Processo nº 75/2022 Data: 27.07.2022
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Procedimento Cautelar Comum.
Pressupostos.
SUMÁRIO
1. A finalidade das “providências não especificadas”, (inominadas, ou comuns), é, essencialmente, a de “garantir o efeito útil da sentença a ser proferida na acção principal”.
2. São pressupostos cumulativos do decretamento de uma providência não especificada:
a) a probabilidade séria, (“fumus boni juris”), embora colhida a partir de análise sumária, (“summaria cognitio”), e de um juízo de verosimilhança de o direito invocado e a acautelar já existir ou de vir a emergir de acção constitutiva já proposta ou a propor;
b) o fundado e suficiente receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável, (“periculum in mora”), a tal direito, (portanto, que a lesão não se tenha consumado);
c) a concreta adequação (ou potencialidade) da providência (como medida de tutela provisória) para remover a situação de lesão eminente e assegurar a efectividade do direito ameaçado;
d) a não existência na lei de outro tipo de providência específica que o acautele, (atento o princípio da legalidade das formas processuais); e que,
e) o prejuízo resultante para o requerido não exceda (consideravelmente) o dano que o requerente pretende evitar.
3. Não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte.
Só lesões “graves” e “dificilmente reparáveis” têm essa virtualidade.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 75/2022
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em sede dos Autos de Recurso Civil e Laboral n.° 102/2022, em que era recorrente a “ASSOCIAÇÃO DE PIEDADE E DE BENEFICIÊNCIA «A-MIO»”, ou “A1 MIO”, (“甲廟慈善會”, 或“甲一廟”), e recorrido B (乙), proferiu o Tribunal de Segunda Instância o seguinte Acórdão (que se passa a transcrever na sua íntegra):
“I) RELATÓRIO
Associação de Piedade e de Beneficiência “A-Mio”/A1 Mio, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar procedimento cautelar contra
B, também, com os demais sinais dos autos.
Pede a Requerente e agora Recorrente que se determine que o Recorrido:
a) Ficar impedido de realizar o evento a 20 de Junho de 2021 nas imediações do Templo de A, sito em [Endereço(1)], incluindo de utilizar, alterar ou restaurar quaisquer pertences da Autora (desde logo as estátuas) nesse âmbito;
b) Desocupar e retirar os seus pertences do Templo de A;
c) Abster-se de se arrogar como representante da Autora, gestor ou responsável do Templo de A (em chinês “甲一廟主持”);
d) Abster-se de praticar qualquer acto no Templo de A, ou aí organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos.
Foi ouvido o Requerido o qual contestou.
Pelo Tribunal “a quo” foi proferida decisão a conceder a providência nos seguintes termos:
1- Proíbe o requerido de realizar qualquer actividade no Templo de A1 Mio em nome da autora Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”, nomeadamente de realizar qualquer actividade em 20 de Junho de 2021 no Templo de A1 Mio.
2- Proíbe o requerido de declarar que é representante da autora Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”.
Não se conformando com aquela decisão veio a Requerente interpor o presente Recurso apresentando as seguintes conclusões e pedidos:
1. Recorre-se do indeferimento (diríamos, tácito) dos pedidos da Associação de que o Recorrido seja obrigado a desocupar e retirar os seus pertences do Templo de A; e abster-se de praticar qualquer acto no Templo de A, ou aí organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos.
2. Dizemos tácito porque inicialmente o Tribunal a quo entendeu que a Associação não podia recorrer pois que não havia decaído com a decisão nesta providência cautelar.
3. Embora elogiando, com a devida vénia, o trabalho do douto Tribunal a quo, ficou por proferir decisão na parte mais relevante, ou seja, que o Recorrido fosse impedido de praticar actos no templo, sejam nem nome da Associação ou próprio, bem como desocupar o mesmo.
4. Em causa nos autos está a contratação pela Associação do Recorrido para a prestação de serviços relativamente ao templo, firmado por escrito.
5. A Associação veio terminar esse contrato, tendo o Recorrido rejeitado invocando tratar-se de um arrendamento.
6. O Tribunal a quo não se quis pronunciar sobre a natureza do direito da Associação sobre o templo, mas excluiu tratar-se do direito de propriedade atendendo ao disposto no art. 7.º da Lei Básica.
7. No entanto, importa referir que o nosso TUI no proc. 90-2021 recentemente reconheceu que a legitimidade para celebrar um arrendamento não depende da qualidade de proprietário do senhorio, pois que o arrendamento implica apenas a concessão do gozo.
8. Semelhantemente no nosso caso, mesmo que seja uma prestação de serviços, ainda aí estamos no âmbito de um contrato meramente obrigacional como o arrendamento.
9. No proc. 90-2021 o TUI considerou que a matéria factual demonstra a legitimidade dos recorrentes nesse processo relativamente ao direito de disposição sobre o templo.
