Processo nº 26/2021 Data: 25.03.2022
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : “Acção de reivindicação”.
Indemnização pela ocupação (indevida) do imóvel.
Caso julgado.
Reposição da fracção na sua configuração original.
Responsabilidade civil.
Dano (futuro).
Sanção pecuniária compulsória.
(Junção de documentos em sede de alegação do recurso).
SUMÁRIO
1. Se da matéria de facto provada resultar que o R. ocupava o imóvel reivindicado de forma “legítima” porque sobre o mesmo lhe assistia um “direito de retenção” judicialmente declarado com trânsito em julgado, adequado não é que tenha que pagar qualquer indemnização pela referida “ocupação”.
2. Não existe “responsabilidade civil” sem a ocorrência (ou existência) de um “facto ilícito” – no caso, o eventual “incumprimento da obrigação de restituição da fracção na sua configuração original” – do qual decorra a existência de “danos indemnizáveis”.
3. O “dano” é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
Os “danos” podem distinguir-se, (como a própria lei o admite no art. 558° do C.C.M.), em “danos presentes” e “danos futuros”, “consoante se tenham já verificado ou não no momento que se considera, designadamente à data da fixação da indemnização”.
Os chamados danos “futuros” dividem-se em “previsíveis” e “imprevisíveis”, estando-se perante os primeiros quando se pode prognosticar, conjecturar com antecipação ao tempo em que acontecerá, a sua ocorrência.
No caso contrário, (quando o homem medianamente prudente e avisado, o “bónus pater família”, o não prognostica), o dano é “imprevisível”, não sendo assim indemnizável (antecipadamente).
4. A “responsabilidade civil” distingue-se da “responsabilidade penal”, que pode ensejar sanção ainda que não ocorra dano efetivo, (como ocorre nos crimes de mera conduta ou simples atividade), não bastando a mera violação de um eventual direito, impondo-se, como condição sine que non, que essa mesma violação cause “dano (efectivo)”.
Atento o direito vigente, e inversamente do que ocorre na esfera penal, o dano sempre será elemento essencial e inafastável na configuração da responsabilidade civil, não havendo responsabilidade civil por “tentativa”, (ainda que a conduta tenha sido “dolosa”), pois que, “indemnização sem dano”, importaria “enriquecimento ilegítimo”, sendo o “dano” não somente o seu “facto constitutivo, mas determinante do próprio dever de indemnizar”.
5. O art. 333° do C.C.M. não confere um “poder-dever” ao Tribunal em matéria de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 26/2021
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), A., propôs no Tribunal Judicial de Base acção declarativa de condenação com processo ordinário contra B (乙) e a sua esposa C (丙), 1° e 2ª RR., todos com os sinais dos autos.
Alegou, nuclearmente, que:
- em 10.03.1999, a “D” celebrou dois contratos-promessa de compra e venda com o 1° R., prometendo-lhe vender as fracções autónomas “I9” e “H9” do edifício “[Edifício]”;
- por escritura pública de compra e venda de 18.12.2007, a A. adquiriu à aludida “D” a fracção autónoma “I9” do dito edifício “[Edifício]”, pelo preço de MOP$1.100.000,00;
- em 15.03.2011, a referida “D” instaurou uma “acção especial de consignação em depósito” contra o 1° R. – n.° CV3-11-0045-CPE – para se livrar da obrigação de celebrar o contrato definitivo de compra e venda sobre as identificadas fracções;
- na sequência desta acção, os RR. moveram uma acção declarativa na forma ordinária – n.° CV1-12-0006-CAO – contra, entre outros, a aludida “D” e a A., pedindo a declaração de nulidade do negócio jurídico de compra e venda entre estes celebrado e a execução específica do contrato-promessa com aquela acordado, ou a sua resolução, cumulando ainda um pedido de indemnização e de reconhecimento do direito de retenção sobre as aludidas fracções autónomas, (tendo a A. reconvindo com a pretensão de lhe ser reconhecido o seu direito sobre a fracção autónoma “I9” e de lhe ser entregue, com o pagamento a seu favor de uma indemnização por ocupação indevida pelo 1° R.);
- por sentença transitada em julgado em 05.06.2017, proferida na referida acção declarativa, decidiu-se:
․condenar a “D” a pagar ao 1° R. a indemnização no valor de HKD$500.000,00 e HKD$10.000.000,00, correspondente à indemnização pelo incumprimento dos contratos sobre as fracções autónomas “I9” e “H9”;
․reconhecer ao 1° R. o direito de retenção sobre as duas fracções autónomas; e,
․reconhecer à A. a titularidade do direito propriedade da fracção autónoma “I9”.
- em 21.07.2017, e nos atrás já aludidos “autos de consignação em depósito” – n.° CV3-11-0045-CPE – proferiu-se decisão em que se julgou válido o “depósito” relativo à fracção autónoma “I9”, declarando-se extinta a obrigação resultante do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda assim como a extinção do direito de retenção do 1° R. sobre a mesmo fracção “I9”.
Nesta conformidade, concluindo que o “direito de retenção do 1° R. sobre a dita fracção já se encontrava extinto com efeitos a partir de 09.09.2011”, e que a ocupação da mesma pelos RR. era assim ilegítima desde esta data, pediu, a final, que lhe fosse:
“(i) Reconhecido o direito de propriedade sobre a fracção “I9” ora reivindicada;
(ii) Ordenada a restituição da fracção “I9”;
(iii) Condenados os RR., no pagamento do valor (necessário à reposição da fracção “I9” na sua configuração original) que se vier a apurar em liquidação de sentença;
(iv) Condenados os RR. no pagamento de uma indemnização pelo dano da privação do uso da fracção “I9” incorrido desde 9/09/2011 até 31/1212017, no valor de MOP 768.700,00, acrescido dos juros legais vincendos desde a citação até à data da efectiva restituição do imóvel livre de pessoas e bens, ou subsidiariamente, no valor que for fixado nos termos do disposto no art.° 560.°, n.° 6 do Código Civil;
(v) Condenados os RR. no pagamento de uma indemnização pelo dano futuro da previsível continuação da privação do uso da fracção no valor correspondente ao dos rendimentos que ela poderia ter produzido, desde 1 de janeiro de 2018 até à data da efectiva restituição da coisa ora reivindicada livre de pessoas e bens, a fixar nos termos do artigo 558/2 do Código Civil, acrescido dos juros legais vincendos desde a citação até integral pagamento;
(vi) Condenados os RR. no pagamento à Autora da quantia de MOP$1000.00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento da decisão que ordenar a restituição da fracção ora reivindicada; e
(vii) Condenados os RR. em custas e procuradoria condigna, com as legais consequências”; (cfr., fls. 2 a 10-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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O processo seguiu os seus normais termos com a contestação dos RR., (cfr., fls. 195 a 198-v), e réplica da A., (cfr., fls. 284 a 287), elaborando-se, oportunamente, “despacho-saneador”, (onde se julgou improcedente a excepção de “caso julgado” pelos RR. suscitada; cfr., fls. 289 a 290-v), e, após julgamento, proferiu a Mma Juiz Presidente do Colectivo sentença, onde, na parcial procedência da acção intentada decidiu:
“- Condenar os Réus B e C a reconhecer a Autora A como dona e legítima proprietária da fracção autónoma sita na [Endereço], Edifício [Edifício], 9º andar “I”;
- Condenar os mesmos Réus a entregar a referida da fracção autónoma à Autora;
- Condenar os Réus a pagar à Autora uma indemnização, cujo valor relegar para a liquidação, pela ocupação da fracção desde 13 de Junho de 2019 até à efectiva restituição da fracção autónoma à Autora.
- Absolver os Réu dos restantes pedidos formulados pela Autora.
- Absolver a Autora do pedido de litigância de má fé e dos restantes pedidos formulada pelos Réus;
(…)”; (cfr., fls. 442 a 458).
