Processo nº 938/2021
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 15 de Setembro de 2022
ASSUNTO:
- Pena de demissão
- Prescrição do procedimento disciplinar
- Poder discricionário
SUMÁRIO:
1. Em caso de pluralidade de infracções disciplinares, a inverificação de uma delas implicará a anulação total do acto punitivo, no pressuposto, correcto, de que a actividade de escolha e de determinação da concreta medida da pena disciplinar tem natureza discricionária que se encontra sujeita, por isso, a valorações autónomas da própria Administração, razão pela qual não poderá aí operar o princípio do aproveitamento do acto.
2. Contudo, se é manifesto que os factos referentes a determinada infracção disciplinar não são fundamento da pena que foi aplicada ao funcionário, a invalidade detectada resultante da ocorrência da prescrição em relação a essa infracção não poderá, em coerência, implicar a invalidade daquele acto.
3. A escolha da medida disciplinar corresponde ao exercício de um poder discricionário em relação ao qual os poderes sindicantes do tribunal são, como se impõe, limitados. O juiz só pode anular o acto em situações de erro manifesto ou total desrazoabilidade nesse exercício ou violação intolerável dos princípios gerais que regem a actividade administrativa.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 938/2021
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 15 de Setembro de 2022
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 28.09.2021 que aplicou o Recorrente por infracção disciplinar na pena de demissão, formulando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso contencioso foi interposto contra o seguinte acto administrativo/objecto: Em 28 de Setembro de 2021, o Secretário para a Segurança, no uso da faculdade conferida pelo Anexo V) mencionado no n.º 2 do art.º 78º da Lei n.º 13/2021 e pela Ordem executiva n.º 182/2019, e nos termos do disposto nas alíneas 6) e 12) do n.º 2 do art.º 153º e na alínea 3) do art.º 155º da Lei n.º 13/2021, aplicou ao verificador alfandegário, A, a pena de demissão (vide Doc. 1 – o acto administrativo praticado pelo Secretário para a Segurança em 28 de Setembro de 2021, onde se aplicou a pena de demissão a A).
2. O Recorrente não se conforma com o aludido acto administrativo/objecto, considerando que este padece dos vícios de prescrição do procedimento disciplinar, no exercício de poderes discricionários e de violação do princípio de adequação e proporcionalidade.
Prescrição do procedimento disciplinar
3. No que concerne à violação do dever de comunicação consagrado no n.º 2 do art.º 16º da Lei n.º 2/2011, imputada ao Recorrente, entende o Recorrente que já se encontra prescrito o aludido procedimento disciplinar, pelo que a Administração deve proceder ao arquivamento da acusação em causa, ao abrigo da alínea 3) do n.º 1 do art.º 122º da Lei n.º 13/2021.
4. O Recorrente já estava divorciado em 9 de Fevereiro de 2009, mas já comunicou o estado de divórcio à Administração em 12 de Abril de 2013.
5. Por outras palavras, entende o Recorrente que ele tinha comunicado o divórcio à Administração em 12 de Abril de 2013, porém, não compreende por que razão a Administração ainda não efectuou a actualização de dados, continuando a atribuir-lhe o subsídio de família.
6. Deste modo, entende o Recorrente que, pelo menos, a partir de 12 de Abril de 2013, ele não devia assumir qualquer responsabilidade disciplinar resultante da referida infracção (a Administração não efectuou a actualização de dados, continuando a atribuir-lhe o subsídio de família).
7. Embora, no período entre Fevereiro de 2009 e Abril de 2013, o Recorrente tenha percebido indevidamente o subsídio de família devido à falta de comunicação do seu estado de divórcio à Administração, tal assunto foi comunicado à Administração em 12 de Abril de 2013, ou seja, a data da prática, pelo Recorrente, da infracção disciplinar deve ser contada a partir de 12 de Abril de 2013 (sic).
