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Processo nº 54/2022 Data: 27.07.2022
(Autos de recurso civil e laboral)

Assuntos : Simulação, (absoluta).
Escritura pública.
Documento autêntico.
Força probatória.
Nulidade.



SUMÁRIO

1. A força probatória plena de um documento autêntico, (cfr., art. 365° e 366° do C.C.M.), não alcança a coincidência entre a “vontade” do declarante e a “declaração” pelo mesmo produzida.
A “escritura” apenas prova que as “declarações” dos contraentes, prestadas perante o notário, foram emitidas.

2. A liberdade contratual, como princípio geral da teoria dos contratos, refere-se ao “se” e “como” do contrato: isto é, se há-de ser celebrado, e como, (ou em que termos), há-de sê-lo, reconhecendo-se às partes a liberdade de celebrar ou não o contrato e de lhe atribuir o conteúdo que entenderem adequado, nele fazendo figurar as cláusulas que julguem correctas e próprias aos seus interesses.

3. A “simulação” integra os seguintes elementos:
- a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
- o acordo entre declarante e declaratário, (“acordo simulatório”, o que, evidentemente, não exclui a possibilidade de simulação nos negócios unilaterais); e,
- o intuito de enganar terceiros.

4. Na simulação é de crucial importância o “pacto simulatório”.
Trata-se de um acordo, (de um pacto), que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso e a regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real.
A esta aparência negocial assim criada pode corresponder um negócio verdadeiro que as partes mantém oculto ou pode também não corresponder qualquer negócio.
No primeiro caso há “simulação relativa”, enquanto no segundo existe “simulação absoluta”, onde só existe o negócio simulado

5. A “simulação absoluta” verifica-se quando os simuladores fingem concluir um determinado negócio, e, na realidade nenhum, negócio querem celebrar.

O relator,

José Maria Dias Azedo


Processo nº 54/2022
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. “A”, (“甲”), A., propôs no Tribunal Judicial de Base, acção declarativa com processo comum na forma ordinária contra B (乙), sua mulher C (丙), e filho do casal, D (丁), (1°, 2ª e 3°) RR., todos com os sinais dos autos.

A final, deduziu os seguintes pedidos:

“1. A titulo principal,
a) ser declarado que o 1.° e 2.ª RR. devem à A. a quantia do capital emprestado a "戊" (em cantonense romanizado "E1", cuja tradução em língua portuguesa é "E'') e juros compostos ao mês à taxa anual de 10% (dez por cento), liquidada à data de 30.04.2019 em RMB8,832,087.87 (oito milhões oitocentos e trinta e dois mil e oitenta e sete reminbis e oitenta e sete cêntimos), a que acrescem os juros compostos ao mês à taxa anual de 10% (dez por cento) vencidos e vincendos, até à data do seu integral pagamento;
b) Serem declarados nulos porque totalmente simulados os negócios de:
b)1. Doação feita pelos 1.° e 2.ª RR. ao 3.° R. do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade da construção, da fracção autónoma designada por "I10", do 10.° andar, para habitação, do prédio, em regime de propriedade horizontal, [Endereço(1)], inscrito na Matriz Predial de Macau sob o artigo n.° XXXXX e descrito sob o n.° XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, com a constituição do regime de propriedade horizontal registada pela inscrição n.° XXXXXF, formalizada por escritura de 22.07.2015, lavrada a fls. XXX do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.° XXXA do [Notário Privado(1)], bem como, ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor do 3.° R. feito sob a inscrição n.° XXXXXXG; e
b)2. Doação feita pelos 1.° e 2.ª RR. ao 3.° R. do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade da construção, da fracção autónoma designada por "19C/V2", da 2.ª cave "19", para lugar de estacionamento, do prédio, em regime de propriedade horizontal, [Endereço(1)], inscrito na Matriz Predial de Macau sob o artigo n.° XXXXX e descrito sob o n.° XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, com a constituição do regime de propriedade horizontal registada pela inscrição n.° XXXXXF, formalizada por escritura de 02.07.2015, lavrada a fls. XXX do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.° XXXA do [Notário Privado(1)], bem como, ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor do 3.° R. feito sob a inscrição n.° XXXXXXG.
2. A título subsidiário, em caso de improcedência dos pedidos principais de simulação dos negócios de doação, serem declarados ineficazes, por impugnação pauliana, na medida necessária à satisfação integral do crédito da A. sobre os 1.° e 2.ª RR., que consta do pedido 1.a), os seguintes negócios:
a) Doação feita pelos 1.° e 2.ª RR. ao 3.° R. do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade da construção, da fracção autónoma designada por "I10", do 10.° andar, para habitação, do prédio, em regime de propriedade horizontal, [Endereço(1)], inscrito na Matriz Predial de Macau sob o artigo n.° XXXXX e descrito sob o n.° XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, com a constituição do regime de propriedade horizontal registada pela inscrição n.° XXXXXF, formalizada por escritura de 22.07.2015, lavrada a fls. XXX do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.° XXXA do [Notário Privado(1)], com registo de aquisição a favor do 3.° R feito sob a inscrição n.° XXXXXXG.
b) Doação feita pelos 1.° e 2.ª RR. ao 3.° R do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade da construção, da fracção autónoma designada por "19C/V2", da 2.ª cave "19", para lugar de estacionamento, do prédio, em regime de propriedade horizontal, [Endereço(1)], inscrito na Matriz Predial de Macau sob o artigo n.° XXXXX e descrito sob o n.° XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, com a constituição do regime de propriedade horizontal registada pela inscrição n.° XXXXXF, formalizada por escritura de 02.07.2015, lavrada a fls. XXX do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.° XXXA do [Notário Privado(1)], com registo de aquisição a favor do 3.° R feito sob a inscrição n.° XXXXXXG.
3. E, conjuntamente, reconhecido o direito à A. de executar os bens em causa, no património do 3.° R, obrigado à restituição, bem como, a praticar todos os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, e declarado o 3.° R, como adquirente de má fé, tudo nos termos e para os efeitos do art. 612.° do C. Civil.
(…)”; (cfr., fls. 92 a 98-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Oportunamente, por sentença de 13.11.2020 do Mmo Juiz Presidente do Tribunal Judicial de Base – e conhecendo-se tão só do “pedido subsidiário” – julgou-se improcedente a acção com a consequente absolvição dos RR.; (cfr., fls. 363 a 371-v).

