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Processo nº 34/2022(I)
(Autos de recurso civil e laboral) (Incidente)





ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

I. Aos 06.04.2022, proferiu o relator dos presentes Autos de Recurso Civil e Laboral a seguinte decisão:

“Vem-nos os presentes autos conclusos para efeitos de exame preliminar; (cfr., art. 621° e 652° do C.P.C.M.).
Após análise, verifica-se que o presente recurso é o próprio, tempestiva e legitimamente interposto, com efeito e modo de subida adequadamente fixados, nada parecendo obstar o seu conhecimento.
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Ponderando no teor da decisão recorrida e nas “questões” pela ora recorrente colocadas, entende-se que o presente recurso deve ser objecto de “decisão sumária”; (cfr., art. 621°, n.° 2 do C.P.C.M., podendo-se também, v,g., ver V. Lima in, “Manual de Direito Processual Civil”, 3ª ed., C.F.J.J., 2018, pág. 744).
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Nesta conformidade, passa-se a decidir.


Relatório

1. Por apenso aos Autos de Execução Ordinária no Tribunal Judicial de Base registados com a referência CV2-18-0159-CEO e em que era exequente A (甲), e executada B (乙), por esta foram deduzidos embargos que, após adequada tramitação processual, vieram a ser julgados procedentes, com a consequente declaração de extinção da dita execução; (cfr., fls. 106 a 110-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido, recorreu o embargado e, por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 21.10.2021, (Proc. n.° 639/2021), concedeu-se provimento ao recurso e, revogando-se o decidido foram os deduzidos embargos julgados improcedentes; (cfr., fls. 158 a 163).

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Inconformada, traz a embargante o presente recurso, batendo-se pela inversão – revogação – do decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância para ficar a valer o decidido pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 170 a 178-v).

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Após resposta do embargado, pugnando pela confirmação do Acórdão recorrido, (cfr., fls. 185 a 196), vieram os autos a este Tribunal de Última Instância.

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Ponderando no teor da decisão do Tribunal Judicial de Base e do Acórdão agora recorrido, tendo presente o que pela ora recorrente vem alegado (e como atrás se referiu), mostra-se-nos que adequado é decidir-se do presente recurso nos termos do art. 621°, n.° 2 do C.P.C.M..

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Pelo Tribunal Judicial de Base foi dada como assente a seguinte factualidade (que não foi objecto de alteração pelo Tribunal de Segunda Instância):

“1. O embargado usou como título executivo o «contrato de confirmação de promessa de hipoteca» de fls. 29 a 30 dos autos da execução para mover a execução contra a embargante, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (alínea A) dos Factos Provados)
2. A executada é titular duma quota de ½ do direito de propriedade da fracção autónoma “F12”, destinada à habitação (descrita sob o n.º XXXXX e inscrita na matriz predial sob o n.º XXXXXX), situada na [Endereço(1)]. (alínea B) dos Factos Provados)
3. A procuração de fls. 21 a 22 dos autos foi assinada pela embargante (alínea C) dos Factos Provados)
4. A supra aludida procuração é “a procuração assinada em 14 de Outubro de 2015 perante o notário privado C” que se menciona no termo de autenticação anexo ao referido «contrato de confirmação de promessa de hipoteca», ou seja, o título executivo. (alínea D) dos Factos Provados)
5. A embargante assinou, pelo menos para garantir o empréstimo referido na resposta ao artigo 8.º dos Factos a Provar, a procuração mencionada na alínea C) dos Factos Provados. (resposta aos artigos 3.º e 10.º dos Factos a Provar)
6. A embargante pediu emprestados HKD$200.000,00 a “D” e “E(戊)” para jogar, mas na realidade apenas recebeu fichas no valor de HKD$180.000,00. (resposta ao artigo 8.° dos Factos a Provar)”; (cfr., fls. 107-v a 108, 159 e 19 a 20 do Apenso).