8. Por acusação do presente caso só ter sido deduzida em 14 de Maio de 2021, e por ter sido passados cinco anos sobre a data da prática, pelo Recorrente, da infracção disciplinar (12 de Abril de 2013), deve proceder-se ao arquivamento da parte da acusação em que se imputou ao Recorrente a violação do dever de comunicação consagrado no n.º 2 do art.º 16º da Lei n.º 2/2011.
9. Nesta conformidade, a Administração não procedeu ao arquivamento da parte da acusação em que se imputou ao Recorrente a violação do dever de comunicação consagrado no n.º 2 do art.º 16º da Lei n.º 2/2011, pelo que deve ser anulado o acto administrativo recorrido por ter violado a alínea 3) do n.º 1 do art.º 122º da Lei n.º 2/2011 (sic).
Violação do princípio de adequação e proporcionalidade
10. Não obstante a aplicação da pena concreta aos agentes que cometam infracção disciplinar, caba na discricionariedade da Administração, entende o Recorrente que o Secretário para a Segurança cometeu erro grosseiro no exercício de poderes discricionários por lhe ter aplicado a pena de demissão, e que existe desproporcionalidade notória entre a pena de demissão que lhe foi aplicada pela Administração e a negligência cometida pelo agente que cometeu infracção disciplinar.
11. Conforme o Doc. 1 (acto administrativo praticado pelo Secretário para a Segurança), a conduta do Recorrente é grave que até destruiu a imagem da Polícia e das Forças de Segurança perante os cidadãos.
12. Salvo o devido respeito, no entendimento do Recorrente, as alegações concludentes em apreço não ponderaram que o bem jurídico protegido pelo crime praticado pelo Recorrente era meramente um bem particular, não tendo o referido crime causado grande impacto à sociedade, bem como não se mostra grave a circunstância da percepção indevida, pelo Recorrente, do subsídio de família resultante da violação do dever de comunicação, assim sendo, verifica-se inadequação notória entre a pena de demissão que foi aplicada pela Administração ao Recorrente e a culpa cometida pelo Recorrente.
13. Embora o agente que cometeu infracção disciplinar, seja membro das Forças de Segurança e o crime praticado pelo mesmo traga certo impacto ao prestígio das Forças de Segurança, o bem jurídico ofendido pelo crime de burla em causa é apenas um bem particular, não tendo o referido crime causado grande impacto à sociedade nem ofensa ao bem jurídico da sociedade, bem como o valor do prejuízo provocado ao ofendido não é elevado (o tribunal condenou o Recorrente a pagar ao ofendido um montante de cento e vinte mil dólares de Hong Kong (HKD120.000,00), a título de indemnização) e, posteriormente, o Recorrente efectuou o pagamento em prestações das dívidas a favor do ofendido.
14. No que concerne à violação do dever de comunicação pelo Recorrente, na verdade, no período entre 2007 e 2013, ao Recorrente foi aplicada a pena de suspensão preventiva de funções e, na altura, ele tinha esquecido ou não tinha reparado que devia comunicar o seu estado de divórcio à Administração durante o período em que se encontrava em suspensão preventiva de funções.
15. O crime cometido pelo Recorrente não causou impacto severo à sociedade, o valor do prejuízo sofrido pelo ofendido não é elevado, e a violação do dever de comunicação pelo Recorrente não se fundamenta, evidentemente, em circunstâncias graves, pelo que se averigua que é excessiva a pena de demissão (a pena mais pesada do padrão) aplicada pela Administração ao Recorrente, por falta de ponderação de todas as circunstâncias objectivas que depuserem a favor do Recorrente.
16. O Recorrente, tendo em conta que o seu tempo de serviço satisfaz o requisito formal para a aplicação da pena de aposentação compulsiva, e atendendo às circunstâncias que lhe favorecem, considera que a Administração lhe deve aplicar a pena de aposentação compulsiva que é uma solução mais adequada.