*

Em sede do recurso que do assim decidido a A. interpôs proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 11.11.2021, (Proc. n.° 403/2021), onde, concedendo-lhe provimento se declarou “nulos os negócios de doação feitos pelos 1º e 2º réus ao 3º réu do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, das fracções autónomas designadas por “I10” e “19C/V2”, melhor identificadas nos presentes autos. (…)”; (cfr., fls. 434 a 448-v).

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Inconformados, trazem agora os RR. o presente recurso para este Tribunal de Última Instância, (cfr., fls. 469 a 481 e 484 a 495), sendo que pela A. foi também interposto “recurso subordinado”; (cfr., fls. 503 a 525).

*

Nada parecendo obstar, sem mais demoras se passa a conhecer.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal Judicial de Base considerou provados os factos seguintes:

“A sociedade A. “甲” (em cantonense romanizado “A1”, cuja tradução em língua portuguesa é “A”), com sede na República Popular da China, [Endereço(2)], é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada, constituída e registada na República Popular da China. (A)
“戊” (em cantonense romanizado “E1”, cuja tradução em língua portuguesa é “E”), é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada, constituída e registada na República Popular da China, aí tendo a sua sede em [Endereço(3)]. (B)
As doações feitas pelos 1.º e 2.º Réus ao 3.º Réu foram feitas pelas escrituras públicas de 22.07.2015, lavrada a fls. XXX do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º XXXA do [Notário Privado(1)], que teve por objecto a fracção autónoma “I10” e de 02.07.2015, lavrada a fls. XXX do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º XXXA do [Notário Privado(1)], que teve por objecto a fracção autónoma “19C/V2”. (C)
A Autora e os 1.º e 2.ª Réus convencionaram na “Carta de Confirmação de Saldo em Dívida”, a fls. 83 a 85 dos autos, que é competente o Tribunal Popular do Distrito de Son Tak da Cidade de Fat San. (D)
No dia 27 de Agosto de 2014, a sociedade A. emprestou à “E” a quantia de RMB5.000.000,00 (cinco milhões de renminbi) que a sociedade A. transferiu por via electrónica para a conta desta Companhia no dia 27.08.2014. (1º)
No mesmo dia 27.8.2014, para proceder ao pagamento, o 1.º R. como representante legal da “E” emitiu o cheque n.º XXXXXXXX, com a data em branco, a sacar da conta n.º XXXXXXXXXXXXXX que tinha no “Banco Comercial e Rural da Cidade de Son Tat”, no valor de RMB5.000.000,00 (cinco milhões de renminbi) a favor da A., “A”. (2º)
No dia 06.04.2017, a A. “A”, a “E”, e os RR. B(乙) e mulher C(丙), celebraram um acordo que denominaram de “Carta de Confirmação de Saldo em Dívida” cuja pública forma se junta a fls. 83 a 85 e se tem por integralmente reproduzido. (5º)
Pela “Carta de Confirmação de Saldo em Dívida”, todas as partes do acordo confirmavam que a “E” havia emprestado da A. “A” no dia 27.08.2014 a quantia de RMB5.000.000,00 (cinco milhões de renminbi), por transferência bancária por via electrónica, que havia assumido pagar à A. no prazo de sete dias (ou seja 05.09.2014), o que ainda não havia cumprido, pelo que, desde a data do empréstimo (i.e. desde 27.08.2014) eram devidos juros compostos ao mês à taxa de 10% (dez por cento) ao ano até ao pagamento integral do empréstimo. (6º)
As partes mais confirmaram que, à data do acordo, i.e. em 06.04.2017, estava em dívida de capital e juros do empréstimo, a quantia de RMB7.172.522,92 (sete milhões cento e setenta e dois mil quinhentos e vinte dois renminbis e noventa e dois cêntimos), sendo RMB5.000.000,00 (cinco milhões de renminbis) o capital emprestado e RMB2.172.522,92 (dois milhões cento e setenta e dois mil quinhentos e vinte dois renminbis e noventa e dois cêntimos) a quantia relativa a juros em dívida, contabilizados até ao dia 31.03.2017. (7º)
No referido acordo a “E” comprometia-se a pagar à A. até ao dia 30.12.2017 a totalidade dessa dívida de RMB7.172.522,92 (sete milhões cento e setenta e dois mil quinhentos e vinte dois reminbis e noventa e dois cêntimos), acrescida dos juros, nos termos acordados até à data do seu integral pagamento. (8º)
Por sua vez, a Parte C, os 1.º e 2.ª RR, assumiram garantir em responsabilidade solidária o pagamento da mesma dívida, pelo prazo de dois anos a contar do termo do prazo para pagamento da dívida pela Parte B (“E”), ou seja, até ao dia 30.12.2019. (9º)
As doações da fracção autónoma “I10” e do lugar de estacionamento “19C/V2” foram feitos com o intuito de retirar do património conjugal dos 1.º e 2.ª RR. os acima referidos bens imóveis a fim de não poderem servir de garantia patrimonial e ser executados pelos credores. (11º)
Os bens imóveis doados - isto é, a fracção habitacional “I10”, e o lugar de estacionamento “19C/V2”, do mesmo prédio descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau - continuaram a ser usados e fruídos pelos 1.º e 2.ª RR. (12º)
Os encargos decorrentes da propriedade dos bens imóveis doados, como as contribuições prediais, rendas do terreno e prestações de condomínio continuaram a ser pagos pelos 1.º e 2.ª RR. (13º)
As doações das fracções autónomas “I10” e “19C/V2” foram realizadas com o fim de prejudicar a A. e impedir a satisfação do seu crédito. (14º)
Os Réus tiveram a intenção de prejudicar a A. e impedir a satisfação do seu crédito. (15º)”; (cfr., fls. 440-v a 442-v).

