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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso do despacho do Senhor Secretário para a Segurança proferido em 15 de Março de 2018 que indeferiu o seu pedido de autorização de residência na RAEM.
Por acórdão proferido em 27 de Junho de 2019, o Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar improcedente o recurso.
Inconformado com a decisão, vem A recorrer para o Tribunal de Última Instância, apresentando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
a) Vem o presente recurso interposto da acórdão de 27/06/2019 do Tribunal de Segunda Instância que julgou improcedente o recurso contencioso, oportunamente interposto do despacho de Exmo. Senhor Secretário para a Segurança de 07/05/2018, este, que indeferiu a “autorização de residência” do recorrente na R.A.E.M..
b) Dá-se aqui por reproduzida a marcha do processo administrativo e dos recursos contenciosos, sobre a mesma questão; bem como as conclusões formuladas no recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância.
c) Foi proferido em 27/06/2019 acórdão no Tribunal de Segunda Instância que julgou improcedente o recurso contencioso do recorrente.
d) É deste acórdão que, como se disse, se recorre por se entender que o mesmo, respaldado, passe a expressão, nas “costas largas” do poder discricionário, se desvia do fim para que a norma da “fixação de residência para reunião familiar” foi criada, através de um argumento, processualmente inexistente, de que a conduta do recorrente é indiciadora de uma sua falta de idoneidade e honorabilidade.
e) Mas a discricionaridade é uma escolha da administração que está condicionada pelo interesse público e a finalidade da lei em que se baseia.
f) No caso, a “autorização de residência” tem como finalidade a “reunião familiar” e a administração não pode, de forma subjectiva, interpretar a norma do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, aplicando-a à situação do recorrente, no sentido de que este tem “antecedentes criminais” ou comprovadamente incumpriu as “leis da R.A.E.M”.
Quando dos autos nada resulta nesse sentido.
g) O interesse público, pela “autorização de residência” do recorrente, não sai minimamente beliscado.
Quanto à finalidade legal que, no caso, é a “reunião familiar”, o poder discricionário da administração está vinculado por princípios e regras gerais, designadamente, igualdade, imparcialidade, proporcionalidade e boa fé.
h) Ora, no caso, o que se afigura ao recorrente é que a decisão corporizada no despacho recorrido é precisamente “fruto de emoção ou capricho”.
Ou, por outras palavras, “mau perder” ...
i) Justificava-se que o despacho recorrido, ao invés de persistir numa decisão que tem forçosamente por base os inexistentes “antecedentes criminais” do recorrente, encarasse a finalidade por este perseguida, visando a melhor solução que satisfizesse o interesse público, no que se inclui, como não pode deixar de ser, o direito ínsito na Lei Básica dos residentes, a contrair casamento e constituir família (art.º 38.º).
Que o despacho recorrido, pelo contrário, não satisfaz.
j) O acto e o acórdão recorridos tapam o argumento anteriormente utilizado – de que o recorrente tinha antecedentes criminais – com o argumento, alegadamente “novo” de que as “qualidades pessoais” do recorrente – reveladas pelo mesmo processo crime que o TUI não permitiu que servisse de fundamento para qualquer decisão – não oferecem garantias de que ele será cumpridor das leis de Macau.
k) Mas tal fundamento, baseado em meras suposições que não são minimamente comprovadas – que o recorrente aliás expressamente rebateu no decurso do procedimento administrativo – não foi alegado na primeira decisão quando, obviamente, já existia.
l) Não se trata de um fundamento “novo”, posterior ao primeiro acto; mas sim um fundamento que – se existisse como facto autónomo, o que não é o caso – já existia, mas que não foi considerado como relevante quando os Serviços de Migração e a Tutela proferiram o primeiro acto denegatório da residência do recorrente na R.A.E.M..
m) Tal faz denotar má-fé da Administração – como tal, violadora do princípio de boa fé ínsito no art.º 8.º da C.P.A. – travestindo o fundamento anterior para contornar o teor de uma decisão judicial vinculativa, agindo manifesta e objectivamente contra as justas expectativas do recorrente, de “reunião familiar”, sobretudo, tendo em conta aquela decisão judicial e a finalidade da norma que estatui a “autorização de residência”.
Age de má fé, por contradição a quem age de boa fé, quem não orienta as suas decisões segundo padrões de honestidade, correcção e lealdade.
n) Mas também invocou o recorrente a violação do disposto no n.º 2 do art.º 8.º da Lei de Bases da Organização Judiciária, porquanto o despacho recorrido ofende a decisão do T.U.I. de 31/05/2017.