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Em sede do recurso que do assim decidido interpôs a A., (cfr., fls. 474 a 506), proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão de 17.09.2020, (Proc. n.° 511/2020), com o qual se decidiu confirmar (totalmente) a sentença recorrida; (cfr., fls. 549 a 570-v).
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Ainda inconformada, traz a A. o presente recurso, (cfr., fls. 580 a 611).
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Após resposta dos RR. às alegações da A., (cfr., fls. 617 a 641-v), vieram os autos a esta Instância.
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Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como provados os seguintes factos (que foram confirmados pelo Acórdão do Tribunal de Segunda Instância e que agora não vem postos em causa):
“- A Autora é a proprietária da fracção designada por “I9” do prédio descrito sob o nºXXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, por a ter adquirido por escritura pública de compra e venda de 18/12/2007, lavrada a fls. 28 do Livro de XXX do [Notário Privado]. (alínea A) dos factos assentes)
- O competente registo foi lavrado na Conservatória do Registo Predial a favor da A, ora a Autora, conforme inscrição n.ºXXXXXXG. (alínea B) dos factos assentes)
- A Autora tomou conhecimento que a referida fracção se encontrava ocupada pelos Réus, comunicou-lhes que deveriam abandoná-la, deixando-a livre e desocupada. (alínea C) dos factos assentes)
- Os Réus recusaram-se até hoje. (alínea D) dos factos assentes)
- A “D” (doravante abreviadamente designado por D1), e o 1º Réu tinham celebrado dois contratos-promessa em 10/03/1999, em que aquela prometeu vender a este as fracções autónomas designadas por “I9” e “H9”, do Ed. [Edifício]. (alínea E) dos factos assentes)
- Em 15/03/2011, a D1 instaurou uma acção especial de consignação em depósito contra o ora 1º Réu para se se livrar da obrigação de celebrar o negócio definitivo de compra e venda das referidas fracções do Ed. [Edifício] (cfr. doc. de fls. 29 a 31). (alínea F) dos factos assentes)
- Na referida acção especial de consignação em depósito distribuída no Tribunal Judicial de Base sob o n.ºCV3-11-0045-CPE, a D1 formulou os seguintes pedidos:
i) Deferir que seja depositado pela requerente o montante de MOP722.400,00 na entidade responsável pela Caixa Geral do Tesouro do Território, e que seja emitida a guia de pagamento, para o pagamento de toda a dívida e indemnização resultante do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda relativo à fracção autónoma H9;
ii) Resolver o referido contrato-promessa de compra e venda relativo à fracção autónoma H9;
iii) Resolver o direito de retenção quanto à aludida fracção autónoma H9;
iv) Deferir que seja depositado pela requerente o montante de MOP515.750,00 na entidade responsável pela Caixa Geral do Tesouro do Território, e que seja emitida a guia de pagamento, para o pagamento de toda a dívida e indemnização resultante do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda relativo à fracção autónoma I9;
v) Resolver o referido contrato-promessa de compra e venda relativo à fracção autónoma I9;
vi) Resolver o direito de retenção quanto à aludida fracção autónoma I9;
vii) Além disso, requer a citação dos credores para, querendo, contestar no prazo de 30 dias; e
viii) Quando o credor contestar, caber-lhe-á pagar todas as custas. (alínea G) dos factos assentes)
- Em 09/09/2011, a D1 depositou a indemnização no valor total de MOP$1.238.150,00 na entidade responsável para pagar o sinal em dobro de HKD$500.000,00 (MOP$515.750,00) resultante do não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda relativo à fracção “I9” juntamente com o sinal em dobro de HKD$700.000,00 (MOP$722.400,00) resultante do não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda relativo à fracção “H9”. (alínea H) dos factos assentes)
- Por causa do referido processo n.ºCV3-11-0045-CPE, os ora Réus B e C propuseram uma acção declarativa com processo comum na forma ordinária em 26/01/2012, contra:
․D;
․I;
․A, a ora Autora;
․G; e
․F. (alínea I) dos factos assentes)
- Na referida acção declarativa distribuída no Tribunal Judicial de Base sob o n.ºCV1-12-0006-CAO, os ora Réus B e C, ali AA., formularam os seguintes pedidos:
1. Julgarem-se nulas e de nenhum efeito, por serem absolutamente simulados, as seguintes compras e vendas celebradas,
a. Por escritura de 04/06/1999, lavrado a fls. 12 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nºXX do NºXX do [Notário Privado(2)], pela qual a 1ª R. declarou vender ao 2º R., a fracção autónoma “I9”, do prédio descrito sob o nºXXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, pelo preço de MOP$862.640,00 (oitocentos e sessenta e duas mil seiscentas e quarenta patacas);
b. Por escritura de 18/12/2007, lavrado a fls. 28 do Livros de Notas para Escrituras Diversas nºXXX do [Notário Privado], pela qual o 2º R. I, representado por seu procurador H, declarou vender à 3ª R., a fracção autónoma “I9”, do prédio descrito sob o nºXXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, pelo preço de MOP$1.100.000,00 (um milhão e cem mil patacas);
c. Por escritura de 05/12/2000, lavrado a fls. 40 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nºXX do [Notário Privado(3)], pela qual a 1ª R. declarou vender ao 4º R., G, as fracções autónomas “A5”, “C5”, “E5”, “F5”, “G5”, “H5”, “J5”, “K5”, “L5”, “F8”, “L8”, “C9”, “D9”, “E9”, “F9”, “G9”, “H9”, “K9” e “H16”, todos do prédio descrito sob o nºXXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, sendo o preço declarado aí indicado relativamente à fracção “H9” de MOP$651.200,00 (seiscentas e cinquenta e um mil e duzentas patacas), só na parte que incide sobre esta última fracção autónoma;
d. Por escritura de 28/02/2001, lavrado a fls. 143 do Livro de Notas para Escrituras Diversas nºX do [Notário Privado(4)], pela qual o 4º R., G, representado por seu procurador H, declarou vender à 5ª R., “F”, a fracção autónoma “I9”, do prédio descrito sob o nºXXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, pelo preço de MOP$800.000,00 (oitocentas mil patacas);
2. Ordenar-se o cancelamento na Conservatória do Registo Predial de Macau dos registos de aquisição que têm por causa as referidas compras, simuladas, designadamente, os efectuados mediante as inscrição nºXXXXXF (a favor do 2º R.), nºXXXXXXG (a favor do 3ª R.), nºXXXXXG (a favor do 4º R.) na parte que incide sobre fracção autónoma “H9” do prédio descrito sob o nºXXXXX, e nºXXXXXXG (a favor da 5ª R.) e, bem assim, de todos e quaisquer registos que porventura hajam sido feitos, posteriormente e na sequência daqueles, sobre as fracções autónomas “H9” e “I9” do prédio descrito sob o nºXXXXX;
3. Emitir-se sentença constitutiva que, produzindo os efeitos da declaração negocial das partes, declare vendidas pela 1ª R. ao 1º A., pelos preços já totalmente pagos de HKD$350.000,00 (trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong) e HKD$250.000,00 (duzentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong), a propriedade das fracções autónomas designadas por “H9” e “I9”, ambas do prédios, nos [Endereço(2)], inscrito na Matriz Predial do Concelho de Macau sob o artigo nºXXXXX e descrito sob o nºXXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, com a constituição do regime de propriedade horizontal registado pela inscrição nºXXXX do Livro F-XXK;
4. Condenar-se os 1º a 5º RR. no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais de MOP$717.444,00 (setecentas e dezassete mil quarenta e quatro patacas [= MOP$417.444,00 + MOP$300.000,00])
Subsidiariamente, para o caso de não se considerar provado e procedente o pedido de simulação absoluta das transmissões das fracções:
5. Declarar resolvidos os contratos-promessa de compra e venda celebrados em 10/03/1999 entre a 1ª Ré e o 1º A., pelos quais aquela prometeu vender a este, as fracções autónomas designadas por “H9” e “I9”, do Ed. [Edifício], pelos preços de, respectivamente, HKD$350.000,00 (trezentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong) e HKD$250.000,00 (duzentos e cinquenta mil dólares de Hong Kong), pagos na totalidade no momento da celebração e subscrição desses contratos;
6. Condenar a 1ª Ré ao pagamento de uma indemnização pela impossibilidade faltosa de cumprimento no valor de MOP$17.853.600,00 (dezassete milhões oitocentos e cinquenta e três mil e seiscentos patacas);
7. Sempre reconhecendo o direito de retenção do 1º A. no que respeita às fracções autónomas “H9” e “I9”, do prédio descrito sob o nºXXXXX na Conservatória do Registo Predial de Macau, para garantia dos seus direitos de crédito (cfr. doc. de fls. 34 a 43). (alínea J) dos factos assentes)
- A 3ª Ré E do processo n.ºCV1-12-0006-CAO, ora Autora, contestou e reconveio, pedindo que fosse declarada como proprietária da fracção “I9” e a condenação dos AA./Reconvindos a reconhecer-lhe o seu direito de propriedade, bem como a entregar-lhe a fracção em causa livre de pessoas e bens e ainda a pagar-lhe uma indemnização no valor de MOP$767.040,00, acrescida do valor de MOP$15.040,00 por cada mês que os Reconvindos permanecessem a ocupar a fracção até à sua entrega a contar de Abril de 2012. (alínea K) dos factos assentes)
- Entretanto no processo n.ºCV3-11-0045-CPE, o Tribunal considerou que a decisão do processo n.ºCV3-11-0045-CPE estava dependente da sorte dos autos de CV1-12-0006-CAO, pelo que suspendeu os autos CV3-11-0045-CPE até ao trânsito em julgado dos autos de CV1-12-0006-CAO. (alínea L) dos factos assentes)
- Na sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base em 27/04/2015 no processo n.ºCV1-12-0006-CAO, o Tribunal Judicial de Base julgou a acção parcialmente procedente porque provada e em consequência:
․Condena-se a 1ª Ré D, a pagar ao 1° Autor B a quantia de MOP$17.819.000,00 (equivalente a HKD$17.300.000,00);
․Reconhece-se o direito de retenção do 1° Autor B quanto às fracções “H9” e “I9” melhor identificado nos autos;
․Absolvem-se os Réus dos demais pedidos.
Quanto à reconvenção julgando-se a mesma parcialmente procedente por parcialmente provada decide-se:
․Reconhecer a 3ª Ré titular do direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção da fracção autónoma designada pela letra “I9” melhor identificada nos autos e em consequência condena-se o 1° Autor a reconhecer àquele como titular do indicado direito;
․Julga-se improcedente o pedido de restituição da fracção autónoma designada pela letra “I9”, bem como o pedido de condenação do 1° Autor no pagamento de indemnização, indo este absolvido dos mesmos. (alínea M) dos factos assentes)
- A parte decisória constante da referida sentença que reconheceu a ora Autora como titular do direito à concessão por arrendamento e propriedade de construção da fracção autónoma designada pela letra “I9” melhor identificada nos autos e em consequência condenou o B a reconhecê-la como titular desse direito já transitou em julgado por nenhuma das partes nela vencidas a terem impugnado nas suas alegações de recurso. (alínea N) dos factos assentes)
- O 1º Autor (ora 1º Réu), a 1ª Ré e a 3ª Ré (ora Autora) do processo n.ºCV1-12-0006-CAO interpuseram recursos da sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base em 27/04/2015. (alínea O) dos factos assentes)
- Interposto recurso da sentença do processo n.ºCV1-12-0006-CAO pela “D” e “F”, o Tribunal de Segunda Instância, por Acórdão de 16 de Junho de 2016, decidiu, além do mais:
․Revogar parcialmente a sentença recorrida;
․Condenar a D a pagar a 1° Autor B (ora Réus) a quantia equivalente ao sinal em dobro, relativamente à fracção “I9” e ao valor de fracção “H9”, no momento em que ela foi vendida ao 4° R., com dedução do preço convencionado, e devendo ser restituído o sinal e quantias entregues pelo promitente-comprador, valor a apurar em liquidação de execução de sentença, se o valor desse dano objectivamente determinado for superior ao valor do sinal em dobro, sendo este o valor devido se o valor da valorização/desvalorização for inferior;
․Manter o reconhecimento do direito de retenção do 1° Autor B quanto às referidas fracções “H9” e “I9” (doc. 10). (alínea P) dos factos assentes)
- Recorrem o B e C para o Tribunal de Última Instância, pedindo, tal como decidiu a sentença de 1ª instância, a condenação da 1ª Ré D a pagar a 1º Autor B a quantia de MOP$17.819.000,00, equivalente a HKD$17.300.000,00. (alínea Q) dos factos assentes)
- Através do acórdão n.º5/2017 proferido em 30/05/2017 pelo Tribunal de Última Instância, concedem parcial provimento ao recurso:
․Confirmam o acórdão recorrido na parte em que condenou a 1ª Ré, D, a pagar ao 1° Autor, B, a quantia equivalente ao sinal em dobro relativamente à fracção I9;
․Revogam o acórdão recorrido na parte atinente à fracção H9, condenando a 1ª Ré, D, a pagar ao 1° Autor, B, a quantia de HKD$10.000.000,00 (dez milhões de dólares de Hong Kong). (alínea R) dos factos assentes)
- O acórdão n.º5/2017 proferido em 30/05/2017 pelo Tribunal de Última Instância transitou em julgado em 5 de Junho de 2017. (alínea S) dos factos assentes)
- Em 21/07/2017, na acção da consignação de depósito n.ºCV3-11-0045-CPE, relativo à fracção “I9”, o Tribunal Judicial de Base decidiu:
․Julgar válida a consignação em depósito, por parte da requerente, relativa à fracção “I9”;
․Declarar a extinção da obrigação de indemnização resultante do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda da fracção “I9”;
․Declarar a extinção do direito de retenção de que o requerido eventualmente goza pelo incumprimento do contrato-promessa de compra e venda da fracção “I9”. (alínea T) dos factos assentes)
- Em 30/06/2017, o B executou a decisão que condenou a ora Autora “D” a pagar-lhe o sinal em dobro resultante do não cumprimento do contrato-promessa de compra e venda relativo à fracção “I9”. (alínea U) dos factos assentes)
- B havia interposto recurso da decisão proferida na CV3-11-0045-CPE que julgou extinto o direito de retenção. (alínea V) dos factos assentes)
- Segundo as plantas do projecto final de arquitectura e de estrutura das fracções “I9” e “H9”, tratam-se de duas fracções autónomas independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do condomínio. (alínea W) dos factos assentes)
- Os Réus juntaram as duas fracções numa só. (alínea X) dos factos assentes)
- A fracção “I9” tem o seu valor locativo (de mercado) adiante discriminado por ano:
․MOP$7.000,00 por mês no ano 2011;
․MOP$7.700,00 por mês no ano 2012;
․MOP$9.200,00 por mês no ano 2013;
․MOP$10.000,00 por mês no ano 2014;
․MOP$12.100,00 por mês no ano 2015;
․MOP$10.900,00 por mês no ano 2016; e
․MOP$12.000,00 por mês no ano 2017. (alínea Y) dos factos assentes)
- À data da propositura desta acção, a referida fracção se encontrava penhorada nos autos de Execução Sumária CV1-12-0006-CAO-C, pois a penhora sobre a fracção foi registada pela inscrição n.ºXXXXXF, determinada pela Ap. 163 de 18/07/2017. (alínea Z) dos factos assentes)
- Havendo sido constituído como depositário da fracção penhorada “I9” nesses autos de execução o R. B, o que determina que a fracção lhe havia sido entregue em depósito pelo tribunal. (alínea AA) dos factos assentes)
- Os RR. com a instauração da presente acção determinaram que os RR. se constituíssem na obrigação de pagar à sua mandatária a título de honorários de advogado a quantia de MOP$50.000,00. (alínea BB) dos factos assentes)
- Os RR. não se limitam a reter a fracção no exercício do direito de retenção que a lei lhe confere para garantia do pagamento do que lhe é devido pela 1ª Ré, antes a continuando a fruir, fazendo dela a sua habitação ou residência normal. (alínea CC) dos factos assentes)”; (cfr., fls. 443-v a 449 e 557 a 561-v).