Do direito

3. Pelos RR. dos presentes autos vem interposto recurso do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância proferido que, como se referiu, declarou “nulos os negócios de doação feitos pelos 1º e 2º réus ao 3º réu do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, das fracções autónomas designadas por “I10” e “19C/V2”, melhor identificadas nos presentes autos. (…)”.

No seu recurso, produzem os (1° e 2ª) RR. B e C as conclusões seguintes:

“1. Evidentemente, a decisão do TSI de incluir o facto referido no quesito 10.º nos factos provados e de julgar simulado o negócio ora em apreço enferma dos vícios de: (i) erro na apreciação dos factos; e (ii) erro na aplicação da lei.
2. Ao praticar a doação, o 1.º réu e a 2.ª ré não tinham qualquer vínculo nem de crédito nem de dívida com a autora.
3. Segundo o quesito 11.º, apesar do intuito dos 2 réus de retirar do património conjugal o bem imóvel em questão ao praticar a doação, para que não pudesse tornar-se garantia patrimonial ou ser executado pelos credores, o acto não foi praticado para escapar exclusivamente à dívida da Autora (pois na altura, os 2 réus não tinham qualquer vínculo nem de crédito nem de dívida com a autora); mais importante ainda é que não se tratava do único intuito dos réus.
4. Quanto referido pelos quesitos 14.º e 15.º é idêntico ao quesito 11.º.
5. O TSI explicou assim por que dar por provado o facto referido no quesito 10.º, "Ao que acresce ainda o facto de que nessas doações, foram os próprios 1º e 2º réus que representaram o donatário, seu filho, por ser este ainda menor de idade, para além de ter provado que, mesmo após a realização dos negócios, os bens imóveis continuaram a ser usados e fruídos pelos 1º e 2º réus, sendo os encargos decorrentes da propriedade dos bens imóveis doados, como as contribuições prediais, rendas do terreno e prestações de condomínio, continuaram a ser pagos pelos 1º e 2º réus, sendo assim, se tudo se mantém inalterado após as doações, haverá alguma razão justificativa para ser feitas aquelas doações? Não a havendo, torna-se ainda mais evidente que o intuito dos negócios de doação é criar uma mera aparência de que aquelas fracções já deixaram de integrar o património conjugal, de modo a prejudicar a autora e impedir a satisfação do seu crédito." (fls. 26, 27 do acórdão recorrido)
6. O 1.º réu e a 2.ª ré assinaram as escrituras públicas de doação em nome do 3.º réu, mas era só porque o 3.º réu era menor. Nos termos legais, assinaram os pais.
7. O bem imóvel em questão era a habitação familiar dos 3 réus e os outros membros da família. Portanto, mesmo depois da doação, era normal que 1.º réu e a 2.ª ré continuassem a usar e a gozar dele.
8. A única fonte económica da família era o 1.º réu e a 2.ª ré. Portanto, era normal que os dois pagassem os impostos decorrentes da doação e as despesas da vida familiar.
9. O objectivo com que o 1.º réu e a 2.ª ré doaram o bem imóvel em questão ao 3.º réu era para oferecer-lhe uma prenda de aniversário dos 16 nos (o 3.º réu nasceu em 13/07/1999) e por considerações da sua vida no futuro (sobretudo para casar-se e criar filhos). Portanto, não é verdade que a doação tenha sido desnecessária ou que não tenha feito sentido.
10. Ao momento da prática da doação, o 1.º réu e a 2.ª ré não tinham qualquer vínculo nem de crédito nem de dívida com a autora. Então não era minimamente possível que a doação praticada pelos dois fosse "fingida".
11. Dando por provado o facto referido no quesito 10.º, então surgirão conflitos com os outros factos provados – sobretudo com o quesito 11.º.
12. De acordo com o facto referido no quesito 11.º, era intenção do 1.º réu e da 2.ª ré remover o bem imóvel do património conjugal, para que não pudesse tornar-se garantia patrimonial ou ser executado pelos credores. Concretizou-se através da "doação".
13. Se a "doação" tivesse sido simulada (quesito 10.º), então os dois réus não teriam visto satisfeito o seu intento (o quesito 11.º).
14. Se é verdade que com a doação do bem imóvel ao 3.º réu, o 1.º réu e a 2.ª ré tinham como intenção (entre outras ainda) fazer com que o bem não pudesse ser garantia patrimonial ou manipulado pelos credores, isso não quer dizer que tenha sido simulada a declaração da vontade dos dois ao praticar a doação.
15. Porque não há nexo de causalidade necessário entre as duas coisas.
16. O objectivo da doação feita pelo 1.º réu e pela 2.ª ré era retirar o bem imóvel em causa do património conjugal. Foi por isso é que chegaram ao seu objectivo através da "doação real".
17. O quesito 10.º tem origem no facto invocado pela autora no art.º 21.º da petição inicial. Dispõe o art.º 335.º, n.º 1 do CC, "Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado". É à autora que cabe o ónus da prova.
18. Durante a audiência de julgamento na primeira instância, a autora não aduziu prova para demonstrar o facto referido no quesito 10.º.
19. Dando por "provado" o facto referido no quesito 10.º, o TSI violou a disposição sobre o ónus da prova.
20. O TUI é competente para apreciar, conforme o proviso referido no art.º 649.º, n.º 2 do CPC, a decisão tomada pelo TSI nos termos do n.º 4 do art.º 629.º do Código de Processo Civil de dar por provado o facto referido no quesito 10.º.
21. Não dever admitir-se dar por provado o facto referido no quesito 10.º.
22. Uma vez eliminado o quesito 10.º dos "factos provados", então dos outros factos provados não resulta demonstrada qualquer divergência entre a vontade real e a declarada dos réus, nem demonstrado qualquer acordo entre os réus para enganar terceiros. Portanto, na doação em apreço, não estão presentes os requisitos do negócio simulado previsto pelo art.º 232.º do CC.
23. No acórdão recorrido do TSI está também um erro na aplicação da lei.
24. É de revogar o acórdão recorrido do TSI e sustentar a decisão da primeira instância.
(…)”; (cfr., fls. 493 a 495 e 76 a 79 do Apenso).