Em bom rigor, o despacho recorrido defraudou a decisão vinculativa do Tribunal de Última Instância, violando, por isso, caso julgado material, pois, ignorou aquela decisão inicial através de uma alteração artificial do fundamento dos “antecedentes criminais” que então utilizara e que não logrou obter provimento.
o) Quando a acórdão do Tribunal de Última Instância refere que o procedimento criminal em que o recorrente se viu envolvido em 1998 está prescrito e, como tal, “... qualquer decisão que o considerasse, de futuro, para efeitos criminais, seria atentatório do princípio da presunção de inocência ...” tal significa que todo e qualquer facto, antes ou depois da data da prescrição, derivado daquele processo crime, não pode ser considerado em prejuízo do recorrente.
p) A conduta do recorrente, alegadamente desviante do comum do cidadão – que, diga-se, o recorrente justificou e comprovou – não pode ter como referência, nem directa (como antes), nem indirecta (como agora), um processo-crime que desapareceu da ordem jurídica.
q) Contudo, o despacho e o acórdão recorridos – que, respectivamente, imputa e aceita que o recorrente tem “falta de idoneidade e honorabilidade” e, como tal, alegadamente, justificam um juízo de prognose negativo quanto ao cumprimento das leis da R.A.E.M. – têm sempre aquele processo-crime como uma referência que, pela decisão de prescrição, não pode ser considerado.
r) Isto é, toda a alegada conduta do recorrente, desviante da alegada normalidade, foi sempre imputada ao recorrente como sendo uma “fuga ao mandado de notificação da sentença que o condenou”.
Logo, tem sempre como “pano de fundo” aquele processo-crime que está prescrito.
É aquele processo-crime, diga-se o que se quiser, que fundamenta o despacho recorrido.
E não mais.
Como fez notar o Digno Magistrado do M.P. “... há como que uma espécie da espada de Dâmocles que continua a fazer pairar o rótulo dos antecedentes criminais sobre a cobeça do recorrente ...”
s) O caso julgado abrange o objecto do processo; no caso da decisão, a sua substância, não o modo como ele é apresentado, redigido ou “nuanceado”. Admitir que as autoridades administrativas – que não podem usar um processo crime como fundamento de decisão desfavorável ao recorrente – possam usar a caracterização pessoal que dele fazem, como base no processo crime, seria uma verdadeira “fraude ao caso julgado”, fazendo entrar pela janela aquilo que o TUI não deixou entrar pela porta.
t) É, pois, por isso, a autoridade do próprio TUI e dos tribunais da RAEM que também está aqui em questão.
Não só a vida de um cidadão e o exercício do poder em moldes não arbitrários, como a cultura jurídica da RAEM, os seus princípios e os seus valores.
É fundamento crítico do Estado de Direito e do Princípio da Separação de Poderes que os tribunais têm de ser obedecidos pela Administração: “As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (art.º 8.º da Lei n.º 9/1999). Em Administrativo, tal como em Processo Civil, o caso julgado material não é manipulável.
u) O argumento é o mesmo, sob outra “roupagem”, como bem se apercebeu o Digno Magistrado do M.P.. Mas o que se invocou, não está minimamente justificado, pelo que o alegado poder discricionário – que desviou a administração da finalidade legal pretendida pelo recorrente, de fixar residência, por “reunião familiar” – formalizou um acto ilegal, como tal, anulável.
v) Acresce que, ainda que assim não fosse, assentar a caracterização da personalidade e do universo ético de uma pessoa com base em vagos indícios, não concretizados – como nota o Digno Magistrado do M.P. – e não materializados em factos que lhe possam ser imputados, resultantes de um evento ocorrido há mais de 20 anos, constituiria, por si, um caso de ilegalidade do acto discricionário por violação crassa do princípio da proporcionalidade, o qual exige que os “factos” (e não vagas apreciações) têm de ter um mínimo de proximidade temporal com o recorrente, tal como ele se apresenta hoje.

Não contra-alegou a entidade recorrida.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso, com a revogação do acórdão recorrido e a declaração de nulidade do acto contenciosamente impugnado.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos
Nos autos foram considerados os seguintes factos com pertinência:
1 - O recorrente contencioso casou com a sua mulher, em X de Outubro de 2004 em Taiwan.
2 - O casal tem dois filhos, nascidos em Macau.
3 - O recorrente fora condenado em 31/05/2000, em concurso real e em co-autoria, por:
- Um crime de associação/sociedade secreta, previsto e punível pelo art.º 2.º, n.º 2, com referência ai art.º 1.º, n.º 1, al. h), ambos da Lei n.º 6/97/M, de 30/07 (Lei da Criminalidade Organizada), na pena de cinco anos e três meses de prisão;
- Um crime previsto e punível pelo art.º 1.º, da Lei n.º 8/96/M, de 22/07 (Jogo ilícito), na pena de um ano de prisão;
- Um crime previsto e punível pelo art.º 70.º, n.º 1, al. a) (Exercício ilegal da actividade de radiodifusão), com referência ais art.ºs 12.º e 13.º, todos da Lei n.º 8/99/M, de 4/09 (Regime da Actividade de Radiodifusão), na pena de sete meses de prisão e trezentas mil patacas de multa com 300 dias de prisão subsidiária.
E, em cúmulo, na pena de seis anos de prisão.
4 - Os dados no P.A. mostram que o recorrente não compareceu à audiência de Julgamento.
5 - Relativamente a tais ilícitos, o recorrente esteve preso preventivamente desde 12 de Maio de 1998 até 25 de Agosto de 1998 no Estabelecimento Prisional de Coloane.
6 - Em 25 de Agosto de 1998, o recorrente foi libertado do Estabelecimento Prisional de Coloane e por despacho superior de 26 de Agosto de 1998, foi repatriado ao local de origem e foi interdito de entrar em Macau pelo período de três anos.
7 - No que concerne aos crimes cometidos, em Setembro de 2013 o Tribunal Judicial de Base declarou extinto o procedimento criminal por força da prescrição e tal extinção foi notificada oportunamente ao CPSP.
