o arrendamento referido na alínea l) a ré continua a ocupar o imóvel, estando o autor impedido de o fruir por outra forma” (vide ponto r)) e que “[…] a Ré ocupou, sem qualquer título para o efeito, a fracção ora em apreço […]” (vide ponto v).
     XLV. Face ao exposto, não incorreu o Tribunal a quo em errada interpretação da declaração negocial alguma, devendo improceder, também nesta parte, o alegado pela Recorrida.
     Sobre a alegada transformação do contrato de arrendamento em contrato de comodato:
     XLVI. Parece-nos que chega a ser abusivo, vir agora a Recorrida defender que o contrato com ela celebrado se transformou em contrato de comodato, quando nunca havia alegado tal facto e quando sabe perfeitamente que tal não corresponde à verdade.
     XLVII. Não resulta dos autos qualquer proposta de transformação do contrato em comodato.
     XLVIII. Tal transformação nunca foi alegado nem provado.
     XLIX. A Recorrida não indica de onde retira entendimento diverso.
     L. Pelo que deverá também ser julgado improcedente o argumento da transformação do contrato de arrendamento em contrato de comodato.
     Sobre a alegada prescrição do direito de indemnização do Recorrente:
     LI. O Tribunal a quo decidiu e qualificou que a ocupação indevida da fracção por parte da Recorrida é enquadrável numa situação de responsabilidade civil contratual.
     LII. A qualificação da responsabilidade da ora Recorrida na responsabilidade civil contratual não foi objecto de qualquer recurso e, como tal, transitou em julgado.
     LIII. Acresce que aquilo que se reclama nos presente autos e a que o ora Recorrente tem direito é uma indemnização pelo atraso na entrega da fracção que se calcula tendo por base o valor das rendas mensais estabelecidas pelas partes, não estando em causa uma obrigação de pagamento de rendas ou alugueres.
     LIV. Assim, não são aplicáveis os prazos de prescrição invocados pela Recorrida (artigo 303º, n.º 1, al. b) ou artigo 491º, n.º 1 do CC).
     LV. Nascendo a obrigação de indemnizar da Recorrida da sua responsabilidade contratual, o prazo de prescrição a aplicar ao presente caso é o previsto no artigo 302º do Código Civil, ou seja, 15 anos.
     Sobre o alegado abuso de direito do Recorrente:
     LVI. Não foi demonstrado de modo nenhum que o Recorrente tenha excedido “[…] manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, conforme exige o artigo 326º do CC.
     LVII. Nada resulta dos autos que leve a concluir que o Recorrente não podia vir a pretender receber contrapartida pela ocupação do imóvel.
     LVIII. Não existe o direito a que a Recorrida se arroga (“um novo direito de que a ora Recorrida utilizar a fracção em causa a título gratuito […]”), nem se percebe de onde a Recorrida tenta retirar a existência de tal direito.
     LIX. Face ao exposto, deverá também improceder o alegado abuso de direito invocado pela Recorrida.
     Sobre a alegada litigância de má-fé do Recorrente:
     LX. Com a propositura da acção em causa nos presentes autos, o Recorrente não teve qualquer intenção – ao contrário do que alega a Recorrida – de perturbar o que quer que seja.
     LXI. A intenção do Recorrente é apenas a de ser compensado por um dano (avultado) que lhe foi causado.
     LXII. Acresce que a litigância de má fé é um comportamento processual, e o facto alegado pela Recorrida (de o Recorrente ter alegadamente proposto que não se cobrassem mais rendas) é externo ao processo.
     LXIII. Acresce ainda a circunstância de a Recorrida ter apresentado o facto de forma enviesada, isolando-o de toda a restante realidade do caso que aqui tratamos (nomeadamente dos factos provados referidos na sentença recorrida sob as alíneas m), n), p), q), r), e v)).
     LXIV. Da conjugação de todos os factos provados, resulta que a fracção nunca foi entregue, que foi ocupada indevidamente, e que isso acarretou prejuízos para o ora Recorrente.
     LXV. Por isso, andou bem o Tribunal a quo em não condenar o Recorrente como litigante de má-fé, devendo aquela decisão ser confirmada também nessa parte.
     Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão deve, após a procedência do recurso interposto pelo ora Recorrente, ser julgada improcedente a ampliação do âmbito do recurso requerida, nos termos do artigo 590º do CPC, pela Recorrida, confirmando-se nessa parte a decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base,
      Assim fazendo V. Exas. a costumada JUSTIÇA!”