Do direito
3. Como resulta do que se deixou relatado, vem interposto recurso do Acórdão nestes autos pelo Tribunal de Segunda Instância proferido que confirmou, in totum, a sentença do Tribunal Judicial de Base, com a qual, e como atrás se explicitou, julgou parcialmente procedente a “acção de reivindicação” pela A., ora recorrente, (aí) proposta; (no que toca à “natureza”, “objecto” e “fins” da acção de reivindicação, cfr., v.g., o Ac proferido no Proc. n.° 15/2022, da mesma data deste).
E, como a própria recorrente o confirma, com o presente recurso vem a mesma impugnar:
“- o julgamento da questão do momento a partir do qual é devida a indemnização pela ocupação indevida da fracção autónoma “I9” por parte dos RR; e a,
- absolvição destes dos pedidos de condenação no pagamento à ora recorrente:
i) do valor necessário à reposição da fracção “I9” na sua configuração original; e,
ii) da quantia de MOP$1000.00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso no cumprimento da decisão que ordenasse a restituição da fracção reivindicada”; (cfr., fls. 585).
Assim, (e ainda que abreviadamente) identificadas as “questões” trazidas à apreciação deste Tribunal de Última Instância, vejamos que solução adoptar.
3.1 Antes porém de se passar à apreciação das ditas “questões”, adequado se apresenta de decidir de uma pretendida “junção de documentos”.
Vejamos.
Com a resposta às alegações de recurso juntaram os RR., ora recorridos, “6 documentos”; (cfr., fls. 642 a 683-v).
Sobre tal “junção”, diz a A., ora recorrente, que a mesma não é de admitir; (cfr., fls. 689 a 690-v).
Ponderando sobre o teor dos referidos “6 documentos”, cremos que pela sua inadmissibilidade se terá de decidir.
Com efeito, nos termos do art. 648° do C.P.C.M., à situação do presente recurso (especialmente) aplicável:
“Com as alegações podem juntar-se apenas documentos supervenientes, sem prejuízo da inalterabilidade da matéria de facto”.
Pronunciando-se sobre a matéria, considera V. Lima que:
“No recurso para o TUI, a junção de documentos é mais restritiva que no recurso para o TSI. Com as alegações, só se podem juntar documentos supervenientes, sem prejuízo da inalterabilidade da matéria de facto (artigo 648.°), visto que o TUI, ao contrário do TSI, não aprecia matéria de facto, mas apenas de direito.
São supervenientes os documentos de que a parte não dispunha à data em que se iniciou, no TSI, a fase do julgamento, isto é quando o processo foi com vista ao primeiro adjunto, uma vez que no recurso para o TSI as partes podem juntar documentos supervenientes até se iniciarem os vistos aos juízes (artigo 616.°, n.° 2).
O momento até ao qual se podem juntar os documentos é à apresentação das alegações.
No mais, aplicam-se as regras descritas no regime comum”; (in “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., C.F.J.J., 2018, pág. 740 a 741, podendo-se, também ver, L. Freitas e A. Mendes in, “C.P.C. Anotado”, Vol. 3, Tomo I, pág. 179).
In casu, (e embora se compreendam os motivos dos RR.), sem esforço se conclui que a pretendida “junção” não se mostra em consonância com as necessárias “circunstâncias” e “pressupostos” para se ter como admissível, havendo que se decidir em conformidade.
Necessárias não se apresentando mais considerações sobre a aludida “junção de documentos”, avancemos.
3.2 Do “recurso”.
–– Debrucemo-nos agora sobre as “questões” pela A., ora recorrente, colocadas no seu recurso, começando pela primeira, que diz respeito ao “momento a partir do qual é devida a indemnização pela ocupação indevida da fracção autónoma “I9” por parte dos RR”.
Pois bem, no intuito de se tentar proporcionar um correcto enquadramento da questão que vem colocada, atentemos para já no seguinte resumo elaborado pelo Tribunal Judicial de Base, (do qual, em parte, se socorreu o Tribunal de Segunda Instância):
“Sobre o direito de propriedade da fracção autónoma por parte da Autora e a ocupação da fracção pelos Réus, não houve qualquer dissídio entre as partes, pois à Autora já é reconhecido o seu direito sobre a fracção autónoma e ao 1.º Réu é reconhecido o direito de retenção, já por sentença transitada em julgado, proferida no processo CV1-12-0006-CAO que intervieram ambas as partes.
(…)
Da factualidade apurada, tem o seguinte acervo fáctico:
O 1.º Réu tinha celebrado, em 10/03/1999, contrato-promessa com a D, prometendo comprar a fracção autónoma “I9”.
Entretanto, a D instaurou em 15/03/2011 uma acção especial de consignação em depósito, processo n.º CV3-11-0045-CPE, contra o 1º Réu para se ver livre da obrigação de celebrar o negócio definitivo de compra e venda das duas fracções acima citadas e depositou, em 09/09/2011 a indemnização no valor total de MOP$1.238.150,00, correspondente ao valor dos sinais em dobro na aquisição das duas fracções pago pelo 1.º Réu.
Em reacção à pretensão da D, o 1º Réu instaurou uma acção declarativa processo n.º CV1-12-0006-CAO contra a D e a Autora, entre outros, com pretensão de ser reconhecido o direito de propriedade sobre as duas fracções autónomas, ou subsidiariamente, de obter o valor indemnizatório por causa do incumprimento definitivo da promitente-vendedora com garantia de direito de retenção sobre as duas fracções.
Face da instauração da acção declarativa pelo 1º Réu, foi ordenada a suspensão da instância do processo CV3-11-0045-CPE até ao trânsito em julgado da decisão final daquela acção.
Pela sentença final, transitada em julgado em 5 de Junho de 2017, proferida no processo CV1-12-0006-CAO, ao 1.º Réu foi reconhecido o direito de indemnização no valor de HKD$500.000,00 resultante do incumprimento do contrato-promessa que tem por objecto a fracção autónoma “I9” e o direito de retenção sobre a mesma fracção autónoma.
Com a certeza do valor indemnizatório derivado do incumprimento definitivo do contrato-promessa, o depósito feito pelo promitente-vendedor foi julgado válido e foi declarada, simultaneamente, a extinção do direito de retenção em relação à fracção autónoma “I9” por decisão proferida em 21 de Julho de 2017 no referido processo.
Segundo os factos considerados provados nesses autos, o 1.º Réu, no momento da celebração do contrato-promessa, pagou a totalidade do preço e a ele foi entregue a fracção autónoma em causa. Por causa disso, é-lhe reconhecido o direito de retenção da referida fracção.
Sendo titular do direito de retenção, assiste ao 1º Réu o direito de deter a fracção autónoma, até que seja paga a indemnização decorrente do incumprimento definitivo do contrato-promessa, tendo ele título justificativo de não restituição da coisa.
Entretanto, como se refere acima, o promitente-vendedor já moveu uma acção de consignação de depósito na qual foi depositada a quantia correspondente ao dobro do sinal pago pelo 1º Réu para efeito da resolução do contrato-promessa.
Com a declaração da extinção do direito de retenção, deixará o 1º Réu de ter razão de deter, legitimamente, a mencionada fracção autónoma.
Assim, parece assistir razão à Autora a exigir aos Réus a restituição da fracção.