Do direito

3. Na sua decisão com a qual decidiu julgar improcedentes os “embargos” em questão assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“Realizado o julgamento, o Colectivo a quo deu como não provados todos os factos a provar, salvo os artigos 3.º, 8.º e 10.º, que foram provados no seguinte modo:
Artigos 3.º e 10.º dos Factos a Provar: Ficou provado que a embargante assinou, pelo menos para garantir o empréstimo referido na resposta ao artigo 8.º dos Factos a Provar, a procuração mencionada na alínea C) dos Factos Provados.
Artigo 8.° dos Factos a Provar: A embargante pediu emprestados HKD$200.000,00 a “D” e “E(戊)” para jogar, mas na realidade apenas recebeu fichas no valor de HKD$180.000,00.
Daí se vê que os factos invocados pela executada/embargante para justificar os seus embargos não foram dados como provados, pelo que é impossível a procedência dos embargos.
Embora não tenha ficado provado que o exequente/embargado entregou o dinheiro emprestado (HKD$2.800.000,00) à executada/embargante, tal facto não provado é irrelevante para a causa.
Conforme demonstram os autos, o referido pedido de empréstimo foi feito pelo representante da executada/embargante.
O representante da executada/embargante declarou claramente, no contrato de empréstimo, ter recebido do exequente/embargado a quantia de HKD$2.800.000,00 no dia da assinatura do contrato.
Por outro lado, o exequente/embargado apresentou prova de ter pedido ao [Banco(1)] a emissão duma livrança, no valor de HKD$2.800.000,00, a favor do referido representante F (vide fls. 39 dos autos).
Dispõe o artigo 251.º do CC que “O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.”
Estatuem os artigos 261.º e 262.º do CC, respectivamente:
Artigo 261.º
(Representação sem poderes)
1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. Contudo, o negócio celebrado por representante sem poderes é eficaz em relação ao representado, independentemente de ratificação, se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justificassem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do representante, desde que o representado tenha conscientemente contribuído para fundar a confiança do terceiro.
3. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
4. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
5. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.
Artigo 262.º
(Abuso da representação)
O disposto no artigo anterior é aplicável ao caso de o representante ter abusado dos seus poderes, se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso.
Não há qualquer facto que aponte para a existência de representação sem poderes ou abuso de representação.
Dessarte, nos termos do disposto no artigo 251.º do CC, considera-se que o pedido de empréstimo efectuado pelo representante da executada/embargante produziu os seus efeitos na esfera jurídica da mesma.
Quanto à questão de saber se o respectivo representante entregou o dinheiro emprestado à sua representada, trata-se dum assunto interno entre estes dois, que não tem a ver com o exequente/embargado, salvo se se verificar a situação em que este último se tenha conluiado com o representante para lesar os direitos e interesses da executada/embargante.
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IV. Decisão
Face ao expendido, acorda-se em julgar procedente o recurso do exequente/embargado e, em consequência, revogar a decisão recorrida, negando-se provimento aos embargos.
(…)”; (cfr., fls. 162 a 163 e 28 a 30 do Apenso).

Insurgindo-se contra o assim decidido, diz a embargante ora recorrente que adequada não é à decisão recorrida, pedindo a sua revogação – inversão – para ficar a valer a pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base proferida que julgou procedentes os embargos com a consequente extinção da execução.

Porém, e com todo o respeito o dizemos, cremos que a ora recorrente não tem razão, censura não merecendo o Acórdão recorrido.

Passa-se a expor este nosso ponto de vista.

Nas suas conclusões de recurso, diz a ora recorrente o que segue:

“1. Inconformada com o acórdão do TSI, dele vem agora a recorrente interpor o presente recurso para o Venerando TUI.
2. Com todo o respeito por opinião diversa, não pode a recorrente deixar de discordar do entendimento plasmado a fls. 9 a 11 do acórdão recorrido, pelas razões que a seguir se expõem:

i. Representação sem poderes (errada interpretação e aplicação do artigo 261.º do CC)
3. Compulsados os artigos 3.º, 10.º e 8.º dos Factos a Provar, bem como os factos provados na sentença criminal do processo n.º CR4-19-XXXX-PCS, junto pela recorrente, a fls. 80 a 91 dos autos, constata-se que a procuração em causa visa garantir a quantia de HKD$200.000,00 que a recorrente pediu emprestado a “D” e “E (戊)” para jogar.
4. Conforme vem entendendo a jurisprudência de Macau, a referida conduta de “D” e “E (戊)” de darem de empréstimo à recorrente a quantia de HKD$200.000,00 para jogar claramente constituiu o crime de usura para jogo previsto e punido pelo artigo 13.°, n.º 1 da Lei n.º 8/96/M.
5. Portanto, a respectiva procuração que serviu de garantia da falada quantia emprestada para jogar obviamente faz parte deste crime.
6. Por a procuração em causa destinar-se a garantir o aludido montante de HKD$200.000,00, facultado à recorrente para jogar, tal documento (negócio unilateral) deve ser nulo nos termos dos artigos 273.º e 274.º do CC.
7. Sendo nula a procuração, ao abrigo do artigo 261.º, n.º 1 do CC, o «contrato de confirmação de promessa de hipoteca» que F assinou em nome da recorrente usando tal documento é ineficaz em relação a esta, por representação sem poderes.
8. Razão pela qual, o Tribunal recorrido errou quando afirmou que no caso não existe qualquer representação sem poderes ou abuso de representação.
9. Nestes termos, é óbvio que o acórdão recorrido erradamente interpretou e aplicou o disposto no artigo 261.º, n.º 1 do CC. Logo, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido.

ii. O exequente(recorrido) não provou a existência do crédito descrito no título executivo
10. Em acção executiva, cabe ao exequente provar a existência do direito reclamado.
11. O recibo da livrança constante do anexo I à contestação do recorrido foi emitido em 2 de Junho de 2017. Quer dizer que a livrança foi emitida em 2 de Junho de 2017, subscrita pelo recorrido A a favor de F.
12. O recorrido não tem razão quando pretende usar o recibo da livrança em causa para provar que pagou a F HKD$2.800.000,00. Uma vez que a livrança foi emitida em 2 de Junho de 2017, mas a recorrente(executada) pediu dinheiro emprestado ao recorrido(exequente) em 5 de Junho de 2017, data em que as partes outorgaram o «contrato de confirmação de promessa de hipoteca», no qual declaram que a quantia emprestada foi entregue no dia da outorga (vide artigos 2.º e 3.º do requerimento executivo). Portanto, não se pode dizer que a referida livrança (no valor de HKD$2.800.000,00) destinou-se a entrega da quantia (também de HKD$2.800.000,00) descrita no título executivo, pois a livrança foi emitida em data anterior à da celebração do aludido contrato. Deve antes se dizer que o montante da livrança nada tem a ver com o contrato em causa.
13. Nestes termos, por o recorrido(exequente) não lograr provar, através da livrança em causa, a entrega da quantia mencionada no «contrato de confirmação de promessa de hipoteca», tal contrato não constitui título executivo. Portanto, o seu requerimento de execução deve ser rejeitado.

iii. Abuso de representação (errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 262.º do CC)
14. Refere-se no acórdão recorrido: “Não há qualquer facto que aponte para a existência de representação sem poderes ou abuso de representação.”
15. O recorrido usou a supra aludida procuração para assinar o «contrato de confirmação de promessa de hipoteca», ou seja, o título executivo em apreço, no qual o representante da recorrente, F, declarou ter recebido do recorrido o empréstimo no valor de HKD$2.800.000,00.
16. Tal como se referiu anteriormente, o recibo da livrança em análise foi emitido em 2 de Junho de 2017, e o «contrato de confirmação de promessa de hipoteca» foi assinado em 5 de Junho de 2017.
17. Por outras palavras, o representante da recorrente, F, e o recorrido A entraram em contacto entre si em 2 de Junho de 2017 discutindo a emissão da livrança com o montante de HKD$2.800.000,00. Três dias mais tarde, os dois celebraram o «contrato de confirmação de promessa de hipoteca», onde se menciona um empréstimo do mesmo valor (HKD$2.800.000,00), e daí se pode inferir que o recorrido A sabia que F abusou da procuração da recorrente.
18. Razão pela qual, o Tribunal recorrido errou quando afirmou que no caso não existe qualquer representação sem poderes ou abuso de representação.
19. Nestes termos, o referido contrato é ineficaz em relação à recorrente e o requerimento de execução do recorrido(exequente) deve ser consequentemente indeferido.