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
A fracção autónoma “AR/C”, rés-do-chão, que se localiza na Rua Nova à Guia n.º …, Macau, para comércio, registada na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o número … e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … está registada em nome do Autor e sua ex-cônjuge C. (A)
A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à venda de medicamentos e de medicamentos de medicina tradicional e tem a sua sede na fracção autónoma melhor identificada na alínea precedente. (B)
Para além de ali ter a sua sede, a Ré também desenvolve a sua actividade naquela fracção, onde explora a farmácia denominada X. (C)
O Autor e a C casaram em Macau, em 15 de Dezembro de 1973.(D)
Por sentença transitada em julgado, em 28/11/2011, proferida no âmbito do processo que correu termos pelo 2.º Juízo Cível sob o número CV2-10-0007-CDL, foi decretado o divórcio entre o Autor e a C. (E)
No âmbito do processo de divórcio, os bens comuns do casal foram arrolados e a C nomeada fiel depositária dos mesmos por decisão proferida em 02/07/2010.(F)
De entre os bens arrolados inclui-se fracção autónoma em discussão nos presentes autos. (G)
Depois de decretado o divórcio, o ora Autor deu início ao processo de partilha dos bens comuns do casal, o qual se encontra ainda pendente junto do Juízo de Família e de Menores deste douto tribunal, correndo sob o número de processo FM1-10-0002-CDL-B e no âmbito do qual a C exerce as funções de cabeça-de-casal.(H)
Em data que não consegue precisar, o Autor e C, na qualidade de senhorios, e a Ré, na qualidade de arrendatária, celebraram um contrato de arrendamento da fracção em discussão nos presentes autos. (I)
Sendo que o valor da última renda em vigor entre as partes foi de MOP$15,000.00. (J)
A Ré pagou rendas pela ocupação da fracção “AR/C” até Junho de 2010. (K)
No dia 01 de Julho de 2012 a C comunicou junto da Repartição de Finanças a cessação do contrato de arrendamento, com efeitos desde 07 de Julho de 2010. (L)
A Ré não entregou ao Autor a fracção autónoma supra referida livre e devoluta de pessoas e bens. (M)
Continuando até hoje a ocupar a aludida fracção. (N)
O Autor propôs à sua ex-mulher C, que não se cobrassem mais rendas à Ré pela utilização da fracção em causa (resposta ao quesito 1º da base instrutória). (1º)
C confirmou, na Assembleia Geral da sociedade Farmácia X Lda. realizada no dia 2 de Dezembro de 2011, que a referida sociedade paga o valor de MOP$15,000.00 relativo à renda das instalações que ocupa. (2º)
A Ré tem pleno conhecimento da objecção apresentada pelo Autor no âmbito do processo de inventário entre o Autor e sua ex-mulher. (3º)
Depois de cessado o arrendamento referido na alínea l) a ré continua a ocupar o imóvel, estando o autor impedido de o fruir por outra forma. (4º)
O local onde se situa a referida fracção, ou seja, na Rua Nova à Guia, mesmo à saída do elevador que dá acesso ao Hospital Conde São Januário, é muito procurado por sociedades que se dedicam ao ramo farmacêutico. (5º)
Na Rua Nova à Guia existem, pelo menos, três farmácias. (6º)
Não havendo assim qualquer dificuldade em arrendar o dito imóvel a qualquer outra sociedade que se dedicasse ao mesmo ramo que a Ré. (7º)
Durante o período que a Ré ocupou, sem qualquer título para o efeito, a fracção ora em apreço, o valor de mercado das rendas do imóvel seria de: (8º)
- No ano de 2010 ---------- MOP$35,320.00 mensais.
- No ano de 2011 ---------- MOP$35,320.00 mensais.
- No ano de 2012 ---------- MOP$38,850.00 mensais.
- No ano de 2013 ---------- MOP$38,850.00 mensais.
- No ano de 2014 ---------- MOP$42,700.00 mensais.
- No ano de 2015 ---------- MOP$42,700.00 mensais.
- No ano de 2016 ---------- MOP$46,000.00 mensais.
- No ano de 2017 ---------- MOP$46,000.00 mensais.
- No ano de 2018 ---------- MOP$46,900.00 mensais.
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Por os recursos interlocutórios serem interpostos pela ré, ora recorrida em recurso da decisão final, e não incidirem sobre o mérito da causa, ao abrigo do disposto n.º 2 do artigo 628.º do CPC, temos que apreciar em primeiro lugar o recurso da decisão final.
Vejamos.
Entende o autor recorrente que ao aplicar o instituto da compensatio lucri cum damno, o tribunal recorrido violou o princípio do dispositivo, na medida em que estando em causa um facto impeditivo do direito alegado pelo recorrente, tal facto não foi alegado nem provado pela ré.
Mais precisamente, entende o autor recorrente que, tendo o tribunal recorrido decidido que ele obteve um benefício através da sua participação social na ré, este facto impeditivo teria que ser alegado e provado pela ré, e não logrando esta alegar e provar esse benefício, a sentença recorrida seria nula por ter conhecido de questões de que não podia conhecer, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC.
Ora, é bem verdade que o tribunal só pode conhecer de questões e excepções invocadas pelas partes.
E também é verdade que a aplicação do princípio da compensatio lucri cum damno não se confunde com a compensação de créditos, mas ambas as situações constituem excepções peremptórias as quais, uma vez verificadas, permitem extinguir, total ou parcialmente, o efeito jurídico dos factos alegados pelo autor, nomeadamente determinando uma redução do valor da indemnização correspondente ao benefício obtido pelo lesado, daí que recai sobre a ré o ónus de alegar e provar essa matéria.
E no caso vertente, parece que não foram invocados pela ré factos concretos que permitem apurar quais as efectivas vantagens que o lesado, ora autor, teria auferido em consequência da conduta da ré, determinantes de uma redução do valor indemnizatório peticionado.
Acontece que, segundo se refere na sentença recorrida, foram admitidos por acordo das partes dois factos que, embora não conste expressamente da matéria de facto provada, devem ser levados em conta nos termos do artigo 562.º, n.º 3 do CPC, a saber, “o autor e o seu ex-cônjuge são sócios da ré” e “o autor detém 40% do capital social da ré” – vide rodapé n.º 2 e 6 da sentença recorrida.
E é com base nesses dois factos que o tribunal recorrido determinou aplicar o instituto da compensatio lucri cum damno.
Daí que, por ser matéria alegada pelas partes, não se verifica a pretensa nulidade da sentença por excesso de pronúncia, antes pelo contrário, a questão foi suscitada embora de forma pouco sistemática, cabendo-nos apreciar se, na falta de outra matéria relevante, esses dois factos seriam ou não suficientes para permitir apurar quais as concretas vantagens que o autor teria auferido, determinantes de uma redução do valor da indemnização pretendida pelo mesmo autor.
Em primeiro lugar, não se deve misturar a personalidade jurídica de uma sociedade (ré) e a do seu sócio (autor), e não obstante que o autor detém 40% do capital social da ré, a matéria de facto provada nos autos apenas permite o cálculo aproximado das contas, não havendo possibilidade de apurar as vantagens concretas ou valores exactos que o autor teria beneficiado, para efeito de aplicação do instituto da compensatio lucri cum damno e a consequente redução do valor da indemnização devida pela ré e peticionado pelo autor.
Ademais, não temos dúvida que o instituto da compensatio lucri cum damno visa evitar o duplo benefício, mas no caso sub judice, face à matéria de facto provada, entendemos não se verificar essa preocupação.
