Processo nº 211/2020 Data: 27.07.2022
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Contrato de compra e venda.
Matéria de facto.
“Negócio usurário”.
Anulação.
Tempestividade da arguição.
SUMÁRIO
1. Se o adjectivo “progressivo” – e que se pode entender como o que “avança lentamente, e sem parar” – se apresenta pouco “objectivo”, o mesmo não se mostra de dizer relativamente ao (dado como) provado “isolamento”, (que dizia respeito ao “estado” em que o pai do R. passou a viver).
Com efeito, o referido “isolamento”, (entendido como “acto de isolar” ou “de se isolar”), apresenta-se-nos como uma “situação” (perfeitamente) perceptível para qualquer pessoa, significando, tão só e apenas, o estado de uma pessoa que “vive isolada”, “que se pôs” ou “que foi posta de parte”, sem o “convívio” ou a “companhia” de outra(s) pessoa(s), (e, assim, em situação de “afastamento” ou “solidão”), motivos inexistindo para que não possa figurar na “decisão da matéria de facto”.
Assim, provado estando (na resposta ao “quesito 22°”) que o pai do R. tinha “81 anos de idade”, (e resultando da atrás referida resposta ao “quesito 25°”), que vivia em “isolamento”, “morando sozinho em casa”, “com a sua família a residir fora de Macau”, (resposta ao “quesito 26°”), natural e razoável se mostra de dar igualmente como verificado que se encontrava num estado “vulnerável”, (que corresponde à situação de alguém que se encontra “fragilizado”, “exposto a riscos” e “susceptível de ser atacado” e/ou “ofendido”).
2. Atento o estatuído no art. 275° do C.C.M., adequado se mostra de considerar que o “negócio usurário” compreende – essencialmente – três elementos:
- a situação de inferioridade do declarante;
- a obtenção de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados; e,
- a intenção ou consciência do usurário de explorar aquela situação de inferioridade.
3. Se em face da factualidade provada – no “ponto 1” e outra – se constatar da verificação dos referidos elementos do “negócio usurário”, (e, tempestiva sendo a sua arguição), imperativa é a anulação do negócio celebrado; (cfr., art. 275°, n.° 1 e 280° do C.C.M.).
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 211/2020
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), e B (乙), AA., propuseram acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum ordinário contra C, R., (todos, com os sinais dos autos).
A final da petição inicial que apresentaram no Tribunal Judicial de Base deduziram os seguintes pedidos:
“a) fossem os Autores declarados como legítimos e únicos proprietários da fracção autónoma melhor descrita no artigo 1.º da presente petição inicial;
b) fosse a ocupação da fracção por parte do Réu declarada como ilegal, abusiva, não titulada e de má-fé;
c) com a condenação do Réu a:
1 - Reconhecer que os Autores são titulares do invocado direito de propriedade;
2 - Desocupar e restituir aos legítimos e únicos proprietários, de imediato, a referida fracção livre e devoluta de pessoas e bens, e em bom estado de conservação;
3 - Ressarcir os Autores dos prejuízos patrimoniais sofridos pela ocupação indevida e ilegal da fracção desde o dia 1 de Setembro de 2014 até à efectiva restituição da fracção livre e devoluta de pessoas e bens, e que até à presente data perfazem o montante total de MOP$250,500.00 (duzentas e cinquenta mil e quinhentas patacas);
(…)”; (cfr., fls. 2 a 12 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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O processo seguiu os seus termos com contestação e pedido reconvencional do R., (cfr., fls. 66 a 81), e, oportunamente, proferiu a Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base sentença em que se decidiu:
“1. Julgar improcedentes os pedidos formulados pela Autora, A e os Habilitados, A, D, E e F, contra o Réu, C;
2. Anular a compra e venda da fracção autónoma “B13”, sita em Macau, na [Endereço(1)], 13º andar “B”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX a fls. XXv. do Livro BXX, feita, em 22 de Abril de 2005, entre G e a Autora, através da escritura pública outorgada, a fls XX, do Livro XX, do Cartório da [Notária Privada(1)]; e
3. Ordenar o cancelamento do registo de aquisição fundado na referida compras e vendas efectuado pela inscrição número XXXXXXG, na Conservatória do Registo Predial;
(…)”; (cfr., fls. 591 a 601).
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Em sede do recurso que do assim decidido interpuseram os referidos AA. proferiu o Tribunal de Segunda Instância Acórdão de 02.07.2020, (Proc. n.° 1188/2019), e na sua parcial procedência decidiu-se:
“- Reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre a fracção autónoma identificado no artigo 1° da petição inicial;
- Condenar o Réu desocupar da tal fracção autónoma, restituindo-a aos Autores, livre de pessoas e devoluta e em bom estado de conservação;
- Condenar o Réu a pagar aos Autores, a título de indemnização, a quantia correspondente às rendas mensais vencidas desde o mês de Setembro de 2015 até à data do encerramento da discussão de 1ª instância, e às rendas mensais vincendas desde ai até que se verifiquem a desocupação da fracção autónoma e a efectiva restituição da mesma livre de pessoas e devolutas aos Autores, cujo valor a liquidação em sede de execução da sentença; e,
- Absolver o Réu do resto do peticionado, julgando-se improcedente a reconvenção”; (cfr., fls. 757 a 789).
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Inconformado com o assim decidido, o R. recorreu, produzindo as conclusões seguintes:
“I - A matéria vertida nos quesitos 21.° a 25.°, 29.° e 30.° permitiu que sobre os mesmos tivesse sido produzida toda a necessária prova por parte do aqui recorrente e que, por parte dos recorridos, tivesse sido possível produzir toda a contraprova por si julgada oportuna ou reputada exequível.
II - Tais referidos quesitos revestem toda a necessária e bastante densidade e concretude para efeitos de sobre eles ter podido recair a produção de prova efectivamente realizada nos autos, designadamente em audiência, e, simetricamente, o pleno e irrestrito exercício do contraditório bem como admitiram e suportaram, tal qual ficaram redigidos, uma resposta concreta e definida por parte do T.J.B., o que efectivamente sucedeu.
III - A formulação dos quesitos 22.° a 25.° incidiu e permitiu responder acerca do concreto estado psicológico e das concretas condições objectivas de vida do pai do recorrente anteriormente ao seu óbito sendo que, da resposta dada a cada um deles, se logrou apreender - num ou noutro sentido - quais as condições de vulnerabilidade em que se encontraria.
IV - A formulação dos quesitos 29.° e 30.° incidiu e permitiu responder acerca do concreto animus de actuação dos ora recorridos - verbi gratia, de boa-fé, má-fé ou dolo - em face da situação em que se encontrava o pai do recorrente e acerca de quais os concretos actos que, com base em tal animus, os recorridos praticaram.
V - Questões atinentes ao estado psicológico, ao estado anímico, às vicissitudes da vontade e, em geral, a situações do foro "interior" da parte são também questões de facto e, como tal, podem e devem ser quesitadas para que sobre elas possa recair a actividade de produção de prova e contraprova com vista à formação da convicção do julgador quanto à sua consistência e demonstração.
VI - Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei sendo que no âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, se inserem todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos).
VII - Como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração incluem-se os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora urna apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, urna valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio.
VIII - Os quesitos que o T.S.I. eliminou ou julgou como não escritos não contém matéria de direito nem contêm matéria conclusiva, antes correspondendo a circunstâncias exteriores mas também a circunstâncias da vida anímica do pai do recorrente e a actos e eventos praticados pelos recorridos que são pressupostos de facto do efeito jurídico de anulação de um negócio usurário.
IX - Tal qual estão redigidos, esses quesitos reportam-se a factos ou causas de pedir e os termos nele utilizados são acessíveis ao cidadão comum, não antecipando qualquer solução da questão em litígio, encontrando pleno arrimo e enquadramento nos normativos que estabelecem as regras de invocabilidade dos factos e causas de pedir, da selecção da matéria de facto e do seu acolhimento e valoração processual, designadamente os artigos 5.°, n.os 1, 2 e 3, 430.°, n.° 1, alíneas a) e b), e 433.°, 549.°, n.° 4, 558.°, n.° 1, todos do C.P.C., e o art. 390.° do Código Civil.
X - Tratam-se de factos tidos por provados que, após debate contraditório, resultaram da análise e da valoração que o T.J.B. tinha feito da prova produzida, nomeadamente documental e testemunhal, a que acrescentou a presunção judicial, tudo no exercício da sua competência privativa de livre e prudente apreciação da prova ex vi do art. 558.° do C.P.C.
XI - O acórdão recorrido deveria ter mantido intocados os referidos quesitos 22.° a 25.°, 29.° e 30.° e respectivas respostas dadas pelo T.J.B.
XII - Acresce que no que diz respeito ao "isolamento" ficou demonstrado na resposta dada ao quesito n.° 26 da base instrutória que o isolamento do pai do recorrente se deveu i) ao facto de morar sozinho na sua casa; e ii) à circunstância de a sua família residir fora de Macau.
XIII - O quesito n.° 26 e a respectiva resposta dada pelo T.J.B. não foi alvo de recurso por banda dos recorridos nem foi eliminado ex officio pelo Tribunal recorrido ao abrigo do art. 629.° do C.P.C.
XIV - Ou seja, o "isolamento" a que per relationem se alude remissivamente tanto no quesito n.° 29 como no n.° 30, e respectivas respostas, teve a sua causa no facto de o pai do recorrente (i) morar sozinho na sua casa e de (ii) a sua família residir fora de Macau, quadro fáctico esse não contestado nem alvo de recurso ou eliminação oficiosa e que, como tal, se impunha e continua a impor e deveria ter sido atendido e valorado pelo T.S.I.