17. Pelo exposto, o acto recorrido padece dos vícios de prescrição do procedimento disciplinar, no exercício de poderes discricionários e de violação do princípio de adequação e proporcionalidade, assim sendo, deve ser anulado o acto decisório da aplicação da “pena de demissão” praticado pela Entidade Recorrida no despacho de 28 de Setembro de 2021.
Citada a Entidade Recorrida para contestar, esta silenciou.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, vieram estas fazê-lo.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer pugnando para que se julgasse improcedente o recurso.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
Dos autos consta a seguinte factualidade com relevância para a decisão da causa:
a) Em 11.10.2021 foi o Requerente notificado do despacho do senhor Secretário para a Segurança de 28.09.2021 com o seguinte teor:
«Nos autos de processos disciplinares acima identificados, em que é arguido. o. Verificador Alfandegário n.º 43991, A, dos Serviços de Alfândega, constam, como melhor se circunstancia na Acusação, a qual, por brevidade, se dá aqui por inteiramente reproduzida, suficientemente provados os seguintes factos:
- Nas circunstancias de modo descritas no referido libelo acusatório, o arguido, invocando estar impedido de o fazer pessoalmente devido à pendência de um empréstimo, ainda não totalmente amortizado, pediu a um amigo que comprasse, para seu uso, dele arguido, uma viatura automóvel com recurso a crédito bancário, cuja propriedade lhe seria transferida após a liquidação das respectivas responsabilidades, o que o amigo fez, contraindo um crédito no valor de HKD 340.000.00 (trezentos e quarenta mil), junto do Banco Weng Hang, em 15 de Outubro. de 2013. Porém, contrariando o compromisso assumido, o arguido não cumpriu as obrigações deixando de depositar o montante relativo a várias prestações. Pelo contrário, em Janeiro de 2016, usando de novo artifício fraudulento, logrou, como vem descrito na acusação, que o amigo lhe transferisse a propriedade da viatura, quando este pensava que o fazia em favor de uma agência que se teria disponibilizado para ajudar a resolver o problema da dívida. Já com a viatura automóvel em seu nome acabaria por vendê-la a um terceiro sem liquidar as suas responsabilidades bancárias, deixando o amigo a braços com uma pesada dívida.
Pela autoria destes factos acabaria por ser condenado no Tribunal Judicial de Base na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pela prática de um crime de Burla p.p. pelo. artigo. 211.º do Código Penal (pag 220 a 230 dos autos),
Com a prática dos factos descritos, o arguido A violou de forma grave o dever de aprumo na formulação que lhe confere a alínea o) do n.º 2 do artigo 12.º do Estatuto dos Militarizados (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, a que corresponde a alínea 14) do. n.º 2 do artigo 92.º da Lei n.º 13/2021 (Estatuto dos agentes das Forças de Segurança)
- Vem ainda provado nos autos em apreço que o arguido apenas comunicou o seu divórcio em 12 de Abril de 2013, quando o mesmo ocorrera em 9 de Fevereiro de 2009, período durante o qual recebeu indevidamente o subsídio de família atribuído aos sogros, omissão que, pelo menos a partir da entrada em vigor de Lei n.º 2/2011, o constituiu em infracção ao dever de comunicação disposto no n.º 2 do seu artigo 16.º
Foi ouvido o Conselho de Justiça e Disciplina, em 13 de Setembro de 2021, que se pronunciou pela aplicação ao arguido da pena de demissão.
