打印全文
Processo nº 60/2022 Data: 27.07.2022
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Interesse processual.



SUMÁRIO

1. O “interesse processual” consiste na “indispensabilidade” de o autor recorrer a juízo para satisfação da sua pretensão, (na “inevitabilidade” do pedido de tutela jurisdicional apresentado), ou, dito de outra forma, que a tutela jurisdicional seja “necessária e útil” de forma a que o A. não consiga o bem cujo direito reclama sem a tutela requisitada.

2. De facto, se a lei processual proíbe – expressamente – a prática de “actos inúteis”, declarando-os “ilícitos”, (cfr., art. 87° do C.P.C.M.), por maioria de razão teria de proibir uma “acção inútil”, assim se obstando também a que um titular de um direito subjectivo material possa, sem mais, solicitar uma qualquer tutela judiciária, impondo, assim, à contraparte a perturbação e gravame inerente à posição de “demandado”, que se traduz, principalmente, em ter de deduzir a respectiva defesa sob pena de a ver precludida, com os adicionais custos para a máquina judiciária e para o interesse de toda uma colectividade.

3. Assiste – e deve ser reconhecido – “interesse processual” ao credor que, na sequência de uma execução movida mas em que não conseguiu o pagamento do crédito reclamado por inexistência de bens do executado, e que alegando impossibilidade de invocação do mesmo título executivo, propõe uma acção de condenação a fim de obter sentença para, posteriormente, “atacar” os bens que o seu devedor possuiu em país estrangeiro da sua residência.

4. Com efeito, o “interesse processual” do A. – como “pressuposto processual” que é – deve ser aferido perante a “pretensão” deduzida e em conformidade com uma “perspectiva” que dê relevo aos (exactos) termos em que a mesma é exposta.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 60/2022
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. “A”, (“甲”), sociedade anónima com sede em Macau, propôs acção declarativa de condenação com processo ordinário contra B, de nacionalidade norte-americana, devidamente identificado nos autos.

A final, pediu que fosse “o Réu condenado a pagar à Autora o montante de HKD7.592.000,00 (sete milhões quinhentos e noventa e dois mil dólares de Hong Kong) a título de capital, assim como os juros vencidos e, bem assim, os juros vincendos, à taxa acordada de 18% ao ano …”; (cfr., fls. 2 a 9 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

O processo seguiu os seus termos, e, oportunamente, considerando-se que verificada estava a excepção dilatória da “falta de interesse processual da A.”, foi o R absolvido da instância; (cfr., fls. 257 a 262).

*

Do assim decidido a A. recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 27.01.2022, (Proc. n.° 893/2021), negou provimento ao recurso, confirmando a decisão do Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 306 a 312).

*

Ainda inconformada, traz agora a mesma A. o presente recurso, produzindo em sede das suas alegações as seguintes conclusões:

“a. O artigo 1.° do CPC garante, ao titular de um direito, que ao mesmo será assegurada uma tutela judicial efectiva, consubstanciada tanto no acesso à justiça (n.º 1) como na adequação judicial à situação de carência do titular do direito (n.º 2).
b. Nos termos do artigo 72.º do CPC, tem interesse processual quem está impossibilitado de exercer ou conservar o seu direito sem a intervenção dos tribunais.
c. A Recorrente preenche todos os pressupostos previstos na norma supra referida, porquanto encontra-se numa situação de carência que justifica o recurso às vias judiciais.
d. Ainda assim, segundo o artigo 73.º, n.º 3, alínea a) do CPC – relativo às acções declarativas de condenação –, não há interesse processual nos casos em que o autor disponha de título com manifesta força executiva.
e. A Recorrente não intentou a acção declarativa de condenação com o fito de obter uma sentença condenatória que em nada vem acrescentar ao que já resulta do seu título executivo.
f. A ordem jurídica de Macau deverá levar em conta a necessidade de uma tutela efectiva dos direitos das partes, a qual apenas poderá apenas ser assegurada, em determinados casos devidamente alegados e demonstrados, com a prolação de uma sentença condenatória pelos tribunais de Macau.
g. A Recorrente necessita que seja proferida uma sentença condenatória para que lhe seja assegurado o acesso a jurisdição estrangeira e, assim, aceder a bens do Recorrido que aí se encontram.
h. Ao escolher qualificar a força executiva do título como manifesta, o legislador antecipou a existência de situações em que tal título coloca dificuldades de reconhecimento de dívida ou de exequibilidade.
i. Acresce que o Recorrido impugnou tanto a relação material controvertida como a validade do título detido pela Recorrente, o que resulta numa fragilização da sua força executiva, que, no mínimo, deixou de ser manifesta”; (cfr., fls. 322 a 338).

