Processo nº 52/2022 Data: 18.05.2022
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”.
Medida da pena.
SUMÁRIO
1. O recurso, (nomeadamente), em “matéria de pena”, não deixa de possuir o paradigma de “remédio jurídico”, e o Tribunal ad quem apenas deve intervir, alterando a pena decretada quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, pois que, com o recurso não se visa eliminar a imprescindível margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de julgamento.
2. Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 52/2022
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), (7°) arguido com os restantes sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância datado de 17.03.2022 – Proc. n.° 1013/2021 – que confirmou o Acórdão do Tribunal Judicial de Base com o qual foi condenado como co-autor material da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016, na pena de 12 anos de prisão, batendo-se – tão só – pela redução da dita pena para uma outra não superior a 10 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 2 a 9 e 248 a 289 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Em resposta, é o Ministério Público de opinião que o recurso merece provimento; (cfr., fls. 293 a 295).
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Nesta Instância, e em sede de vista, manteve o Exmo. Representante do Ministério Público o entendimento antes assumido na resposta ao recurso; (cfr., fls. 305 a 305-v).
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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.
Fundamentação
2. Como resulta da abreviada síntese atrás efectuada, entende o ora recorrente que “excessiva” é a pena que lhe foi aplicada, (de 12 anos de prisão), pugnando pela sua redução para uma outra não superior a 10 anos e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 2 a 9).
Porém – e sendo esta a única “questão” com o presente recurso colocada – cremos que ao recorrente não assiste razão.
Vejamos.
Está provada a “matéria de facto” como tal elencada e constante dos Acórdãos do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância, (que não vem impugnada e que, por motivos não haver para se alterar, aqui se tem por integralmente reproduzida, cfr., fls. 187 a 208 e 259-v a 283), oportunamente se lhe fazendo adequada referência.
Nesta conformidade, dúvidas não existindo que é a dita matéria bastante para a “decisão condenatória” proferida, (pois que presentes estão todos os elementos objectivos e subjectivos típicos do crime pelo qual foi o ora recorrente condenado), e centrando-nos, (agora), na (única) “questão” – da “adequação da pena” – trazida à apreciação desta Instância, mostra-se de se começar por referir que ao dito crime cabe a pena (abstracta) de 5 a 15 anos de prisão, (cfr., art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 com a redacção dada pela Lei n.° 10/2016), sabido sendo também que a “determinação da medida concreta da pena”, é tarefa que implica cuidada ponderação de vários aspectos.
Desde logo, importa atentar que nos termos do art. 40° do C.P.M.:
“1. A aplicação de penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente”.
Sobre a matéria preceitua também o art. 65° do mesmo código que:
“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal.
2. Na determinação da medida da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da determinação da pena”.
E por sua vez, nos termos do seguinte art. 66°:
“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo”.
Assim, e na (completa) ausência de qualquer “circunstância” que permita considerar a “situação” em questão como “excepcional” ou “extraordinária”, desde logo se mostra de consignar que motivos não existem para qualquer “atenuação especial da pena” ao abrigo do transcrito art. 66° do C.P.M., sendo de referir igualmente que inverificados também estão os necessários pressupostos legais do art. 18° da Lei n.° 17/2009 para idêntica medida, (pois que, como se tem decidido: “Para efeito de atenuação especial da pena prevista no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, só tem relevância o auxílio concreto na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis do tráfico de drogas, especialmente no caso de grupos, organizações ou associações, ou seja, tais provas devem ser tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas com certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento”; cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 30.07.2015, Proc. n.° 39/2015, de 30.05.2018, Proc. n.° 34/2018, de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020, de 30.10.2020, Proc. n.° 165/2020, de 27.11.2020, Proc. n.° 193/2020, de 23.06.2021, Proc. n.° 84/2021, de 24.09.2021, Proc. n.° 66/2021 e de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022).
De facto, tratando desta “matéria” tem-se entendido que a figura da “atenuação especial da pena” surgiu em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, como necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa.
E como repetidamente temos vindo a considerar, “A atenuação especial só pode ter lugar em casos “extraordinários” ou “excepcionais” – e não para situações “normais”, “vulgares” ou “comuns”, para as quais lá estarão as molduras normais – ou seja, quando a conduta em causa se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020-I, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020-I e de 23.09.2020, Proc. n.° 155/2020, de 27.11.2020, Proc. n.° 193/2020, de 23.06.2021, Proc. n.° 84/2021 e de 11.03.2022, Proc. n.° 8/2022).
Nesta conformidade, ponderando no que até aqui se expôs, na referida moldura penal – de 5 a 15 anos de prisão – nos critérios para a determinação da medida concreta da pena previstos nos transcritos art°s 40° e 65° do C.P.M., no que vem sendo (normalmente) entendido pelos Tribunais de Macau em matéria de pena em processos análogos, e afigurando-se-nos que as Instâncias recorridas não deixaram de ponderar, adequadamente, em todas as circunstâncias relevantes para efeitos de fixação da pena em questão, mostra-se-nos, pois, que se impõe confirmar a pena de 12 anos de prisão decretada.