10. Tal situação é idêntica ao nosso caso no que toca à relação entre a Associação e o Recorrido só pelo facto deste último ter celebrado um contrato com a Associação que, qualquer que seja a classificação jurídica que lhe venhamos a atribuir, implica o reconhecimento pelo Recorrido do domínio do templo pela Associação.
11. Refere ainda o TUI naquele processo que finda relação contratual, que até aí tinha decorrido sem problemas, o arrendatário deveria agora cumprir com a obrigação de restituição do imóvel tal como decorre das regras gerais.
12. Mais adiante que a invocação pelo arrendatário da nulidade do contrato para sustar à restituição constitui manifesto abuso de direito.
13. Também aqui a similitude com o nosso caso é patente, pois que o Recorrido quer permanecer a todo o custo no templo apesar do seu direito para tal advir de uma relação contratual com a Associação que foi terminada.
14. Essa atitude é especialmente visível na contestação do Recorrido nos autos principais a que esta providência está apensa.
15. O regime jurídico dos templos em Macau não é perfeito e as práticas utilizadas neste meio também não têm o maior rigor jurídico, despoletando estas contendas.
16. Certo é que às associações (e outros grupos de pessoas) foi-lhes confiada a gestão dos templos e felizmente que os tribunais têm dado cobertura à situação através das regras gerais do direito.
17. Enfim, o Tribunal a quo discorda em absoluto, alinhando, portanto, com a Associação, que se trate de um arrendamento.
18. Com a cessação do contrato, o Tribunal a quo refere que o Recorrido passaria a actuar em gestão de negócios relativamente ao templo, mas que falha um requisito relativamente à mesma, ou seja, a não oposição do dono do negócio.
19. Pelo que, nem uma gestão de negócios estaria em causa, pois que a Associação ao terminar a prestação de serviços deixa claro que não pretende continuar a beneficiar dos serviços do Recorrido.
20. Não obstante, a argumentação do Recorrido trás um elemento essencial para os autos que é o reconhecimento de que o suposto direito a usar e fruir do templo (enquanto alegado arrendatário) depende da Associação, sendo a relação de domínio sobre o espaço na prestação de serviços em tudo semelhante.
21. Aliás, reconhecendo a Associação como senhoria, o Recorrido até tem esta com poderes mais abrangentes do que uma entidade contratante de uma prestação de serviços, que pode nem sequer deter o domínio do espaço em causa.
22. O Tribunal a quo ressalta que o contrato assinado entre as partes enceta determinadas funções do Recorrido relativamente ao templo e inclusivamente penalidades pelo incumprimento defeituoso, aproximando-o assim de uma clara prestação de serviços.
23. Qualquer prestador de serviços (in casu, o Recorrido) apenas aceitaria o contrato, aliás de uma relativa longa duração, caso tivesse precisamente estivesse convencido da legitimidade da Associação em contratar esses serviços.
24. No templo são realizadas diversas cerimónias religiosas, visitadas por locais e visitantes, tanto mais que são consideradas integrantes do património cultural de Macau, tal como o próprio templo, sendo a Associação desde sempre a responsável por prever pela conservação do mesmo.
25. Ainda que o Tribunal a quo não tenha dado relevância a testes factos, são os mesmos que nos permitem estabelecer a íntima ligação da Associação com o templo, a qual decorre desde logo por partilharem o mesmo nome.
26. A lógica do Tribunal a quo, salvo melhor entendimento, é, portanto, que as actividades que o Recorrido continuar a realizar no templo serão sempre imputadas pelo público à Associação, enquanto entidade responsável pela manutenção do templo.
27. De facto, a Associação gere o templo desde pelo menos a sua constituição formal em 1930, enquanto o Recorrido apenas começou a auxiliar a Associação nessa gestão a partir de 1999 - sempre foi a Associação que deu a cara ao público, sendo o Recorrido mero auxiliar.
28. É de certa forma nessa linha que o Tribunal a quo determina então que o Recorrido seja impedido de realizar eventos no templo em nome da Associação bem como de se declarar como representante da Associação.
29. O potencial dano toma-se visível nas circunstâncias do caso, ou seja, a existência de uma relação de prestação de serviços que foi terminada e a recusa do Recorrido de abandonar o local da prestação, contra a vontade da Associação.
30. Assim, o Tribunal a quo determinou medidas que pudessem ser eventualmente susceptíveis de atenuar esse risco, que se prende, por um lado, com a permanência do Recorrido no templo, bem como continuar a praticar aí actos como se estivesse a actuar no âmbito da prestação de serviços que levava a cabo anteriormente.
31. Dito isto, o Recorrido, embora proibido de praticar actos em nome da Associação, não ficou proibido de os praticar em seu nome.
32. Assim, o Recorrido, ao permanecer no templo durante todo o dia, juntamente com os seus pertences que utilizava na prestação de serviços, dá a impressão ao público que continua a representar a Associação, pois que o público tem esta última por indissociável do templo.