*

Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. O presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 27.01.2022 que confirmou a decisão do Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base que decidiu pela absolvição do R. da instância por considerar que à A., ora recorrente, não assistia “interesse processual” para a “acção de condenação” que tinha proposto.

Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

Pois bem, da leitura do Acórdão agora impugnado verifica-se que o Tribunal de Segunda Instância aderiu e adoptou como sua toda a fundamentação pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base exposta na decisão que proferiu, transcrevendo-a para o veredicto ora recorrido.

Pertinente se apresentando de ponderar na dita fundamentação, eis o seu teor (na parte que agora interessa):

“Ora cumpre conhecer a questão de existência ou não do interesse processual da autora ao abrigo do art.º 414.º do CPC.
Quanto a uma situação semelhante ao presente caso, o TSI faz doutamente a seguinte análise no acórdão n.º 494/2018:
“…ao abrigo do art.º 73.º n.º 3 alínea a) do CPC, não há interesse de intentar acção de condenação se o autor disponha de título com manifesta força executiva.
O autor próprio confessou que detém título executivo com força executiva, mas indicou que, sabendo que os bens do réu em Macau são insuficientes para pagar a sua dívida, seria muito possível, para além de demandar-lhe o reembolso em Macau, ir ao exterior de Macau pedir executar a sentença do tribunal de Macau. Além disso, quando o autor intentou acção nas outras jurisdições com o mesmo tipo de documentos, o réu deduziu excepção com fundamento em “dívida de jogo”, os juízes das outras jurisdições aceitaram sempre tal excepção do réu por não conhecerem bem a situação real de Macau, deste modo, não tendo jeito, o autor escolheu intentar a acção declarativa em Macau, em vez de acção executiva.
Salvo o devido respeito, a justificabilidade do interesse processual, previsto pelo art.º 72.º do CPC, não abrange a necessidade de consideração da situação de o autor intentar acção de condenação em Macau, mesmo detendo título com força executiva, a fim de evitar decaimento possível nas outras jurisdições.
Sendo diferente do CPC antigo, o CPC vigente introduz o pressuposto do interesse processual.
No CPC antigo, mesmo dispondo de título com força executiva, o autor pode intentar acção de condenação, sob condição de pagar as custas processuais, mesmo que venha a obter a procedência da acção.
No CPC vigente, a posição do legislador é manifesta, quando o autor disponha de título com força executiva, não pode intentar acção de condenação, deve intentar acção executiva. …”
No processo referido não houve interesse processual visto que o autor dispôs de título executivo com força executiva e só intentou acção de condenação, no presente processo também não se vê como existe interesse processual na presente acção de condenação quando a autora já intentou acção executiva contra o réu.
Outrossim, para apreciar se há interesse processual na acção da autora, os tribunais de Macau só precisam de considerar as regras processuais de Macau, sem necessidade de excluir a aplicação do art.º 73.º n.º 3 alínea a) do CPC puramente por motivo da declaração da autora no sentido da possibilidade de ir ao exterior de Macau pedir executar a sentença dos tribunais de Macau. Se os tribunais de Macau necessitem de ponderar, antes de decidir se é aplicável o art.º 73.º n.º 3 alínea a) do CPC, onde a autora vai executar a sentença ou proceder à execução patrimonial do réu, implica-se que essa norma está sujeita à vontade da autora.
Pelo exposto, o Tribunal julga procedente a excepção dilatória da falta do interesse processual da autora, absolve-se assim o réu da acção da autora, ao abrigo do art.º 230.º n.º 1 alínea e) do CPC”.