iv. Errada interpretação do disposto nos artigos 681.º do CPC e artigos 251.º e 1070.º do CC
20. Segundo a primeira instância, o «contrato de confirmação de promessa de hipoteca» assinado pelo representante F é um documento sem força probatória especial, insusceptível de provar a entrega do montante de 2.800.000,00 dólares de Hong Kong, ou seja, o objecto do mútuo que constitui o contrato real. Portanto, ficando não provado o artigo 14.º dos Factos a Provar, não se pode dar como existente a relação de mútuo e, em consequência, deve julgar-se procedentes os embargos.
21. O acórdão recorrido, por outro lado, concluiu pela improcedência dos embargos da recorrente porque os factos invocados pela mesma para os justificar não foram dados como provados; também entendeu que o referido artigo 14.º dos Factos a Provar é irrelevante para a causa.
22. Importa salientar que a recorrente defende, sobretudo nos artigos 2.º, 16.º a 19 e 31.º a 34.º dos embargos, que nunca pediu emprestado ao recorrido o montante de 2.800.000,00 dólares de Hong Kong, nem autorizou ou mandatou F para pedir dinheiro emprestado ao mesmo, também não o autorizou de fazer qualquer declaração em relação a qualquer empréstimo. Por conseguinte, a recorrente nunca pediu emprestado ou recebeu, pessoalmente ou através de terceiro, qualquer dinheiro do recorrido. A mesma não sabe nem tem obrigação de saber se F recebeu do recorrido a quantia de 2.800.000,00 dólares de Hong Kong.
23. O recorrido contestou, e o artigo 15.º da contestação foi seleccionado para integrar os Factos a Provar (exactamente o artigo 14.º) do despacho saneador. Daí que o referido facto seja obviamente relevante para a presente causa, uma vez que, de acordo com o artigo 430.º do CPC, um facto é relevante se for seleccionado no despacho saneador.
24. De acordo com a alínea A) dos Factos Provados, o recorrido usou como título executivo o «contrato de confirmação de promessa de hipoteca» de fls. 29 a 30 dos autos da execução. No entanto, do conteúdo deste documento resulta apenas que as partes constituíram uma dívida futura.
25. O título executivo em causa nos autos é um documento autenticado, e convencionaram-se a hipoteca (promessa) relativamente à obrigação futura. De acordo com o artigo 681.º do CPC e o entendimento do TSI plasmado a fls. 5 a 6 do acórdão do processo n.º 68/2005, cabe ao recorrido provar que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.
26. Atenta a redacção do artigo 14.º dos Factos a Provar do despacho saneador, constata-se que é sobre o recorrido que recai o ónus de provar a entrega do dinheiro em questão (provar que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes).
27. Caso contrário, a expressão do artigo 14.º deve passar a ser outra que faça incumbir à recorrente provar que o recorrido não lhe entregou o empréstimo.
28. Razão pela qual, o artigo 14.º dos Factos a Provar do despacho saneador é particularmente importante para a presente causa.
29. Embora se possa ver, na parte das observações do título executivo, uma declaração de recebimento do dinheiro, tal declaração está repleta de ambiguidades e não pode, por si só, confirmar se o recorrido já entregou o montante de HKD$2.800.000,00 à recorrente.
30. O acórdão recorrido, porém, entende que por o recorrido ter apresentado prova de ter pedido ao [Banco(1)] a emissão duma livrança, no valor de HKD$2.800.000,00, a favor do representante F, o pedido de empréstimo realizado pelo representante produziu os seus efeitos na esfera jurídica da recorrente nos termos do artigo 251.º do CC.