8 - O recorrente contencioso, possuidor do passaporte de Taiwan, pediu, em 30 de Março de 2015, ao Chefe do Executivo a autorização de residência por motivo de reagrupamento familiar com a mulher e filhos, a viverem em Macau.
9 - O Senhor Secretário para a Segurança, por despacho datado de 19/05/2015 indeferiu o pedido, com o fundamento de que o recorrente tinha “antecedentes criminais” na R.A.E.M., facto que potencialmente poria em causa, na óptica da entidade então recorrida, a “ordem e a segurança públicas” da R.A.E.M.
10 - Desse despacho recorreu contenciosamente para o TSI, em processo a que foi dado o número 870/2015.
11 - Por acórdão de 27/10/2016, foi dado provimento àquele recurso contencioso, anulando-se o despacho recorrido, por erro nos pressupostos de facto, por o recorrente não ter antecedentes criminais, em virtude de a sentença condenatória não ter então transitado e porque, quando apenas notificado em 2013 da pena, sob requerimento deste, o procedimento criminal fora judicialmente declarado prescrito.
12 - Deste decisão, foi interposto recurso para o Tribunal de Última Instância que, por acórdão datado de 31/05/2017, negou provimento ao recurso jurisdicional, expressando, a final, que tendo um procedimento sido extinto por prescrição, “... qualquer solução que o considerasse, de futuro, para efeitos criminais, seria atentatório do princípio da presunção de inocência, previsto no art.º 29.º da Lei Básica”.
13 - Uma vez anulado aquele despacho recorrido, o recorrente reactivou, então, o seu processo de “autorização de residência” na R.A.E.M., com o mesmo fundamento então invocado: “reunião familiar”;
14 - O Senhor Comandante do C.P.S.P. da R.A.E.M., em 29/06/2017, notificou o recorrente do “sentido provável” da decisão (de indeferimento) que, como então se disse em resposta, não era mais do que “... uma repetição da decisão do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, contra a qual se pronunciaram, inequivocamente, os Tribunais Superiores de Macau (T.S.I., e T.U.I.) em decisões ... já transitadas.”
15 - Em 09/02/2018, aproximadamente 8 meses depois, o recorrente veio requerer a execução da decisão, junto do T.S.I., processo que corre por apenso ao supra citado processo (Proc. n.º 870/2015-A) e que ainda está pendente.
16 - A entidade recorrida, veio juntar aos autos cópia de tal despacho, do qual o recorrente ainda não tinha sido notificado.
17 - O teor desse despacho é o seguinte:
Assunto: - Pedido de autorização de residência na RAEM (proc. n.º PXXXXXXXXXX) - Requerente: A
Avaliando ponderadamente todos os factos, declarações e decisões constantes do procedimento administrativo instrutor, designadamente a diligência complementar de audição do Requerente, verifico o seguinte:
1 - O Requerente reconhece que esteve preso de 12 de Maio de 1998 a 25 de Agosto de 1998, no Estabelecimento Prisional de Coloane, por ser fortemente suspeito da prática de vários crimes, alguns deles de enorme gravidade. Mas, instado a esclarecer a Administração sobre determinados aspectos dos factos, designadamente, (1) a razão pela qual, durante mais de uma década, não tomou a iniciativa de procurar saber do processo penal, e (2) se sabia que em 13.9.2013, foi proferida decisão judicial declarando extinto o procedimento criminal relativamente aos factos que estiveram na base da sua prisão preventiva, em 1998, e (3) como explicava que, passados apenas dois meses, em 15.11.2013, o Requerente voltou a entrar em Macau, depois deter estado 15 anos, 2 meses e 17 dias sem cá ter posto os pés, o mesmo optou pelo silêncio, sem qualquer explicação credível para essa falta de cooperação.
De resto, não é credível, segundo as regras da experiência comum, que uma pessoa que esteve presa durante 3 meses e se crê inocente, se alheie absolutamente dessa situação e não procure saber do destino ulterior do processo, ao menos para defender a sua honra pessoal.
Como também não merece qualquer credibilidade, segundo as regras da experiência comum, que o regresso do Requerente à RAEM, depois de mais de 15 anos sem vir à Região, e apenas dois meses depois de uma decisão judicial ter declarado a prescrição, nada tenha a ver com essa mesma decisão judicial e com o conhecimento da mesma.
2 - A motivação principal alegada pelo Requerente para o pedido de autorização de residência é a junção familiar. Todavia, instado a esclarecer quais foram as fortes e extraordinárias razões que o levaram a não se juntar à família em Macau e nem sequer a pôr os pés na Região, desde o seu casamento, em 2004, até finais de 2013, apesar de, durante esse período a sua esposa ter vivido e trabalhado em Macau e aqui terem nascido os seus dois filhos, o Requerente alegou, no essencial, que a razão foi o seu trabalho estável em Taiwan e a obrigação de cuidar de seus pais.
Ora, mais uma vez, não é minimamente credível, face às regras da experiência comum de vida, que uma pessoa que casa com uma residente de Macau, em 2004, com a qual tem filhos em 2009 e 2011, esteja tantos anos seguidos sem se deslocar de Taiwan a Macau, onde os seus filhos nasceram e vivem, e onde a esposa sempre tem vivido e trabalhado, apesar da evidente facilidade de deslocações, em termos de frequência e custos, entre os dois territórios.