XV - Por outro lado, a "idade" a que per relationem alude remissivamente a resposta dada ao quesito n.° 30 encontra o seu arrimo no quesito n.° 22 no segmento da sua resposta em que ficou provado - o que não foi igualmente alvo de recurso pelos recorridos nem eliminado ex officio pelo Tribunal a quo ao abrigo do art. 629.° do C.P.C. - que "à data da escritura pública, o pai do réu tinha 81 anos de idade".
XVI - Quanto à "vulnerabilidade" e à "tomada de vantagem" a que se alude per relationem no quesito n.° 29, e respectivas respostas, as mesmas radicam remissivamente tanto nas mesmas circunstâncias fácticas de o pai do recorrente morar sozinho na sua casa (resposta ao quesito n.° 26), de a sua família residir fora de Macau (resposta ao quesito n.° 26), da sua idade de 81 anos aquando da escritura (resposta ao quesito n.° 22) como também de nunca ter havido qualquer pedido de tradição do imóvel ao longo de 9 anos - conforme resposta dada ao quesito n.° 19 - e de o valor do imóvel ser em Abril de 2005 de MOP$1.649.000,00 - conforme resposta dada ao quesito n.° 15.
XVII - Encontra-se parcialmente subjacente a certos segmentos da redacção dos quesitos 29 e 30 - "condição do pai do réu", "referidas condições", "idade" e "isolamento" - uma técnica alusiva ou remissiva, ou seja, esses quesitos 29 e 30 referenciam-se e "comunicam" com a resposta, ou parte da resposta, já dada a outros quesitos da base instrutória, verbi gratia com os quesitos 15, 19, 22 e 26.
XVIII - In casu, tratam-se de alusões ou remissões perfeitamente explícitas e inequívocas e, como tal, as mesmas são necessariamente apreensíveis pelos destinatários da decisão, resultando tal clara e expressamente do conjunto da matéria de facto provada - v.g., as respostas aos quesitos 26, 22, 19 e 15 - bem como da motivação da decisão do T.J.B. a fls. 10 e 12 a 14.
XIX - Na redacção dos quesitos 21.° a 25.°, 29.° e 30.°, ora eliminados ou tidos por não escritos pelo T.S.I., não se vislumbram conceitos de direito, puros ou abstractos, nem qualquer matéria conclusiva em termos de sobre tais quesitos não ter podido recair em toda a sua plenitude prova e contraprova por ambas as partes litigantes nem, igualmente, impeditiva de sobre eles ter podido incidir uma autónoma e bem delimitada decisão estritamente sobre a matéria de facto.
XX - Nem também de, só seguidamente, após as alegações escritas de direito de ambas as partes, ter então finalmente podido incidir uma autónoma e bem delimitada decisão de direito mediante a aplicação dos normativos relevantes em relação àqueles factos constantes da decisão de facto.
XXI - Os quesitos 21.° a 25.°, 29.° e 30.°, e respectivas respostas, dever-se-iam ter conservado intangíveis e intocados - designadamente, face à técnica remissiva neles utilizada - e, assim sendo, deveria o Tribunal recorrido ter julgado improcedente a respectiva impugnação feita pelos recorridos e, por conseguinte, ter mantido in totum a resposta a eles dada bem como a subsequente sentença proferida pelo T.J.B.
XXII - Ao não ter adoptado a ora propugnada interpretação e aplicação dos artigos 5.°, n.os 1, 2 e 3, 430.°, n.° 1, alíneas a) e b), e 433.°, 549.°, n.° 4, 558.°, n.° 1, e 629.°, todos do C.P.C., e do art. 390.° do Código Civil, o Tribunal a quo procedeu à violação das mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.° 2 do art. 598.° do C.P.C.
XXIII - Na decisão recorrida o T.S.I. eliminou ou julgou não escritos tais quesitos e respostas mas não determinou, de imediato e em simultâneo, a sua remessa ao T.J.B. para efeitos de ampliação em primeira instância da matéria de facto para sobre a mesma recair prova suplementar sobre pontos concretos, conforme lho faculta e determina o n.° 4 do art. 629.° e, com as devidas adaptações, o art. 553.°, n.° 2, al. f) e o art. 5.°, todos do C.P.C.
XXIV - Ao não ter adoptado a ora propugnada interpretação e aplicação do n.° 4 do art. 629.°, do art. 553.°, n.° 2, al. f) e do art. 5.°, todos do C.P.C., o Tribunal a quo procedeu à violação das mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.° 2 do art. 598.° do C.P.C.
XXV - O recorrente entende e sustenta que se deve manter inalterada toda a decisão - tanto de facto como de direito - do T.J.B. mas que, na eventualidade de se dever acolher e manter essa decisão do T.S.I. - isto é, de desconsiderar e eliminar aqueles quesitos 21.° a 25.°, 29.° e 30.°, e respectivas respostas -, então, em tal cenário hipotético, reitera-se que sempre se deveria ter remetido, ex vi do n.° 4 do art. 629.° do C.P.C., para ampliação da matéria de facto pelo T.J.B.
XXVI - Contudo, a dever o T.S.I. poder emitir um juízo substitutivo de mérito ao abrigo do art. 630.°, n.° 1, do C.P.C. nunca poderia tê-lo sido nos precisos e exactos termos concretos em que, apesar disso, o T.S.I. o fez no seu acórdão aqui recorrido.
XXVII - O ofício das Finanças a que se alude na decisão recorrida manifestamente não prova o que o T.S.I. pretendeu que ele provasse pois tal ofício não tem a virtude nem o alcance de conseguir provar que a vontade e a capacidade de determinação do pai do recorrente estivesse em 2005/2006 livre, intacta, inteira e, por essa via, imune ao aproveitamento de terceiros, sobretudo não o provando nos termos absolutamente maximalistas e peremptórios que o T.S.I. lhe quis emprestar.
XXVIII - O ofício das Finanças tão-somente é apto a atestar que em 2005/2006 foi declarado às Finanças que o pai do recorrente recebeu determinados rendimentos colectáveis.
XXIX - Todavia, impõe-se destacar que, confrontando o segmento do acórdão a quo de fls. 52 com o teor do ofício constante a fls. 493 dos autos, constata-se que são outros, bem diversos, os valores num e noutro mencionados, pois que o que está declarado nesse ofício é que o pai do recorrente teria recebido em 2005, enquanto trabalhador por conta própria, o valor de MOP$67.246,00 e não o valor, 8 vezes superior, de - conforme se refere no acórdão a quo! - MOP$544.570,00 e, enquanto trabalhador subordinado, o valor de MOP$586.460,00.
XXX - Trata-se de um patente lapso em que se incorreu no acórdão recorrido e que, só por si, permitiria derrubar tudo o que, com base nesse lapso, aí é seguidamente dito e argumentado pelo T.S.I.
XXXI - Mesmo relativamente aos declarados rendimentos de 2005, de MOP$611.816,00 (MOP$67.246,00 + MOP$544.570,00), desse ofício das Finanças nada se pode retirar ou concluir quanto aos concretos termos e condições em que os mesmos teriam sido auferidos em 2005.
XXXII - Tal qual o impõe o art. 365.° do Código Civil, nada se pode inferir ou indiciar a partir desse ofício, designadamente entre muitos outros pontos quanto a saber i) se pai do recorrente realizaria ou não trabalhos mental e intelectualmente complexos, desgastantes e exigentes; ii) se trabalharia ou não em regime de tempo integral ou, pelo contrário, a tempo parcial ou em part-time; ou iii) se apenas realizaria tarefas simples de acompanhamento e supervisão ou mentoria de outros trabalhadores.
XXXIII - O declarado recebimento de rendimentos em 2005 - de MOP$611.816,00 e não de MOP$1.131.030,00, como erroneamente consta da decisão a quo - em nada é incompatível e em nada inviabiliza a forte força demonstrativa de todas as demais circunstâncias conhecidas e provadas em relação ao pai do recorrente: que ele vivia sozinho na sua casa, que toda a sua família vivia fora de Macau, que tinha 81 anos de idade e que, numa escritura, declarou vender o seu imóvel por um preço 27,57 % inferior ao respectivo valor real de mercado em 2005 a uma pessoa diversa daquela que, na tese dos recorridos, teria querido recompensar.
XXXIV - Esse declarado recebimento de determinado rendimento em 2005 nada pode provar nem permite minimamente sustentar qualquer juízo quanto à ausência de constrangimento da vontade de determinação do pai do recorrente e, aliás, se tal recebimento algo poderia sugerir seria precisamente algo bastante diverso da ilação feita pelo T.S.I.
XXXV - Ou seja, tal declarado recebimento de rendimentos apontaria que o pai do recorrente, além de ser dono desse imóvel respeitante à escritura de 2005, também auferia outros rendimentos e que, portanto, o pai do recorrente, atento esse seu património e rendimentos - tudo aliado à sua idade, ausência de Macau da sua família e de morar sozinho -, mais se mostraria apto a ser um alvo especialmente apetecível e propício a atrair a cobiça e a malícia alheias, tal qual se apura ainda em sede do recurso respeitante à queixa-crime acima mencionada.
XXXVI - A decisão material adoptada pelo T.S.I. ao abrigo do art. 630.°, n.° 1, do C.P.C. com base nesse oficio das Finanças - a qual refere rendimentos autónomos de 2005 8 vezes inferiores aos indicados pelo T.S.I. - afigura-se ostensivamente insustentada num elemento de prova que em si nada pode provar quanto à questão em causa: determinar se a vontade e a capacidade de determinação do pai do recorrente estava ou não em Abril de 2005, aquando da escritura pública, livre, intacta, inteira e imune ao aproveitamento de terceiros.