Insurgindo-se também contra o decidido pelo Tribunal de Segunda Instância diz, por sua vez, o (3°) R. D que:

“1. O recorrente discorda do acórdão proferido pelo TSI no presente processo. Salvo o devido respeito, segundo o recorrente, a decisão recorrida enferme dos seguintes vícios:
a) Erro notório cometido pelo TSI na modificação da base instrutória;
b) Erro notório cometido pelo TSI na interpretação e na aplicação do art.º 232.º do CC.
2. No presente processo, segundo o parecer do TSI, como o TJB já deu por provados os factos articulados na base instrutória 10.º, não considerando provados tais factos, existiriam conflitos entre os factos articuladoss nos quesitos 11.º, 14.º e 15.º da base instrutória. O recorrente discorda.
3. Quanto à questão articulada no quesito 10.º da base instrutória, na decisão sobre a matéria de facto o TJB já justificou porque se considerava não provada. Sendo assim, segundo o recorrente, o TJB aprecia livremente as provas na matéria de facto nos termos legais. Não há qualquer desvio, violação da prescrição sobre a eficácia probatória legal ou violação da lei de experiência comum na apreciação das provas por parte do TJB. Então o TSI não pode intervir.
4. Antes de tudo, a autora não aduziu qualquer prova documental nos autos, nem arrolou qualquer testemunha na audiência de julgamento para demonstrar que o 1.º réu e a 2.ª ré tenham doado simuladamente o bem imóvel "10I" e o lugar de estacionamento "19C/V2" ao recorrente (i.e. ao 3.º réu).
5. Com o facto provado C) prova-se que o 1.º réu e a 2.ª ré praticaram a doação ao recorrente através de escritura pública; pode-se também provar a declaração de vontade do 1.º réu e da 2.ª ré.
6. Além disso, o recorrente não concorda que existam conflitos entre o facto articulado no quesito 10.º da base instrutória e nos 11.º, 14.º e 15.º.
7. Na realidade, a doação praticada pelo 1.º réu e pela 2.ª ré ao recorrente, seja enquanto declaração verídica, seja enquanto declaração simulada, reduziria necessariamente os bens do 1.º réu e da 2.ª ré.
8. Igualmente, com a redução dos bens do 1.º réu e da 2.ª ré, tornar-se-ia necessariamente impossível que o objecto doado ficasse a ser garantia da dívida e que fosse exequível pelo credor.
9. Pelo contrário, com a redução dos bens do 1.º réu e da 2.ª ré, não se pode provar directamente que a doação tenha sido simulada. Segundo o recorrente, pode ser que o 1.º réu e a 2.ª ré doaram propositadamente ao recorrente o bem imóvel "10I" e o lugar de estacionamento "19C/V2", mesmo conscientes dos danos a causar ao credor.
10. Tanto mais que o recorrente tem sempre considerado o bem imóvel "10I" e o lugar de estacionamento "19C/V2" como prenda de aniversário dos 16 anos oferecida pelo 1.º réu e pela 2.ª ré para a comemoração da passagem à maioridade. Nunca alguma vez lhe ocorreu dever restituir os proveitos do bem imóvel "10I" e do lugar de estacionamento "19C/V2"ao 1.º réu e à 2.ª ré. O bem imóvel "10I" e o lugar de estacionamento "19C/V2" são livremente disponíveis para o recorrente, que decide quem pode usufruir do bem imóvel "10I" e do lugar de estacionamento "19C/V2".
11. Quanto aos encargos decorrentes do bem imóvel sempre a cargo do 1.º réu e da 2.ª ré, segundo o recorrente, trata-se de um acto generoso por parte do 1.º réu e da 2.ª ré, o qual o recorrente aceita de bom grado.
12. Mas acto generoso por parte do 1.º réu e da 2.ª ré não é capaz de provar que os dois continuem a ser titulares da posse, do direito de fruição e do direito de uso do bem imóvel "10I" e do lugar de estacionamento "19C/V2".
13. Além disso, tendo em conta as provas e o depoimento das testemunhas constantes dos autos, não há qualquer prova ou informação capazes de demonstrar que o 1.º réu e a 2.ª ré continuem a habitar o bem imóvel "10I".
14. Mesmo supondo que 1.º réu e a 2.ª ré continuem a habitar o bem imóvel "10I", não se pode com isso provar a falta de intenção da doação do bem imóvel por parte do 1.º réu e da 2.ª ré, nem a falta de intenção da aceitação por parte do recorrente. A residência de cada um não tem nada a ver com a existência ou a falta da intenção de doar ou de aceitar o bem imóvel.
15. Nos termos do art.º 1188.º, n.º 1 do CCM, somente com o comportamento objectivo de os proprietários originais continuarem a habitar a fracção autónoma mesmo depois da doação do bem imóvel não se pode provar a inexistência do animus da doação ou da aceitação da doação do bem imóvel.