Pelo contrário, em face das regras da experiência comum de vida, os factos e as declarações do Requerente indicam fortemente que o mesmo soube da sua acusação pela autoridade Judiciária e subsequente condenação por tribunal de Macau e de que seria detido caso aqui pusesse os pés. E assim se explica, objectivamente, que o mesmo tenha estado mais de uma década sem entrar na RAEM, em “fuga” ao mandado de notificação da sentença que o condenou, sem sequer vir presenciar os nascimentos dos seus filhos, e que, justamente, só cá tenha voltado escassos dois meses depois de proferida a decisão judicial que reconheceu a prescrição criminal.
Assim,
Exercendo o poder discricionário que me está legalmente conferido, por via do n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, e da delegação de poderes operada por via do artigo 4.º do Regulamento Administrativo n.º 6/1999, com as alterações subsequentes, e da Ordem Executiva n.º 111/2014;
Atendendo a que o uso de regras de experiência comum, desde que apenas subordinado à razão e à lógica, é um critério de apreciação e de valoração de factos em sede de exercício de um poder discricionário em matéria administrativa;
Afirmando que a presunção de inocência, de que beneficiam todos os cidadãos, incluindo os não residentes, não pode transformar-se numa presunção de idoneidade / honorabilidade para os não residentes que requeiram o estatuto de residentes da RAEM;
Reconhecendo que o acto de recusa de autorização de residência a um não residente é susceptível de inutilizar as expectativas dos requerentes, em especial, como é o caso em apreço, quando os mesmos têm familiares residentes de Macau;
Mas tendo em conta, por outro lado, que a autoridade administrativa só pode/deve atribuir a autorização de residência a requerentes cujas qualidades pessoais e honorabilidade estejam fora de qualquer dúvida razoável e, portanto, em relação aos quais não esteja em causa, prognosticamente, a garantia de que serão cidadãos cumpridores das leis de Macau e dos valores de cidadania prevalentes na Região, e que, no caso concreto do Requerente A, essas condições não se mostram reunidas, decido indeferir o pedido de autorização de residência formulado pelo mesmo.
Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 15 de Março de 2018.” (fls. 15 e verso).
17 - É desse despacho que ora recorre contenciosamente, depois que dele foi notificado pela entidade recorrida.

3. Direito
Imputa o recorrente os vícios de violação dos princípios de boa fé e da proporcionalidade bem como de violação do caso julgado material.

3.1. Da violação do caso julgado material
Vamos começar por apreciar a questão de violação do caso julgado material, com a qual acaba o recorrente por apenas requerer a anulação do acto administrativo praticado ao invés da declaração de nulidade do acto, pois o vício em causa conduz, se se considerar verificada, à declaração de nulidade do acto administrativo impugnado (art.º 122.º n.º 2, al. h) do CPA e art.º 74.º n.º 2 do CPAC).
Desde logo, é de reparar que a questão de violação do caso julgado não foi expressamente suscitada no recurso contencioso, pelo que a questão não chegou a ser objecto de apreciação pelo Tribunal recorrido.
Trata-se, no entanto, duma questão que é de conhecimento oficioso, nos termos do art.ºs 414.º e 413.º, al. j) do CPC, aplicável por força do art.º 1.º do CPAC.
E tal como se considera no acórdão do TUI proferido no Processo n.º 47/2008, de 05/11/2009, “os vícios de acto administrativo conducentes à sua nulidade ou até inexistência jurídica são de conhecimento oficioso, independentemente da posição das partes, mesmo que sejam considerados matéria nova em recurso jurisdicional”.
Daí que vamos apreciar a questão ora colocada, com base na qualificação que se entende correcta, de acordo com o art.º 74.º n.º 6 do CPAC.
Invocou o recorrente a violação do disposto no n.º 2 do art.º 8.º da Lei de Bases da Organização Judiciária, por entender que o despacho recorrido ofende a decisão do Tribunal de Última Instância de 31/05/2017, proferido no Processo n.º 14/2017, violando assim caso julgado material, pois, com ignorância daquela decisão inicial através de uma alteração artificial do fundamento dos “antecedentes criminais”.
O caso julgado que se tem em vista formou-se em relação à sentença do TUI proferida no dia 31 de Maio de 2017, no Processo n.º 14/2017, onde se determinou o seguinte:
“Ao recorrente foi negada a autorização de residência em Macau por ter antecedentes criminais. (…)
A sentença nunca transitou em julgado, em virtude de o arguido não ter sido notificado da sentença condenatória e, entretanto, o procedimento criminal veio a ser extinto por prescrição. (…)
Ou seja, a condenação do arguido foi meramente provisória e nunca se tornou definitiva, em virtude de ter sido julgado na sua ausência, dado que, quando se aguardava a notificação do arguido da sentença, decorreu o prazo de prescrição do procedimento criminal, que apagou a sentença condenatória, pelo que, esta, para todos os efeitos, não existe.
O procedimento penal extingue-se por efeito da prescrição (artigo 110.º do Código Penal).
Logo, o arguido não tem antecedentes criminais.
Como refere o parecer do Ex.mo Magistrado do Ministério Público, citando um autor, uma vez prescrito o crime, antes de qualquer decisão transitada em julgado, qualquer solução que o considerasse, de futuro, para efeitos criminais, seria atentatório do princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 29.º da Lei Básica. (…)”.