XXXVII - Entende o recorrente que, com base nesse oficio das Finanças, nunca o T.S.I. poderia ter adoptado a decisão material ao abrigo do art. 630.°, n.° 1, do C.P.C. ora impugnada mas que, pelo contrário, outros elementos de facto já constantes dos autos e que não foram desconsiderados nem eliminados deveriam ter imposto decisão material diversa ao abrigo desse mesmo regime do art. 630.°, n.° 1, do C.P.C.: Alínea B) dos Factos Assentes: em 22 ABR 2005 celebrou-se uma escritura pública com o preço declarado de MOP$454.700,00; Resposta ao Quesito n.° 15.°: o imóvel valia em Abril de 2005 MOP$1.649.000,00; Resposta ao Quesito n.° 19.°: após a escritura nunca foi feito qualquer pedido de tradição do imóvel, nomeadamente através da entrega da respectivas chaves; Resposta ao Quesito n.° 22.°: em Abril de 2005 o pai do recorrente tinha 81 anos; e Resposta ao Quesito n.° 26.°: o isolamento do pai do recorrente deveu-se tanto ao facto de morar sozinho na sua casa como à circunstância de a sua família residir fora e Macau.
XXXVIII - Com base em tais elementos de facto assentes e provados, e atendendo ao conjunto e ao contexto global e concatenado de toda a prova, mostra-se que a situação envolvente à alegada compra pelos recorridos da fracção ''B 13" se revestiu de patentes incongruências e perplexidades, as quais vieram a ser comungadas pelo T.J.B.
XXXIX - Em primeiro lugar, como se justificaria que quem alegadamente "comprou" a dita fracção não foi a pessoa que o pai do recorrente quereria alegadamente recompensar - isto é, a filha dos recorridos - mas sim a mãe desta?
XL - Em segundo lugar, permanece igualmente inexplicável por que razão desde pelo menos a morte do pai do recorrente não foi apresentado algum comprovativo documental do efectivo pagamento do preço de tal fracção "B13".
XLI - Tertio, como se justificar a circunstância insólita e extremamente inverosímil, por parte dos recorridos de não terem feito qualquer pedido de tradição do imóvel, nomeadamente através da entrega das respectivas chaves, permanecendo, pois, a mesma Fracção "B13" na posse exclusiva do pai do recorrente durante pelo menos 9 consecutivos anos?
XLII - Em quarto lugar, acresce que o preço mencionado na escritura pública de 22 ABR 2005 - de MOP$454.700,00 - revelou-se efectivamente muito inferior aos preços de mercado praticados em Macau em 2005 na zona da [Endereço(1)] relativamente a uma fracção com as dimensões da "B13", de cerca de 165 m2, tal qual resultou da avaliação feita pelas Finanças de Macau, que aponta que o seu valor à data de Abril de 2005 seria de MOP$1.649.000,00, ou seja, mais de 3 vezes e ½ ou 362% acima do valor declarado na escritura.
XLIII - Todas as circunstâncias em torno dos últimos anos de vida do pai do recorrente mostram que o mesmo foi um alvo fácil de vários e sucessivos actos de aproveitamento da situação de vida em que se encontrava, em especial por parte da filha e procuradora dos recorridos, mostrando-se implausível e insustentável a tese de uma simples e injustificada atribuição gratuita e sem causa da fracção “B13” do pai do recorrente aos recorrentes.
XLIV - Cabe enfatizar que apenas ficou provado que a relação de amizade entre os recorridos e o pai do recorrente fosse "boa", conforme decorre da resposta ao quesito n.° 2 e aparece reiterado na motivação do T.J.B. a fls. 13 e não que tal relação fosse "excelente", conforme inexplicavelmente surge referido pelo T.S.I. a fls. 57 do acórdão recorrido.
XLV - A referência ao cariz da amizade é particularmente relevante uma vez que foi, ressalvado o elevado respeito, com base neste segundo lapso manifesto - o primeiro dizendo respeito ao valor, 8 vezes inferior, dos rendimentos autónomos de 2005 - que no acórdão recorrido se diz a fls. 56 e 57 que a desproporção e o desequilíbrio entre os benefícios obtidos pelos autores em relação ao preço que tiveram de pagar são substancialmente neutralizados pela "comprovada excelente amizade entre a filha dos autores e o pai do réu".
XLVI - Ou seja, além do ofício das Finanças (em que ocorreu o primeiro dos lapsos), é ainda com base nesta relação de amizade que seria "excelente" - mas afinal era meramente "boa" - que, se bem entendido, o T.S.I. assentou o seu convencimento para efeitos de julgar inverificados os requisitos da anulação do negócio usurário.
XLVII - Por outro lado, saliente-se também que a própria razão para os recorridos terem tentado qualificar como "excelente" ou "muito íntima" as relações entre si e o pai do recorrente assentou na sua necessidade de tomar plausível e concebível aquilo que nenhuma plausibilidade ou razoabilidade revestiria, ou seja, que nunca o falecido pai do recorrente conceberia vender a referida fracção "B13" e, muito em especial, sobretudo e em caso algum conceberia fazê-lo por um preço tão irrisoriamente baixo como o descrito na escritura, isto é, de MOP$454.700,00!
XLVIII - Mesmo expurgando parte da matéria de facto nos termos em que o fez, deveria o T.S.I., ainda assim, ter mantido in totum o sentido decisório adoptado pelo T.J.B., atenta a demais matéria de facto, pois nesta se contemplaram, segundo as boas legis artes da avaliação crítica dos meios de prova, todos os factos essenciais que, de direito, fundamentaram a decisão final de direito em primeira instância.
XLIX - O T.J.B. formou a sua convicção quanto à verificação in casu de uma tripla e cumulativa realidade: i) situação de inferioridade (capitis diminutia) de uma das partes (o pai do recorrente); ii) o aproveitamento consciente de tal inferioridade pela outra parte; e iii) a obtenção por esta última parte de resultados leoninos, manifestamente excessivos ou injustificados, em termos de estar em causa um quadro de formação patológica da vontade do pai do recorrente que não uma falta de vontade nem uma divergência entre e vontade e a declaração mas, diversamente, o constrangimento da liberdade declaratória aquando do processo de formação da vontade do o pai do recorrente, em Abril de 2005.
L - Vulnerabilidade é a qualidade daquele que é vulnerável, isto é, daquele que, face a características e em contextos concretos, é susceptível de se encontrar exposto a danos, físicos ou morais, e perigos devido à sua fragilidade ou fraqueza relativas, podendo referir-se a uma pessoa conforme a sua capacidade ou aptidão- face a tais características e contextos - para prevenir, resistir, evitar ou contornar potenciais impactos ou resultados desfavoráveis.
LI - Pessoas vulneráveis são aquelas que não têm - ou já não têm - essa capacidade ou aptidão desenvolvida, activa ou em plenitude e que, por conseguinte, se encontram em situação de perigo ou risco sendo seguro afirmar que a vulnerabilidade atinge e incide sobretudo sobre crianças, mulheres e idosos, que possuem maior fragilidade perante outros grupos da sociedade.
LII - Era precisamente de vulnerabilidade a situação fáctico-empírica do pai do recorrente: com 81 anos, vivendo sozinho na sua casa, sem família a residir em Macau e que é levado a outorgar uma compra e venda de um imóvel em 2005 por um preço cerca de 27% inferior ao seu real valor de mercado a favor de alguém que nem seria - segundo a teste dos recorridos - a pessoa que teria alegadamente recompensar.
LIlI - Para o T.J.B. ficou caracterizado, para efeitos do art. 275.° do Código Civil, um quadro de inferioridade que, por se estar em sede de direito privado - em que uma das traves mestras é precisamente a da pretensa e pressuposta igualdade negocial entre as partes -, se acaso se mostra que afinal, umas das partes - conforme, in casu, o pai do recorrente - tem a sua liberdade de formação da vontade constrangida, então tal parte está afinal numa situação de desigualdade (de inferioridade relativa) face à outra (que estará numa posição de superioridade ou supremacia).
LIV - Se a um tal quadro de inferioridade se acrescentar que a contra-parte, conhecendo-o, se aproveitou da outra parte fazendo reverter para si benefícios manifesta e desproporcionalmente descabidos (ou seja, leoninos) e sem qualquer plausibilidade ou justificabilidade, estará caracterizado uma situação de um patente e iníquo desequilíbrio contratual, como o é o dos "negócios usurários", conforme ocorreu in casu.
LV - Manda o princípio da justiça comutativa (ou da equivalência objectiva das prestações) que nos contratos onerosos, à prestação de cada um dos contraentes deve corresponder uma prestação de valor objectivo sensivelmente equivalente da parte do outro contraente, o que não ocorreu nos presentes autos precisamente atento o efectivo aproveitamento doloso da inferioridade relativa do pai do recorrente por parte dos recorridos.
LVI - Em face do exposto, mostra-se ao recorrente que, para os efeitos do art. 630.°, n.° 1, do C.P.C., mesmo se relevando a expurgação dos autos da matéria de facto operada pelo T.S.I. e a não remessa pelo T.S.I. ao T.J.B. para ampliação da matéria de facto, mesmo assim sempre deveria o T.S.I. ter acolhido o mesmo sentido decisório do T.J.B. e, ao não ter adoptado a ora propugnada interpretação e aplicação do art. 630.°, n.° 1, do C.P.C., e dos artigos 365.°, 275.° e 276.°, todos do Código Civil, o Tribunal a quo procedeu à violação das mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.° 2 do art. 598.° do C.P.C.
LVII - Ainda que, sempre sem conceder, não mereça porventura censura por parte do T.U.I. a matéria de facto tal qual a mesma consta e foi decidida no acórdão do T.S.I., ou a decisão do T.S.I. de não remeter os autos para ampliação da matéria de facto perante o T.J.B., sempre deverá agora o T.U.I., nos termos e para os efeitos do art. 649.°, n.° 1, do C.P.C., aplicar o relevante direito material, sustentando o recorrente que deva ser acolhido o mesmo sentido decisório do T.J.B. por aplicação dos artigos 275.° e 276.° do Código Civil, tudo conforme supra consta dos artigos 41.° a 104.°, que aqui se reiteram e dão para todos os efeitos legais por integralmente reproduzidos”; (cfr., fls. 799 a 847).