Seguidamente, (e em complemento ao atrás transcrito), consignou-se também no dito Acórdão agora recorrido o que segue:

“Concordamos completamente com a análise e decisão do Tribunal a quo sobre a respectiva questão, portanto, citando a referida decisão e os fundamentos, julga-se improcedente o recurso ao abrigo do art.º 631.º n.º 5 do CPC.
Na verdade, o interesse processual previsto pelo art.º 72.º do CPC refere-se ao interesse resultante da necessidade de intentar acção em Macau segundo as regras processuais de Macau, mas não por causa das diferenças entre o regime jurídico das outras regiões e o de Macau.
Como disse o Juiz a quo, ao conhecer processo, os tribunais de Macau actuam de acordo com as regras processuais de Macau, sem necessidade de considerar as regras dos outros países ou regiões.
E mais, o julgamento e a sentença do tribunal fundamentalmente não visam proporcionar às partes submetê-los aos outros países/regiões para apreciação e confirmação, mas sim visam revolver conflitos e litígios.
Conforme o regime jurídico vigente de Macau, a autora já dispõe do título executivo referente ao direito de crédito que pretende reconhecer através da acção, é completamente desnecessário um reconhecimento de novo através da sentença.
Os tribunais de Macau não têm responsabilidade de proferir sentença para reconhecer o respectivo direito de crédito porque o regime jurídico dos outros países/regiões não reconhece o respectivo título executivo.
(…)”; (cfr., fls. 311 a 311-v e 17 a 20 do Apenso).

Aqui chegados, transcrita a decisão recorrida – para melhor se alcançar as suas razões – e identificada estando a “questão” a resolver, precisamente, da considerada e agora impugnada decisão no sentido da “falta de interesse processual da A.”, ora recorrente, vejamos.

Como parece ser (bastante) consensual, o entendimento – nomeadamente da doutrina processualista civil portuguesa – sobre o sentido e alcance do “interesse processual” – enquanto “pressuposto processual” – foi sempre objecto de alguma polémica.

O Prof. Castro Mendes defendeu a sua inexistência como “pressuposto autónomo”, encontrando na norma relativa à tributação da acção “inútil” – cfr., art. 449°, n.° 2 do C.P.C. de 1961 – um argumento em favor da sua tese dado que o mesmo se aplicava a tais situações (de “acção inútil”) para efeitos de “tributação” e não enquanto “pressuposto processual”, considerando que a inutilidade não implicava a absolvição do réu da instância mas apenas a responsabilidade do autor pelas custas; (in “Direito Processual Civil”, Vol. II, pág. 189 a 190 e 234 e segs.).

Denominando-o como “interesse processual”, Manuel de Andrade – in “Noções elementares de processo civil”, Coimbra, 1979, pág. 79 e segs. – caracteriza-o como consistindo em “o direito do demandante estar carecido de tutela judicial” e no “interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo”, considerando, também, em delimitação negativa, que “não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece…”.

Também Anselmo de Castro, que o configurou como pressuposto processual autónomo e inominado, (e que o considera em oposição ao interesse substantivo), refere que: “Do interesse em agir se distingue o interesse substancial: o interesse em agir é um interesse processual, secundário e instrumental em relação ao interesse substancial primário, e tem por objecto a providência solicitada ao tribunal, através da qual se procura ver satisfeito aquele interesse primário, lesado pelo comportamento da outra parte, ou mais genericamente, pela situação de facto objectivamente existente. O interesse em agir, surge, pois, da necessidade em obter do processo a protecção do interesse substancial, pelo que pressupõe a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração, ou tanto quanto possível integral satisfação”; (in “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, pág. 253).

Por sua vez, o Prof. Antunes Varela, defendendo nomenclatura diversa – “necessidade de tutela judiciária” – refere que: “relativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais do que isso”; (in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra, 1985, pág. 179 e segs.).

E, por seu turno, Francisco Ferreira de Almeida, dá nota de que o interesse em agir, “na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo verificar-se-á em caso de indisponibilidade de outros expedientes (extra-judiciais) de realização da tutela judiciária pretendida, seja porque tais meios, na realidade, não existem, seja porque, existindo, se encontram já exauridos”; (in “Direito Processual Civil”, Vol. I, pág. 446, podendo-se, também, v.g., ver P. Pimenta in, “Processo Civil Declarativo”, pág. 98).