Aliás, reparamos que tal decisão que julga a extinção do direito de retenção não se encontra transitada em julgado, por haver sido interposto recurso pelo 1º Réu.
Ou seja, à data da presente acção, o direito de retenção conferido ao 1º Réu não se encontra extinto por decisão definitiva.
Conforme a certidão extraída do tal processo CV3-11-0045-CPE, constante de fls. 352 a 364, a decisão foi confirmada por acórdão do T.S.I., transitado em julgado em 25 de Fevereiro de 2019. Nessa altura, podemos afirmar que o direito de retenção conferido ao 1º Réu se encontra, definitivamente, extinto. Não se poderá opor a restituição da fracção autónoma ao seu legítimo proprietário, ora Autora, pelos Réus”; (cfr., fls. 449-v a 450-v).
Aqui chegados, ponderando no que pela ora recorrente vem alegado, e tomando em consideração a exposição que se deixou feita, constata-se que a mesma continua a insistir que se deve considerar que o direito de retenção se extinguiu “retroactivamente à data da prestação do depósito em 09.09.2011”, nos termos do art. 837° do C.C.M., (em sede da acção CV3-11-0045-CPE).
Porém, e com todo o respeito – que obviamente se tem por diverso entendimento – somos de opinião que as Instâncias recorridas não merecem a censura que lhes é dirigida, sendo de se confirmar o decidido.
Contudo, e seja como for, não se deixa de consignar o que segue.
Desde já, e antes de mais, cabe recordar que o Tribunal apenas está obrigado a analisar as “questões” que lhe são colocadas, e não a examinar “cada um dos (seus) argumentos”, (individualmente invocados), mostrando-se-nos, in casu, particularmente relevante o que se deixou considerado, dado que a ora recorrente esgrime incessantes raciocínios e subterfúgios argumentativos com base em “questões laterais”, (próprias de outros processos), e que, em nossa modesta opinião, não se apresentam (de todo) relevantes para a “boa decisão da presente causa”.
Na verdade, de toda a sua – extensa – alegação ressalta que a mesma pretende valer-se da existência de vários processos (e decisões) sobre a “situação do imóvel por si reivindicado” nos presentes autos, e, da (relativa) “confusão” entre eles operada, procura retirar, “retroactivamente”, ao 1° R., algo que (já) lhe foi expressamente reconhecido no âmbito do caso julgado obtido – no âmbito da acção n.° CV1-12-0006-CAO – cabendo aqui salientar também que foi tão só com o trânsito em julgado do decidido nessa mesma acção que os créditos do dito 1° R. ficaram (definitivamente) determinados, aliás como se pode constatar do confronto das alíneas M), O), P), Q) e R) dos factos assentes; (cfr., Ac. deste T.U.I. de 30.03.2017, Proc. n.° 5/2017, e não, de 30.05.2017, como por lapso resulta das alíneas R) e S) dos factos assentes, tendo-se aí reconhecido expressamente que o mesmo 1° R. “usufruía de um direito de retenção sobre a fracção “I9” para satisfação do crédito correspondente ao incumprimento do contrato-promessa sobre essa fracção”).
Por sua vez, importa não olvidar também que foi nessa mesma acção, (Proc. n.° CV1-12-0006-CAO), que o Tribunal Judicial de Base julgou improcedente o pedido de restituição da fracção autónoma “I9” e o pagamento de uma indemnização pela privação do uso pelo aqui 1° R. à ora recorrente, (cfr., alínea M) dos factos assentes), sendo igualmente de referir que foi tão só depois do trânsito em julgado do assim decidido, (no dia 21.07.2017), que se veio a proferir sentença na acção de consignação de depósito (que corria termos com a referência n.° CV3-11-0045-CPE), dando-se, (apenas desta forma), por satisfeito o referido crédito e extinto o aludido direito de retenção, (cabendo também notar que, entretanto, transitado em julgado está o assim decidido; cfr., os Acs. do T.S.I. de 28.11.2018 e 31.01.2019, proferidos no Proc. n.° 481/2018).
Nesta conformidade, (atenta esta “sequência processual”), apresenta-se-nos pois de considerar que pretender-se, agora, (mesmo assim), que o depósito efectuado em 09.09.2011 no âmbito do Proc. n.° CV3-11-0045-CPE tenha efeitos – imediatos – “extintivos do crédito do 1° R. nos termos do art. 837° do C.C.M.”, devendo-se assim ter o seu direito de retenção como inexistente desde então, constitui, em nossa opinião, uma interpretação que – para além de muito pouco razoável – afronta, desde logo, e não só, o fundamento em que assentou a “suspensão da instância” que correu termos no referido Proc. n.° CV3-11-0045-CPE, (e que foi, precisamente, a existência de “questões prejudiciais” em discussão na referida acção n.° CV1-12-0006-CAO, designadamente, a própria existência do já mencionado crédito em causa), sendo, também, de resto, e se bem ajuizamos, de considerar que toda a alegação da ora recorrente – no sentido de que é possível extinguir “retroactivamente” um direito real de garantia – se nos apresenta estar em frontal colisão com o (próprio) “princípio geral da (sua) não retroactividade”; (cfr., v.g., José de Oliveira Ascensão in, “O Direito – Introdução e Teoria Geral”, 13ª ed., pág. 565).
Ora, sem se querer negar que apesar de indiscutível ser que este mesmo princípio se faz notar essencialmente no âmbito da “aplicação da lei no tempo”, subjacente ao mesmo não deixa de estar, igualmente, a “proibição de uma nova e distinta valoração jurídica de factos já passados”, e que se nos mostra de julgar que tem, aqui, pleno cabimento.
Na verdade, e como se nos mostram inteiramente válidas para o caso dos autos, não se pode pois olvidar que essa “proibição” explica-se (essencialmente) por duas ordens de razões (que tem sido assim identificadas):
“1) A necessidade de segurança. Se o passado pudesse sempre voltar a ser posto em causa ninguém estaria seguro do destino dos actos hoje praticados, o que criaria uma grande instabilidade social.
2) A previsibilidade das consequências das condutas, que a existência de regras torna em geral possível e que permite ao direito orientar as acções humanas, desapareceria (…)”; (cfr., v.g., José de Oliveira Ascensão in, ob. cit., pág. 552).
Dest’arte, e em face do exposto, à vista cremos que (já) está a solução.
Todavia, (e por outro lado), mostra-se-nos de referir que se constata também que a “teoria” da ora recorrente colide, igualmente, com o “princípio geral de respeito pelo caso julgado”, segundo o qual “O direito definitivamente tornado certo por sentença passada em julgado não poderá mais ser posto em causa”; (cfr., v.g., J. O. Ascensão in, ob. cit., pág. 553).
Aliás, e cremos que por todas estas razões é que o Tribunal de Segunda Instância não deixou de referir no seu Acórdão ora impugnado que:
“(…) a decisão judicial tem de ser interpretada no seu todo, pelo que, não cabendo agora dela apreciar não se pode aceitar que face ao disposto no art.º 837.º do C.Civ. produzisse efeitos quando a decisão que diz ser admissível refere expressamente que tal só é possível após a decisão do TUI.
Logo por força da decisão deste TSI nunca a consignação em depósito poderia produzir efeitos antes do trânsito em julgado daquela decisão do TUI o que só aconteceu em 05.06.2017”; (cfr., fls. 564-v).
Nestes termos, (e, tanto quanto julgamos saber), como nem sequer a própria Lei prevê a possibilidade de “extinção retroactiva de um direito real de garantia”, (fora dos casos, aqui irrelevantes, de nulidade ou anulabilidade do negócio constitutivo da garantia), razoável parece de se concluir que, no caso dos presentes autos, esta não ocorreu; (assim se respeitando o “caso julgado” e o “princípio geral da não retroactividade”, pois que certo é que no Proc. n.° CV1-12-0006-CAO foi decidido que a ora recorrente não podia exigir a restituição da fracção “I9” nem podia exigir uma indemnização pela privação do uso ao aqui 1° R., decidindo-se, também, que o 1° R. tinha um “direito de retenção” sobre a fracção autónoma “I9”, não podendo assim esse direito ser-lhe retirado retroactivamente).