*
Cumpre conhecer.
Fundamentação
Dos factos
2. O Tribunal Judicial de Base deu como provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Conforme a inscrição n.º XXXXXXG do registo predial, a 1ª Autora, casada com o 2º Autor, é registada como proprietária da fracção autónoma “B13”, sita em Macau, na [Endereço(1)], 13º andar “B”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX a fls. XXv. do Livro BXX. (fls. 20 dos autos) (alínea A) dos factos assentes).
- O registo referido na al. A. tem por base a escritura pública de compra e venda outorgada em 22 de Abril de 2005, a fls. XX, do Livro XX do Cartório da [Notária Privada(1)]. (fls. 23 a 26 dos autos) (alínea B) dos factos assentes).
- No dia 23 de Abril de 2005, foi outorgada uma procuração no Cartório do [Notário Privado(2)], pela qual os ora Autores constituíram sua bastante procuradora a sua filha D (丁 - XXXX XXXX XXXX), maior (alínea C) dos factos assentes).
- A quem conferiram os mais amplos e plenos poderes relativamente à fracção autónoma referida na al. A., nomeadamente o de os representar em tribunal em quaisquer questões ou matérias relacionadas com a referida fracção autónoma ou os seus direitos sobre a mesma, e o de usar de todos os poderes e exercer todos os direitos que possuem na qualidade de proprietários (alínea D) dos factos assentes).
- Em Maio de 2014, o Sr. G faleceu (alínea E) dos factos assentes).
- Até à data presente, o Réu encontra-se a ocupar a fracção autónoma referida na al. A. (alínea F) dos factos assentes).
- Os Autores, por intermédio da sua bastante procuradora e dos seus mandatários, interpelaram o ora Réu através de carta registada com aviso de recepção datada de 24 de Agosto de 2015, solicitando-lhe que desocupasse e restituísse a referida fracção livre e devoluta de pessoas e bens no prazo de 15 (quinze) dias a contar da recepção dessa carta, conforme cópia da carta e aviso de recepção que se juntam como documento n.º 4 com a petição inicial (alínea G) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- Após a celebração da escritura referida em B) dos Factos Assentes, G, pai do Réu, continuou a viver na fracção autónoma como fazia até então sem pagar aos Autores qualquer contrapartida (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- A Autora e a sua procuradora, D, tinham uma boa relação de amizade pessoal com G (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
- Por força do falecimento de G, os Autores, através da sua procuradora, entraram em contacto com o Réu e solicitaram que este desocupasse e lhas entregasse livre de pessoa e bens (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
- No mês de Agosto de 2015, os Autores, por intermédio da sua procuradora, pediram novamente ao Réu que desocupasse a fracção e que a entregasses aos Autores livre e devoluta de pessoas e bens (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- O Réu recusou-se a fazê-lo (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- O Réu ocupa a fracção contra a vontade dos Autores e sem qualquer contrapartida, o que impede a que Autores a usassem e ocupassem (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- Não obstante o pedido dos Autores, o Réu continua a negar-se a desocupar a fracção autónoma, continuando a ocupá-la (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- A ocupação da fracção por parte do Réu impossibilita os Autores de a colocar no mercado de arrendamento (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
- E receber as respectivas rendas (resposta ao quesito 13º da base instrutória).
- O valor de mercado das rendas mensais, entre Junho de 2014 e Setembro de 2015, para aquela fracção era de MOP$16.700,00 (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- O imóvel referido em A) dos factos assentes em Abril de 2005 valia MOP$1.649.000,00 (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- Depois da celebração da escritura pública referida em B) dos factos assentes, os Autores e a filha deles, D, não fizeram qualquer pedido de tradição do imóvel, nomeadamente através da entrega das respectivas chaves (resposta ao quesito 19º da base instrutória).
- O Réu tem permanecido na fracção autónoma após o óbito do seu pai (resposta ao quesito 21º da base instrutória).
- À data da escritura pública, o pai do Réu tinha 81 anos de idade (resposta ao quesito 22º da base instrutória).
- O pai do Réu passou a viver em progressivo isolamento (resposta ao quesito 25º da base instrutória).
- Esse isolamento deveu-se ao facto de morar sozinho na sua casa e à circunstância de a sua família residir fora de Macau (resposta ao quesito 26º da base instrutória).
- Os Autores e a sua filha e procuradora, D, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção “B13”, celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes (resposta ao quesito 29º da base instrutória).
- Devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes (resposta ao quesito 30º da base instrutória)”; (cfr., fls. 592-v a 594-v).
Do direito
3. Insurge-se o R. contra o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, (cfr., pág. 4 deste veredicto), considerando – essencialmente – que indevida é a referida decisão recorrida na parte que “anulou” as respostas pelo Colectivo do Tribunal Judicial de Base dadas aos quesitos “21° a 25° e 29° e 30°”, afirmando, subsidiariamente, que mesmo sem tal matéria de facto se deveria confirmar e manter a “solução de direito” a que tinha chegado a Primeira Instância.
Para cabal compreensão das razões da decisão recorrida relativamente à referida matéria de facto, passa-se a proceder à sua transcrição na parte que agora interessa, (notando-se que os aí recorrentes, são os ora recorridos):
“(…)
Pediram os recorrentes, com o pretendido êxito da impugnação da matéria de facto tida por assente na primeira instância e a consequente alteração da matéria de facto nos termos requeridos, que fosse revogada a sentença recorrida, em substituição fossem julgados procedentes todo o peticionado na acção.
Então comecemos pela impugnação da matéria de facto.
Os recorrentes reagiram contra a decisão da matéria de facto, atacando a montante o despacho proferido sobre as reclamações da selecção da matéria de facto, e a jusante imputando erro de julgamento à decisão sobre a matéria de facto vertida nos quesitos 1º, 2º, 29º e 30º da base instrutória.
Então vejamos.
i) Reclamação da selecção da matéria de facto
Conforme se vê no saneador, foi levada aos quesitos 21º a 25º, 29º e 30º a seguinte matéria:
……
21.
O Réu tem permanecido na fracção autónoma desde o óbito do seu pai na firma convicção de que essa fracção nunca foi pretendida vender pelo seu pai e que este, de todo o modo, nunca recebeu qualquer preço?
22.
À data da escritura pública, o pai do Réu tinha uma idade muito avançada, e fruto da mesma, tinha passado a ter crescentes dificuldades mentais de entendimento?
23.
Tais dificuldades implicaram que o pai do Réu, mesmo face a ideias muito concretas, simples e directas, deixasse de compreender o respectivo significado e alcance?
24.
Mesmo para decisões simples, o pai do Réu passou a estar dependente de terceiros, não tendo já condições de autodeterminar-se e actuar de uma forma esclarecida e crítica?
25.
A perturbação da sua capacidade volitiva e de entendimento resultou não só da sua idade avançada como do progressivo isolamento em que passou a viver?
……
29.
Os Autores e a sua filha e procuradora bem conheciam e aceitaram tomar vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter gratuitamente dele vantagens patrimoniais nomeadamente a fracção “B-13”?
30.
Mediante a sua indução em erro quanto ao alcance e significado dos seus actos, atenta a sua idade, isolamento e deterioração das capacidades mentais de querer e entender, os Autores e a sua filha e procuradora levaram o pai do Réu a realizar o acto disposição da fracção autónoma?
……
Notificados do saneador, vieram os Autores reclamar contra a selecção da matéria de facto, na parte que diz respeito a esses quesitos.
Pois, para os Autores, a tal matéria contém em si expressões manifestamente vagas, imprecisas e conclusivas ou de direito, destituídas de factos puros para a sua concretização, assim como conceitos genéricos, portanto insusceptíveis de prova e deveriam ser eliminadas.
Sobre as reclamações foi proferido o seguinte despacho:
Vêm os Autores apresentar reclamação relativamente à selecção da matéria de facto. (fls. 392 a 399)
Notificadas, as partes silenciaram quanto à reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
1 - Sugerem os Autores a nova redacção do quesito 1º, aditando a expressão “... através da sua bastante procuradora ...”.
Tendo em conta os fundamentos invocados pelos Autores no art. 7º da sua reclamação, defere-se o seu requerimento.
2 - Entendem os Autores que deverá ser eliminado do quesito n.º 11º a expressão “... continuando a ocupar a fracção ...”.
No quesito n.º 11º, está quesitada relação entre a “negação” do Réu e a “ocupação” da fracção do Réu.
Deste modo, pesa embora a existência da al. F, deve manter-se a redacção actual do referido quesito.
3 - Entendem os Autores que os quesitos 21º a 25º, 29º e 30º versam sobre matéria manifestamente vaga, imprecisa e conclusiva, e deverão por isso ser eliminados da base instrutória.
No quesito n.º 21º, pergunta-se a intenção subjectiva do Réu. Não se afigura que seja um facto não susceptível de prova, pelo que deve ser mantido na base instrutória.
Os quesitos n.º 22º a 25º relacionam-se com o estado psicológico do pai do Réu antes do seu falecimento, e tais facto, conforme o Réu demonstram a vulnerabilidade do seu pai e contribuem para invalidar o negócio de compra e venda da fracção. Não se afigura que sejam factos não susceptíveis de prova, pelo que devem ser mantidos na base instrutória.
Também os quesitos n.º 29º e 30º têm a ver com a alegada “má-fé” dos Autores e a sua filha, factos que contribuem para, eventualmente, se concluir pela invalidade do negócio de compra e venda da fracção em causa. Tais factos devem ser mantidos na base instrutória.