Alega o recorrente que, quando o acórdão do TUI refere que o procedimento criminal em que o recorrente se viu envolvido em 1998 está prescrito e, como tal, “... qualquer decisão que o considerasse, de futuro, para efeitos criminais, seria atentatório do princípio da presunção de inocência ...”, tal significa que todo e qualquer facto, antes ou depois da data da prescrição, derivado daquele processo crime, não pode ser considerado em prejuízo do recorrente.
Vejamos.
Ora, tal como resulta do trecho decisória citado, o que foi afirmado pelo TUI é que não se pode tomar qualquer decisão que considere, “para efeitos criminais” (o sublinhado é nosso), o procedimento criminal já declarado prescrito, sob pena de ofender o princípio da presunção de inocência.
No entendimento do TUI, “Para efeitos do disposto na alínea 1) do n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, não tem antecedentes criminais o julgado e condenado à revelia, em pena de prisão, cujo procedimento penal veio a ser extinto por prescrição”.1
Por outras palavras, para efeitos de concessão, ou não, da autorização de residência na RAEM, não se pode considerar que o ora recorrente tem antecedente criminal.
Será que o acto administrativo impugnado ofendeu o caso julgado formado pelo acórdão do TUI proferido no Processo n.º 14/2017?
A propósito do efeito do caso julgado no âmbito de um recurso contencioso, o TUI afirmou no Processo que correu termos sob o n.º 80/2012 o seguinte:
“(…) tem, por força do dever de acatamento do julgado, de eliminar da ordem jurídica os efeitos positivos ou negativos que o acto ilegal tenha produzido e de reconstituir, na medida do possível, a situação que neste momento existiria se o acto ilegal não tivesse sido praticado e se, portanto, o curso dos acontecimentos no tempo que mediou entre a prática do acto e o momento da execução se tivesse apoiado sobre uma base legal.
Por outro lado, a eficácia do caso julgado limita-se aos vícios determinantes da anulação, ou seja, não impede a substituição do acto recorrido por um acto de idêntico conteúdo regulador da situação jurídica, desde que a substituição se faça sem a repetição dos vícios determinantes da anulação. Portanto, o limite objectivo do caso julgado das decisões anulatórias de actos administrativos ‘seja no que respeita ao efeito preclusivo, seja no que respeita ao efeito conformador do futuro exercício do poder administrativo, determina-se pelo vício que fundamenta a decisão’.”
No mesmo sentido, defende Mário Aroso de Almeida a propósito da autoridade do caso julgado que “(…) A sentença que dá provimento ao recurso cobre com autoridade de caso julgado o reconhecimento da existência de determinadas circunstâncias e a sua qualificação jurídica, isto é, a respectiva recondução ao tipo legal disciplinador do exercício do poder manifestado com o acto anulado. (…) a sentença fixa de forma inatacável a factualidade existente e a insusceptibilidade da sua recondução ao tipo legal – de onde resulta definitivamente estabelecida a inidoneidade dessas circunstâncias para fundarem um acto daquela natureza ou com aquele conteúdo, sem prejuízo de que um tal acto possa ser emanado com base noutros fundamentos e no respeito pelas regras aplicadas pela sentença.”
E “(…) O caso julgado formado pela sentença cobre com a sua autoridade as ulteriores questões que envolvam os factos e regras nos quais o tribunal se baseou para decretar a anulação, constituindo assim facto do acertamento de que determinados factos não constituem fundamento válido para o exercício do poder e de que certo tipo de circunstâncias (como aquelas que se verificou terem ocorrido no caso concreto) comprometem ou obstam ao válido exercício do poder: circunstâncias que, em qualquer dos casos se projectam no desenvolvimento futuro da relação subjacente ao acto impugnado, impedindo a reincidência nos mesmos vícios.” 2
É verdade que a doutrina e jurisprudência portuguesa reconhecem à autoridade do caso julgado, em sede de recurso contencioso, um efeito preclusivo complementar, defendendo que “(…) O tribunal deve recusar a renovação do acto administrativo sempre que a Administração não consiga demonstrar que os novos motivos invocados são mesmo novos ou explicar a razão pela qual não haviam sido inicialmente considerados, falando a doutrina, a este propósito, de uma presunção de ilegitimidade do acto renovatório e, assim, de um ónus, a cargo da Administração, de dar alguma prova da sinceridade da nova fundamentação.”3
Vistas tais considerações, é de voltar ao nosso caso concreto.
Imputa o recorrente a violação do caso julgado.
No entanto, tendo em consideração o teor, nomeadamente os motivos invocados no acto administrativo impugnado para fundamentar a decisão de não concessão ao recorrente de autorização de residência, é outra a nossa opinião.
Salvo o muito respeito por entendimento diferente, afigura-se-nos que os motivos invocados pela Administração são mesmo novos e a Administração não há que explicar porquê não os tinha inicialmente considerado para a decisão, pois houve outro fundamento suficiente para a não autorização anterior de residência, que foi a condenação do recorrente pela prática dos crimes, tornando-se assim desnecessária a invocação desses novos motivos.4
Ora, constata-se no acórdão recorrido que, apreciando a questão colocada pelo recorrente de violação do princípio da presunção de inocência, o Tribunal de Segunda Instância expôs as seguintes considerações:
“A especificidade do caso não está tanto na circunstância de ter sido praticado um acto renovador com a mesma solução dispositiva do renovado, mas antes no facto de radicar no quadro contextual que esteve na base do primitivo.