16. Então, segundo o recorrente, existe erro notório na modificação do facto articulado no quesito 10.º da base instrutória para provado por parte do TSI através de presunção, pelo que é de anulá-la.
17. Nos termos do art.º 232.º do CCM, tal como mencionado no acórdão recorrido, os requisitos constitutivos do negócio simulado são: 1) Divergência entre a vontade real e a declaração; 2) Acordo ou concluio entre as partes ‘pactum simulationis’ e; e 3) intenção de enganar terceiros ou o chamado ‘animus decipiendi’.
18. Antes de tudo, a autora não aduziu qualquer prova ao TJB para demonstrar a divergência entre a vontade real e a vontade declarada do recorrente. Depois do conhecimento, o TJB não provou se a aceitação da doação por parte do recorrente tenha sido simulada ou não.
19. Com as informações constantes dos autos, não se pode demonstrar senão a vontade declarada pelo 1.º réu e pela 2.ª ré da doação através da escritura pública. Ao praticarem a doação, os dois ainda não ofereceram garantia à autora, enquanto o recorrente não estava a par das condições financeiras do 1.º réu e da 2.ª ré.
20. Na realidade, como pais do recorrente, o 1.º réu e a 2.ª ré não precisam de indicar ao recorrente os eventuais créditos ou dívidas; o recorrente, como filho, não precisa de conhecer claramente os créditos ou as dívidas dos pais.
21. Apesar de o recorrente ser menor quando o 1.º réu e a 2.ª ré praticaram a doação, o recorrente, já maior, nunca revocou a aceitação da doação, o que quer dizer que a vontade real do recorrente já capaz é aceitar a doação por parte do 1.º réu e da 2.ª ré.
22. Então não se consegue demonstrar a divergência entre a vontade real e a vontade declarada do 1.º réu, da 2.ª ré e do recorrente.
23. Além disso, o então recorrente, menor, era incapaz. Logo, é impossível que o recorrente tenha atingido um pactum simulationis com o 1.º réu e com a 2.ª ré.
24. Mesmo na hipótese de a incapacidade do recorrente ser suprida pelo poder paternal do 1.º réu e da 2.ª ré, não se pode com isso demonstrar a vontade real do recorrente. Não se pode dar por assente o conluio entre o recorrente, o 1.º réu e a 2.ª ré.
25. Além disso, no presente caso não se conheceu da questão de se existir vínculo de dívida entre a autora, o 1.º réu e a 2.ª ré, nem a autora aduziu qualquer sentença que apontasse a existência real dum vínculo de dívida entre a autora, o 1.º réu e a 2.ª ré.
26. Assim sendo, segundo o recorrente, não se pode dar por provado que a vontade comum do 1.º réu, da 2.ª ré e do recorrente tenha sido enganar a autora, com intuito de prejudicar os interesses da autora e de impedir a satisfação do crédito da autora.
27. Até agora, a autora faltou a aduzir qualquer prova para demonstrar a impossibilidade da satisfação do seu crédito; já para não mencionar que mesmo uma suposta anulação do registo da doação entre o 1.º réu, a 2.ª ré e o recorrente não impediria uma nova doação do bem imóvel "10I" e do lugar de estacionamento "19C/V2" ao recorrente pelo 1.º réu e pela 2.ª ré, ou que sejam vendidos a terceiro.
28. Por isso, não estando presentes no acto do recorrente os requisitos legais do negócio simulado previstos pelo art.º 232.º do CC, segundo o recorrente, o TSI aplicou mal a lei.
29. Caso não se concorde com o acima referido, segundo o recorrente, os factos provados na sentença recorrida não bastam para poder-se chegar à conclusão de negócio simulado. É de considerar o acto do recorrente como reserva mental.
30. Desde o início até ao fim, o recorrente nunca chegou a saber de qualquer outra intenção do 1.º réu e da 2.ª ré a não ser a de doação; nem o 1.º réu e a 2.ª ré alguma vez disseram ao recorrente que era para não liquidar a dívida é que se praticava a doação.
31. Ou seja, mesmo na hipótese de o 1.º réu e a 2.ª ré terem enganado intencionalmente o recorrente ao praticar a doação, neste caso, se o juízo entende que a doação praticada pelo 1.º réu e pela 2.ª ré era contrária à vontade real dos dois, então deve ser um caso de reserva mental.
32. Portanto, à luz do art.º 237.º, n.º 1 e n.º 2 do CC, deve ser válida a doação feita entre o 1.º réu, a 2.ª ré e o 3.º réu.
33. Face ao exposto, é de rejeitar totalmente a decisão proferida pelo TSI de declarar nula a doação e de anular o registo predial relacionado.”; (cfr., fls. 477 a 481 e 52 a 58 do Apenso).

Tendo presente o pelos RR., ora recorrentes, alegado em sede das conclusões que se deixaram transcritas, útil se apresenta desde já de ponderar nas “razões” que levaram o Tribunal de Segunda Instância a adoptar a já referida solução da nulidade da “doação” pelos 1° e 2ª RR. efectuada ao 3° R..