Diga-se, também, a talho de foice, que a ora recorrente propõe a presente acção quando a “fracção se encontrava penhorada nos autos de Execução Sumária CV1-12-0006-CAO-C”, (cfr., alínea Z) dos factos assentes), e entregue em “depósito” ao aqui 1° R., quando, salvo melhor opinião, para o efeito deveria era ter requerido o “levantamento da penhora” com justificação no pagamento de um dos créditos executados…
Nestes termos, e sem necessidade de mais alongadas considerações, afiguram-se-nos completamente improcedentes os argumentos pela ora recorrente invocados para tentar justificar os erros que assaca ao Acórdão objecto do seu recurso, havendo desta forma que se lhe negar provimento na parte em questão.
–– Quanto à questão “do (reclamado) valor necessário à reposição da fracção «I9» na sua configuração original”, também não se mostra de reconhecer razão à ora recorrente.
Vejamos.
Sobre esta matéria, assim considerou o Tribunal Judicial de Base:
“(…)
Peticiona a Autora a condenação dos Réus no pagamento do valor necessário à reposição da fracção “I9” na sua configuração original.
Não nos entendemos que houve, no caso em apreço, fundamentos justificativos da sua fixação por seguintes razões:
Primeiro, não podemos antever o estado em que a fracção será restituída à Autora, é imprevisível a existência ou não dos danos alegados pela Autora.
Segundo, nunca foram alegados pela Autora factos como era a configuração original.
Repara-se que, efectivamente, segundo as plantas do projecto final e arquitectura e de estrutura, as fracções “I9” e “H9” são duas fracções independentes, distinta e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do condomínio. Porém, a Autora adquiriu a fracção em causa com a D somente em 2007, por razão lógica, a configuração original devia referir-se a esse momento e não ao tempo antes. Mas, de acordo com os factos provados na sentença do CV1-12-0006-CAO, a Autora não acedeu nem viu a fracção por ela comprada, então, qual é a configuração original que pretendeu dizer? Mais não se esquece que, à altura da aquisição pela Autora em 2007, a mesma fracção já foi prometida vender e entregue ao 1° Réu e que este e a sua família já estava nela a residir, e muito provavelmente, as duas fracções já se encontravam juntas.
Assim, quer por não se saber qual foi a configuração da fracção no momento da aquisição pela Autora quer por imprevisibilidade da existência de danos, não se poderá condenar os Réus no pagamento de qualquer indemnização.
(…)”; (cfr., fls. 455-v a 456).
Sustentando porém, que o “dano era actual e existente face à matéria das alíneas W) e X) dos factos assentes”, bateu-se a recorrente pela revogação do decidido, o que não veio a obter, pois que, (como se referiu), o Tribunal de Segunda Instância confirmou a decisão recorrida considerando que das ditas alíneas W) e X) apenas resultava que as fracções “I9” e “H9” são “autónomas e independentes e que os Réus as juntaram numa só”, considerando, também, (e essencialmente), que “nada se provou quanto à forma como foram juntas. (…)”, desconhecendo-se se a situação subsistia aquando da sua entrega; (cfr., fls. 569).
Com o presente recurso, insiste a ora recorrente que os RR. deveriam ter sido condenados no “pagamento de uma indemnização” para efeitos de reposição da fracção na sua condição original, considerando que nada obstava à procedência do pedido em face das alíneas W) e X) dos factos assentes, e, por outro lado, que os Réus não negaram que estavam obrigados a restituir a fracção “I9” na sua “configuração original”.
Ora, como se irá tentar explicitar, tal argumentação não prospera.
Com efeito, tal com considerou o Tribunal de Segunda Instância, nas ditas “alíneas W) e X)” dos factos assentes consta apenas que:
“W) Segundo as plantas do projecto final de arquitectura e de estrutura das fracções “I9” e “H9”, tratam-se de duas fracções autónomas independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do condomínio.
X) Os Réus juntaram as duas fracções numa só”.
E, nesta conformidade, (ressalvando, sempre, o devido respeito), não se mostra que tenha a ora recorrente qualquer razão quanto à peticionada “indemnização”.
Em primeiro lugar, (cabe observar), não se pode perder de vista que em causa está uma questão de “responsabilidade civil”, que – apenas – tem lugar “quando uma pessoa deve reparar um dano sofrido por outra”; (cfr., v.g., Mário Júlio de Almeida Costa in, “Direito das Obrigações”, 12ª ed., pág. 517 e 518, podendo-se também sobre o tema, ver, v.g., R. Alarcão in, “Direito das Obrigações”, pág. 205 e segs., A. Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 518 e segs., M. Cordeiro in, “Tratado de Direito Civil Português II, Direito das Obrigações”, Tomo III, pág. 285 e segs., e, Manuel Trigo in, “Lições de Direito das Obrigações”, F.D.U.M., pág. 237 e segs.).
Com efeito, nos termos do art. 477° do C.C.M.:
“1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2. Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.
Por sua vez, adequado se nos mostra de atentar que preceitua também o art. 480° do mesmo código que:
“1. É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
2. A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”.
Ora, atento o assim preceituado é opinião – no mínimo – dominante (na doutrina e jurisprudência) que a “responsabilidade civil”, de acordo com a “natureza do dever jurídico violado” se pode distinguir em “contratual” e “extracontratual”, (delitual ou aquiliana), certo sendo ainda que “em função da culpa” pode também ser classificada como responsabilidade “objectiva” e “subjectiva”, consoante a vítima necessite ou não de provar a culpa do agente.
Como nota Mário Júlio de Almeida Costa:
“A responsabilidade contratual resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico. Verificamos, portanto, que o qualificativo corrente não se mostra rigoroso, dado que, além dos contratos, existem outras fontes de tais vínculos, cujo incumprimento ocasiona essa espécie de responsabilidade civil. Podem eles, do mesmo modo, surgir de negócios jurídicos unilaterais e, inclusive, directamente da lei. Mercê da razão exposta, alguns autores preferem chamar-lhe responsabilidade negocial ou responsabilidade obrigacional.
Contraposta à categoria mencionada, surge, em termos residuais, a da responsabilidade extracontratual, onde se abrangem os restantes casos de ilícito civil. Deriva, «maxime», da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, isto é, de deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, ou até da prática de certos actos que, embora lícitos, produzem dano a outrem. (…)”; (in ob. cit., pág. 539 e 540).
Com efeito, no domínio da “responsabilidade civil extracontratual”, a formação da obrigação de indemnizar pressupõe, em princípio, a existência de um facto voluntário ilícito – isto é, controlável pela vontade do agente e que infrinja algum preceito legal, um direito ou interesse de outrem legalmente protegido – censurável àquele do ponto de vista ético-jurídico – ou seja, que lhe seja imputável a título de dolo ou culpa – de um dano ou prejuízo reparável, e, ainda, de um nexo de causalidade adequada entre este dano e aquele facto.
E como se sabe, embora predomine a “responsabilidade subjectiva”, baseada na “culpa”, sancionam-se também situações excepcionais de “responsabilidade objectiva ou pelo risco”, isto é, situações independentes de qualquer dolo ou culpa da pessoa obrigada à reparação, entre as quais se situa a responsabilidade pelos danos causados por veículos de circulação terrestre.
Nesta conformidade, e antes de mais, cabe-nos referir que não se estando perante uma suposta “obrigação de indemnizar independentemente de culpa”, (cfr., n.° 2 do art. 477°), possível também não se mostra de dar como verificado qualquer “elemento” que permita concluir pela “culpa” por parte de quaisquer dos RR..