31. Como ensina o douto acórdão do TUI, proferido no processo n.º 20/2012, “É lícito ao Tribunal de Segunda Instância, depois de fixada a matéria de facto, fazer a sua interpretação e esclarecimento, bem como extrair as ilações ou conclusões que operem o desenvolvimento dos factos, desde que não os altere. O Tribunal de Última Instância, atentos os seus poderes de cognição limitados à matéria de direito e, em regra, sem intervenção em matéria de facto, só pode censurar as conclusões ou desenvolvimentos feitos pelo Tribunal de Segunda Instância sobre a matéria de facto fixada, se este infringir o seu limite, tirando conclusões que não correspondam ao seu desenvolvimento lógico.”
32. A este respeito, acompanhamos totalmente o entendimento da primeira instância plasmado a fls. 8 a 9 da sua decisão.
33. Convém reiterar que, a livrança em causa foi emitida em 2 de Junho de 2017, ao passo que o empréstimo teve lugar em 5 de Junho de 2017 (como indicado no artigo 2.º do requerimento inicial de execução). De acordo com o senso comum, a livrança não deve ter nada a ver com o empréstimo, visto que o recorrido declarou que foi só em 5 de Junho de 2017 que acordou com a recorrente o empréstimo e lhe emprestou o dinheiro, pelo que a livrança devia ter sido emitida após essa data. Logo, a livrança em causa não tem qualquer relação com o empréstimo mencionado no título executivo.
34. Dito de outra forma, as conclusões e desenvolvimentos feitos pelo TSI sobre a matéria de facto fixada são manifestamente ilógicos, não devendo o TSI ter julgado, nos termos do artigo 251.º do CC, que o empréstimo pedido pelo representante da recorrente produziu os seus efeitos na esfera jurídica desta.
35. Na verdade, o Tribunal recorrido não alterou a resposta da primeira instância ao artigo 14.º dos Factos a Provar. Quer dizer que não ficou provado que o recorrido entregou a referida quantia de HKD$2.800.000,00 à recorrente.
36. À luz do perspicaz entendimento plasmado pelo TJB a fls. 7 a 8 do seu acórdão, com o qual concordamos completamente, e tendo ainda por referência a posição do TSI proferida a fls. 5 do acórdão do processo n.º 303/2004, ficando não provado o artigo 14.º dos Factos a Provar, o recorrido não tem como provar que já se constituiu a dívida futura referida no título executivo (que o empréstimo já foi entregue à recorrente).
37. Não logrando o recorrido provar a constituição da obrigação futura referida no título executivo (ou seja, a entrega do empréstimo à recorrente), não se pode dizer que existe entre as partes um contrato de mútuo previsto no artigo 1070.º do CC.
38. Nestes termos, o acórdão recorrido obviamente incorreu em errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 681.º do CPC e artigos 251.º e 1070.º do CC. Razão pela qual deve ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, revogado o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão da primeira instância.
39. Por último, estatui o artigo 1.º, n.º 2 do CPC que “a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção.” Do acima exposto resulta, porém, que a dívida em causa provavelmente provém de conduta ilícita.
40. Como se sabe, a lei apenas tutela direitos legais e interesses legítimos. Qualquer pessoa que pretenda exercer direitos ilegais para obter vantagens ilegítimas não merece tutela jurídica.
41. Termos em que, nos termos do artigo 9.º, n.º 2 do CPC, deve prevenir-se o uso de acção para fins ilegítimos”; (cfr., fls. 176 a 178 e 51 a 58 do Apenso).