Embora o autor seja um dos sócios da ré, mas em bom rigor, o autor não vai receber o duplo benefício na medida em que essa “vantagem” obtida da eventual condenação da ré no pagamento de determinada quantia, irá repercutir-se no “prejuízo” da sociedade e sendo o autor sócio dessa sociedade, nunca sairá beneficiado, por ter que assumir esse “prejuízo”, na proporção da respectiva quota social.
Ou seja, não estando a sociedade ré extinta nem liquidada, antes se encontrando em pleno funcionamento, os interesses dos sócios serão assegurados e apurados em sede própria.
Daí que, com o devido respeito, não se deve aplicar o instituto da compensatio lucri cum damno por não haver condições para efectuar o cálculo exacto das contas, nem haver risco da pretensa dupla vantagem que esse instituto pressupõe.
Isto posto, julgamos provido o recurso nesta parte e, em consequência, determinando não se aplicar o instituto da compensatio lucri cum damno na fixação da respectiva indemnização ao autor.
*
Insurge-se ainda o autor contra a sentença recorrida na parte em que considerou o disposto no artigo 1027.º, n.º 3 do Código Civil se aplicar apenas após a mora.
Entende o autor que os “prejuízos excedentes” a que se alude no n.º 3 do artigo 1027.º do CC reportam-se tanto ao período anterior à mora (n.º 1) como ao período depois da mora (n.º 2).
A nosso ver, julgamos não lhe assistir razão.
Prevê-se o artigo 1027.º do Código Civil o seguinte:
“1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro; à mora do locatário não é aplicável a sanção prevista no artigo 333.º
3. Fica salvo o direito do locador à indemnização dos prejuízos excedentes, se os houver.”
Salvo o devido respeito, somos a entender que o n.º 3 do artigo 1027.º aplica-se apenas com o n.º 2 do mesmo artigo, do Código Civil, isto é, depois de o ex-locatário constituir em mora na entrega da coisa locada, ou melhor, depois de o ex-locatário ter sido interpelado para restituir a coisa locada mas não a restituiu. E faz todo o sentido.
Ora, se o ex-locador, findo o contrato, não tenha interpelado, por qualquer razão, ao ex-locatário para restituir a coisa locada, mas continuando este a usá-la, não temos grandes dúvidas que o ex-locador tem direito a receber uma indemnização equivalente ao valor da renda anteriormente acordado pelas partes, correspondente à indemnização pelo enriquecimento sem causa. Neste caso, não se justifica a consideração de “prejuízos excedentes”, pois, se o ex-locador não tiver exercido a faculdade de interpelação, pode presumir-se que o mesmo não vê necessidade premente de obter a restituição da coisa locada, daí que nem sequer há lugar a danos excedentes.
Ao invés, se, findo o contrato, o ex-locador tiver interpelado o ex-locatário para restituir a coisa locada, pode concluir-se que já tem interesse de ver restituída a coisa locada, sendo assim, se depois da interpelação, o ex-locatário não vem entregar a coisa locada, entra em mora e, em consequência, deve pagar a indemnização em dobro, sem prejuízo dos prejuízos excedentes se for caso disso.
Ainda no tocante à questão dos “prejuízos excedentes”, vem dizer a ré que a questão apontada pelo autor nem sequer deve ser colocada uma vez que não foi alegada e provada a efectiva e concreta verificação destes danos, não bastando a (mera) alegação e prova do possível valor das rendas de mercado, antes era necessário demonstrar uma real possibilidade de arrendamento a troco do seu pagamento, conforme referido na Acórdão proferido pelo Venerando TUI, no âmbito do Processo n.º 203/2020.
Salvo o devido e mui respeito por opinião contrária, alinhamos pelo entendimento expresso no Acórdão deste TSI, no âmbito do Processo n.º 1042/2020, nos seguintes termos que se transcrevem:
“A questão que ora se impõe resolver é saber de acordo com que valor se deve fixar a indemnização para ressarcir os prejuízos causados ao locador.
A propósito da indemnização pelo atraso na restituição da coisa, o artº 1027º do CC dispõe que:
1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro; à mora do locatário não é aplicável a sanção prevista no artigo 333.º
3. Fica salvo o direito do locador à indemnização dos prejuízos excedentes, se os houver.
Decorre do preceituado desse artigo que, em regra, extinto o contrato, o valor convencionado da renda continua a ser o referencial e é presumido como justo valor do lucro cessante por causa da indisponibilidade do locado.
A lei distingue duas situações: se não houver mora é devida ao locador a quantia correspondente à renda convencionada em singelo; e havendo mora, é devida a renda em dobro.
E além dessa regra geral, o legislador teve o cuidado de contemplar as situações de mora por parte do locatário, em que o montante legalmente tarifado nos nºs 2 e 3 do artigo não se mostra suficiente para ressarcir os prejuízos sofridos pelo ex-locador.
Compreende-se a preocupação do legislador, pois por razões variadíssimas, nomeadamente a inflação, a valorização da coisa, o aumento da potencialidade locativa comercial da coisa, o valor da renda convencionada no momento de negociações das condições da locação pode ficar muito aquém do valor no momento da extinção da locação ou estar longe de assegurar o dito equilíbrio das prestações nos negócios bilaterais.
Cremos que foi justamente por essa preocupação que o nosso legislador decidiu reconhecer ao locador lesado, através do comando legal estatuído no nº 3 do citado artº 1027º do CC, o direito de ser ressarcido pecuniariamente pelos danos na parte não coberta pela renda em dobro.
Inteirados da ratio legis subjacente ao nº 3 do artigo, urge saber qual deverá ser o critério de valoração dos prejuízos excedentes.
Para nós, se a não restituição abusiva da coisa impede o titular do bem, objecto do contrato entretanto findo, de usar e fruir o bem e beneficiar das utilidades que a mesma coisa tem a potencialidade de lhe proporcionar, o valor a atender para a fixação dos prejuízos excedentes deve ser o valor locativo comercial actualizado do bem, uma vez que a perda da potencialidade locativa comercial, originada pela não restituição do bem ao seu titular, representa-lhe perda dos “benefícios que deixou de obter”, a que se refere artº 558º/1, primeira parte, do CC.