Pronunciando-se sobre o tema, considera também Miguel Teixeira de Sousa que:

“O interesse processual pode definir-se como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual.
O interesse processual impõe algumas restrições ao exercício do direito à jurisdição – que constitucionalmente é garantido a qualquer sujeito (art°. 20°, n° 2, CRP) –, dado que condiciona o recurso aos tribunais à necessidade de tutela judicial e à inexistência de qualquer outro meio, processual ou extraprocessual, para obter a realização do direito subjectivo alegado pelo autor. A sua justificação prende-se, assim, com razões de economia: esse pressuposto visa evitar que sejam impostos custos ao demandado e aos tribunais numa situação em que não se fundamenta o recurso aos órgãos jurisdicionais”; (in “O Interesse Processual na Acção Declarativa”, A.A.D., pág. 5).

E, enfatizando a sua função precípua de protecção do “interesse público” considera a Prof. Maria José Capelo que “Se em face da lei a todo o direito corresponde uma acção, tal afirmação precisa de ser entendida cum grano salis, ou seja, não basta invocar um direito, é necessário que a pretensão do autor esteja alicerçada numa situação fáctica merecedora, pelo meio adequado, de tutela jurisdicional”, notando ainda que “o interesse de se promover o andamento da actividade jurisdicional, mantida a expensas da colectividade, somente quando os direitos estejam carecidos de tutela judicial. Não se pode desvalorizar a economia processual como um dos factores justificativos da autonomização e funcionamento do interesse de agir como pressuposto”; (in “Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação”, Coimbra, pág. 49).

Recentemente, na sua dissertação sobre “O Abuso do Direito de Demandar”, (e citando J. P. Remédio Marques), considerou também Luciana F. Gomes Pinto que: “(…) De uma forma sintética, o interesse processual é um dos pressupostos da ação que tem por função possibilitar que somente tenham acesso ao judiciário as demandas que dele realmente necessitem”, devendo o autor “expor na sua petição inicial os fundamentos fáticos e legais que deixem claro ao julgador sua necessidade de vir a juízo, por não dispor de outros mecanismos hábeis para a obtenção do direito. (…)”; (in ob. cit., 38 e segs.).

E como igualmente salienta J. P. Remédio Marques, o pressuposto processual em questão permite “retirar dos tribunais os litígios, cuja resolução por via judicial não é indispensável, nem necessária, e serve de freio, pois previne a dedução precipitada ou não reflectida de acções”, demonstrada devendo estar uma “carência objectiva, justificada, razoável e actual de recorrer a juízo”; (in “A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, 3ª ed., pág. 407).

Essencialmente de reter – e que, em nossa opinião, constituirá o entendimento dominante – é que o “interesse processual” consiste na “indispensabilidade” de o autor recorrer a juízo para satisfação da sua pretensão, (na “inevitabilidade” do pedido de tutela jurisdicional apresentado), ou, dito de outra forma, que a tutela jurisdicional seja “necessária e útil” de forma a que o A. não consiga o bem cujo direito reclama sem a tutela requisitada.

Tratando do tema (e questão), (e com alterações relativamente ao antes preceituado no C.P.C. de 1961) o C.P.C.M. dedica-lhe (especialmente) os seus art°s 72° e 73° – invocados na decisão recorrida – onde, no primeiro, e sob a epígrafe “Conceito de interesse processual” se prescreve que:

“Há interesse processual sempre que a situação de carência do autor justifica o recurso às vias judiciais”.

Seguidamente, (e sob a epígrafe “O interesse processual e as espécies de acções”), estatui-se no aludido art. 73° que:

“1. Nas acções de simples apreciação há interesse processual quando o autor pretenda reagir contra uma situação de incerteza objectiva e grave.
2. Nas acções constitutivas há interesse processual sempre que o efeito jurídico visado não possa ser obtido mediante simples acto unilateral do autor.
3. Nas acções de condenação há interesse processual:
a) Se a obrigação estiver vencida, excepto se o autor dispuser de título com manifesta força executiva;
b) Se a obrigação não estiver vencida e se verificar alguma das situações previstas no artigo 393.º”.