A conduta descrita, quer pela sua gravidade, quer pela afronta que constitui para o prestigio da corporação, prejudica de forma grave a dignidade da função e atenta contra a imagem que a população revê nos agentes policiais e nas forças de segurança, como reserva de valores de integridade e adequação social, razão pela qual se torna insustentável a manutenção da relação funcional e, assim, não obstante a boa informação dos superiores que o beneficia, nos termos da alínea i) do n.º 2 do artigo 200.º do citado EMFSM ponderadas a gravidade da falta, a culpa e a responsabilidade do arguido, o Secretário para a Segurança, no uso da competência que lhe advém do disposto no Anexo G ao artigo 211.º do EMFSM (actual Anexo V ao n.º 2 do artigo 78.º do Estatuto dos Agentes) e, bem assim, da Ordem Executiva n.º182/2019, pune o arguido, Verificador Alfandegário n.° 43991, A, dos Serviços de Alfândega, com a pena de DEMISSÃO, nos termos das alíneas f) e n) do n.º2 do artigo 238.º do EMFSM, por força do disposto na alínea c) do seu artigo 240.º , a que correspondem as actuais alíneas 6) e 12) do artigo 153,º e a alínea 3) do artigo 155.º, também do citado Estatuto dos Agentes.
Notifique-se o presente despacho e, bem assim, de que do mesmo cabe recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância.» - fls. 9 e 10 –.
b) Do Direito
É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«1.
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão, pedindo a respectiva anulação.
Sustentou a sua impugnação em dois fundamentos:
- A prescrição do procedimento disciplinar relativamente a uma das infracções que lhe são imputadas;
- A violação do princípio da adequação e da proporcionalidade na escolha da pena disciplinar que lhe foi aplicada.
2.
2.1.
(i)
Quanto à primeira das questões suscitadas pelo Recorrente, parece-nos que lhe assiste razão.
Está em causa a violação do dever de comunicação imposto pela norma do n.º 1 do artigo 16.º da Lei n.º 2/2011. De acordo com o que aí se preceitua, «a manutenção do subsídio de família está condicionada à manutenção dos requisitos que estiveram na base da sua atribuição, devendo o trabalhador comunicar ao serviço a cessação desses requisitos com antecedência, quando previsível, ou no prazo máximo de 15 dias após a sua ocorrência», sendo que o n.º 2 daquele mesmo artigo prevê expressamente que «a violação culposa do dever de comunicação referido no número anterior constitui infracção disciplinar».
Não é controvertido que o Recorrente inobservou o dito dever de comunicação. Na verdade, ele recebia subsídio de família em relação aos pais do seu cônjuge, pelo que a percepção de tal subsídio pressuponha a manutenção do seu vínculo conjugal pois que este constituiu um dos requisitos que este na base da respectiva atribuição. Acontece que o Recorrente se divorciou em 9 de Fevereiro de 2009, assim se tendo extinguido aquele vínculo, pelo que, no prazo de 15 dias após essa data, devia ter comunicado aquele divórcio ao seu Serviço. Todavia, só o veio a fazer no dia 12 de Abril de 2013, muito depois, portanto, daquele prazo. Daí que tenha incorrido na infracção disciplinar a que se reporta o n.º 2 do artigo 16.º da Lei n.º 2/2011.
(ii)
Nos termos que decorrem do disposto no n.º 1 do artigo 205.º do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, o procedimento disciplinar prescreve no prazo de 5 anos contados desde a data da consumação da infracção disciplinar.
No caso, a infracção disciplinar consumou-se no momento em que se esgotou o prazo de 15 dias previsto no n.º 1 do artigo 16.º da Lei n.º 2/2011, ou seja, no dia 24 de Fevereiro de 2009, pelo que o procedimento disciplinar se extinguiu por prescrição 5 anos volvidos, ou seja, no dia 24 de Fevereiro de 2014, uma vez que, até essa data, nenhum acto com eficácia suspensiva ou interruptiva do referido prazo prescricional foi praticado.
(iii)
No entanto, a apontada prescrição do procedimento disciplinar que, como se sabe, se projecta sobre a validade do acto punitivo ferindo-o de erro nos respectivos pressupostos na medida em que nesse acto são considerados factos com alegada relevância disciplinar que o não podem ser em virtude dessa prescrição, não tem, no caso concreto, e em nosso modesto entendimento, a relevância invalidante pretendida pelo Recorrente.