*
Por tudo ficou expendido, julga-se parcialmente procedente a reclamação dos Autores.
O quesito n.º 1º passa a ter a redacção seguinte:
“Os Autores, através da sua bastante procuradora, consentiram que após a celebração da escritura referida na al. B. dos Factos Assentes o Sr. G, pai do Réu, usasse a fracção autónoma sem pagar aos Autores qualquer contrapartida?”
Insatisfeitos com a decisão nestes termos, vieram os Autores, agora em sede de recurso, impugnar este despacho, nos termos permitidos no artº 430º/3 do CPC.
No presente recurso, os Autores, ora recorrentes, reiteraram mais ou menos o que foi dito na reclamação contra a selecção da matéria de facto, tendo defendido que deveriam ter sido eliminadas da base instrutória as expressões “idade muito avançada”, “crescentes dificuldades mentais de entendimento”, “condições de vulnerabilidade”, “isolamento”, contidas na matéria vertida nos quesitos 21º a 25º, 29º e 30º, dado que se reportam aos conceitos vagos, imprecisos e à matéria conclusiva.
Como se sabe, a prova consiste na mensagem contida nos meios de prova, capaz de demonstrar de per si factos ou da qual se podem fazer inferir factos com o recurso à lógica das coisas ou às regras da experiência de vida. Tal mensagem pode ser extraída mediante o exame e valoração dos meios de prova já constituídos e admitidos aos autos ou através da produção de prova a constituir pelo Tribunal, no âmbito da causa e para a causa.
A prova só pode incidir sobre factos, e em caso algum sobre conclusões, juízos valorativos e matéria de direito, que, como se sabem, só cabem na competência dos Tribunais.
No caso sub judice, estamos perante as expressões “idade muito avançada”, “crescentes dificuldades mentais de entendimento”, “condições de vulnerabilidade”, “isolamento”.
Ora, tendo em conta todo o contexto em que se encontram inseridas, as tais expressões são efectivamente destituídas do suporte de factos materiais.
Não cremos que, por isso, essas expressões sejam susceptíveis de prova.
Basta pensar no seguinte: se uma testemunha, inquirida na audiência de julgamento sobre se uma determinada pessoa tem idade muito avançada? se ela está isolada? ou se está em condições de vulnerabilidade? responder afirmativamente que sim!
Quid juris?
Se o Tribunal não conceder credibilidade ao depoimento, inexiste o problema.
Pelo contrário, caso o Tribunal venha a considerar a testemunha como homem honesto, a resposta afirmativa dos tais juízos colocará necessariamente o Tribunal numa situação embaraçosa.
Embaraçosa porque o tal depoimento não pode deixar de ser inócuo, senão inútil, uma vez que à testemunha não cabe formular juízo valorativo e conclusivo.
Sendo inútil que é, para que levamos à base instrutória juízos valorativos e conclusivos insusceptíveis de serem respondidos por uma testemunha!
Portanto, no caso sub judice, as tais expressões não deveriam ter sido levadas à base instrutória.
No entanto, na sequência do julgamento pelo Colectivo da matéria de facto, as expressões ora questionadas pelos recorrentes ficaram substancialmente amputadas.
Pois os quesitos 21º a 25º, 29 e 30º foram respondidos pelo Colectivo nos termos seguintes:
……
QUESITO 21º:
PROVADO que o Réu tem permanecido na fracção autónoma após o óbito do seu pai.
QUESITO 22º:
PROVADO que à data da escritura pública, o pai do Réu tinha 81 anos de idade.
QUESITO 23°:
NÃO PROVADO.
QUESITO 24°:
NÃO PROVADO.
QUESITO 25°:
PROVADO que o pai do Réu passou a viver em progressivo isolamento.
……
QUESITO 29°:
PROVADO que os Autores e a sua filha e procuradora, D, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção "B13", celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
QUESITO 30°:
PROVADO que devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
……
Assim, nada temos de mexer no que diz respeito à matéria vertida nos quesitos 21º a 24º, uma vez que as expressões questionadas originariamente contidas na matéria ai vertida já ficaram “não provadas”.
Quanto à matéria do quesito 25º, é de eliminar a expressão “em progressivo isolamento”, o que torna toda a resposta inócua por destituída de qualquer sentido útil.
No que diz respeito à matéria provada originariamente proveniente dos quesitos 29º e 30º, para já podemos poupar as tintas para tratar aqui, uma vez que a questão sobre o carácter valorativo e conclusivo de algumas expressões contidas nessa matéria provada será objecto da abordagem exaustiva que iremos fazer infra na questão do invocado erro de julgamento de facto.
ii) Do erro de julgamento da matéria de facto
Vieram os recorrentes insurgir-se contra as respostas dadas aos quesitos 1º, 2º, 29º e 30º.
Constatando-se nas conclusões tecidas na minuta do recurso interposto pelos Autores, que estes pretenderam, com a impugnação das respostas dadas aos quesitos 1º e 2º da base instrutória, ver totalmente provada a matéria neles vertida.
A matéria neles quesitada tem o seguinte teor:
(…)
Improcede a impugnação da matéria de facto no que diz respeito às respostas dadas aos quesitos 1º e 2º.
Então passemos à apreciação da parte da impugnação da matéria vertidas nos quesitos 29º e 30º.
A matéria neles quesitada tem o seguinte teor:
29.
Os Autores e a sua filha e procuradora bem conheciam e aceitaram tomar vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter gratuitamente dele vantagens patrimoniais nomeadamente a fracção “B-13”?
30.
Mediante a sua indução em erro quanto ao alcance e significado dos seus actos, atenta a sua idade, isolamento e deterioração das capacidades mentais de querer e entender, os Autores e a sua filha e procuradora levaram o pai do Réu a realizar o acto disposição da fracção autónoma?
Os quesitos 29º e 30º foram respondidos pelo Colectivo nos termos seguintes:
QUESITO 29°:
PROVADO que os Autores e a sua filha e procuradora, D, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção "B13", celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
QUESITO 30°:
PROVADO que devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
Então vejamos.
Como se sabe, ao redigirem os articulados, não poucas vezes, as partes utilizam expressões contendo elementos normativos ou juízos meramente valorativos e conclusivos.
Assim, tanto as partes como o Tribunal, devem distinguir bem a matéria de facto da de direito.
Na formulação de Alberto dos Reis, é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior…… Entendem-se por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens – in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 206-207, e 209.
Todavia, há que reconhecer uma realidade: hoje em dia, muitas expressões originariamente utilizadas na doutrina jurídica ou na lei como elementos normativos já invadiram na terminologia largamente usada na nossa comunicação quotidiana, tais como escritura pública, estado civil de solteiro ou casado, cheques, livrança, arrendamento, posse, detenção, compra e venda, adopção, casamento.
Assim, não é raro que aceitamos habilmente, senão toleramos a existência dessas expressões como parte integrante do thema probandum, de modo a permitir que o teor dessas expressões possa ser directamente demonstrável ou inferido da mensagem extraída dos meios de prova produzidos ou valorados.
Todavia, nem sempre isso é aceitável e tolerável.
Na verdade, pelo contexto em que são inseridas, essas expressões não podem ser tidas como meramente fácticas, isso acontece, por exemplo, quando se discuta se estamos perante uma escritura pública, um cheque, uma livrança, um arrendamento, a posse ou a detenção de uma coisa, um contrato de compra e venda, um acto jurídico de adopção, um laço matrimonial, cujas validade e existência jurídica constituem em si já juízos valorativos e conclusivos, insusceptíveis de ser objecto da simples prova.
Assim sendo, consoante a questão jurídica a discutir e a matéria controvertida tal como configuradas pelas partes nos seus articulados, o Juiz que se encarrega de elaborar o saneador deve ter muito cuidado na selecção da matéria para o questionário, especialmente na qualificação de expressões utilizadas pelas partes como matéria susceptível ou não de constituir objecto da prova.
É uma tarefa difícil, pois nem sempre é fácil a qualificação de uma expressão como matéria de facto ou como matéria de direito.
Esta tarefa do Juiz torna-se particularmente difícil quando as partes se socorrerem da prova testemunhal, na medida em que a representação de um determinado acontecimento que as testemunhas têm no seu mundo pessoal de pensamento pode não corresponder à avaliação jurídica desse acontecimento.
E mais difícil se torna a tal tarefa quando as partes misturaram nos seus articulados a matéria de facto com a matéria de direito, ou utilizaram abundantes expressões valorativas ou conclusivas, destituídas do suporte de factos materiais, e conceitos genéricos e vagos, não acompanhados de factos puros que os preenchem.
É justamente esta última situação com que estamos confrontados.
In casu, o núcleo essencial da disputa, no plano jurídico, entre os Autores e o Réu é justamente saber se os Autores, assim como a habilitada D, aproveitaram da inferioridade ou da fraca capacidade de compreender e de decidir na disposição dos seus bens, alegadamente originada pelo estado senil e pelas condições da vulnerabilidade do Sr. G, pai falecido do Réu, nos momentos da preparação e da própria celebração da escritura pública que titulou a compra e venda da fracção autónoma.
Ora, perante as respostas dadas aos quesitos 29º e 30º, esta questão, obviamente de direito, fica logo respondida!
O que significa, de duas uma, ou as provas examinadas e produzidas resolveram directamente a questão jurídica, ou o Tribunal a quo resolveu a questão de direito no julgamento de facto.
Salvo o devido respeito, com as respostas nos termos redigidos dadas aos quesitos 29º e 30º, o Colectivo está a lidar com questões de direito.
Diz o artº 549º/4, primeira parte, do CPC que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito.
Ai está estatuída a proibição legal de o Colectivo se pronunciar sobre questões de direito, sancionando-se tal situação com a inexistência da decisão que haja extravasado as competências legalmente atribuídas ao tribunal colectivo – Lopes do Rego, in Comentário ao CPC, I, 2ª edição, pág. 536.