É portanto tido por justo o valor locativo comercial actualizado do bem e como critério para valoração dos prejuízos causados ao locador.
Então, basta a demonstração do valor locativo comercial actualizado do bem ou é preciso, tal como defende o Tribunal a quo, que sejam alegados e provados a existência da proposta do arrendamento, os concretos termos e o que auferiria se não fosse a ocupação dos prédios?
Para nós, a resposta não pode deixar de ser negativa.
Pois, se continuarmos a ser fiéis à tese de que, extinta a locação, a não restituição abusiva da coisa por parte do locatário, já interpelado para o efeito, constitui de per si um prejuízo consistente na indisponibilidade ou na perda das utilidades que a coisa tem a potencialidade de proporcionar ao locador, não se nos afigura exigível ao locador, já lesado por actos ilícitos, a demonstrar a existência de propostas de arrendamento e de seus concretos termos, dadas as dificuldades facilmente imagináveis de encetar as negociações com vista à celebração de novo contrato de locação, nomeadamente as resultantes da inacessibilidade da coisa por causa da ocupação abusiva pelo ex-locatário e da incerteza quanto à data da restituição da coisa por parte do ocupante, sob pena de incorrer em erro de punir o lesado e premiar o culpado.
Na esteira desse entendimento, cremos que independentemente da prova da existência da proposta de arrendamento ou de potenciais arrendatários interessados ou da prova de que teria sido dado de arrendamento se não tivesse havido a privação do uso da coisa, é bastante a demostração do valor da renda do mercado da coisa para justificar o reconhecimento ao locador lesado o direito à indemnização no valor a calcular com base nesse valor locativo actualizado do mercado, em vez de o montante legalmente fixado no artº 1027º/2, que é apenas renda em dobro.
Por outro lado, vimos supra que, não obstante o montante legalmente tarifado no nº 2, a razão de ser do nº 3 é que o nosso legislador não quis privar o locador lesado de exercer o direito de ser ressarcido pecuniariamente pelos danos na parte não coberta pela renda em dobro.
O que aliás se mostra compatível com o entendimento já vertido no acima citado Acórdão no processo nº 519/2020, onde se preconiza que a leitura mais consentânea com a ratio legis da norma do artigo 1027º/3 do CCM é a de que a indemnização da mora entra em linha de consideração para efeitos da fixação da indemnização por prejuízos excedente, sob pena de duplamente se “sancionar” o inquilino!
Portanto, não é de atribuir à Autora, a título dos prejuízos excedentes, cumulativamente, a indemnização no valor correspondente ao dobro da renda nos termos calculados no nº 2 do artigo e a indemnização correspondente à renda do mercado.
Ou seja, in casu, a Autora tem o direito de receber apenas o montante correspondente à renda do mercado, relativamente ao período de tempo em que o Réu se constituiu em mora.”
Nesta senda, improcedem as razões aduzidas pelo autor, sendo que os “prejuízos excedentes” a que alude o n.º 3 do artigo 1027.º do CC reportam-se apenas ao período depois da mora, provocada pela interpelação do locador no sentido da restituição da coisa locada.
*
Avancemos agora para o cálculo da indemnização devida pela ré.
Conforme dito acima, não havendo lugar à aplicação do instituto da compensatio lucri cum damno, mas socorrendo-se do disposto no n.º 3 do artigo 1027.º do Código Civil, a indemnização devida pela ré é calculada nos termos seguintes:
- desde a cessação do contrato de arrendamento (7.7.2010) até à mora, ou seja, a data de citação (11.3.2019), a ré tem que pagar MOP15.000,00 por cada mês de ocupação, nos termos do n.º 1 do artigo 1027.º do Código Civil;
- depois do início da mora (12.3.2019) até à data em que o imóvel foi vendido a terceiro (14.1.2020), a ré tem que pagar MOP46.900,00 por cada mês de ocupação, nos termos do n.º 2 e 3 do artigo 1027.º do mesmo Código.
Entretanto, uma vez que a ré suscitou a questão da prescrição em sede de ampliação do âmbito do recurso, deixamos a questão do cálculo do valor indemnizatório para mais à frente.
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Em sede de ampliação do âmbito do recurso, a ré começa por invocar a omissão de pronúncia prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC, com fundamento de que o tribunal recorrido não deu como confessados os factos alegados pela ré referentes aos artigos 64º a 67º, 70º, 71º, 73º a 77º, 79º, 81º, 87º e 88º da contestação, por o autor não os ter impugnado, entendendo, assim, que o tribunal recorrido deixou de pronunciar-se sobre as questões de ilegitimidade substantiva e de abuso de direito de acção por si colocadas.
A nosso ver, não assiste razão à ré.
Em primeiro lugar, não é verdade que o autor não impugnou aquela matéria de facto.
Aquela matéria respeita à questão de saber se a não impugnação da decisão judicial que eliminou a verba n.º 1 da relação de bens na partilha por divórcio do autor e sua ex-cônjuge, bem como a aceitação da distribuição de lucros da sociedade, se pode ser interpretado como sendo uma renúncia do autor à cobrança de rendas junto da ré.
E a verdade é que o autor impugnou aquela matéria nos artigos 34º a 47º da réplica, daí que, são considerados impugnados e não há lugar à confissão.
Mais, no que toca à questão da ilegitimidade substantiva do autor quanto ao 2.º pedido, o tribunal recorrido pronunciou-se expressamente sobre a questão, pelo que não vislumbramos qualquer tipo de omissão de pronúncia.
Improcede esta parte do recurso.
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Em segundo lugar, a ré vem suscitar as questões de inviabilidade do pedido principal e ilegitimidade substantiva do autor quanto ao 2.º pedido.
Ora bem, essas questões foram já decididas em sede do despacho saneador, cujas decisões também foram objecto de recurso, pelo que não há fundamento legal para admitir a nova apreciação dessas questões em sede de ampliação do âmbito do recurso.
Nesta senda, há-de rejeitar a ampliação do âmbito do recurso quanto a esta parte.
Em bom rigor, na ampliação do âmbito do recurso o tribunal de recurso só conhece das questões em que a parte vencedora, neste caso a ré, decaiu na acção, ao abrigo dos termos do n.º 1 do artigo 590.º do CPC.