Não desconhecemos que os nossos tribunais têm vindo a entender que, em caso de pluralidade de infracções disciplinares, a inverificação de uma delas implicará a anulação total do acto punitivo, no pressuposto, correcto, de que a actividade de escolha e de determinação da concreta medida da pena disciplinar tem natureza discricionária que se encontra sujeita, por isso, a valorações autónomas da própria Administração, razão pela qual não poderá aí operar o princípio do aproveitamento do acto (assim, por exemplo, o acórdão do Tribunal de Última Instância de 3.3.2021, processo n.º 129/2020).
A nossa posição de princípio vai no mesmo sentido. No entanto, o caso em apreço apresenta especificidades que justificam, ao menos para nós, uma solução diversa daquela. Pelo seguinte.
Devidamente interpretado o acto punitivo contenciosamente impugnado, dele resulta, de um modo evidente, que a infracção disciplinar atinente à violação do dever de comunicação previsto no artigo 16.º, n.º 1 da Lei n.º 2/2011 foi absolutamente desprezada pela Administração no momento da aplicação da sanção disciplinar. Como tal, a invalidade detectada resultante da ocorrência da prescrição em relação a essa infracção não poderá, em coerência, implicar a invalidade daquele acto.
Com efeito, é patente, para um destinatário normal, que a Entidade Recorrida, quando na expressa fundamentação do acto referiu que «a conduta descrita, quer pela sua gravidade, quer pela afronta que constitui para o prestígio da corporação, prejudica de forma grave a dignidade da função e atenta contra a imagem que a população revê nos agentes policiais e nas forças de segurança, como reserva de valores de integridade e adequação social, razão pela qual se torna insustentável a manutenção da relação funcional», teve em vista, exclusivamente, os factos criminosos praticados pelo Recorrente, não sendo fruto de mero acaso a utilização do singular para se referir à «conduta» do mesmo. Foi essa conduta e só essa que justificou a consideração de que a manutenção da relação funcional era insustentável e que, por isso, se justifica uma medida disciplinar de natureza expulsiva.
Isso mesmo é confirmado pela leitura das normas legais expressamente invocadas no acto recorrido para fundamentar a punição disciplinar, concretamente as alíneas f) e n) do n.º 2 do artigo 238.º do EMFSM e a alínea c) do artigo 240.º do mesmo Estatuto.
A alínea f) do n.º 2 do artigo 238.º do EMFSM prevê a prática de forma frustrada, tentada ou consumada crime de furto, roubo, burla, abuso de confiança, peculato, concussão, extorsão, peita, suborno e corrupção, associação de malfeitores, consumo e tráfico de estupefacientes, falsificação de documentos e pertença a sociedade secreta e da alínea c) do artigo 240.º do mesmo Estatuto decorre que a pena de demissão é aplicada ao militarizado que praticar ou tentar praticar qualquer acto previsto nas alíneas c), e), f), g), i), j) e l) do n.º 2 do artigo 238.º.
Mais. A acumulação de infracções não foi sequer considerada como circunstância agravante nos termos previstos na alínea m) do nº 2 do artigo 201.º do EMFSM.
Significa isto, portanto, fora de qualquer dúvida, que a pena de demissão foi aplicada ao Recorrente em virtude, exclusivamente, da prática da infracção disciplinar prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 238.º, ou seja, da prática, sob a forma consumada do crime de burla. A infracção ao n.º 1 do artigo 16.º da Lei n.º 2/2011, não teve, pois, tal como acima afirmámos, qualquer reflexo na decisão punitiva que constitui objecto do presente recurso, ela não teve qualquer relevância causal nessa decisão, não tendo interferido de modo relevante no processo decisório levado a cabo pela Administração e que culminou no acto impugnado. É seguro afirmar, pois, a partir da fundamentação do acto, que, mesmo sem a infracção ao artigo 16.º da Lei n.º 2/2011, o resultado punitivo teria sido exactamente o mesmo, de tal modo que, em rigor, esse resultado não está afectado pelo pressuposto viciado, não se justificando, por isso, a sua anulação (neste sentido, na jurisprudência portuguesa, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13.10.2004, processo n.º 37476, com versão integral disponível online).