Comentando o aludido art. 72° consideram Cândida Pires e Viriato de Lima que:

“(…)
2. A noção de interesse processual requer a sua demarcação de um outro pressuposto – a legitimidade – que o anterior CPC aferia pelo interesse directo em demandar ou em contradizer. Chegou mesmo a defender-se que a exigência da verificação do interesse processual como requisito da sentença de mérito já aparecia enquadrada no âmbito da legitimidade tal como o art. 26.° do CPC anterior a definia, tomando-se o seguinte exemplo: se durante a pendência de uma acção em que se pede a condenação de alguém na entrega de uma coisa infungível, a coisa perece, o autor deixa de ter interesse processual porque a tutela judicial se lhe torna de todo inútil. Por isso a lei de processo consagra a figura da extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Mas é preciso esclarecer que o interesse processual como pressuposto autónomo é sinónimo de interesse em agir, sendo portanto diferente do interesse (material ou substantivo) que têm os titulares da relação material litigada na apreciação jurisdicional dessa relação. O mesmo é dizer que a tutela judiciária, para poder ser concedida, requer um interesse adjectivo.
O interesse processual a que o preceito em anotação se refere é, pois, o interesse, não no objecto do processo judicial, mas no próprio processo judicial em si mesmo, indispensável para a salvaguarda de interesses privados. Por outra palavras, o interesse processual tem a ver com a necessidade de recurso à via judicial, recurso que só se torna oportuno e justificado a partir do momento em que determinados interesses entrem em conflito e um determinado direito subjectivo careça efectivamente de tutela.
Ou seja, tem interesse na acção quem está na impossibilidade de exercitar ou conservar o seu direito sem a intervenção do órgão judiciário. Faltando essa necessidade objectiva de tutela jurisdicional, a acção seria injustificada e a actividade dos tribunais não aproveitaria a ninguém.
(…)”; (in “C.P.C.M. Anotado e Comentado”, Vol. I, pág. 227 a 229).

Também o Prof. M. Teixeira de Sousa – em comunicação sobre “O Interesse Processual no C.P.C.M.”, apresentada nas Jornadas de Processo Civil, (in B.F.D.U.M., Ano IV, n.° 10, 2000, pág. 89 a 101) – considera que “O interesse processual condiciona o recurso aos tribunais à necessidade de obter a tutela jurisdicional que é requerida para um direito subjectivo e à inexistência de qualquer outro meio, processual ou extraprocessual, de exercício e tutela desse direito. Isto significa que não basta ser titular de um direito subjectivo para poder requerer para ele a tutela jurisdicional, pois que é sempre indispensável que esse titular necessite dessa tutela e utilize para a obter o meio processual adequado.
A justificação do interesse processual prende-se, assim, com razões de economia: esse pressuposto processual visa evitar que sejam impostos custos e cómodos ao demandado e ao tribunal numa situação em que não se fundamenta o recurso aos órgãos jurisdicionais ou ao meio processual utilizado pela parte. O interesse processual destina-se a assegurar a utilidade da tutela jurisdicional, evitando as acções inúteis”.

Ora, cremos que se compreende (perfeitamente) o que se deixou considerado e exposto: se a lei processual proíbe – expressamente – a prática de “actos inúteis”, declarando-os “ilícitos”, (cfr., art. 87° do C.P.C.M.), por maioria de razão teria de proibir uma “acção inútil”, assim se obstando também a que um titular de um direito subjectivo material possa, sem mais, solicitar uma qualquer tutela judiciária, impondo, assim, à contraparte a perturbação e gravame inerente à posição de “demandado”, que se traduz, principalmente, em ter de deduzir a respectiva defesa sob pena de a ver precludida, com os adicionais custos para a máquina judiciária e para o interesse de toda uma colectividade.

Todavia, importa atentar que, na petição inicial pela A. ora recorrente apresentada no Tribunal Judicial de Base alegado foi, nomeadamente, que:

“- A Autora é uma sociedade comercial que se dedica a instalar, operar e gerir jogos de fortuna ou azar em casino, tendo outorgado em 19 de Dezembro de 2002 com o Governo da RAEM um contrato de Subconcessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou outros jogos em casino na Região Administrativa Especial de Macau e estando-lhe, assim, concessionada a actividade de exploração e operação de jogos de fortuna e azar em casino (documento 1).
- Para além dessa actividade, a Autora dedica-se também, acessoriamente, ao exercício da actividade de concessão de crédito para jogo ou para aposta em jogos de fortuna ou azar em casino na Região Administrativa Especial de Macau, actividade essa regulada pela Lei n.° 5/2004, de 14 de Junho.
- No âmbito dessa actividade acessória, a Autora celebrou com o Réu, em 4 de Junho de 2014, um contrato de concessão de crédito para jogo, denominado A CREDIT APPLICATION AGREEMENT, tendo-lhe concedido crédito até ao montante de HKD20.000.000,00 (vinte milhões de dólares de Hong Kong) (documento 1).
- o Réu usou o crédito concedido pela Autora nos casinos desta, jogando as fichas que lhe foram mutuadas.
- O saldo final do financiamento concedido pela Autora ao Réu é, assim, abatido o valor da comissão lançado a favor do Réu, de HKD8.592.000,00 (oito milhões quinhentos e noventa e dois mil dólares de Hong Kong), que o Réu deve à Autora a título de capital.
- Nos termos do contrato de concessão de crédito assinado entre Autora e Réu, este obrigou-se a restituir à Autora, em singelo, a quantia mutuada no prazo de 15 dias a contar da data de disponibilização (cfr. documento 1), pelo que a quantia mutuada encontra-se em dívida desde 19 de Junho de 2014.
- O Réu pagou à Autora, em 16 de Janeiro de 2015, por conta da sua dívida, a quantia de HKD1.000.000,00 (um milhão de dólares de Hong Kong), que a Autora imputou no pagamento da dívida de capital.
- Apesar dos insistentes contactos e interpelações da Autora, o Réu não liquidou ainda integralmente a sua dívida.
- As partes acordaram também na remuneração do valor mutuado através do pagamento de juros à taxa de 18% ao ano (cláusula 9ª do contrato).
- Os juros são devidos sobre o capital de HKD8.592.000,00 entre 19 de Junho de 2014 e 16 de Janeiro de 2016 e sobre o capital de HKD7.592.000,00 desde 17 de Janeiro de 2016 até ao efectivo e integral pagamento.
- Em 3 de Maio de 2016, a Autora intentou contra o Réu uma execução ordinária para pagamento de quantia certa, que seguiu os seus termos com o n.° CV3-16-0089-CEO.
- Infelizmente, nada foi encontrado em Macau em nome do Réu que permitisse saldar a dívida, mesmo que parcialmente (cfr. documento 1).
- A quantia ali exequenda continua integralmente em dívida.
- A Autora, tendo recorrido directamente à fase executiva, mediante título executivo extrajudicial, possui título com manifesta força executiva, para os efeitos do disposto na alínea b) do n.° 3 do artigo 73.º do Código de Processo Civil.
- Sucede que a Autora só com recurso a uma acção declarativa poderá fazer valer os seus direitos, conforme de seguida se justificará.
- O Réu é um nacional norte-americano e tem residência no Estado da Califórnia, Estados Unidos da América.
- O Réu possui bens no Estado da Califórnia que a Autora pretende usar para pagamento da dívida, mediante um processo de cobrança a instaurar naquela jurisdição.
- Acontece que a Autora não pode dar início, na Califórnia, a um processo de cobrança de dívida, equivalente a uma acção executiva, directamente com base no título executivo utilizado no processo CV3-16-0089-CEO, ou mesmo a uma acção declarativa para reconhecimento da dívida e condenação do Réu no seu pagamento.
- Isto porque a lei da Califórnia não admite a cobrança directa de dívidas de jogo naquele Estado.
- Porém, se o credor obtiver uma sentença condenatória transitada em julgado no local onde a dívida de jogo foi contraída, então já poderá ser sujeita a um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira.
- Isto é, a única forma de a Autora poder cobrar a dívida na Califórnia será obter uma sentença declarativa de condenação que, depois, sujeitará a um processo de revisão e confirmação na Califórnia e, com base nessa mesma confirmação, iniciar um processo executivo.
- O regime estabelecido no n.º 3 do artigo 73.º do Código de Processo Civil deverá, pois, ser interpretado no sentido de a manifesta força executiva do título executivo ter de ser apurada, também, em relação à jurisdição onde se pretende proceder à execução da dívida.
- De outra forma, estar-se-ia a privar o credor da garantia de acesso aos tribunais, estabelecida no artigo 1.º do Código de Processo Civil.
(…)”; (cfr., fls. 2 a 8).