Pois bem, (apreciando o então recurso pela A. interposto da sentença do Tribunal Judicial de Base), assim se ponderou no Acórdão agora recorrido:

“Começa a autora ora recorrente por impugnar o teor da alínea C) dos factos assentes, alegando existir deficiência por não constar que as referidas doações foram feitas pelos 1º e 2º réus a seu filho ora 3º réu.
Ora bem, é bom de ver que a alínea C) dos factos assentes reproduziu o teor do artigo 22º da petição inicial, sendo o referido facto considerado provado com base em documento autêntico constante dos autos, nele se encontram especificados os elementos essenciais das doações.
Nestes termos, apesar de a redacção da alínea C) poder ser aperfeiçoada, mas não se vislumbra qualquer deficiência, pelo que nenhuma censura se verifica na elaboração dos factos assentes.
*
Pretende a autora pôr em causa a resposta dada ao quesito 10º da base instrutória, entendendo que, na medida em que foram dados como provados os quesitos 11º, 14º e 15º, há-de retirar necessariamente a ilação que o intuito dos negócios de doação é o de enganar terceiros.
Vejamos.
O tribunal recorrido respondeu ao quesito 10º da seguinte forma:
Quesito 10º - “O 1º R. fingiu, juntamente com a 2ª R., sua mulher, doar a seu filho o 3º R., por conta da quota disponível, as fracções autónomas “I10”, do 10º andar, para habitação, e “19C/V2”, da 2.ª cave “19”, para lugar de estacionamento, do prédio descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau?”, e a resposta foi: “Não provado”.
Entretanto, em relação aos quesitos 11º, 14º e 15º, foram dadas as seguintes respostas:
- “Provado apenas que as doações de fracção autónoma “I10” e do lugar de estacionamento “19C/V2” foram feitos com o intuito de retirar do património conjugal dos 1º e 2º RR. os acima referidos bens imóveis a fim de não poderem servir de garantia patrimonial e ser executados pelos credores.” – resposta ao quesito 11º
- “Provado que as doações das fracções autónomas “I10” e “19C/V2” foram realizadas com o fim de prejudicar a A. e impedir a satisfação do seu crédito.” – resposta ao quesito 14º
- “Provado que os Réus tiveram a intenção de prejudicar a A. e impedir a satisfação do seu crédito.” – resposta ao quesito 15º
Atentas as respostas dadas aos quesitos 11º, 14º e 15º, é bom de ver que as mesmas estão em contradição com a resposta dada ao quesito 10º.
Em boa verdade, o que se pergunta no quesito 10º é saber se as doações realizadas pelos 1º e 2º réus a seu filho o 3º réu foram ou não uma verdadeira transmissão gratuita. Na medida em que foi dado como provado que as doações das fracções autónomas “I10” e “19C/V2” pertencentes aos 1º e 2º réus foram feitas com o intuito de as retirar do património conjugal, a fim de não poderem servir de garantia patrimonial e ser executados pelos credores, bem assim para prejudicar a autora e impedir a satisfação do seu crédito, é bem patente não se tratar de uma verdadeira liberalidade.
Ao que acresce ainda o facto de que nessas doações, foram os próprios 1º e 2º réus que representaram o donatário, seu filho, por ser este ainda menor de idade, para além de ter provado que, mesmo após a realização dos negócios, os bens imóveis continuaram a ser usados e fruídos pelos 1º e 2º réus, sendo os encargos decorrentes da propriedade dos bens imóveis doados, como as contribuições prediais, rendas do terreno e prestações de condomínio, continuaram a ser pagos pelos 1º e 2º réus, sendo assim, se tudo se mantém inalterado após as doações, haverá alguma razão justificativa para ser feitas aquelas doações? Não a havendo, torna-se ainda mais evidente que o intuito dos negócios de doação é criar uma mera aparência de que aquelas fracções já deixaram de integrar o património conjugal, de modo a prejudicar a autora e impedir a satisfação do seu crédito.
Aqui chegados, salvo o devido e mui respeito, há-de julgar provido o recurso nesta parte, alterando-se a resposta dada ao quesito 10º para “Provado”.
Aponta a autora a existência de simulação dos negócios de doação.
Dispõe o n.º 1 do artigo 232.º do Código Civil que há simulação quando “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante”.
Trata-se de uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada, resultante de um acordo entre declarante e declaratário ou qualquer interessado no negócio no intuito de enganar terceiros, dando-se o nome ao acordo referido de «pactum simulationis» ou acordo simulatório (v. Castro Mendes, Teoria Geral, vol. II, ed. A.A.F.D.L., Reimpressão, 148).
Assim, há simulação absoluta quando se verifica cumulativamente os seguintes elementos:
- divergência entre a vontade real e a declaração;
- acordo ou conluio entre as partes – “pactum simulationis”; e
- intenção de enganar terceiros ou o chamado “animus decipiendi”.
Diz-se absoluta a simulação quando as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem nenhum negócio jurídico. Há apenas o negócio simulado e, por detrás dele, nada mais.1
Ao contrário do que acontecia no Código anterior, não é agora exigido o chamado “animus nocendi”, ou seja, o intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei, também designado, na doutrina, por simulação fraudulenta.
No caso vertente, pese embora tenha provado que os 1º e 2º réus celebraram escritura pública de doação das fracções autónomas ao seu filho menor, mas constata-se que a verdadeira intenção dos 1º e 2º réus não é transmitir-lhe gratuitamente os bens imóveis em causa, antes pretenderam criar uma mera aparência de que aquelas fracções já deixaram de integrar o património conjugal, de modo a prejudicar a autora e impedir a satisfação do seu crédito, isto traduz-se numa divergência entre a vontade real e a vontade declarada, tendo os réus agido em conluio e com a intenção de enganar terceiros, especialmente a aqui autora ora recorrente.
Nestes termos, somos a entender que a conduta dos réus integra a figura de simulação absoluta prevista nos termos do n.º 2 do artigo 232.º do Código Civil de Macau, pelo que se julga provido o recurso nesta parte e, em consequência, declarando-se nulos os negócios de doação feitos pelos 1º e 2º réus ao 3º réu do direito de concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, das fracções autónomas designadas por “I10” e “19C/V2”, melhor identificadas nos autos.
(…)”; (cfr., fls. 445-v a 448).