Trata-se, portanto, de uma situação bem curiosa e sui generis, pois que, por um lado, não se pode fazer de conta que o recorrente não foi julgado e condenado, ainda que à revelia. Na verdade, ele foi julgado e condenado pela prática de três crimes. Estes factos (o facto do julgamento e o facto da condenação) aconteceram efectivamente, não há como negá-los!
Mas, por outro lado, os ilícitos criminais indiciariamente praticados pelo recorrente, e que terão estado na justificação da sua condenação, poderiam ser novamente razão, causa e fundamento do novo acto (renovador)?
É isto o que o recorrente pretende rechaçar no recurso, dando a entender que o acto se serviu de matéria que a prescrição, judicialmente decretada, eliminou. Mas, isto não é verdade.
Com efeito, os factos que estiveram na base da sua condenação não foram considerados de modo expresso e, em vez disso, foi deduzida nova fundamentação. O que o autor do acto afirma é que:
- Não se mostram reunidas no caso concreto as qualidades pessoais e de honorabilidade acima de qualquer “dúvida razoável” (1ª parte);
- O recorrente não oferece as garantias de que será cumpridor das leis de Macau e dos valores de cidadania prevalentes na RAEM (2ª parte).
Ou seja, no rigor dos termos, não está mais em causa o argumento dos antecedentes criminais, mas sim a revelação das qualidades do indivíduo, que o autor do acto entende não possuir, nem provavelmente virá a ter. Por conseguinte, juízos de valor (1ª parte) e de prognose (2ª parte) a partir dos factos seguintes:
- Nunca mais regressou a Macau durante cerca de 15 anos, nem após a sua libertação da cadeia onde estava detido em prisão preventiva, nem após o seu casamento em 2004;
- Nunca mais quis saber do processo-crime que contra si pendia em Macau e nunca mais veio visitar a família (mulher e dois filhos que entretanto aqui nasceram);
- O seu regresso só se verificou em 2013, dois meses após a decisão judicial de julgar prescrito o procedimento criminal pelos crimes de que havia sido condenado.
Portanto, a fundamentação do novo acto, ainda que partindo das premissas que alicerçaram o primitivo, é diferente. Já não são os antecedentes criminais que suportam o acto, mas sim razões de outra ordem.
Ora, isto em nada belisca o princípio da presunção de inocência, tão característico do processo penal. O recorrente só o invocou por confundir, porventura, o alcance da fundamentação vertida no acto. O acto não afirmou em lado nenhum que o recorrente é criminoso ou que cometeu algum crime no passado. Se o dissesse, tudo seria diferente, pois iria contra o resultado da decisão do TUI, que confirmou o acórdão do TSI quando asseverou que ele não tinha antecedentes criminais na sequência da extinção do procedimento criminal.
E se o não afirmou, o princípio invocado mantém-se ileso, assim como não se pode dizer estar ofendido o art. 8º, nº 2, da LBOJ (Lei nº 9/1999) razão pela qual improcede o vício.”
Merece a nossa concordância o entendimento transcrito.
Na realidade, o novo acto administrativo não foi baseado no antecedente criminal do recorrente.
Decorre da decisão administrativa que foram considerados os seguintes elementos:
- O recorrente esteve preso no Estabelecimento Prisional de Coloane e depois foi libertado (facto este que não pode, a nosso ver, ser “apagado” pela declaração posterior de prescrição do procedimento criminal);
- Durante 15 anos, 2 meses e 17 dias o recorrente não veio a Macau, mesmo depois do seu casamento em 2004, sendo certo que a sua esposa tem vivido e trabalhado em Macau e aqui nasceram os seus dois filhos em 2009 e 2011;
- Passados apenas dois meses após a declaração judicial de prescrição de procedimento criminal, o recorrente voltou a entrar em Macau;
- Instado a esclarecer sobre a razão pela qual, durante mais de uma década, não tomou a iniciativa de procurar saber do processo penal, se sabia foi proferida decisão judicial declarando extinto o procedimento criminal e como explicava que, passados apenas dois meses após dessa decisão, voltou a entrar em Macau, depois de ter estado 15 anos, 2 meses e 17 dias sem cá ter posto os pés, o recorrente optou pelo silêncio, sem qualquer explicação credível para essa falta de cooperação.
Perante tal quadro contextual, apresenta-nos razoável e legítimo o juízo “duvidoso” formado pela Administração sobre “qualidades pessoais e honorabilidade” do recorrente, afirmando-se que no caso do recorrente não se mostram reunidas as condições necessárias para efeitos de autorização de residência, uma vez que “a autoridade administrativa só pode/deve atribuir a autorização de residência a requerentes cujas qualidades pessoais e honorabilidade estejam fora de qualquer dúvida razoável e, portanto, em relação aos quais não esteja em causa, prognosticamente, a garantia de que serão cidadãos cumpridores das leis de Macau e dos valores de cidadania prevalentes na Região”, pelo que foi indeferido o seu pedido.
Visto isto, é de afirmar, sem dúvida, que não foi o antecedente criminal (nem o comprovado incumprimento das leis da RAEM) que esteve na base de não autorização de residência, daí que não se pode falar na imputada violação do caso julgado formado pelo referido acórdão do TUI.