E, em face do assim alegado – onde se explicitou o “motivo” da acção proposta – justa e adequada será a “solução” encontrada pelas Instâncias recorridas?

Ora, como a própria A., ora recorrente, alegou e reconheceu (expressamente), visto está que é a mesma possuidora de “título executivo” com o qual (até) já instaurou uma execução ao R., ora recorrido, (e que correu termos no Tribunal Judicial de Base com a referência CV3-16-0089-CEO), não tendo conseguido o pagamento da quantia aí exequenda por (total) inexistência de bens do executado em Macau.

Por sua vez, visto está, igualmente, que com a “acção declarativa de condenação” no Tribunal Judicial de Base proposta – e que deu origem à presente lide recursória – pretende (apenas) a ora recorrente uma “sentença condenatória do R.” para, seguidamente, após a sua revisão, “atacar” os bens que este possui em país estrangeiro da sua residência para, desta forma, se fazer pagar da quantia que do mesmo reclama.

E, em conformidade com a assim considerado, foi – essencialmente – entendido que o preceituado no art. 72° do C.P.C.M. não permite dar como verificado o “interesse processual” quando a acção proposta apenas visa assegurar o posterior “recurso a jurisdições estrangeiras”, e que, a existência e posse de “título executivo”, (pela A., ora recorrente), impedia, igualmente, o interesse processual em sede de uma acção declarativa condenatória – como a proposta – por força do art. 73°, n.° 3, al. a) do C.P.C.M..

Ora, da reflexão que sobre a questão a apreciar tivemos oportunidade de efectuar, e sem prejuízo do respeito a opinião diversa, cremos que o entendimento adoptado não se apresenta como o mais adequado.

Na verdade, temos para nós que nada obsta a que com uma “acção” – como a dos presentes autos – se vise (apenas) assegurar uma posterior “execução (do aí R.) no exterior”.

E, se bem ajuizamos, tal é-nos mesmo explicitado com recurso ao estatuído no art. 15° do C.P.C.M., onde, sob a epígrafe “Circunstâncias gerais determinantes da competência dos tribunais de Macau” se prescreve (nomeadamente) que:

“Os tribunais de Macau são competentes quando se verifique alguma das seguintes circunstâncias:
(…)
c) Não poder o direito tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em tribunal de Macau, desde que entre a acção a propor e Macau exista qualquer elemento ponderoso de conexão pessoal ou real”.

Atento o preceituado, e em face do pela ora recorrente oportunamente alegado, (e ponderando especialmente que a mesma tem sede em Macau, e que o invocado “contrato de concessão de crédito” com o R., ora recorrido, foi também celebrado em Macau), evidente se nos apresenta como verificada a referida (necessária) “conexão”.

Por sua vez, cabe dizer que uma “situação” como a agora em questão nem sequer se mostra “estranha” ao ordenamento jurídico da R.A.E.M..

Com efeito, nos termos do art. 680°, n.° 1 do C.P.C.M. (e sob a epígrafe “Exequibilidade de decisões e outros títulos do exterior de Macau”):

“Salvo disposição em contrário de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, as decisões proferidas por tribunais ou árbitros do exterior de Macau só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo competente tribunal de Macau”.

E dest’arte, cabe questionar: haverá alguma razão (séria e justa) para que uma “sentença estrangeira” – após revisão e confirmação nos termos do art. 1199° e segs. do C.P.C.M. – possa servir de “título executivo” em sede de uma execução instaurada em Macau nos termos do referido art. 680° (e art. 24° da mesma lei adjectiva), e (já) não se poder verificar o inverso?

Ou seja, haverá motivos para que uma “sentença (condenatória)” proferida pelos Tribunais de Macau não possa, (após a sua revisão), servir de base – “título executivo” – a uma execução no estrangeiro?