Tudo para concluirmos no sentido de que o vício resultante da prescrição do respectivo procedimento disciplinar relativamente à infracção ao disposto no artigo 16.º da Lei n.º 2/2011 é insusceptível de se repercutir de modo invalidante sobre o acto recorrido (no mesmo sentido e também a propósito de um acto que aplicou uma sanção disciplinar de demissão, pode ver-se, na jurisprudência portuguesa, já na vigência, é certo, do novo Código do Procedimento Administrativo que, como sabemos, consagrou no n.º 5 do respectivo artigo 163.º, a previsão expressa de situações de inibição por determinação legal da produção do efeito anulatório não obstante a verificação de vícios do acto, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15.10.2020, processo n.º 02207/10.3BEPRT, com texto integral disponível online e em cujo sumário se pode ler: «tendo em conta que foi aplicada uma pena única de demissão por violação dos deveres de isenção e de zelo e que decorre dos autos que, in casu, a infracção do dever de isenção por si só já daria lugar à demissão, deve manter-se o acto punitivo, na medida em que é possível concluir, a partir do exame da situação concreta, e com inteira segurança, que o acto em causa sempre terias o mesmo conteúdo decisório»).
2.2.
Resta apreciar o segundo dos fundamentos do recurso atinente à escolha da pena disciplinar, em relação à qual o Recorrente afirma ter sido violado o princípio da proporcionalidade.
Não nos parece.
O próprio Recorrente aceita, implicitamente, que a sua conduta inviabilizou a manutenção da relação funcional. É o que resulta da conclusão 16 das suas alegações de recurso, onde pugna, expressamente no sentido de que lhe deveria ter sido aplicada a pena de aposentação compulsiva.
Ora, como é de todos sabido, a escolha da medida disciplinar corresponde ao exercício de um poder discricionário em relação ao qual os poderes sindicantes do tribunal são, como se impõe, limitados. O juiz só pode anular o acto em situações de erro manifesto ou total desrazoabilidade nesse exercício ou violação intolerável dos princípios gerais que regem a actividade administrativa.
Ao tribunal não compete dizer se, no caso, aplicaria ou não a pena disciplinar de demissão. Essa é uma avaliação que cabe exclusivamente à Administração. O papel do Tribunal é outro, é o de concluir se houve erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, nomeadamente, por violação intolerável, flagrante, evidente do princípio da proporcionalidade ou outro (assim, entre outros, Ac. do TUI de 19.11.2014, processo n.º 112/2014 e Ac. do TUI de 5.12.2018, processo n.º 65/2018).
No que especificamente concerne à aferição da eventual violação do princípio da proporcionalidade, de acordo com a metódica judicativo-decisória que tem vindo a ser reafirmada pelo Tribunal de Última Instância, «há que pôr em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto administrativo restritivo ou limitativo e os bens e interesses individuais sacrificados por esse acto, para aferir da proporcionalidade da medida concretamente aplicada. E só no caso de considerar inaceitável e intolerável o sacrifício é que se deve concluir pela violação dos princípios orientadores do exercício de poderes discricionários, tais como da proporcionalidade, da razoabilidade e da justiça» (assim, ainda que a propósito de situação que não é coincidente, Ac. do TUI de 5.12.2018, processo n.º 65/2018).
A nosso ver, considerando a indiscutível gravidade da conduta do Recorrente, traduzida na prática de um crime de burla pelo qual foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, não se pode dizer, de forma alguma, que a Entidade Recorrida tenha agido de forma totalmente desrazoável ou em flagrante e intolerável violação do princípio da proporcionalidade e por isso nos parece que o segundo vício que o Recorrente imputou ao acto recorrido não pode deixar, também ele, de claudicar (no mesmo sentido, a propósito de situação idêntica em que estava igualmente em causa a prática de um crime de burla e a Administração aplicou a pena disciplinar de demissão, veja-se o acórdão do Tribunal de Última Instância de 23/7/2021, processo n.º 89/2021).