Pretende o recorrente fixar residência na RAEM, que carece da autorização da Autoridade local.
Nos termos do n.º 2 do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, que estabelece os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência, para efeitos de concessão da autorização de residência, “deve atender-se, nomeadamente, aos seguintes aspectos:
1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.
3. A residência habitual do interessado na RAEM é condição da manutenção da autorização de residência.”
Não é taxativa a indicação feita nessa norma sobre as circunstâncias que se deve atender para efeitos de concessão da autorização de residência, o que significa que, para além dos aspectos aí referidos, em que se incluem “antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”, pode a Administração considerar e ponderar outros aspectos que entende relevantes para o efeito, tendo em vista o prosseguimento do interesse público que lhe compete. Foi o que sucedeu no presente caso.
Para efeitos de concessão da autorização de residência, o que preocupam mais a Administração são, sem dúvida, os interesses públicos de ordem e segurança sociais, como muito bem se compreende.
E compete à Administração tomar medidas necessárias (incluindo a não concessão da autorização de residência) para evitar quaisquer riscos que se poderá provocar, com a entrada, permanência ou autorização de residência dos não-residentes, para a ordem pública e segurança social da comunidade da RAEM.
A Administração da RAEM não tem obrigação de conceder a autorização de residência a todos e quaisquer interessados que a pretendam, mesmo que eles tenham ligação muito próxima com Macau e a requeiram a título de união familiar, como no caso do ora recorrente. Está em causa a política de imigração que cabe à Administração a definir e fica fora do controlo judicial.
Actua a Administração nesta área no exercício dos poderes discricionários, nada lhe obstando que, atendendo a factores apurados no caso concreto, ponderosos no seu entender para o efeito, faça apreciação do caso e avaliação da situação concreta do interessado, com vista à concessão ou não da autorização de residência.
Resumindo, afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente, não se verificando o vício de violação do caso julgado.

3.2. Da violação do princípio da boa fé
Alega ainda o recorrente que o acto administrativo impugnado viola o princípio da boa fé, previsto no art.º 8.º do CPA, arguindo que tal se deve ao facto de contornar o teor de uma decisão judicial vinculativa com um argumento aparentemente “novo” mas que se reporta ao mesmo processo crime que o TUI não permitiu que servisse de fundamento para qualquer decisão.
O art.º 8.º do CPA prevê o seguinte:
Artigo 8.º
(Princípio da boa fé)
1. No exercício da actividade administrativa, e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fé.
2. No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas e, em especial:
a) Da confiança suscitada na contraparte pela actuação em causa;
b) Do objectivo a alcançar com a actuação empreendida.
E conforme é referido pela doutrina, “(…) O princípio da boa fé, sendo embora «dotado de elevado grau de abstracção», está longe de ser uma «fórmula vazia pseudo-normativa».
A sua concretização é possibilitada através de dois princípios básicos: o princípio da tutela da confiança legítima e o princípio da materialidade subjacente. Quer dizer, a boa-fé determina a tutela das situações de confiança e procura assegurar a conformidade material – e não apenas formal – das condutas aos objectivos do ordenamento jurídico. (…) a Administração não pode mudar injustificadamente de critério, não pode dar o dito por não dito, não pode negar o que já havia prometido, não pode formular novas exigências que não apresentou em tempo oportuno, não pode querer culpar o particular por atitudes que ela própria o autorizou a tomar, ou por actividades que o incitou a iniciar antes mesmo de formalizar o contracto, etc. É nesta zona – na zona que separa a boa-fé da má-fé – que se situa a maior parte das vezes o reino do abuso do poder e do puro arbítrio administrativo (…)
Por sua vez, o princípio da materialidade subjacente é fruto do combate histórico ao formalismo, entendido este como submissão rígida dos casos a decidir às disposições legais tidas por aplicáveis.
Através da aplicação deste princípio, a boa-fé requer que o exercício de poderes jurídicos se processe em termos de verdade material, ou seja, não bastando apurar se tais condutas apresentam uma conformidade formal com a ordem jurídica, mas impondo-se, sobretudo, uma ponderação substancial dos valores em jogo. (…)”5
No caso sub judice, a violação do princípio da boa fé alegada pelo recorrente não se reporta a uma qualquer violação da tutela da confiança legítima nem tão-pouco a uma violação da materialidade subjacente.
Para o recorrente, a Administração agiu “manifestamente e objectivamente contra as justas expectativas do recorrente, de reunião familiar”.
Na realidade, e tal como salienta o acórdão recorrido, “não resulta minimamente dos autos que a Administração tenha procedido de maneira a criar nele a convicção e expectativas de que a sua residências seria autorizada após a prescrição do procedimento criminal. Só uma actuação em tais moldes poderia caracterizar essa confiança”.
A decisão da Administração foi proferida em conformidade com o interesse público, tomando em consideração as razões atinentes à segurança e à ordem públicas que estão subjacentes na não concessão da autorização de residência.
Assim sendo, não se vislumbra qualquer violação do princípio da boa fé.

3.3. Da violação do princípio da proporcionalidade
Finalmente, imputa o recorrente uma “violação crassa do princípio da proporcionalidade”.