De facto, da matéria de facto resulta claro que ao 1° R. até lhe assistiu – e foi-lhe judicialmente reconhecido – o “direito de retenção” sobre a fracção “I9” (porque da mesma era legítimo “promitente comprador”), e nem tão pouco apurado (ou indiciado) está em que “momento”, “circunstâncias”, de que “forma” e por que “motivos” os RR. “juntaram as fracções”…
Porém, e independentemente do demais, um outro aspecto se mostra de aqui ponderar.
É que na sua petição inicial, (cfr., art°s 30° a 33°), limitou-se a ora recorrente a alegar que os RR. juntaram as fracções “I9” e “H9” numa só, e que têm, assim, a “obrigação” de restituir a fracção “I9” à recorrente na sua configuração original tal como resulta da planta do projecto final de arquitectura e da estrutura das fracções “I9” e “H9”.
No entanto, e como sem esforço se mostra de se constatar, não foi capaz de afirmar qual a “base jurídica” em que assenta a suposta “obrigação dos RR.”, certo sendo que inexiste qualquer “contrato” que a imponha, tão pouco se vislumbrando qualquer “norma jurídica”, (nem a recorrente o indica ao longo do seu recurso), da qual possa decorrer o apontado “dever”, (que, se verdadeiramente existisse, mas que como se viu, não sucede, melhor seria que se tivesse peticionado a condenação dos RR. à “restituição” da fracção na sua configuração original tal como resultava da planta do projecto final de arquitectura).
Ora, como cremos ser (igualmente) pacífico, não existe (nem pode existir) “responsabilidade civil” sem a ocorrência ou existência de um “facto ilícito” – no caso, o eventual “incumprimento da obrigação de restituição da fracção na sua configuração original” – do qual decorra a existência de “danos indemnizáveis”.
Pelo que, logo por aqui, teria (também) de fracassar o pedido em apreciação.
Todavia, mesmo que assim não fosse, (e não cremos) sempre decorreria do que se deixou dito que a recorrente também não tem razão porque o próprio “dano” – ainda – não existe, (nem tão pouco existe “ofendido”), sendo, no momento, (meramente) hipotético, eventual, incerto, provável e condicional, (não passando, por ora, de um, tão só, alegado “receio” ou “perigo de dano”).
Com efeito, como considera Mário Júlio de Almeida Costa: “Requisito da existência de responsabilidade civil, conforme se observou, é a verificação de um dano ou prejuízo a ressarcir. Apenas em função do dano o instituto realiza a sua finalidade essencialmente reparadora ou reintegrativa”; (in ob. cit., pág. 590).
E, como igualmente nota o Prof. Manuel Trigo:
“O dano é, entre os pressupostos da responsabilidade civil, aquele sem o qual não adianta perguntar pela existência dos outros. Só havendo danos haverá que proceder à sua reparação. Só havendo danos haverá responsabilidade civil. A obrigação de indemnizar o lesado com fundamento em responsabilidade civil tem por objecto os danos resultantes da violação, nos termos do art. 477.°, n.° 1, in fine. Ao dano indemnizável referem-se especialmente os arts. 487.°, 488.°, 489.° e 556.° e seguintes”; (in ob. cit., pág. 274 a 275, cabendo aqui notar que não obstante o “avanço dos tempos” e a “permanente evolução das coisas”, defensável ainda não se apresentam determinadas teses que advogam a possibilidade de existência de “responsabilidade civil sem dano”, podendo-se, sobre a questão, ver, v.g., Rui Stoco in, “Responsabilidade civil sem dano: Falácia E Contradição”, onde é citada variada doutrina; Bruno L. C. Carrá in, “Responsabilidade civil sem dano: Uma análise crítica”, e Roberto P. de Albuquerque Júnior in, “Notas sobre a teoria da responsabilidade civil sem dano”).
Ora, o “dano” é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
Como com interesse se nota no Ac. do S.T.J. de Portugal do 31.05.2011, (Proc. n.° 851/04):
“(…)
Na definição do Prof. Vaz Serra, (BMJ 84-8), trata-se de “todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos de carácter patrimonial ou não”, sendo que o Prof. Pereira Coelho o conceptualiza como “o prejuízo real que o lesado sofreu «in natura», em forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem corpóreo ou ideal.” (in “O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil”, 250).
(…)
Verifica-se que na conceptualização de dano parte-se da expressão “prejuízo” sendo certo que a doutrina vem utilizando indiferentemente as duas, (cfr. Prof. Jaime de Gouveia, in “Da Responsabilidade Contratual”, 91) enquanto se vulgarizou a expressão “perdas e danos” para no direito francês se apodar de “dommage” e também de “préjudice”, enquanto a “common law” refere “damages” (distinguindo entre “actual damages” e “compensatory damages”, “consequential damages” e “incidental damages”, apesar da utilização do termo “injury” (“damage that comes from the violation of a legal right”).
(…)”.
Pode revestir “a destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea” (dano real), ou ser “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado” (dano patrimonial); (cfr., v.g., A. Varela in, “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 598).
Dentro do “dano patrimonial”, cabem e são indemnizáveis, o dano “emergente” – o prejuízo causado nos bens ou nos direitos existentes na titularidade do lesado – e os “lucros cessantes” – os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito e a que ainda não tinha direito na data da lesão.
Por sua vez, importa ter presente que os “danos” podem distinguir-se, (como a própria lei o admite no art. 558° do C.C.M.), em “danos presentes” e “danos futuros”, “consoante se tenham já verificado ou não no momento que se considera, designadamente à data da fixação da indemnização”, sendo de notar que os danos futuros só são indemnizáveis “desde que previsíveis”; (in ob. cit., pág. 597).
No presente caso, à falta de melhor enquadramento, apresenta-se-nos lógico concluir que se está perante um “dano futuro”, ou seja, aquele que o sujeito do direito ofendido ainda não sofreu no momento temporal que é considerado.
E, então, há que atentar também que estes danos “futuros” dividem-se por sua vez em “previsíveis” e “imprevisíveis”, estando-se perante os primeiros quando se pode prognosticar, conjecturar com antecipação ao tempo em que acontecerá, a sua ocorrência.
No caso contrário, (quando o homem medianamente prudente e avisado, o “bónus pater família”, o não prognostica), o dano é “imprevisível”, não sendo assim indemnizável (antecipadamente).
Simplificando, diríamos que o sujeito (do alegado direito ofendido) só poderá pedir a correspondente indemnização depois de o dano acontecer, e assim, depois de se tornar “lesado”; (neste sentido, cfr., também, o Ac. deste T.U.I. de 18.06.2008, Proc. n.° 19/2008, onde igualmente já se considerou que apenas são indemnizáveis os danos que se apresentem como “previsíveis”).
Na situação em apreciação, os factos constantes das alíneas W) e X) não implicam qualquer “certeza” ou “previsibilidade” nos danos que a recorrente pretende ver ressarcidos, e ainda que (por hipótese) se considerasse que existia uma “obrigação” por parte dos RR., ora recorridos, sempre se teria de concluir que, no limite, os danos pela recorrente alegados mais não são do que um mero “receio” sobre um eventual e provável dano, (necessário sendo pois que essa dita “obrigação” venha a ser, efectivamente, incumprida), razão, pela qual, não se mostra possível a sua (antecipada) indemnização.
Com efeito, não se pode olvidar que a “responsabilidade civil” distingue-se da “responsabilidade penal”, que pode ensejar sanção ainda que não ocorra dano efetivo, (como ocorre nos crimes de mera conduta ou simples atividade), não bastando a mera violação de um eventual direito, impondo-se, como condição sine que non, que essa mesma violação cause “dano (efectivo)”.
Na verdade, atento o direito vigente, e inversamente do que ocorre na esfera penal, o dano sempre será elemento essencial e inafastável na configuração da responsabilidade civil, não havendo responsabilidade civil por “tentativa”, (ainda que a conduta tenha sido “dolosa”), pois que, “indemnização sem dano”, importaria “enriquecimento ilegítimo”, sendo o “dano” não somente o seu “facto constitutivo, mas determinante do próprio dever de indemnizar”.