Para a fácil ilustração, é bom de relembrarmos o teor dessas respostas e assinalarmos aí as partes que devem ser tidas por não escritas, de forma seguinte:
Os Autores e a sua filha e procuradora, D, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção "B13", celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
Devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
Ou seja, é de ser tido por não escrito o conteúdo essencial, consistente nas partes supra assinaladas, vertido nas respostas dadas aos quesitos 29º e 30º.
O que pela lógica, torna necessariamente inócua a restante parte dessas respostas aos quesitos 29º e 30º.
Ex abuntantia, cabe salientar que, mesmo que aceitássemos a natureza fáctica da matéria vertida nas respostas dadas aos quesitos 29º e 30º, as tais respostas não poderiam ser mantidas.
Ora, ficou provado que o negócio de compra e venda da fracção autónoma foi titulado pela escritura pública outorgada em 22ABR2005.
Tendo-se apoiado essencialmente na matéria vertida nas respostas aos quesitos 29º e 30º, o Tribunal a quo concluiu pelo aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade do pai do Réu por parte dos Autores.
Para o Tribunal a quo, essa inferioridade é justamente as ditas condições de vulnerabilidade e isolamento em que se encontrava o pai do Réu, nos tempos imediatamente anteriores e no próprio momento da celebração da escritura pública em 2005.
Só que existe um elemento da prova, contido num ofício da DSF, versando sobre os rendimentos colectáveis do imposto profissional do pai do Réu, referentes aos anos de 2005 e 2006.
O ofício, ora junto aos autos a fls. 493 dos p. autos, foi requisitado pelo Tribunal a quo a requerimento dos Autores.
O teor desse ofício não foi impugnado pelo Réu.
O ofício da DSF, enquanto documento autêntico, demostra claramente que em 2005, ano em que foi outorgada a escritura pública, o pai do Réu, reputado na sentença recorrida como se encontrando em condições de vulnerabilidade e progressivo isolamento, auferiu, no exercício da actividade profissional por conta própria como engenheiro electromecânico e enquanto empregado da [EMPRESA(1)], respectivamente, os rendimentos no valor de MOP$544.570,00 e MOP$586.460,00.
Então pergunta-se, se é possível ou lógico que uma pessoa que, não obstante se encontrar nas condições de vulnerabilidade e de isolamento, em situação idêntica à do pai do Réu, poderia ter trabalhado como engenheiro electromecânico e ter auferido rendimentos tão elevados no sector privado, quer no exercício da actividade profissional por conta própria quer enquanto empregado de uma grandíssima empresa privada?
Para nós, a resposta deverá ser negativa!
Não obstante a predominância do princípio dispositivo na matéria de ónus de alegar e de provar, os factos instrumentais com relevância à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, mesmo não articulados nem feitos constar da matéria de facto assente, se resultantes da instrução e discussão da causa, podem e devem ser tidos em conta ex oficio pelo Tribunal na fundamentação da decisão de direito.
No caso em apreço, os tais factos instrumentais, nomeadamente os elevados rendimentos auferidos pelo pai do Réu no ano de 2005, de per si, já nos levam a crer que, o pai do Réu não se encontrava em condições tal como descritas nas respostas dadas aos quesitos 29º e 30º, que a serem verdadeiras, poderiam afectar a capacidade e liberdade de decidir do pai do Réu de forma tão grave que a lei comina com a sanção da anulabilidade de negócio jurídico.
Assim, é de proceder parcialmente a impugnação do despacho sobre a reclamação da selecção da matéria de facto e a impugnação da matéria de facto e alterar a matéria de facto nos termos acima consignados.
Ou seja, são eliminadas as respostas dadas ao quesitos 25º, 29º e 30º.
(…)”; (cfr., fls. 971 a 981-v).
Aqui chegados, que dizer?
Antes de mais, cabe desde já clarificar que como resulta do segmento decisório do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que se deixou transcrito, a decisão recorrida nada decidiu, (ou alterou), relativamente aos “quesitos 21° a 24°”; (cfr., fls. 974-v e pág. 25 deste aresto).
Assim, certamente por lapso manifesto afirma o R. ora recorrente que o Tribunal de Segunda Instância anulou as respostas aos quesitos “21° a 25°” (e 29° e 30°), havendo que se atentar em tal equívoco aquando da apreciação da questão.
Porém, e antes de tal, adequada se mostra uma outra nota.
É a seguinte:
Depois da apresentação das suas alegações de recurso, veio o R., ora recorrente juntar cópia do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 22.10.2020, Proc. n.° 243/2019, com o qual se decidiu revogar um despacho de não pronúncia relativamente à prática de um (eventual) crime de “burla” relacionado com a “compra e venda” matéria dos autos; (cfr., fls. 855 a 875).
Ora, se “valor probatório” nenhum para o presente recurso podia ter a dita “cópia”, até mesmo dado constituir a referida decisão do Tribunal de Segunda Instância uma decisão “meramente interlocutória e provisória”, (não constituindo uma decisão condenatória, transitada em julgado), em face da decisão de “arquivamento do autos” pelo Mmo Juiz de Instrução Criminal entretanto proferida, (em 10.09.2021, cfr., Proc. n.° PCI-081-18-1), e da qual não foi interposto recurso, totalmente “arrumada” se terá de considerar esta questão, nenhuma outra consideração se nos mostrando de tecer sobre a mesma.
Na sequência do que se deixou consignado, útil apresenta-se-nos de recordar que os presentes autos tiveram início com a “acção de reivindicação” pelos AA., ora recorridos proposta, onde formularam os “pedidos” atrás transcritos, (cfr., pág. 2 deste aresto), sendo que pelo R., ora recorrente, foi deduzida contestação, e alegando que a “compra e venda” pelos AA. da casa do seu pai constituía um “negócio inválido”, pediu, em reconvenção, a sua anulação, (cfr., fls. 66 a 81), vindo-se a proferir sentença onde, na improcedência da acção e procedência da reconvenção se decidiu anular o dito negócio, ordenando-se o respectivo cancelamento do registo de aquisição, (cfr., pág. 3 deste aresto).
E, visto estando que a decisão agora recorrida revogou a referida sentença pelo Tribunal Judicial de Base prolatada, (cfr., pág. 4 deste aresto), passemos então ao inconformismo do R., ora recorrente.
–– Como resulta do que se deixou relatado, importa ver do acerto da decisão do Tribunal de Segunda Instância relativamente à matéria dos “quesitos 25°, 29° e 30°”.
Estes quesitos tinham o teor seguinte:
“ 25.
A perturbação da sua capacidade volitiva e de entendimento resultou não só da sua idade avançada como do progressivo isolamento em que passou a viver?
29.
Os Autores e a sua filha e procuradora bem conheciam da condição do pai do R. e aceitaram tomar vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter gratuitamente dele vantagens patrimoniais nomeadamente a fracção “B-13”?
30.
Mediante a sua indução em erro quanto ao alcance e significado dos seus actos, atenta a sua idade, isolamento e deterioração das capacidades mentais de querer e entender, os Autores e a sua filha e procuradora levaram o pai do Réu a realizar o acto disposição da fracção autónoma?”.
Na sequência do julgamento efectuado, mereceram do Colectivo do Tribunal Judicial de Base as respostas seguintes:
“QUESITO 25°:
PROVADO que o pai do Réu passou a viver em progressivo isolamento.
QUESITO 29°:
PROVADO que os Autores e a sua filha e procuradora, D, bem conheciam da condição do pai do Réu e tomaram vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento em que o pai do Réu se encontrava, a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção "B13", celebrando a escritura pública referida em B) dos factos assentes.
QUESITO 30°:
PROVADO que devido à sua idade e ao isolamento em que estava a viver, o pai do Réu celebrou a escritura pública referida em B) dos factos assentes”.
E, como se viu, com o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância agora recorrido – e nos termos que se deixaram transcritos – foram as aludidas respostas a estes quesitos totalmente eliminadas.
Será de se manter o assim decidido?
Pois bem, em nossa opinião – e notando que este Tribunal de Última Instância tem poderes de cognição sobre a questão colocada, que constitui uma “questão de direito” que se enquadra no âmbito do art. 639° do C.P.C.M., (cfr., v.g., o Ac. de 29.11.2019, Proc. n.° 120/2019) – cremos que adequada não foi a aludida decisão do Tribunal de Segunda Instância, (afigurando-se-nos, com o devido respeito o dizemos, que houve algum excesso de rigor).
Na verdade, se no que toca ao “quesito 25°” se nos afigura de confirmar que a expressão – adjectivo – “progressivo” (e que se pode entender como o que “avança lentamente, e sem parar”), se apresenta, de facto, pouco “objectiva”, o mesmo não se mostra de dizer relativamente ao aí dado como provado “isolamento”, (e que dizia respeito ao “estado” em que o pai do R. passou a viver).
Com efeito, a, (chamemos), referida “característica” – “isolamento”, (entendido como “acto de isolar” ou “de se isolar”) – apresenta-se-nos como uma “situação” perfeitamente perceptível para qualquer pessoa, significando, tão só e apenas, o estado de uma pessoa que “vive isolada”, “que se pôs” ou “que foi posta de parte”, sem o “convívio” ou a “companhia” de outra(s) pessoa(s), (e, assim, em situação de “afastamento” ou “solidão”).
Aliás, não se pode perder de vista que em sede da resposta ao “quesito 26°” se considerou (também) – e precisamente – provado que: “Esse isolamento deveu-se ao facto de morar sozinho na sua casa e à circunstância de a sua família residir fora de Macau”; (cfr., pág. 19 deste aresto).