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
Concordando integralmente com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido, realçamos apenas que face ao texto do acto impugnado dúvidas não podem haver de que a actuação do Recorrente que esteve subjacente à pena de demissão que lhe foi aplicada foi aquela que levou à sua condenação pelo crime de burla e não qualquer outra, o que se torna evidente no seguinte trecho que novamente reproduzimos:
«- Nas circunstancias de modo descritas no referido libelo acusatório, o arguido, invocando estar impedido de o fazer pessoalmente devido à pendência de um empréstimo ainda não totalmente amortizado, pediu a um amigo que comprasse, para seu uso, dele arguido, uma viatura automóvel com recurso a crédito bancário, cuja propriedade lhe seria transferida após a liquidação das respectivas responsabilidades, o que o amigo fez, contraindo um crédito no valor de HKD 340.000.00 (trezentos e quarenta mil), junto do Banco Weng Hang, em 15 de Outubro. de 2013. Porém, contrariando o compromisso assumido, o arguido não cumpriu as obrigações deixando de depositar o montante relativo a várias prestações. Pelo contrário, em Janeiro de 2016, usando de novo artifício fraudulento, logrou, como vem descrito na acusação, que o amigo lhe transferisse a propriedade da viatura, quando este pensava que o fazia em favor de uma agência que se teria disponibilizado para ajudar a resolver o problema da dívida. Já com a viatura automóvel em seu nome acabaria por vendê-la a um terceiro sem liquidar as suas responsabilidades bancárias, deixando o amigo a braços com uma pesada dívida.
Pela autoria destes factos acabaria por ser condenado no Tribunal Judicial de Base na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pela prática de um crime de Burla p.p. pelo. artigo. 211.º do Código Penal (pag 220 a 230 dos autos), Com a prática dos factos descritos, o arguido A violou de forma grave o dever de aprumo (negrito e sublinhado nossos) na formulação que lhe confere a alínea o) do n.º 2 do artigo 12.º do Estatuto dos Militarizados (EMFSM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, a que corresponde a alínea 14) do. n.º 2 do artigo 92.º da Lei n.º 13/2021 (Estatuto dos agentes das Forças de Segurança)».
São estes factos e não outros que fundamentam a conclusão de que o arguido e agora Recorrente violou de forma grave o dever de aprumo.
A norma legal que fundamenta a aplicação da pena de demissão é a alínea f) do nº2 do artº 238º conjugada com a alínea c) do artº 240º ambas do EMFSM, cujo pressuposto de aplicação no caso em apreço é a prática do crime de burla pelo qual o arguido e agora Recorrente foi condenado.
Relativamente à violação do dever de comunicação do seu divórcio e ter continuado a receber o indevidamente o subsídio de família atribuído aos sogros é apenas uma informação acrescida - a qual apenas se refere depois de se ter indicado qual o dever que o arguido tinha violado como aqueles outros factos antes descritos -, da qual não se retira conclusão alguma e que em bom rigor se dela não se pretendia retirar conclusão alguma melhor teria sido ter sido omitida, mas que, de modo algum inquina a decisão proferida uma vez que este facto não teve qualquer relevância na condenação.
Destarte, aderindo sem reservas à fundamentação constante do Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público e sufragando a solução nele proposta entendemos que o acto impugnado não enferma dos vícios que a Recorrente lhe assaca, sendo de negar provimento ao recurso contencioso.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, negando-se provimento ao recurso mantém-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente fixando a taxa de justiça em 6 UC´s.
Registe e Notifique.
RAEM, 15 de Setembro de 2022
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Álvaro António Mangas Abreu Dantas
938/2021 REC CONT 16