Face ao exposto, vamos apenas apreciar essas questões.
No tocante à alegada renúncia do autor à cobrança de rendas à ré e suposta existência de caso julgado, o tribunal recorrido só apreciou aquelas questões na sentença recorrida e que não deu razão à ré.
Foi decidido na sentença recorrida o seguinte:
“Quanto à renúncia do autor à cobrança de rendas à ré.
Afigura-se que esta questão não foi decidida no despacho saneador, razão por que terá de ser aqui apreciada.
É um pouco contraditória esta defesa da ré. Com efeito, se o autor não tem legitimidade para exigir da ré indemnização relativa ao imóvel comum do casal também não a teria para renunciar a mesma indemnização.
Se bem se entende a posição da ré, estaria em causa a extinção da obrigação de indemnizar por renúncia do correspectivo direito de indemnização, pois que não se afigura tratar-se de invocação de abuso de direito, como veio depois a ré a referir nas suas alegações de direito.
Mas de modo nenhum procede a tese da ré. Tem duas barreiras intransponíveis:
- Só é admissível a extinção das obrigações por renúncia contratual - a remissão enquanto acto abdicativo contratual (art. 854º do CC). Ora, segundo a ré, o autor teria renunciado perante terceiro no inventário onde a ré é alheia, pelo que falta o contrato de remissão entre credor e devedor.
- A alegada renúncia unilateral foi tácita porquanto o autor não recorreu de duas decisões proferidas no processo de inventário, uma que determinou a exclusão da relação de bens de uma verba do activo conexo com as rendas do imóvel em discussão nestes autos e outra que julgou boas as contas prestadas pelo cabeça-de-casal. Ora, a declaração negocial tácita é aquela que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (art. 209º, nº 1 do CC) e pouca ou nenhuma probabilidade de vontade de remitir a dívida se pode encontrar na omissão de recorrer porquanto inúmeras razões são se admitir com igual ou superior probabilidade. Além disso, a remissão nem sequer se pode presumir da renúncia às garantias (art. 857º CC), pelo que, como refere Menezes Cordeiro, “deve resultar claramente das declarações efectuadas pelas partes” (Direito das Obrigações, 2º Volume, 1988, p. 234), não podendo resultar de factos de “significação equívoca”, na expressão de Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, anotação ao art. 863º).
Além das duas razões referidas, improcede ainda a tese da ré por força de duas regras processuais, uma estruturante do processo de inventário e outra geral. Quer a decisão proferida no incidente de reclamação da relação de bens onde não interveio a ré, quer a proferida no incidente de prestação de contas, não fazem caso julgado contra a ré e, por isso, a omissão de recurso pelo autor não pode indiciar que não quer exercer o seu direito contra a ré noutro processo e que pretende renunciar a tal direito. Constam as referidas regras do art. 971º, nº 1 e 26º, nº 2 do CPC.
Conclui-se, pois, que não houve renúncia capaz de extinguir o direito que o autor vem exercer através da presente acção.”
Sem embargo de melhor opinião, julgamos que a solução adoptada pela primeira instância no respeitante a essas questões está correcta, pelo que remetemos para os fundamentos invocados na sentença recorrida por com eles concordarmos.
Improcede, pois, esta parte do recurso.
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A ré vem atacar ainda a sentença recorrida invocando que pelo tribunal recorrido houve errada interpretação da declaração negocial do autor em relação à sua mulher.
Quanto a esta questão, consta da sentença recorrida a seguinte decisão:
“Cabe agora considerar um facto da contestação com efeitos exceptivos que não foi expressamente identificado como defesa por excepção, mas que a ré alegou para fundar a sua alegação de litigância de má-fé do autor. Vem ele alegado no art. 102º da contestação, constitui o quesito 1º da base instrutória, recebeu resposta de “provado” e consta da alínea o) da factualidade provada – “o Autor propôs à sua ex-mulher C, que não se cobrassem mais rendas à Ré pela utilização da fracção em causa”.
Não alegou a ré quando foi proposta pelo autor a cessação da cobrança de rendas, mas resulta do art. 104º da contestação a alegação de que foi antes de 02/07/2012. Porém, como o autor impugnou no art. 75º da réplica, a data da proposta está incerta. Mas já não é controvertido que a ex-mulher do autor revogou o arrendamento e que a ré continuou a ocupar a fracção sem pagar contrapartida.
Qual a eficácia jurídica deste facto? Quais os efeitos que provoca nos direitos e obrigações das partes?
- Extinção da obrigação de indemnizar que o autor atribui à ré?
- Impedimento do exercício do direito à indemnização por ser abusivo, consistindo em abuso de direito?
- Transformação do contrato de arrendamento em contrato de comodato?
- Qualificação da litigância do autor como de má-fé?
Pelo que já ficou dito quanto à remissão como forma de extinção das obrigações além do cumprimento, há-de concluir-se que a proposta do autor à sua então esposa não tem eficácia jurídica extintiva de qualquer obrigação da ré, pois que não consubstancia um acto negocial entre autor e ré, entre credor e devedor, pois nada mais foi alegado nem provado, designadamente que a proposta ocorreu no âmbito da administração da ré de que o autor e a sua ex-mulher são sócios e/ou titulares dos cargos sociais.”
A nosso ver, entendemos que na sentença recorrida foi dada a melhor solução, não se vislumbrando qualquer censura.
Improcede esta parte do recurso.
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Mais, invoca ainda a ré que o tribunal recorrido incorreu em erro na qualificação jurídica ao negar a existência do contrato de comodato.
A nosso ver, julgamos não assistir razão à ré, devendo manter a sentença recorrida nos seguintes termos transcritos:
“Quanto à transformação do contrato de arrendamento em contrato de comodato.
A renda é um dos elementos essenciais do contrato de arrendamento (arts. 969º e 970º do CC). Sem ela não poderá qualificar-se como contrato de arrendamento qualquer acordo negocial (art. 1057º do CC).