Quid iuris?

Pois bem, temos para nós que nenhuma censura merece o pelo Tribunal de Segunda Instância decidido quanto à referida “nulidade”.

Passa-se a tentar expor este nosso ponto de vista, (necessária não nos parecendo uma grande fundamentação).

Vejamos.

Os ora recorrentes impugnam tanto a “decisão sobre a matéria de facto” pelo Tribunal de Segunda Instância proferida – dando como provada a matéria do “quesito 10°”, pelo Tribunal Judicial de Base considerado não provado – assim como a “decisão de direito” que, como já se referiu, foi no sentido de dar como verificada uma “nulidade” da doação por “simulação absoluta”.

–– No que toca à “decisão de facto” relativamente ao “quesito 10°” – com o seguinte teor: “O 1º R. fingiu, juntamente com a 2ª R., sua mulher, doar a seu filho o 3º R., por conta da quota disponível, as fracções autónomas “I10”, do 10º andar, para habitação, e “19C/V2”, da 2.ª cave “19”, para lugar de estacionamento, do prédio descrito sob o n.º XXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau?”, e que o Tribunal de Segunda Instância acabou por dar por “provado” – cabe consignar que o (mero) facto de a “doação” em questão ter sido efectuada por “escritura pública”, (e como tal, através de “documento autêntico”), em nada obsta à decisão pelo Tribunal de Segunda Instância proferida quanto à “intenção dos doadores”, já que a intervenção do notário no dito negócio (absolutamente) nada assegura quanto a tal aspecto (psicológico, ou subjectivo), limitando-se a confirmar o que lhe foi “declarado”.

Com efeito, a força probatória plena de um documento autêntico, (cfr., art. 365° e 366° do C.C.M.), não alcança a coincidência entre a “vontade” do declarante e a “declaração” pelo mesmo produzida.

Na verdade, a “escritura” apenas prova que as “declarações” dos contraentes, prestadas perante o notário, foram emitidas.

Como no Acórdão deste Tribunal de Última Instância de 10.12.2021, (Proc. n.° 21/2020), já se teve oportunidade de consignar: “A força probatória material da escritura pública não abarca a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas partes”.

Contudo, e ainda que assim seja, cabe dizer que a aludida “matéria” do “quesito 10°” em questão se nos apresenta constituir um juízo “conclusivo”, especialmente, atenta a “questão de direito” a decidir, precisamente, a da existência, ou não, de “simulação”, (aliás, como em nossa opinião o demonstra a própria decisão recorrida que apenas o dá como provado em face do que provado está nos quesitos 11°, 14° e 15°).

Porém, (e independentemente do demais), diga-se, desde já que, ainda que este seja o nosso ponto de vista sobre o referido “quesito 10°”, cremos que mesmo desconsiderando-se a matéria que aí se deu como provada, tal não altera o nosso entendimento sobre a “solução de direito” a que chegou o Tribunal de Segunda Instância, já que, em face da restante matéria de facto, natural e evidente é a “conclusão” que a “doação” em questão não constituiu (nem tão pouco correspondeu à intenção de se fazer) uma “liberalidade”, outro tendo sido o (verdadeiro) “objectivo” que com a mesma se quis alcançar, e, daí, a correcta consideração e decisão quanto à dada como verificada “simulação”, com a consequente “nulidade” do negócio jurídico celebrado, mantendo-se plenamente válidas as considerações pelo Tribunal de Segunda Instância sobre este aspecto tecidas.

Vejamos, (muito não sendo necessário consignar para o demonstrar).

Como sabido é, um dos princípios fundamentais (ou ordenadores) do “Direito das Obrigações” é o da “autonomia privada”, e o da “liberdade contratual”; (cfr., v.g., sobre o tema, o Prof. Manuel Trigo in, “Lições de Direito das Obrigações”, pág. 89 e segs., A. Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 240 e segs., que expressivamente o considera como o “princípio básico” que continua a servir de “trave mestra” da teoria dos contratos, e I. Galvão Telles in, “Direito das Obrigações”, pág. 57 e segs.).

Ora, a dita “liberdade”, como princípio geral, refere-se ao “se” e “como” do contrato: isto é, se há-de ser celebrado, e como, (ou em que termos), há-de sê-lo, reconhecendo-se às partes a liberdade de celebrar ou não o contrato e de lhe atribuir o conteúdo que entenderem adequado, nele fazendo figurar as cláusulas que julguem correctas e próprias aos seus interesses.

Porém, como em tudo na vida, (e como não podia deixar de ser), existem “limites”…

Com efeito, nos termos do art. 273° do C.C.M.:

“1. É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”.

Por sua vez, nos termos do art. 287° do dito C.C.M.:

“Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”.

E, nesta conformidade, prescreve-se, também, no art. 399° do mesmo código, (precisamente sob a epígrafe “Liberdade contratual”) que:

“1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.
2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.