Daí que o Tribunal de Segunda Instância tenha (também) explicitado no Acórdão recorrido que:
“Quanto ao direito a ser indemnizada por banda da Recorrente é também necessário que quando a fracção for entregue essa situação ainda subsista”; (cfr., fls. 569).
Assim, (e sendo igualmente manifesto que o Tribunal de Segunda Instância não incorreu em qualquer “excesso de pronúncia”, tendo apenas explicitado que os elementos trazidos ao processo pela recorrente – designadamente os factos assentes sob as alíneas W) e X) – não bastavam para a pretendida condenação dos RR.), também na parte em questão se terá de negar provimento ao presente recurso.
–– Por fim, quanto à pela ora recorrente peticionada “sanção pecuniária compulsória”.
Ora, também aqui temos para nós que bem andaram as Instâncias recorridas.
Vejamos.
Sobre esta questão, considerou essencialmente o Tribunal de Segunda Instância o que segue:
“Tal como se refere na decisão sob recurso a sanção pecuniária compulsória “só será cominada quando o tribunal a considere justificada” – cf. redacção do nº 3 do artº 333º do C.Civ. -.
O tribunal “a quo” entendeu que não havia justificação para a aplicação daquele, e nada resulta dos autos em sentido contrário.
Reitera-se aqui o que a determinado passo já se disse supra, os Réus e Recorridos não são os vilões que usaram de engenho para tentar fazer sua coisa alheia, mas aqueles que tendo cumprido com o pagamento integral do preço num contrato de promessa com tradição da coisa a viram ser vendida a terceiros, os quais posteriormente venderam a coisa objecto do litígio à aqui Autora que a comprou sem cuidar da situação jurídica em que se encontrava, de quem lá vivia e porquê.
(…)”; (cfr., fls. 569-v a 570).
Vem, porém, a recorrente defender que o Tribunal de Segunda Instância incorreu numa “violação do art. 333° do C.C.M.”, violando o “poder-dever” que lhe é imposto quando tal sanção lhe tenha sido requerida e se justifique, (alegando, ainda, que o risco acautelado por essa sanção não foi excluído).
Contudo, (e ressalvando sempre o devido respeito), parece-nos desde já que ao contrário do que alega a ora recorrente, a imposição de uma sanção pecuniária compulsória não constitui um “poder-dever” do Tribunal.
Atentemos no disposto no art. 333° do C.C.M. onde se preceitua que:
“1. O tribunal, em acréscimo à condenação do devedor no cumprimento da prestação a que o credor tenha contratualmente direito, à cominação de pôr termo à violação de direitos absolutos ou à condenação na obrigação de indemnizar, pode, a requerimento do titular do direito violado, condenar o devedor a pagar ao ofendido uma quantia pecuniária por cada dia, semana ou mês de atraso culposo no cumprimento da decisão ou por cada infracção culposa, conforme se mostre mais conveniente às circunstâncias do caso; a culpa no atraso do cumprimento presume-se.
2. A sanção pecuniária compulsória não pode ser estabelecida para o período anterior ao trânsito em julgado da sentença que a ordene, nem para o período anterior à liquidação da indemnização, salvo se o devedor for condenado por ter interposto recurso com fins meramente dilatórios, caso em que a aplicação da sanção é reportada à data da notificação da decisão que a tenha cominado.
3. A sanção pecuniária compulsória só será cominada quando o tribunal a considere justificada e será fixada segundo a equidade, atendendo à condição económica do devedor, à gravidade da infracção e à sua adequação às finalidades de compulsão ao cumprimento.
4. Não é aplicável a sanção pecuniária compulsória nos casos em que tenha sido estabelecida uma cláusula penal compulsória com os mesmos fins, ou nas decisões em que se condene o devedor no cumprimento de uma prestação de facto infungível, positivo ou negativo, que exija especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, a que o credor tenha contratualmente direito”.
Referindo-se, precisamente, ao novo regime da “sanção pecuniária compulsória” previsto no então Projecto do Código Civil da R.A.E.M., considerou, nomeadamente o seu Coordenador que:
“(…) ainda que conscientes do risco deste mecanismo, inserimos no sistema de Macau a sanção pecuniária compulsória, a qual poderá (e não necessariamente deverá) ser arbitrada pelos juízes na sentença condenatória como meio de compulsão das partes ao cumprimento atempado das decisões judiciais. O instituto foi recortado do instituto congénere em vigor em Portugal, mas contrariamente ao sistema português, consideramos que se poderia arriscar alargar o seu âmbito para fora das meras prestações de facto infungível, transformando-o num mecanismo de âmbito mais genérico, e por isso, esperamos, mais eficaz”; (cfr., v.g., Luís Miguel Urbano in, “O Código Civil de Macau”, B.F.D.U.M., Ano III, n.° 7, 1999, pág. 67).
Neste mesmo sentido, e em comentário ao preceito legal em análise afirmam João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho que:
“(…)
O n.º 3 relega para o tribunal a ponderação das circunstâncias em torno de cada caso a fim de concluir acerca da “justificação” da medida. Isto significa que o requerimento do titular do direito ofendido não gera, vamos dizer assim, um estado de sujeição. A aplicação da sanção não pode ser feita oficiosamente, é certo, mas nem por isso a pretensão do requerente leva inevitável ou automaticamente ao deferimento. Isto significa que o requerente apenas tem o “direito a pedir”, não um direito à sanção compulsória. A última palavra pertence ao juiz, depois de ouvir o visado e após sopesar todos os factores envolventes.
(…)
3.º - O tribunal só a aplicará se, perante as circunstâncias do caso, a julgar justificada.
Isto é, o juiz da RAEM não está vinculado à sua aplicação, nem mesmo perante o requerimento do interessado. Afastada fica, desta maneira, a tese de Calvão da Silva, que sustentava a ideia de que o juiz tinha o dever de a decretar desde que fosse requerida; não podia recusá-la, nem sequer com o argumento da inoportunidade da medida (ob. cit., pág. 429 e sgs.). A solução do Código de Macau é, deste modo, assertiva e não deixa margem para dúvidas acerca deste poder (que não é dever) do tribunal. De qualquer maneira, cumpre esclarecer que o poder que o juiz tem não é arbitrário, nem depende do seu humor ou da sua vontade do momento. O juiz para considerar não justificada a medida terá que dizer o motivo, terá que explanar as razões do julgamento que faz a esse respeito. Pode não a aplicar, mas terá que fundamentar a decisão, por a isso estar vinculado pelo princípio do respeito pelos direitos e posições jurídicas substantivas das partes”; (in “C.C.M. Anotado e Comentado”, Livro I, Vol. V, pág. 119 e 121).
Posto isto, estando cabalmente demonstrado que o art. 333° do C.C.M. não confere um “poder-dever” ao Tribunal quanto à aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, evidente se mostra também de aqui concluir que o recurso da recorrente é, igualmente nesta parte, improcedente.
Na verdade, tal como resulta de todo o processado e adequadamente realçado pelo Tribunal de Segunda Instância na atrás transcrita “síntese”, não se nos mostram estar presentes quaisquer “motivos” para considerar a actuação dos RR. “culposa” e “justificativa” da pretendida sanção.
E, dest’arte, apreciadas que assim parece terem ficado todas as “questões” suscitadas na presente lide recursória, vista está a solução que em relação à mesma se terá de adoptar.
Decisão
4. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam:
- não admitir a junção dos documentos pelos RR., ora recorridos com a sua resposta ao recurso apresentados, devendo ser desentranhados e devolvidos com custas do incidente pelos mesmos; e,
- negar provimento ao recurso pela A. interposto, pelo qual pagará a mesma as respectivas custas com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Registe e notifique.
Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
Macau, aos 25 de Março de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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