Mas não resulta dos autos que a proposta feita pelo autor à sua ex-mulher foi feita à ré nem que esta a aceitou. Não estando provado o acordo de vontades entre os senhorios e a inquilina, não pode concluir-se com a certeza necessária às decisões judiciais que foi celebrado um contrato de comodato, o qual deixaria a ré em situação mais frágil quanto à cessação da utilização do imóvel.
Decorre do exposto que não podemos encontrar na disciplina jurídica do contrato de comodato a solução do presente litígio.”
*
Entende ainda a ré que o valor devido pela ré já se encontra prescrito for força dos artigos 303.º, alínea b) ou 491.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
Segundo a ré, sendo o prazo de prescrição de 5 (ou 3) anos e, tendo a citação sido efectuada em 11.3.2019, o direito de indemnização referente ao período de Julho de 2010 até 11 de Março de 2014 já se encontra prescrito.
Vejamos se a ré tem razão.
Conforme se decidiu pelo tribunal recorrido, e bem, a indemnização devida pela ré tem origem na violação do dever contratual, ou seja, é enquadrável numa situação de responsabilidade civil contratual.
Sendo assim, não é de aplicar ao presente caso o prazo de prescrição estabelecido no artigo 491.º do Código Civil.
Mas por outro lado, salvo o devido respeito por opinião contrária, somos a entender que parte da indemnização já se encontra prescrita face ao estabelecido no disposto na alínea b) do artigo 303.º do Código Civil.
Dispõe o artigo 303.º do Código Civil o seguinte:
“Prescrevem no prazo de 5 anos:
a) As anuidades de rendas perpétuas ou vitalícias;
b) As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por uma só vez;
c) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;
d) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;
e) As pensões alimentícias vencidas;
f) Quaisquer outras prestações periodicamente renováveis.”
Observam Gil de Oliveira e Cândido de Pinho1: “O que há de comum entre as diversas alíneas do artigo é a existência de créditos que são periodicamente exigíveis e renováveis. Esta prescrição de cinco anos(…) tem em vista a protecção da certeza e segurança do tráfico jurídico e evitar os riscos de uma apreciação judicial a longa distância e obstar a que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, o que fragilizaria o devedor e tornaria mais onerosa, por vezes ruinosa, para este a exigência do pagamento das suas prestações muito mais tarde”.
Ora bem, embora seja verdade que o direito alegado pelo autor se reporte a uma indemnização pelo atraso na entrega da fracção, mas somos a entender que a obrigação a que o devedor ficou adstrito tem a mesma natureza, ou pelo menos uma natureza semelhante à da obrigação de pagamento de rendas ou alugueres.
Preceitua o n.º 1 do artigo 1027.º do Código Civil que se a coisa locada não for restituída logo que finde o contrato (de locação), o locatário é obrigado a pagar, a título de indemnização, a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, isto é, o locatário terá que pagar o mesmo valor estipulado no respectivo contrato de locação até que seja restituída a coisa locada.
No fundo, essa indemnização corresponde ao mesmo valor de “rendas” ou “alugueres” e é devida pela ocupação (indevida) do imóvel, sendo que, se as rendas e alugueres devidos pelo locatário prescrevem no prazo de 5 anos, não faria sentido que essa indemnização resultante da não restituição da coisa locada, e cujo montante corresponde ao mesmo valor de rendas ou alugueres, tenha um prazo prescricional diferente e, aliás, mais longo.
Sendo assim, entendemos que o prazo de prescrição é de 5 anos e interrompe-se com a citação.
Nestes termos, tendo a ré sido citada no dia 11.3.2019, os créditos do autor referentes ao período de 7.7.2010 até 11.3.2014 encontram-se prescritos, havendo que julgar provido o recurso nesta parte.
Voltamos para o apuramento da quantia indemnizatória devida pela ré para com o autor:
- desde 12.3.2014 até à mora, ou seja, a data de citação (11.3.2019), a ré tem que pagar MOP15.000,00 por cada mês de ocupação, nos termos do n.º 1 do artigo 1027.º do Código Civil;
- depois do início da mora (12.3.2019) até à data em que o imóvel foi vendido a terceiro (14.1.2020), a ré tem que pagar MOP30.000,00 por cada mês de ocupação, nos termos do n.º 2 e 3 do artigo 1027.º do mesmo Código.
Sendo o autor apenas titular em comunhão conjugal, recebendo apenas metade do valor da indemnização, assim, tem direito a receber:
- metade de【MOP15.000,00 x 60 meses】 = MOP450.000,00, entre 12.3.2014 e 11.3.2019; e
- metade de 【MOP46.900,00 x 10 meses x (MOP46.900,00:30 x 3 dias)】 = MOP236.845,00, entre 12.3.2019 e 14.1.2020.
Num total de MOP686.845,00.
Procedem, assim, parcialmente as razões aduzidas pelas partes.
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Alega ainda a ré que a pretensão do autor configura a situação de abuso do direito.
A questão em apreço foi proficientemente decidida pela decisão recorrida, nos seguintes termos transcritos:
“E também não se pode concluir da singeleza do facto em apreço que configura exercício abusivo do direito à indemnização. Na verdade, o simples facto de o autor ter proposto à sua ex-mulher que a ré não pagasse renda pela utilização do imóvel comum não implica que seja juridicamente inadmissível que o autor venha agora pedir à ré indemnização pela ocupação. Nada mais se sabe nos autos, mas não pode deixar de admitir-se como hipótese, pois que foi aflorado durante a discussão da causa e foi referido na fundamentação que o tribunal invocou para a sua decisão da matéria de facto da base instrutória, que era a ex-mulher do autor que recebia as rendas da ré e que ambos estavam fortemente desavindos, não querendo o autor que a ré beneficiasse recebendo em exclusivo as rendas de um bem comum. Embora esta factualidade não esteja provada para ser aqui considerada com efeitos jurídicos, não pode o tribunal deixar de ponderar que aquele facto isolado de o autor ter feito uma proposta à sua ex-mulher não pode demonstrar sozinho que é inadmissível o exercício que o autor faz da sua posição jurídica de proprietário em comunhão, nem pode, designadamente, demonstrar que a pretensão do autor configura “venire contra factum proprium”. Na verdade, não pode concluir-se que o autor, tendo proposto a cessação das rendas à sua ex-mulher, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito que pretende exercer – art. 326º do CC. Não é automático concluir que pelo facto de o autor ter proposto à outra titular do imóvel, a sua ex-mulher, que não se cobrassem rendas à ré que nunca mais o autor pode pretender receber contrapartida pela ocupação do imóvel. Sozinho, aquele facto nada demonstra, pois tanto se sabe se o autor visava auxiliar a ré por esta atravessar dificuldades económicas, como se sabe se o autor pretendia retirar um benefício à ex-mulher. Nada se sabe a partir do facto provado. E sem se conhecer o integral significado da proposta feita pelo autor não se pode considerar inadmissível a sua pretensão de indemnização. Trata-se de um juízo ponderado e global e não de um juízo simplista e automático. Não se pode concluir daquele referido facto simples que o autor criou uma expectativa fundada e legítima na ré e que a veio trair com a propositura da presente acção.”