Ora, como já tivemos oportunidade de considerar em sede de recursos análogos ao que agora apreciamos:

“Nos embargos de executado o ónus da prova é o que respeita à relação substantiva, sendo irrelevante a posição das partes (activa e passiva) na demanda.
Baseando-se o título executivo no reconhecimento unilateral de dívida, presume-se a relação fundamental até prova em contrário, nos termos do n.º 1 do artigo 452.º do Código Civil, pelo que cabe ao embargante provar que esta relação não existe”; (cfr., Ac. deste T.U.I. de 29.11.2019, Proc. n.° 110/2019).

Mais recentemente, considerou-se também o que segue:

“Toda a execução tem por base um “título” – peça fundamental à sua instauração – pelo qual se determina o seu fim – pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou, prestação de um facto – bem como os seus limites objectivos – quantia exequenda, identidade da coisa a entregar ou, especificação do facto a prestar – e subjectivos – exequente(s) e executado(s).
É, pois, princípio “básico” em processo executivo de que: “Nulla exsecutio sine titulo”.
As exigências da Lei quanto à formação do título destinam-se a estabelecer a garantia (ou a dar a segurança) de que onde está um “título executivo”, está, ao mesmo tempo, um “direito de crédito”, criando-se assim ao respectivo credor o poder de promover a acção executiva sem necessidade de ver o seu direito judicialmente declarado através de uma (prévia) acção declarativa.
Daí que o “título executivo” tenha de satisfazer a uma certa forma e ter um determinado conteúdo, necessário sendo que o título esteja em condições de certificar a existência de uma obrigação que entre as partes se constituiu e formou, pelo que, do ponto de vista do conteúdo, o título executivo deve representar um facto jurídico constitutivo de um crédito, afastando-se com o mesmo a necessidade de alegar as razões ou causas do direito exequendo, (bastando pois invocar o título e a possibilidade de dele dispor, ou seja, de ter legitimidade para pedir com base no invocado título).
Para que um documento particular constitua título executivo, é necessário que esteja assinado pelo devedor e que tal documento importe constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético (art. 689°, n.° 1 do C.P.C.M.) ou de obrigações de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto.
Do estatuído no art. 452° do C.C.M. retira-se que a lei admite que através de um “acto unilateral” se possa efectuar uma “promessa de uma prestação” ou o “reconhecimento de uma dívida” sem que o devedor tenha que indicar as “razões” e/ou o “fim (jurídico)” que o levam a obrigar-se, presumindo-se a “existência” e a “validade” da relação fundamental.
Porém, (e como se mostra de concluir), trata-se de uma simples presunção cuja prova em contrário produzirá as consequências próprias da “falta de licitude ou da imoralidade da causa do negócio”, ou seja: presume-se que a dívida tem fonte idónea e legal, (seja ela qual for), até prova em contrário.
Isto é, a “promessa” e o “reconhecimento” não deixam de ser “causais”, pelo que pode o devedor, (executado), provar que a relação fundamental não existe ou é nula.
Com efeito, o preceito em questão não consagra a figura das “obrigações abstractas”, apenas dispensa o credor de provar a existência da relação fundamental, invertendo o ónus da prova”; (cfr., Ac. de 24.11.2021, Proc. n.° 149/2020).

Aqui chegados, vejamos.

Como é sabido, em sede de um recurso (ordinário) de uma “decisão judicial”, (como é o presente), pode o recorrente impugnar (tanto) a “decisão proferida sobre a matéria de facto” como a decisão com a qual se fez o seu “enquadramento jurídico-legal”, (com a interpretação e aplicação do regime legal àquela situação de facto apurada e relevante), podendo, também, impugnar “ambos os referidos segmentos decisórios”.

Porém, sendo – como é – esta a “regra geral”, óbvio se apresenta que a mesma não é uma “faculdade absoluta” do recorrente para toda e qualquer situação.

Na verdade, evidente se apresenta que este Tribunal de Última Instância, em recurso jurisdicional – como é o caso – não pode censurar a livre convicção pelas Instâncias formada quanto à prova (de livre apreciação), podendo, porém, reconhecer, (e declarar), que há obstáculo legal a que tal convicção se tivesse formado, (quando tenham sido violadas normas ou princípios jurídicos no julgamento da matéria de facto), sendo assim, uma censura que se confina à “legalidade do apuramento dos factos, e não respeita, directamente, à existência ou inexistência destes”.

De facto, e como também, (e repetidamente), já tivemos oportunidade de afirmar, “em recurso cível correspondente a 3.º grau de jurisdição, o Tribunal de Última Instância conhece, em princípio, de matéria de direito e não de facto e a sua competência em apreciar a decisão de facto fica limitada, sendo que a decisão proferida pelo Tribunal de Segunda Instância quanto à matéria de facto é, em princípio, intocável, salvo nos caso expressamente previstos na parte final do n.º 2 do art.º 649.º do CPC, isto é, se houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”; (cfr., v.g., entre muitos outros, e para citar dos mais recentes, o Ac. de 16.02.2022, Proc. n.° 82/2020 e de 25.03.2022, Proc. n.° 15/2022).

In casu, em face do que alega a ora recorrente, mostra-se de concluir que a mesma não impugna a “decisão da matéria de facto”; (aliás, com a mesma “conformou-se”, dado até que o anterior recurso para o Tribunal de Segunda Instância foi interposto pelo embargado).

Assim, cabe desde logo dizer que absolutamente anómalas (e inócuas) são todas as “observações” que a recorrente tece a propósito de “factos” que, na sua opinião, os autos demonstram (ou provam), havendo tão só que se aferir se a “matéria de facto dada como assente” – e, desta forma, definitivamente adquirida para a presente lide recursória – justifica a decisão recorrida de improcedência dos embargos pelo Tribunal de Segunda Instância prolatada.