Sem prejuízo do muito respeito por diverso entendimento, (e, pelo menos, como “princípio geral”), não nos parece que exista qualquer motivo razoável e atendível, (até mesmo porque nos tempos que correm, não devem os sistemas jurídicos viver de “costas voltadas”), sendo (ainda) de notar também que nesta mesma conformidade (e lógica) se deve interpretar o estatuído no art. 73°, n.° 3, alínea a) do C.P.C.M., onde se preceitua sobre o “título com manifesta força executiva”, pois que tal “qualidade” deve ser (apenas e tão só) aferida em face do “ordenamento jurídico respectivo” para efeitos de afastar (as atrás referidas) “acções – absolutamente – inúteis”, (alimentadas por meras “razões subjectivas”, ou v.g., meros “caprichos” em obter uma sentença para com ela se fazer um “quadro”…), sem que qualquer tipo de “necessidade”, “utilidade” e “justificação” (objectiva e válida) tenha sido invocada ou apresentada.

Porém, como (de forma clara) dos autos resulta, não é o que se passa.

In casu, (claramente) explicitada está a “necessidade” e “utilidade” da acção proposta, e, perante o (aí) alegado (e atrás retratado), a mesma mostra-se-nos plenamente justificada, sob pena de excessiva e indevida contracção e restrição do “direito (e garantia) de acesso aos Tribunais”, consagrado no art. 36° da Lei Básica da R.A.E.M. assim como no art. 1 do C.P.C.M., onde no seu n.° 2 se prescreve que “A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção”.

Com efeito, em nossa opinião, e em face dos elementos que os presentes autos nos dão conta, apresenta-se de considerar que verificado está o “interesse processual” da A., ora recorrente, pois que, (para além de alegada estar a “impossibilidade de utilização do título executivo” que deu à execução que já moveu), mostra-se a acção que propôs necessária e útil à tutela do seu interesse – “direito” – em se ver ressarcida do prejuízo que sofreu em resultado do crédito que concedeu ao R., ora recorrido, (sendo mesmo de se salientar que, assim, e nos termos do que vem alegado, apresenta-se até mesmo como o “único meio” para tal efeito).

Na verdade, e como nota M. Teixeira de Sousa “o interesse processual é um pressuposto processual, pelo que, como qualquer outro pressuposto, é aferido exclusivamente perante o objecto definido pelo autor”; (in ob. cit., pág. 94).

E, nesta óptica, não se destinando a garantir a “eficácia” da sentença, (como sucede com a “legitimidade”), mas, antes, a assegurar a sua “utilidade”, adequado se mostra de ponderar sobre tal questão em conformidade com uma “perspectiva” que dê relevo à pretensão nos (exactos) termos em que a mesma vem apresentada, (ou seja, de acordo com a sua própria “lógica”).

Como comentando o “direito de acesso à justiça” considera Kazuo Watanabe, deve-se pensar na ordem jurídica e nas respectivas instituições pela “perspectiva do consumidor”, (o – principal – “destinatário” das normas), sem prejudicar (excessivamente) a “vítima” (lesada), e beneficiando (injustificadamente) o causador do dano, ou seja, o “agressor”; (in “Acesso à ordem jurídica justa; conceito atualizado de acesso à justiça”, 2019).

Por fim, afigura-se de que vale a pena também ponderar que “situações” existem, (ou podem existir), que se apresentam susceptíveis de justificar o uso do processo de declaração por parte de quem esteja munido de título executivo, e que pode (v.g.) ocorrer perante “dúvidas” sobre a existência, validade ou exequibilidade do título, para efeitos de se obter uma “segurança formal”, evitando-se eventual “indeferimento liminar da acção executiva” ou de uma possível “procedência da respectiva oposição”, com redução dos seus fundamentos, (cfr., art. 697° do C.P.C.M.), podendo-se, ainda, indicar como (eventuais) vantagens, “o aumento da prazo de prescrição da dívida”, (cfr., art. 304° do C.C.M.), a “subida do valor da taxa de juro de mora aplicável”, de civil para comercial por invocação da “relação subjacente”, e a possibilidade de “registo de hipoteca” (nos termos do art. 705° do C.C.M.).

Dest’arte, e em conformidade com o consignado, imperativa se apresenta a decisão que segue.

Decisão

3. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, e decretando-se a devolução dos autos ao Tribunal Judicial de Base para, nada obstando, prosseguir os seus normais termos.

Custas pelo R. com taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 27 de Julho de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 60/2022 Pág. 18

Proc. 60/2022 Pág. 19