A nosso ver, trata-se da melhor solução, que aqui fazemos nossa.
Mais, é ridículo o argumento de que a omissão do comportamento do autor (no sentido de não ter pedido o pagamento das rendas) durante 8 anos constituía um novo direito da ré de poder utilizar a fracção em causa a título gratuito.
Isto posto, improcede o recurso quanto a esta parte.
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Finalmente, imputa a ré ao autor que este litigou de má fé, alegando que o autor litigou com o fim de conseguir o objectivo ilegal de inviabilizar a prossecução da actividade da Farmácia X Limitada ou, pelo menos, de perturbar ao máximo o seu funcionamento e fazer com todos perdessem tempo e dinheiro na sua defesa.
Ora bem, nenhuma matéria constante dos autos permite chegar à conclusão de que o autor litigou de má fé, antes pelo contrário, provado está que este actuou com vista a obter a prestação a que tinha direito.
A nosso ver, não estando provado nos autos que o autor tinha alegado factos falsos, não podemos considerar que o mesmo litigou de má fé, improcedendo, assim, as razões aduzidas pela ré.
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Apreciemos agora os recursos interlocutórios interpostos pela ré (recorrida na sentença final), ao abrigo do n.º 2 do artigo 628.º do Código de Processo Civil.
Primeiro recurso interlocutório
Insurge-se a ré contra a decisão proferida no despacho saneador que julgou improcedentes as excepções por ela invocadas.
Entende a ré recorrente que sendo o autor titular do direito a uma quota ideal do património comum, não podia reivindicar qualquer quota-parte de nenhum bem que fazia parte no acervo de bens comuns ainda não partilhado. Defende que a única forma de pôr termo à comunhão conjugal é através da partilha, pelo que entende a acção de reivindicação proposta pelo autor ser manifestamente inviável.
E em relação ao segundo pedido formulado pelo autor, entende a ré que o autor não tem legitimidade substantiva para chamar a si qualquer direito de crédito relativo a qualquer bem determinado que faz parte do acervo de bens comuns dos ex-cônjuges.
Ora bem, quanto ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade e de reivindicação do imóvel, atento o facto (superveniente) de que este foi vendido a terceiro, deixando o imóvel de pertencer ao autor, este já não tem direito a pedir a sua restituição nem a respectiva indemnização relativamente a danos de privação do uso em data anterior à venda.

No que respeita ao pedido de indemnização dos danos sofridos pelo autor decorrentes da privação do uso do imóvel comum do casal e, subsidiariamente, ao pedido de restituição do enriquecimento sem causa justificativa, entendemos não assistir razão à ré.
A nosso ver, entendemos que independentemente da questão de saber se a situação dos direitos comuns do casal se aplicaria ao regime da compropriedade, ao regime da comunhão hereditária ou ao regime das sociedades dissolvidas mas ainda não liquidadas, a questão só teria relevância se o autor viesse exercer um direito do casal, o que não era o caso.
Ou seja, no caso vertente, o autor está a exercer um direito próprio seu, daí que tem legitimidade substancial para o efeito.
Por uma razão de economia e celeridade, transcrevemos aqui parte da sentença, com a qual concordamos e que damos por reproduzida para todos os efeitos legais:
“O autor alega a ocupação da ré sem autorização do próprio autor e impedindo o próprio autor de fruir o imóvel ocupado. Ora, se a reivindicação de um bem comum por um só dos consortes pode levantar objecções, a “reivindicação” de reparação de um dano próprio de um dos consortes pelo próprio consorte lesado já não merecerá as mesmas objecções. Poder-se-á contraditar dizendo que o lesado é o casal e não o consorte e que o pedido deve improceder por inexistência de dano do requerente, mas não se afigura acertado dizer que o consorte que se afirma lesado não pode solicitar a reparação do seu alegado dano porque este está conexo com um bem comum do casal. Basta um exemplo: um terceiro impede a um dos cônjuges o acesso à residência comum do casal e o impedido tem de pernoitar no exterior. Só será viável o pedido de indemnização se formulado por ambos os cônjuges?
Autor e ré digladiam-se sobre qual o regime aplicável ao património comum do casal entre o divórcio e a partilha para concluírem quanto à possibilidade de o autor demandar a ré com o fim de obter indemnização. Para o autor é o regime da compropriedade e para a ré é o regime da comunhão hereditária. A questão já foi resolvida no despacho saneador, como se referiu, mas só tem relevância se o autor vier exercer um direito do casal, ou do ex-casal e não se o autor vier exercer um direito próprio seu. É consabido que a lei não regula directamente a situação dos direitos comuns do casal entre a extinção deste e a partilha do património comum. É também sabido que para a integração dessa lacuna se tem defendido, com mais ou menos adeptos, o recurso ao próprio regime da comunhão conjugal que continuaria a aplicar-se até à partilha, ao regime da compropriedade, ao regime da comunhão hereditária e ao regime das sociedades dissolvidas mas ainda não liquidadas. Ora, se essa questão tinha de ser defrontada para saber se o autor poderia obter a restituição do imóvel comum, não tem de ser defrontada para saber se o autor pode obter a reparação de um dano próprio seu decorrente da privação do direito que lhe assiste individualmente de “governar” ou “participar na governação” de bens comuns do casal. Repare-se que o autor reclama indemnização em consequência da ocupação da ré que teve lugar desde Julho de 2010, portanto durante a vigência do casamento e após a extinção deste por divórcio em Novembro de 2011.”