Atento o assim preceituado, e centrando a nossa atenção na questão que nos ocupa, útil se apresenta de aqui recordar as considerações pela Prof. Mafalda M. Barbosa tecidas a título de introdução do seu trabalho sobre a “Falta e vícios da vontade: uma viagem pela jurisprudência”, onde considera o que segue:

“Negócio jurídico é um dos temas centrais do direito privado, mormente do direito civil. Definido comumente como o facto jurídico voluntário ou ato jurídico cujo núcleo essencial é integrado por, pelo menos, uma declaração de vontade tendente à produção de determinados efeitos práticos que se pretende que sejam juridicamente vinculantes2, a categoria encontra nas declarações de vontade (uma ou várias no mesmo sentido, no caso dos negócios jurídicos unilaterais; pelo menos duas de sentido oposto mas convergente, no caso dos contratos) um dos seus elementos essenciais. Tais declarações, por sua vez, são integradas por dois elementos: um elemento externo (traduzido na declaração propriamente dita) e um elemento interno (que consiste na vontade por aquela exteriorizada)3. Em situações normais, estes dois elementos coincidem. Pode, porém, haver casos em que, em vez da desejável sintonia, ocorre um dissídio entre a vontade e a declaração. Noutras hipóteses, vontade e declaração não divergem; contudo, a vontade foi formada de um modo não natural. O que assim se diz, correspondendo a uma lição básica da civilística, identifica dois núcleos problemáticos bem conhecidos dos juristas: o problema das divergências entre a vontade e a declaração, por um lado, e o problema dos vícios da vontade, por outro lado”.

Isto visto, continuemos, sendo agora de atentar que inserido na parte respeitante à “Falta e Vícios da Vontade”, prescreve que o art. 232° do C.C.M. que:

“1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
2. O negócio simulado é nulo”.

E, preceitua também o seu art. 233° que:

“1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.
2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.
3. Para efeitos do número anterior, considera-se suficiente a observância no negócio simulado da forma exigida para o dissimulado, contanto que as razões determinantes da forma do negócio dissimulado não se oponham a essa validade”.

Ora, aquando da redacção do art. 240° do C.C. português, com a mesma redacção do art. 232° do nosso C.C.M., o Prof. Rui Alarcão teceu o seguinte comentário: “(…) pode definir-se a simulação como a «divergência intencional entre a vontade a declaração, procedente de acordo entre o declarante e o declaratário e determinada pelo intuito de enganar terceiros». É a noção que temos por preferível doutrinalmente, e que, embora esteja longe de poder considerar-se pacificamente aceite – sobretudo pelos ataques que têm sido dirigidos à tese da divergência entre a vontade e a declaração – corresponde aos ensinamentos da doutrina tradicional e preponderante designadamente entre nós”; (in “Simulação”, B.M.J. 84°-305, e do mesmo autor, “Do negócio jurídico”, B.M.J. 105°-256).

E sintetizando o conceito de simulação considerava o Prof. Mota Pinto que a mesma integrava os seguintes elementos:
- a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;
- o acordo entre declarante e declaratário, (“acordo simulatório”), o que, evidentemente, não exclui a possibilidade de simulação nos negócios unilaterais; e,
- o intuito de enganar terceiros; (cfr., v.g., António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., pág. 466).

Neste último elemento pode distinguir-se o mero intuito de enganar, mas sem prejudicar, (“animus decipiendi”), que faz apodar a simulação de inocente, e o “animus nocendi”, (de prejudicar terceiros ou de violar norma legal), geradora da simulação fraudulenta.

O Prof. Pedro Pais de Vasconcelos considera, por sua vez, que “na simulação é de crucial importância o pacto simulatório. Trata-se de um acordo, de um pacto, que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso e a regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real. A esta aparência negocial assim criado pode corresponder um negócio verdadeiro que as partes mantém oculto ou pode também não corresponder qualquer negócio”; (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 8ª ed., 2015, pág. 598, podendo-se, também ver Rui Alarcão in, “Simulação”, e “Do Negócio Jurídico”, B.M.J. 84°-305 e 105°-256).

No primeiro caso há “simulação relativa”, enquanto no segundo existe “simulação absoluta”, onde só existe o negócio simulado.

Na relativa, além deste, (que o Prof. Manuel de Andrade apoda de “patente”, “ostensivo”, “decorativo”, “aparente” ou “fictício” – in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 171 e segs.), há um “negócio oculto” (“latente”, disfarçado, “real”), que é o “dissimulado”.

“A simulação absoluta verifica-se quando os simuladores fingem concluir um determinado negócio, e na realidade nenhum negócio querem celebrar”; (cfr., v.g., Henrich Ewald Hörster in, “A Parte Geral do Código Civil Português”, 1992, pág. 536).

No caso, em face da “matéria de facto provada” – cfr., resposta aos “quesitos 11° a 15°” – evidente se nos apresenta que correcta foi a consideração pelo Tribunal de Segunda Instância dirigida à “doação” em causa, pois que tratando-se de um “negócio simulado”, imperativa era a declaração da sua “nulidade”, sendo por isso de se manter a decisão (final) recorrida; (cfr., v.g., André B. G. Simões in, “Os Efeitos da Simulação”).

Dest’arte, e considerando-se que a A., apenas pede a apreciação do seu “recurso subordinado” para o caso da não confirmação do Acórdão recorrido, vista está a solução a adoptar.

Decisão

4. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam negar provimento ao “recurso principal” dos RR., prejudicado ficando o conhecimento do “recurso subordinado” da A..

Custas pelos RR. com taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 27 de Julho de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, pág. 467
2 C. A. Mota PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por A. Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, 378.
3 C. A. Mota PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 414.
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