E, nesta conformidade, como já se deixou adiantado, cremos que evidente é a solução, (muito não sendo necessário consignar para o demonstrar).

De facto, o “contrato” aludido na “alínea A” da matéria de facto dada como provada constitui “documento” adequado e bastante para servir de “título” à execução movida contra à ora recorrente, do mesmo não resultando dúvidas que esta, (ora recorrente), foi regularmente representada no dito contrato pelo seu “procurador” através de documento próprio e legalmente outorgado, e, assim, formal e substancialmente válido para todos os seus efeitos legais; (cfr., “alíneas C e D” dos factos provados).

Numa tentativa de se defender, (“fugir”), à execução que lhe foi instaurada, diz porém a ora recorrente que a aludida “procuração” é “nula”, (cfr., concl. 3 a 9), que o exequente recorrido não provou a existência do crédito descrito no título executivo, (cfr., concl. 10 a 13), que há “abuso de representação”, (cfr., concl. 14 a 19), afirmando, ainda, que há “errada aplicação de vários preceitos legais…”; (cfr., concl. 20 e segs.).

Contudo, tal posicionamento não prospera pois que as afirmações assim tecidas não produzem os efeitos pela recorrente pretendidos.

Dizer que a “procuração” é nula por se considerar que tinha como finalidade um, (ou vários), “empréstimo(s) para jogo”, e, daí concluir – imediatamente – pela sua “nulidade”, constitui, no mínimo, um “salto” em relação ao que “provado” está e ao “regime legal” que lhe é aplicável.

De facto, (para além de ser totalmente precipitado afirmar que por se tratar de “empréstimo para jogo”, é, desde logo, “ilegal”), nada – absolutamente nada – da factualidade assente permite concluir que, (o que nos presentes autos importa e se discute, ou seja), o “crédito exequendo”, tenha a mais pequena relação com qualquer (tipo de) empréstimo para jogo.

Na verdade, não se pode perder de vista que o “quesito 3°” tinha o seguinte teor: “Para garantir o reembolso da dívida resultante de jogo, a embargante assinou, sob coacção de outra pessoa, a procuração referida na alínea C) dos Factos Provados?”, que a sua resposta, conjunta com o “quesito 10°”, foi, como já se viu, de que se tinha (apenas) “provado que a embargante assinou, pelo menos para garantir o empréstimo referido na resposta ao artigo 8.º dos Factos a Provar, a procuração mencionada na alínea C) dos Factos Provados”, certo sendo também que em resposta ao “quesito 8°” se consignou que “A embargante pediu emprestados HKD$200.000,00 a “D” e “E (戊)” para jogar, mas na realidade apenas recebeu fichas no valor de HKD$180.000,00”.

E então cabe perguntar, de onde, como e em que termos, se apresenta possível retirar que o “crédito exequendo” tinha como destino a prática de jogo e que tinha sido concedido de forma irregular ou ilegal?

Qual a relação deste “crédito exequendo” com o “empréstimo” que a recorrente contraiu com o aludido “D” e “E”?

Como é evidente, à ora recorrente cabia, no momento e sede própria e em observância do seu ónus, “provar” (de forma clara e inequívoca) todos os “factos” válidos e relevantes para impedir o prosseguimento da execução que lhe foi instaurada.

Porém, (e depois de um processo crime que, para este efeito, resultou inútil), insiste em alegar matéria (da mesma maneira) totalmente irrelevante para daí extrair – indevidamente – “conclusões” (absolutamente) infundadas, e que, como tal, (e como se apresenta óbvio), não podem ser ponderadas para efeitos de aferir do mérito do que decidido foi.

E, nesta conformidade, em face do que “provado” está, (e, apenas esta “matéria” relevando para a decisão a proferir), e nenhum motivo havendo para se questionar da legalidade e validade da “procuração” pela recorrente outorgada a favor da pessoa que a representou no referido “contrato”, e neste se referindo, expressamente, que o “procurador (em questão) recebeu do exequente a quantia de HKD$2.800.000,00” no dia de assinatura do contrato – que, com os seus juros, integra a “quantia exequenda” – mais não se mostra de dizer para se confirmar a decisão recorrida, pois que nos termos do art. 251° do C.C.M.: “O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”; (em sentido próximo ao ora decidido, cfr., v.g., o recente Acórdão deste T.U.I. de 17.12.2021, Proc. n.° 150/2021).