Na verdade, a “factualidade provada” revela – nomeadamente – que no dia 26.05.2020, o recorrente, residente de Hong Kong, e viajando de barco do Continente (Zhuhai) para Macau, aqui se introduziu por Coloane e fora dos postos fronteiriços – “clandestinamente” – tendo sido surpreendido em flagrante com 136,3g de “Cocaína”, 70,2g de “Metanfetamina”, 60,5g de “Ketamina” e 59,208g de “Canabis”, muito intenso (e directo) sendo assim o seu dolo assim como muito elevado o grau de ilicitude da sua conduta, (muito) fortes sendo, igualmente, as necessidades de prevenção criminal “geral”, (face aos graves malefícios e prejuízos que o tipo de crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” em questão causa à “saúde pública”), e “especial”, (pois que atento ao que de fls. 307 a 318 consta, em 26.07.2019 tinha já sido interceptado em Macau e detido em sede de um outro Inquérito, no âmbito do qual acabou condenado por Acórdão do Tribunal Judicial de Base de 05.11.2021 como autor da prática de 1 crime de “produção e tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 e 2 da mesma Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), na pena de 1 ano e 3 meses de prisão; (cfr., Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-21-0104-PCC, à ordem do qual cumpre a dita pena).
Assim, e importando ter presente que o recurso (nomeadamente) em “matéria de pena”, não deixa de possuir o paradigma de “remédio jurídico”, e o Tribunal ad quem apenas deve intervir, alterando a pena decretada quando detectar desrespeito, incorrecções ou distorções dos princípios e normas legais pertinentes no processo de determinação da sanção, (pois que, com o recurso não se visa eliminar a imprescindível margem de livre apreciação reconhecida ao Tribunal de julgamento; cfr., v.g., o Ac. deste T.U.I. de 03.04.2020, Proc. n.° 23/2020, de 05.05.2021, Proc. n.° 40/2021, de 23.06.2021, Proc. n.° 72/2021(I) e de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022), vista está a solução para a presente lide recursória.
Na verdade, labora o recorrente em evidente e manifesto equívoco, pois que na ponderação sobre a medida e decisão da sua pena de 12 anos de prisão não foi tida em conta – como o mesmo erradamente alega – nenhuma “circunstância agravante típica”, seja ela a prevista no art. 10°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, considerando-se como verificada a prática do crime de tráfico por “intermédio de associação criminosa ou de sociedade secreta”, o mesmo sucedendo com a prevista no art. 22° da Lei n.° 6/2004, onde se previa como agravante a circunstância de o “agente do crime ser um indivíduo em situação de imigração ilegal”, (e que, como sabido é, entretanto deixou de existir com a publicação da Lei n.° 16/2021, que estabelece o “Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na R.A.E.M.”).
Nesta conformidade, tudo visto, e ponderando na atrás descrita conduta do ora recorrente, especialmente, que insiste na prática de actos típicos do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” (mesmo depois de surpreendido em flagrante), tendo presente as “quantidades” e “variedades” de estupefaciente pelo mesmo “transportadas” para Macau, e muito fortes sendo as necessidades de prevenção criminal, cabe pois dizer que censura não merece a pena decretada que se mostra respeitadora dos critérios legais para a determinação concreta da pena enunciados nos referidos art°s 40° e 65° do C.P.M..
Com efeito, e como de forma repetida e firme temos vindo a entender:
“Ao Tribunal de Última de Instância, como Tribunal especialmente vocacionado para controlar a boa aplicação do Direito, não cabe imiscuir-se na fixação da medida concreta da pena, desde que não tenham sido violadas vinculações legais – como por exemplo, a dos limites da penalidade – ou regras da experiência, nem a medida da pena encontrada se revele completamente desproporcionada”; (cfr., v.g., os Acs. de 27.04.2018, Proc. n.° 27/2018, de 30.07.2019, Proc. n.° 68/2019, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020(I), de 23.06.2021, Procs. n°s 72/2021(I) e 84/2021 e de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022).
Dest’arte, revelando-se pela decisão recorrida, a adequada selecção dos elementos factuais elegíveis, a correcta identificação das normas aplicáveis, o cumprimento (estrito) dos passos a seguir no iter aplicativo, e a ponderação justa e devida dos critérios legalmente atendíveis, imperativa é a confirmação da pena que ao ora recorrente foi aplicada; (neste sentido, cfr., v.g., os Acs. deste Tribunal de 03.12.2014, Proc. n.° 119/2014, de 04.03.2015, Proc. n.° 9/2015, de 26.06.2020, Proc. n.° 44/2020(I) e, mais recentemente, os de 11.03.2022, Procs. n°s 8/2022, 12/2022 e 14/2022).
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Aqui chegados, uma última nota.
Afigura-se-nos que verificados estarão os motivos para se efectuar o “cúmulo jurídico” da pena nestes autos aplicada com a decretada em sede dos referidos Autos de Processo Comum Colectivo n.° CR1-21-0104-PCC.
Assim, oportunamente, no Tribunal Judicial de Base, e observadas as formalidades processuais adequadas, deve ser tal “questão” objecto de decisão nos termos legais.
Nada mais havendo a apreciar, resta decidir.
Decisão
3. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso.
Pagará o arguido a taxa de justiça de 10 UCs.
Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$3.500,00.
Registe e notifique.
Nada vindo de novo, e após trânsito, devolvam-se os autos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários, (onde se deve ter em conta o consignado no presente veredicto).
Macau, aos 18 de Maio de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
Proc. 52/2022 Pág. 14
Proc. 52/2022 Pág. 1