E, assim, necessário, não se nos apresentando de aqui tecer grandes comentários sobre o que se deixou exposto, consigna-se tão só que basta apenas pensar nas “medidas preventivas” adoptadas perante a “situação de pandemia” que vivemos para logo nos surgir a “medida de confinamento e isolamento”, e que é, certamente, por todos, infelizmente, sobejamente conhecida.
Relativamente à matéria dada como provada em resposta ao “quesito 29°”, vejamos.
Também aqui se nos mostra que motivos não haviam para uma decisão no sentido da sua (completa) eliminação.
Provado estando na resposta ao “quesito 22°” que o pai do R. tinha “81 anos de idade”, e resultando do atrás referido “quesito 25°” que vivia em “isolamento” – “morando sozinho em casa”, “com a sua família a residir fora de Macau”; cfr., resposta ao “quesito 26°” – (bastante) natural e razoável se mostra de concluir que se encontrava num estado “vulnerável” que, (tanto quanto julgamos saber), e tratando-se de uma pessoa, corresponde, (essencialmente), à situação de alguém que se encontra “fragilizado”, (especialmente) “exposto a riscos” e “susceptível de ser atacado” e/ou “ofendido”.
E, nesta conformidade, cremos nós que, também aqui, necessárias não se apresentam desenvolvidas considerações para se ter como uma “situação (de fragilidade)” normal (e perfeitamente natural) para uma pessoa com “81 anos de idade”, que vive “isolada” e “sem a companhia ou o apoio da família ou de outra pessoa, encontrando-se, assim, numa “situação vulnerável” que, como a restante matéria do quesito indica, foi “aproveitada” para a obtenção de vantagens patrimoniais através da escritura de compra e venda outorgada.
Relativamente à matéria resultante da resposta ao “quesito 30°”, e em harmonia com o até aqui consignado, menos ainda se mostra de dizer, pois que da sua leitura e análise não vislumbramos qualquer motivo para a sua eliminação, (cabendo referir que mérito teve o Colectivo do Tribunal Judicial de Base que na resposta que lhe deu do mesmo retirou qualquer referência menos objectiva).
Esta sendo a solução que se nos apresenta adequada para esta parte do recurso, importa agora ponderar se a matéria de facto dada como provada permite considerar que a “compra e venda” (assim) efectuada constitui um “negócio usurário” tal como previsto está no art. 275°, n.° 1 do C.C.M., e como entendido foi pela Mma Juiz Presidente do Tribunal Judicial de Base.
Ora, nos termos deste citado comando legal:
“É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inépcia, inexperiência, ligeireza, relação de dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios que, atendendo às circunstâncias do caso, sejam manifestamente excessivos ou injustificados”.
Atento o assim estatuído cabe, numa primeira apreciação acerca da matéria dos “negócios usurários” referir que, para António Menezes Cordeiro, “correspondem a um instituto autónomo: quer histórico-culturalmente, quer dogmaticamente. O Direito intervém perante o desequilíbrio não justificado das prestações. Não há, assim, qualquer fundamento para o reconduzir a outros institutos e, designadamente, aos bons costumes ou ao vício na formação da vontade. Quanto aos bons costumes: o vício da usura é intrínseco (desequilíbrio injustificado das prestações) e não extrínseco (contrariedade a um corpo exterior de regras); além disso, as consequências são diversas: a lei prevê a anulabilidade e não a nulidade, imposta pelo artigo 280.º/2. Quanto ao vício na formação da vontade: a tónica da usura é objectiva (o desequilíbrio) e não subjectiva (a vontade mal formada ou mal exteriorizada); (…)
Não quer isso dizer que um mesmo negócio não possa, simultaneamente, ser usurário, atentar contra os bons costumes e assentar num vício na formação da vontade. Quando isso suceda, quedará aos interessados escolher a via jurídica que mais lhes convenha – ou invocar várias delas.
A autonomia cultural e dogmática da usura não deve perder-se: corresponde a valores próprios”; (in “Tratado de Direito Civil Português”, Tomo I, 3ª ed., 2011, pág. 648 e 649).
Nestes termos, e para a completa apreciação do caso dos autos, teremos presente esta distinção dogmática dos “negócios usurários” em relação a “outros vícios do negócio”.
Segundo Luís Carvalho Fernandes, o negócio usurário compreende três elementos: “situação de inferioridade do declarante, obtenção de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados e intenção ou consciência do usurário de explorar aquela situação de inferioridade”; (in “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. II, 2ª ed., pág. 160).
Desenvolvendo estes elementos, diz este autor que “A situação de inferioridade do declarante pode resultar de várias causas, mas reveste sempre a natureza de elemento subjectivo do conceito; por ele mantém a usura conexões com os vícios que perturbam a formação da vontade. (…)
Compreende-se aqui o estado de necessidade (…). Será o caso de A só se dispor a prestar socorro a B, que corre o risco de morrer afogado por causa de uma inundação, após este lhe prometer uma compensação manifestamente excessiva.
O segundo caso contemplado no preceito é o de inexperiência do lesado. Deve-se aqui abarcar, tanto a inexperiência, em geral, das coisas da vida prática, como a relativa à actividade ou tipo de negócio a que respeita a declaração. Trata-se, pois, de situações em que o declarante tem um imperfeito conhecimento das circunstâncias (que podem ser de diversa ordem – científica, técnica, legais, relativas a usos ou práticas de certa profissão, etc.) que interessam à perfeita valoração dos interesses envolvidos no negócio.
A nova redacção do Código Civil incluiu, entre as causas de inferioridade, a ligeireza do declarante. Trata-se de um conceito muito amplo e vago, cujos contornos a jurisprudência terá de ajustar com um julgamento rigoroso e restritivo, de acordo com as circunstâncias de cada caso, sob pena de se enveredar por um caminho que facilmente se converterá em fonte de instabilidade no tráfico jurídico.
Para demarcar a ligeireza do declarante de outras situações de inferioridade também cobertas pelo preceito, parece-nos que nela se devem abranger os casos de exploração, pelo usurário, do facto de o declarante ter propensão para agir sem a adequada ponderação, precipitadamente, isto é, sem um correcto ajuizamento das circunstâncias ou dos termos do negócio. Ligeireza deve entender-se aqui como ligeireza de ânimo ou de espírito.
Não deixará de se verificar esta causa de inferioridade do declarante se, embora sendo ele, em regra, uma pessoa ponderada, agiu, no caso concreto, com ligeireza. Estão aqui em causa, como é manifesto, as circunstâncias contemporâneas da celebração do negócio, não sendo de excluir a possibilidade de o próprio usurário para isso contribuir com o seu comportamento, criando condições propícias a uma conclusão imponderada ou precipitada do negócio.
É ainda abrangido na situação de inferioridade do declarante o seu estado de dependência. (…)”; (in ob. cit., pág. 160 e 161).
Quanto ao estado mental ou fraqueza de carácter, “São por esta forma abrangidos casos de debilidade mental, seja de pessoas capazes, seja de incapazes (menores ou, sobretudo, interditos ou inabilitados)”; (in ob. cit., pág. 161 e 162).
Para António Menezes Cordeiro, “O elenco é suficientemente literário para inculcar uma natureza não taxativa: qualquer outro factor, com relevo para a ignorância ou para a concreta falta de informação, pode consubstanciar este elemento”; (in ob. cit., pág. 650).
É também esta posição tomada no “Comentário ao Código Civil da Universidade Católica Portuguesa”, onde se considera que: “A enumeração não é taxativa mas meramente exemplificativa”; (cfr., pág. 699).
De forma similar, ainda a propósito da “situação de inferioridade do declarante”, Pedro Pais de Vasconcelos defende que “Para a concretização deste requisito, não deve o intérprete cingir-se demasiadamente à letra da lei; deve discernir a ratio legis, o sentido que está subjacente ou imanente naquela abundância verbal e sindicar se o lesado da usura estava numa situação de inferioridade negocial tal que dessa inferioridade resultasse para ele a inabilidade para compreender o mau negócio que fazia ou para evitar fazê-lo. Trata-se de situações que, sem constituírem caso de incapacidade acidental, são todavia de molde a enfraquecer o discernimento que poderia levar o lesado pela usura a aperceber-se bem do mau negócio que estava a fazer, ou a tolher a liberdade que poderia levá-lo a resistir-lhe e a recusar-se a fazê-lo.
Finalmente, é imprescindível sindicar ainda a causalidade desta inferioridade em relação ao negócio e ao seu desequilíbrio. Ainda que se verifique, esta situação de inferioridade será irrelevante se não tiver sido causal da prática do negócio com a justiça interna que o afecta”; (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 2012, 7ª ed., pág. 537).
Relativamente à “excessividade ou injustificação do benefício”, diz Luís Carvalho Fernandes que “Por esta forma se dá relevância genérica (…) ao instituto da lesão, sob a modalidade de lesão enorme. Diferentemente, porém, de um critério matemático, usou o Código uma orientação, também objectiva, mas que deixa ao juiz um mais amplo campo de actuação.
Para se verificar este requisito torna-se necessário que entre a prestação do lesado e a contraprestação do beneficiário da declaração haja desproporção manifesta, excessiva, não justificada pelas circunstâncias particulares do negócio. Assim, não haverá negócio usurário, apesar de alguém exigir salários elevados por uma operação de salvamento, se, por exemplo, for muito grande o risco corrido pelo salvador ou muito elevado o valor dos bens em perigo.
O requisito da excessividade ou injustificação do benefício refere-se ao objecto material do negócio; assim se explica o enquadramento sistemático dado pelo legislador ao instituto da usura”; (in ob. cit., pág. 162).
A este respeito, afirma também Pais de Vasconcelos que “O juízo sobre o excesso do desequilíbrio é feito por referência a estes padrões de valor. Excessivo será o valor que se encontrar para além dos máximos ou mínimos que forem normais ou típicos no mercado, no meio social e económico em que o negócio for celebrado.
