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--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). -----------------------
--- Data: 31/07/2022 ---------------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Dr. Chan Kuong Seng -----------------------------------------------------------------------------

Processo n.º 450/2022
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (arguido): A (A)




DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Inconformado com a sentença proferida a fls. 94 a 99 do Processo Comum Singular n.° CR4-22-0032-PCS do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, absolutória do arguido A da acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de acolhimento, veio o Ministério Público recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, para pedir, na motivação apresentada a fls. 106 a 110v dos presentes autos correspondentes, a condenação desse crime, devido à já verificação do dolo, por parte do arguido, no cometimento do mesmo delito.
Ao recurso, não foi apresentada resposta em nome do arguido.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 120 a 122v dos presentes autos, no sentido de provimento do recurso.
Cumpre decidir sumariamente do recurso, dada a simplicidade da questão principal do dolo do crime a resolver, nos termos permitidos pelo art.o 621.o, n.o 2, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do Código de Processo Penal.
2. Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida se encontrou proferida a fls. 94 a 99, cuja fundamentação fáctica e jurídica se dá por aqui integralmente reproduzida.
3. No caso dos autos, o Tribunal recorrido julgou que o arguido agiu com dolo eventual na conduta de acolhimento (cfr. o facto provado 8 descrito na página 5 do texto da sentença a fl. 96, e o último parágrafo da página 8 do mesmo texto, a fl. 97v), e acabou por decidir – citando o art.o 2.o, n.o 4, do Código Penal (CP) (em sintonia com o qual quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se já tiver havido condenação transitada em julgado) – aplicar a norma do art.o 71.o, n.o 1, da Lei n.o 16/2021 (revogatória da Lei n.o 6/2004, vigente à data dos factos do presente caso e à luz de cuja norma do n.o 1 do art.o 15.o vinha inicialmente acusado o arguido por prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de acolhimento), por entender que sob a égide do art.o 71.o da nova Lei n.o 16/2021, o crime de acolhimento só é punível se for cometido com dolo directo.
Pois bem, segundo o art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004 (supervenientemente revogada pela Lei n.o 16/2021):
“Quem dolosamente acolher, abrigar, alojar ou instalar aquele que se encontre em situação de imigração ilegal, ainda que temporariamente, é punido com pena de prisão até 2 anos”, sendo a versão em chinês deste preceito como tal constante da redacção do respectivo texto legal o seguinte: “故意收留、庇護、收容或安置非法入境或非法逗留者的人,處最高二年徒刑,即使收留、庇護、收容、安置屬臨時性亦然。”
  Enquanto o art.o 71.o, n.o 1, da Lei n.o 16/2021 dispõe o seguinte:
  – (em português:) “Quem, sabendo da situação de imigração ilegal em que outrem se encontre, permitir que o mesmo se acolha e pernoite na sua habitação ou de alguma forma lhe faculte o domínio ou posse de sítio, construção, veículo, embarcação ou imóvel ou sua fracção, compartimento ou anexo, para aquele fim, é punido com pena de prisão até 2 anos”;
  – (e em chinês:) “明知他人處於非法入境或非法逗留狀況而允許該人在其居所獲收留及留宿,又或以任何方式提供地方、建築物、車輛、船舶或不動產,又或不動產的單位、房間或附屬部分供該人支配或佔有,使該人獲收留及留宿者,處最高兩年徒刑。”
Ante a redacção desses dois preceitos incriminadores da conduta de acolhimento, um proveniente da lei antiga (vigente à data dos factos do presente caso), e o outro plasmado na lei nova, o juízo jurídico do Tribunal recorrido de o crime de acolhimento só ser punível com dolo directo na lei nova apenas poderia relevar, se relevasse realmente, perante a redacção em chinês da lei nova, visto que no preceito incriminador em causa, na lei nova se usou o termo “明知” (o que significa, em português, “sabendo claramente”), ao passo que na sua redacção em português, se empregou o termo “sabendo”.
Como se sabe, o art.o 13.o do CP distingue diferentes modalidades de dolo, através da seguinte redacção:
“1. Age com dolo quem, representando-se um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2. Age ainda com dolo quem se representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3. Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”.
De acordo com a matéria de facto já dada, e descrita, por provada na sentença recorrida, o arguido agiu com dolo eventual ensinado na doutrina jurídica penal geral (subsumível ao n.o 3 do art.o 13.o do CP) na conduta de acolhimento, de maneira que sendo o crime de acolhimento um delito doloso, o arguido deve passar a ser punido como autor material de um crime consumado de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, vigente à data da prática dos factos.
A acima referida discrepância na letra oficial do n.o 1 do art.o 71.o da Lei n.o 16/2021 acerca do verbo saber não tem a virtude de afastar a aplicação da dita norma do art.o 13.o da parte geral do CP.
Seja como for, a eventual circunstância de algum tipo-de-ilícito penal se encontrar descrito na letra da lei com foco no elemento intelectual do dolo na prática do delito (e como exemplo deste tipo de técnica legiferante, pode ver-se na letra do n.o 2 (proémio) do art.o 255.o do CP) não pode prejudicar a devida punição do mesmo delito em caso de dolo eventual da sua prática, sob pena de pôr em causa o sentido e alcance dos pressupostos de punição previstos nos art.os 12.o e 13.o do CP para crime doloso.
E tudo isto também por força do cânone de hermenêutica jurídica de que quem interpreta uma norma está a interpretar todo o sistema jurídico (cfr. a este propósito, o disposto no n.o 1 do art.o 8.o do Código Civil, em conformidade com o qual a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico [...]).
Resta proceder à medida concreta da pena:
Devendo ser aplicada a Lei n.o 6/2004 ao caso concreto dos autos (e não a Lei n.o 16/2021, por não ser aplicável o art.o 2.o, n.o 4, do CP, por a disposição contida no art.o 71.o, n.o 1, dessa lei nova não ser concretamente mais favarável do que a no art.o 15.o, n.o 1, daquela lei antiga), e ponderadas todas as circunstâncias fácticas já descritas como provadas na fundamentação fáctica da decisão ora recorrida (sendo de atender em especial à circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais em Macau e à duração temporal relativamente curta do acolhimento), afigura-se justo e equilibrado, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, condenar o arguido em quatro meses de prisão pelo seu crime de acolhimento do art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, pena essa que não se substitui por igual tempo de multa por força das prementes necessidades da prevenção geral deste tipo legal de crime (cfr. o critério material exigido no art.o 44.o, n.o 1, do CP), mas já pode ser suspensa na execução por um ano, nos termos do art.o 48.o, n.o 1, do CP, dada a falta de antecedentes criminais do arguido.
Procede, pois, o recurso.
4. Dest’arte, decide-se, sumariamente, em julgar provido o recurso do Ministério Público, com consequente condenação do arguido como autor material de um crime consumado de acolhimento, p. e p. pelo art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, na pena de quatro meses de prisão, suspensa na execução por um ano.
Custas do processo em ambas as duas Instâncias pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça no Tribunal recorrido e duas UC de taxa de justiça nesta Segunda Instância, passando os honorários da Ex.ma Defensora Oficiosa atribuídos na sentença recorrida a ficar ao cargo do arguido.
Comunique a presente decisão (com cópia da sentença recorrida) ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 31 de Julho de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)



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