Desde logo, nota-se que, apesar de ter feito referência ao princípio da proporcionalidade em sede de recurso contencioso apresentado junto do TSI (alínea l) das Conclusões do recurso contencioso), a verdade é que não imputou qualquer vício ao acto administrativo contenciosamente impugnado que estivesse relacionado com a violação desse princípio.
Como se sabe, “Ora, os recursos jurisdicionais destinam-se a apreciar a bondade de uma decisão de que se recorre e não questões novas, a não ser em matéria de conhecimento oficioso.”6
Assim, não se pode conhecer desta questão por não ser matéria de conhecimento oficioso.
Mesmo assim não se entender, não se vê violado o princípio em causa.
Conforme o princípio da proporcionalidade consagrado no n.º 2 do art.º 5.º do CPA, “as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar”.
De acordo com tal princípio, as limitações de direitos e interesses das pessoas devem revelar-se idóneas e necessárias para garantir os fins visados pelos actos dos poderes públicos.
E “O «princípio da proporcionalidade» é o princípio segundo o qual a limitação de bens ou interesses privados por actos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais actos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins”7.
Estando em causa a concessão ou recusa de autorização de residência requerida pelo recorrente, não se compreenderia como e de que modo é que o acto praticado pela Administração violou o mencionado princípio da proporcionalidade.
A aferição da proporcionalidade põe em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto.
Ou seja, exige-se a ponderação e comparação dos bens, interesses ou valores prosseguidos e sacrificados com o acto concreto.
Como é sabido, nos casos em que a Administração actua no âmbito de poderes discricionários, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, a decisão tomada pela Administração fica fora de controlo jurisdicional, salvo nos casos excepcionais.
E a jurisprudência também entende assim, tendo este Tribunal de Última Instância decidido que a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem.8
Não se nos afigura, no caso ora em apreciação, inaceitável ou intolerável o sacrifício trazido ao recorrente pela não concessão da autorização de residência, tendo em consideração os interesses gerais que se prendem concretamente com a manutenção da ordem pública e segurança de Macau que eventualmente podem ser postos em perigo com autorização de residência.
Há de atender à situação concreta do recorrente, sendo de sublinhar que, apesar de estar casado com uma residente de Macau desde 2004 e ter dois filhos aqui nascidos, respectivamente em 2009 e 2011, o recorrente nunca se deslocou de Taiwan a Macau, durante longo tempo e nem por uma só vez, para visitá-los, sendo certo que todos eles têm vivido em Macau e entre os dois locais se pode fazer a viagem com muita facilidade.
Na realidade, não se descortina no acto administrativo impugnado erro manifesto ou grosseiro no exercício do poder discricionário, sabendo que só o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício desse poder constituem uma forma de violação de lei que é judicialmente sindicável (art.º 21.º n.º 1, al. d) do CPAC).
E o acto administrativo recorrido visa obviamente prosseguir um dos interesses públicos, que é precisamente prevenção e garantia da ordem pública e segurança social da RAEM, necessidade esta perante a qual devem ceder os interesses pessoais do interessado.
Não se vê como foi intoleravelmente violado o princípio da proporcionalidade, pelo que se deve julgar improcedente o recurso, também nesta parte.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 10 UC.


                Macau, 27 de Maio de 2022
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Álvaro António Mangas Abreu Dantas
1 Cfr. sumário do Ac. do TUI, proferido no Proc. n.º 14/2017.
2 Mário Aroso de Almeida, Sobre a autoridade do caso julgado das sentenças de anulação de actos administrativos, pág. 128 e 168, posição que também mereceu o acolhimento de Freitas do Amaral, A execução das sentenças dos tribunais administrativos, 2.ª Edição, págs. 92 a 94.
3 Mário Aroso de Almeida, ob. cit., pág. 168; e também Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, pág. 650.
4 O designa “efeito preclusivo amplo” não parece aceite pelo Tribunal de Segunda Instância, pois conforme se pode retirar do teor da fundamentação do acórdão proferido no Processo n.º 412/2010, o TSI dize que “o acto renovador, o novo acto praticado na sequência da anulação, pode bem repetir a solução do acto anulado8, embora com diferentes e novos fundamentos, desde que não reincida naquele(s) que tenha(m) determinado a anulação.”, enquanto na nota 8 afirma que “Embora haja quem pense que a sentença pode ter um efeito preclusivo amplo que impede o órgão administrativo de repetir o acto pela renovação com invocação de novos fundamentos e motivos sem explicar de forma objectiva a razão pela qual os não considerou expressamente no acto anulado: Mário Aroso de Almeida, in Sobre a autoridade do caso julgado das sentenças de anulação de actos administrativos, Coimbra, 1994, pág. 164.” (Acórdão de 5 de Julho de 2012 proferida no âmbito do Processo n.º 412/2010).
5 Freitas do Amaral com a colaboração de Pedro Machete e Lino Torgal, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 3.ª Edição, págs. 118 a 120.
6 Ac.s do TUI, de 14 de Maio de 2008, Proc. n.º 21/2007, de 8 de Maio e de 13 de Novembro de 2019, Proc.s n.ºs 23/2019 e 35/2017.
7 Freitas do Amaral com a colaboração de Pedro Machete e Lino Torgal, ob. cit., pág. 113.
8 Cfr. Acórdão do TUI, de 15 de Outubro de 2003, Proc. n.º 26/2003, entre outros.
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35
Processo n.º 121/2019