Face ao acima exposto, confirmamos a decisão recorrida, embora com fundamentos diferentes, julgando improvido o primeiro recurso interlocutório.
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Segundo recurso interlocutório
Neste recurso, a ré insurge-se contra o despacho de primeira instância que não conheceu e mandou desentranhar o pedido de extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, e mandou aguardar pelo julgamento.
Na perspectiva da ré recorrente, entende que se o tribunal recorrido tivesse conhecido e considerado verificada a impossibilidade superveniente da lide que é uma das causas de extinção da instância, não seria necessário continuar o processo para julgamento com intervenção do tribunal colectivo.
Vejamos.
Em boa verdade, a ré recorrente formulou um requerimento pedindo que se julgasse extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
Em vez de apreciar a questão formulada no pedido, o juiz a quo considerou que se tratava de uma peça de alegações de direito e, em consequência, ordenou o seu desentranhamento e mandou aguardar pelo julgamento.
A nosso ver, entendemos não ser essa a melhor solução.
Em bom rigor, independentemente de a ré ter ou não razão quanto ao pedido de extinção da instância, o tribunal tinha que apreciar o pedido ou relegar para a decisão final caso assim entendesse.
E não procedeu de forma correcta ao afirmar que se tratava de uma peça de alegações de direito e deixou de se pronunciar sobre o tal requerimento, ainda pior é ter ordenado o desentranhamento do requerimento. Quanto a esta parte, tem razão a ré recorrente.
Contudo, dispõe o n.º 3 do artigo 628.º do Código de Processo Civil que “os recursos que não incidam sobre o mérito da causa só são providos quando a infracção cometida tenha influído no exame ou decisão da causa ou quando, independentemente da decisão do litígio, o provimento tenha interesse para o recorrente”.
No caso vertente, a ré recorrente pretendia juntar um requerimento com vista a demonstrar que o imóvel em causa foi vendido a terceiro pedindo, em consequência, ao tribunal recorrido que julgasse extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
Embora o juiz a quo não tenha apreciado o requerimento antes da audiência, mas a questão da inutilidade superveniente da lide foi devidamente apreciada na sentença.
Nestes termos, mesmo que tenha havido infracção resultante da não apreciação do requerimento, mas como a questão foi finalmente apreciada pela sentença, a infracção cometida não influiu no exame e decisão da causa, pelo que há-de julgar improvido este segundo recurso interlocutório.
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Terceiro recurso interlocutório
Na fase das alegações de direito, a ré recorrente requereu a junção de duas certidões judiciais mas o pedido foi indeferido, com fundamento de que os documentos são juntos até ao encerramento da discussão em primeira instância, pelo que não podendo a ré juntar mais provas documentais depois de concluída a discussão e julgamento.
A questão colocada neste recurso interlocutório é saber se deve ser admitida a junção das referidas certidões.
A lei processual prevê regras sobre o momento em que devem ser praticados os actos processuais. No tocante à apresentação de prova documental, estabelece-se no artigo 450.º do CPC o momento em que essa prova deve ser apresentada:
“1. Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2. Se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.”
Em boa verdade, o prazo máximo para a apresentação de documentos é antes de findar o debate sobre a matéria de facto em audiência de julgamento de primeira instância. Salvo caso excepcional determinado oficiosamente pelo juiz, terminada a discussão da matéria de facto, já não há lugar a produção de provas, pelo que a lei manda que os documentos só podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância.
E não obstante já se encontrar nos autos a fotocópia do documento, mas sempre que a parte pretenda juntar qualquer documento, tanto uma fotocópia como um original ou certidão, não deixa de ser uma nova prova documental destinada a fazer prova dos factos controvertidos. A ré recorrente pretendia juntar porque os documentos tinham certo valor probatório, caso contrário não teria necessidade de requerer a sua junção.
O prazo para a apresentação de prova documental é, sem margens para dúvidas, até ao encerramento da discussão da matéria de facto em primeira instância, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 450.º do CPC.
O n.º 1 do artigo 468.º do CPC manda desentranhar os documentos quando forem impertinentes ou desnecessários.
Mas no caso vertente, nem sequer há necessidade de apreciar a pertinência e o valor de tais documentos, pois os mesmos foram apresentados fora do prazo legalmente previsto, não podendo desde logo ser admitida a sua junção nos termos previstos no n.º 2 do artigo 450.º do CPC, devendo a parte apresentante ser condenada em custas pelo desentranhamento, ao abrigo do artigo 15.º do Regime das Custas dos Tribunais.
Nestes termos, andou bem o juiz a quo ao indeferir a junção dos documentos apresentados pela ré recorrente depois de encerrada a discussão em primeira instância, julgando, assim, improvido o terceiro recurso interlocutório.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em:
- negar provimento aos recursos interlocutórios interpostos pela ré Farmácia X Limitada;
- conceder parcial provimento ao recurso da decisão final interposta pelo autor A, bem como conceder parcial provimento à ampliação do âmbito do recurso deduzida pela ré Farmácia X Limitada e, em consequência, revogando a sentença recorrida, passando a ré a ser condenada a pagar ao autor o montante de MOP686.845,00 (seiscentas e oitenta e seis mil, oitocentas e quarenta e cinco patacas), acrescido de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Custas do recurso da decisão final pelas partes na proporção do decaimento, em ambas as instâncias.
Custas dos recursos interlocutórios pela ré.
Registe e notifique.
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RAEM, aos 29 de Julho de 2022
Tong Hio Fong
Rui Pereira Ribeiro
Lai Kin Hong
1 Código Civil de Macau, Anotado e Comentado, Jurisprudência, Volume IV, CFJJ, 2018, página 503
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Recurso Cível 921/2021 Página 14