O benefício, o desequilíbrio, pode encontrar, ou não, uma justificação atendível. Se a decisão sobre o excesso é um juízo objectivo de normalidade, de tipicidade, já o juízo sobre o seu carácter injustificado do benefício implica uma apreciação individuada, do caso concreto e das suas circunstâncias, para aferir se existe para ele uma causa justificativa”; (in ob. cit., pág. 536).
Finalmente, em relação à “intenção ou consciência de explorar a situação de inferioridade”, defende Luís Carvalho Fernandes que “Está aqui em causa, por parte do usurário, a «representação mental da situação de inferioridade» do declarante, para a explorar mediante a obtenção de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados. Este é um importante elemento da usura, sendo de natureza subjectiva; por ele se aproxima também a usura dos vícios na formação da vontade (…) o autor do vício deve ter, tanto consciência de o declarante se encontrar inferiorizado, como, ainda, do benefício excessivo ou injustificado que via obter, para ele ou para outrem.
Por outro lado, satisfazendo-se a lei com a consciência, por parte do usurário, de explorar a situação de inferioridade, isso significa não ser necessário, para haver usura, que caiba ao usurário a iniciativa do negócio ou da desproporção entre as prestações. Pode ela pertencer ao lesado, desde que o beneficiário tenha consciência de o negócio só ser proposto naqueles termos por força da situação de inferioridade do declarante e de, assim, dela estar a tirar partido.
Mas, se basta a consciência de explorar a situação de inferioridade do declarante, por maioria de razão não pode deixar de se considerar também usurário o negócio quando o lesante tenha a intenção de dele tirar partido”; (in ob. cit., pág. 162).
Tecidas estas considerações, há que ponderá-las em face da “situação” dos presentes autos, atenta a concreta descrição que nela é feita na matéria de facto dada como provada.
E, analisada a referida “matéria de facto”, que corresponde na sua quase totalidade à que foi dada como provada pelo Tribunal Judicial de Base, (notando-se que da resposta ao “quesito 25°” se suprimiu a expressão “progressivo”, referente ao isolamento do pai do R.), cremos que inteiramente válidos e adequados se mantém os argumentos pela Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base então tecidos na sentença que proferiu, julgando procedente o “pedido reconvencional” do ora recorrente, ou seja, anulando a compra e venda efectuada e ordenando-se o cancelamento do registo de aquisição, valendo a pena aqui recordar (especialmente) as seguintes passagens da fundamentação aí exposta que se passa a transcrever:
“(…)
Conforme também os factos assentes, o imóvel foi vendido, em Abril de 2005, pelo preço de MOP$454.700,00 mas, nesta data, o mesmo valia MOP$1.649.000,00 e, à data da escritura pública, o pai do Réu tinha 81 anos de idade, passou a viver em progressivo isolamento devido à circunstância de a sua família residir fora de Macau e ao facto de morar sozinho na fracção autónoma reivindicada, onde sempre viveu, condição que os Autores e a sua filha e procuradora, D, bem conheciam tendo estes tomado vantagem das referidas condições de vulnerabilidade e isolamento a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção autónoma.
(…)
Ao nível do requisito objectivo, constata-se que houve um desfasamento grande entre o preço indicado na escritura pública que o pai do Réu declarou ter recebido e o valor de mercado do imóvel. O preço de venda correspondia apenas a 27,57% do valor de mercado do imóvel.
Analisadas as demais circunstâncias do negócio jurídico, como ensina Carlos Alberto da Mota Pinto, não se julga que a boa amizade pessoal que a Autora e a sua procuradora, D, mantinham com o pai do Réu pudesse justificar uma tão drástica redução do preço, para além de se estar em causa um imóvel onde o pai do Réu sempre viveu.
Dir-se-á que o facto de os Autores terem deixado que o pai do Réu ficasse a viver no imóvel durante 9 anos sem exigir a entrega do mesmo nem qualquer contrapartida deve ser tido em conta na ponderação a fazer quanto à justeza do preço acordado.
Contudo, nunca os Autores alegaram que o preço fora fixado abaixo do valor de mercado porque as partes tinham estipulado que a fracção autónoma seria apenas entregue depois da morte do vendedor. Conforme os Autores, consentiram que o pai do Réu usasse a fracção autónoma sem pagar qualquer contrapartida até ao momento em que os Autores pretendessem reavê-la porque mantinham com este uma excelente relação de amizade pessoal e já de longa data, facto este não demonstrado em audiência de discussão e julgamento.
Ademais, o equilíbrio das prestações deve ser aferida a partir do que ficou estabelecido no momento em que as partes acordaram nos termos da compra e venda não devendo posteriores vicissitudes não tidos em cona naquele momento entrar em linha de consideração nessa nossa pesquisa.
A isso acresce que, como foi já salientado na fundamentação dada pelo tribunal colectivo quando decidiu sobre a matéria de facto, não se afigura normal a um comprador comum, só por mera amizade, deixar o vendedor permanecer na coisa comprada por tantos anos sem qualquer contrapartida. Com efeito, uma cláusula contratual de não entrega imediata do imóvel, perfeitamente plausível, destina-se usualmente a permitir ao vendedor ultrapassar dificuldades de mudança temporárias e tem geralmente prazo certo bem definido.
Além disso, não se pode olvidar que, à data da venda, o pai do Réu tinha 81 anos de idade, vivia sozinho em progressivo isolamento porque não tinha acompanhamento regular dos seus familiares. Ora, essa condição do pai do Réu faria com que, à medida que o tempo ia passando, lhe fosse, objectiva e subjectivamente, cada vez mais difícil desocupar a casa onde sempre viveu para fixar-se num outro local. Como é que os Autores, compradores do imóvel e conhecedores dessa condição do pai do Réu, aceitariam aguardar sem qualquer garantia de uma desocupação do imóvel sem transtorno e atrasos indefinidos, quando quisessem a entrega da fracção autónoma?
Portanto, por nada justificar uma redução tão grande do preço, houve inequivocamente desproporção excessiva entre as prestações envolvidas.
*
Quanto à razão desse desequilíbrio, está provado que foi devido à idade e ao isolamento em que estava a viver que o pai do Réu celebrou a escritura pública de compra e venda. Não há dúvidas de que essa condição do pai do Réu consubstancia um estado de fraqueza.
Mais acima foi já salientado que o Réu não logrou demonstrar que o seu pai não pretendia vender ou doar o imóvel. Assim, o acto de venda não pode deixar de ser considerado como correspondente à sua vontade.
Contudo, não é por isso que a validade do negócio não pode ser questionada porque, da articulação das circunstâncias analisadas mais acima, pode-se concluir que o discernimento e a liberdade de decisão do pai do Réu estavam diminuídos.
Com efeito, mais acima entendeu-se que, à data do negócio, o estado de fraqueza em que se encontrava o pai do Réu levou-o a vender o imóvel à Autora por um preço excessivamente baixo. Houve, portanto, um constrangimento na vontade do pai do Réu no processo de formação da sua vontade de vender o imóvel.
Resta saber se isso foi abusivamente aproveitado pela Autora quando comprou a fracção autónoma, ou seja, se houve “um aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade da vítima” por parte da Autora, nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos.
Posta a questão nesses termos, a resposta encontra na matéria dada por assente. Pois, consta da matéria provada que os Autores e a sua filha e procuradora, D, bem conheciam as condições de vulnerabilidade e isolamento em que se encontrava o pai do Réu e tinham tomado vantagem desta condições a fim de obter vantagens patrimoniais nomeadamente adquirir a fracção autónoma.
*
Com o expendido, verifica-se todos os requisitos previstos no artigo 275º do CC estão presentes no presente caso sendo, portanto, a compra e venda celebrada entre a Autora e o pai do Réu anulável.
(…)”; (cfr., fls. 596 a 599).
Ora, ponderando no estatuído no transcrito art. 275°, n.° 1 do C.C.M., nos entendimentos expostos quanto aos elementos do “negócio usurário”, e ponderando, também, e globalmente, na factualidade provada, afigura-se-nos de confirmar totalmente as considerações explicitadas na sentença do Tribunal Judicial de Base, (havendo, porém, seja-nos permitida a repetição da mesma retirar a expressão “progressivo” constante no 1°§, mas que em nossa opinião, em nada prejudica a sua validade), vista estando a solução a adoptar e que consiste na procedência do recurso do R..
–– Uma última nota.
Na resposta ao presente recurso, pedem os AA., recorridos, a “ampliação do âmbito do recurso”, alegando que o prazo de arguição da invalidade do negócio jurídico de compra e venda já havia caducado; (cfr., fls. 879 a 935, em especial, a partir de fls. 914-v).
Ora, sem prejuízo do muito respeito por melhor entendimento, muito não se mostra de aqui consignar para demonstrar que a pretensão assim apresentada não pode prosperar.
Aliás, também sobre esta questão se emitiu pronúncia na sentença do Tribunal Judicial de Base, apresentando-se que correcta foi a decisão em questão; (cfr., fls. 599-v a 600).
De facto, nos termos do art. 280° do C.C.M.:
“1. Só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e só dentro do ano seguinte à cessação do vício que lhe serve de fundamento.
2. Enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção”.
E, em conformidade com o transcrito n.° 2 deste art. 280°, correcto se apresenta o entendimento no sentido de que o contrato em questão não se pode considerar “cumprido” sem que tenha havido “entrega da coisa”, (como se refere o art. 869° do C.C.M.), e que é o que nestes autos sucede.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos do que se deixou expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se o Acórdão recorrido para ficar a valer a decisão proferida em sede do Tribunal Judicial de Base.
Custas pelos AA..
Registe e notifique.
Macau, aos 27 de Julho de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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