Dest’arte, (e assim, prejudicadas também estando as outras questões colocadas), imperativo é decidir como segue.

Decisão

4. Nos termos de expendido, decide-se negar provimento ao presente recurso.

Pagará a recorrente a taxa de justiça equivalente a 5 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.
(…)”; (cfr., fls. 211 a 222-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

*

Notificada da decisão que atrás se deixou (integralmente) transcrita, da mesma veio a recorrente reclamar; (cfr., fls. 229 a 231-v).

*

Oportunamente, após adequada tramitação processual, foram os autos conclusos para visto dos Mmos Juízes-Adjuntos e, seguidamente, (nada vindo de novo), inscritos em tabela para apreciação da reclamação em conferência.

*

Nada parecendo obstar, passa-se a decidir.

Fundamentação

2. Como resulta do que até aqui se deixou relatado, vem a recorrente reclamar da “decisão sumária” pelo ora relator proferida.

Porém, após análise e reflexão sobre tudo o que em sede do recurso, como da presente reclamação apresentada vem dito, evidente se nos apresenta que razão não tem a recorrente, ora reclamante.

Na verdade, como cremos que sem esforço se retira do teor da decisão reclamada (e atrás transcrita na sua íntegra), na mesma efectuou-se uma correcta identificação das “questões” (relevantes) a apreciar, em relação às mesmas tendo-se adoptado clara e adequada solução em face dos preceitos legais que sobre a matéria incidiam.

Em – apertada – síntese, considerou-se inteiramente “válido” (e legal) o “título executivo” dado à execução – à qual se opõe a ora reclamante com os embargos que deram origem à presente lide recursória – esclarecendo-se os “motivos de facto e de direito” de tal entendimento, justificando-se, igualmente, das “razões” pelas quais, em face de toda a “matéria de facto” alegada, dada como provada (e não provada), adequada se mostrava de considerar a decisão (de “improcedência dos embargos”) proferida no Acórdão recorrido do Tribunal de Segunda Instância.

Na verdade, em face do teor do referido “título executivo” dado à execução, e demonstrando também a factualidade dada como adquirida que a “dívida exequenda” existia, porque as quantias reclamadas foram efectivamente entregues ao legal procurador da ora reclamante, visto cremos estar o porque da nossa concordância com o pelo Tribunal de Segunda Instância decidido.

Vem, porém, a ora reclamante, insistir nos argumentos que, em sua opinião, deviam justificar outra decisão – que, a seu favor, desse como procedentes os ditos embargos e extinta a execução que lhe foi movida – repetindo o antes já alegado com recurso a um “jogo de palavras” e invocando “indícios” (e pormenores) que a todo o custo tenta retirar de factualidade inexistente – porque não provada – para, daí, afirmar da existência de uma “versão” com a qual pretende demonstrar que o “negócio” que deu origem à dívida exequenda é “nulo”, e que, seja como for, se trata de uma “dívida futura”, alegando mesmo a existência de matéria de relevância criminal…

Contudo, e sem prejuízo do muito respeito pelo esforço argumentativo, (assim como por diversa opinião), cabe apenas dizer que as “considerações (meramente) pessoais”, (assim como os invocados “indícios” ou “palpites”), não constituem motivo nem fundamento legal bastante para se desconsiderar o que nos presentes autos está dado como provado, (e não vem impugnado nem se mostra de alterar).

Nesta conformidade, e apresentando-se-nos que tanto na decisão recorrida do Tribunal de Segunda Instância como na ora reclamada se fez adequado enquadramento legal da factualidade dada como assente, mais não é preciso dizer para se decidir pelo indeferimento da reclamação apresentada.

Decisão

3. Em face do que se deixou exposto, em conferência, acordam indeferir a reclamação apresentada.

Custas pela reclamante com taxa de justiça de 10 UCs.

Notifique.

Macau, aos 27 de Maio de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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Proc. 34/2022-I Pág. 11