33. De facto, anteriormente, o Recorrido, enquanto mero prestador de serviços da Associação, e por inerência dessas funções, permanecia no templo durante o horário de abertura ao público, recolhia donativos, auxiliava visitantes, etc. Ao continuar no templo exactamente nestes termos, mas sem ser no âmbito da prestação de serviços, o Recorrido dá a entender que lhe está a dar continuidade.
34. Daí que a Associação tenha requerido que o Recorrido fosse também determinado a desocupar o templo e retirar os seus pertences.
35. Não se trata de uma proibição geral de deslocação ao mesmo, apenas que deixe de actuar como se estivesse ainda como prestador de serviços no mesmo, limitando-se talvez a deslocar-se ao mesmo como fiel e por períodos curtos.
36. O exemplo desta situação seria um funcionário de um banco que fosse despedido e continuasse de deslocar-se ao mesmo espaço, utilizando a sua secretária para recolher depósitos e outras funções - evidentemente que o público estaria em crer que o mesmo continua a exercer funções para o banco e jamais consideraria que estaria a actuar por conta própria.
37. Ou seja, parece-nos que a argumentação do Tribunal a quo foi lógica, mas não acautelou devidamente o receio referido.
38. Pelo que cremos que a decisão padece de um vício de lei, ou seja, do art. 326.º n.º 1 do CPC no que se refere à adopção de uma providência cautelar adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
39. O Tribunal a quo reconhece o direito da Associação ao bom nome está ameaçado pela continuação do Recorrido a actuar no templo enquanto representante da Associação.
40. Dito isto, limita-se a determinar que o Recorrido passe só a não actuar em nome da Associação, mas não o impede de continuar no templo, passando precisamente a ideia ao público que continua como prestador de serviços daquela.
41. O Recorrido apesar de ter respondido na providência cautelar, nem sequer recorreu da decisão ora recorrido, a qual supostamente, segundo o Tribunal a quo, dava toda a razão à Associação, a qual não havia supostamente decaído.
42. Isto porque, o Recorrido continua a crer que pode usar o templo como lhe aprouver, desde que não o faça em nome da Associação.
43. Mas tal não corresponde à realidade pois que a legitimidade para o Recorrido permanecer no templo decorria da prestação de serviços, bem como trazer e utilizar os seus pertences aí para esse efeito.
44. A aliás continuação dessa presença durante todos estes anos deveu-se apenas à continuidade dos serviços que vinha prestando.
45. A decisão voluntária e consciente do Recorrido de permanecer para além dessa prestação de serviços é logo demonstrativa do intuito nefasto do Recorrido, susceptível de pôr em causa o bom nome da Associação, pois que o Recorrido já nem sequer presta contas à Associação.
46. O contrato de prestação de serviços foi precisamente terminado pela Associação com base na conduta incorrecta e intolerável do Recorrido, tão grave que a Associação considerou de pôr fim a uma relação que já durava quase duas décadas.
47. Assim, vem-se requerer a este douto Tribunal que determine a ampliação das medidas decretadas na providência cautelar para incluir além das medidas já decretadas, que o Recorrido seja também proibido de realizar quaisquer actividades no templo (a qualquer título) e obrigado a desocupar e retirar os seus pertences, tal como havia sido pedido no requerimento inicial.
Nestes termos, e nos demais de direito, vem, muito respeitosamente, requerer a V. Exas. se dignem determinar procedente o recurso, por a decisão recorrida padecer de vício violação de lei (art. 326.º n.º 1 do CPC), substituindo-se aquela por outra determine que o Recorrido seja obrigado a:
b) desocupar e retirar os seus pertences do Templo de A;
c) abster-se de se arrogar como representante da Associação, gestor ou responsável do Templo de A; e
d) abster-se de praticar qualquer acto no Templo de A, ou aí organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos.
Respondendo vem o Recorrido apresentar as seguintes conclusões:
I. Objecto
1. Por não se conformar com a referida decisão a quo, pediu na sua motivação que:
“Nestes termos, e nos demais de direito, vem, muito respeitosamente, requerer a V. Exas. se dignem determinar procedente o recurso, por a decisão recorrida padecer de vício da violação de lei (art.º 326.º n.º 1 do CPC), substituindo-se aquela por outra determine que o recorrido seja obrigado a:
b) desocupar e retirar os seus pertences do Templo de A;
c) abster-se de se arrogar como representante da Associação, gestor ou responsável do Templo de A; e
d) abster-se de praticar qualquer acto no Templo de A, ou aí organizar conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos,
assim fazendo Justiça como tão bem nos vem habituando.”
2. Salvo o devido respeito, o recorrido não concorda com o entendimento da recorrente.
II. Quanto ao procedimento cautelar
3. O recorrido não concorda com a motivação e os pedidos da recorrente, entendendo que ela interpretou incorrectamente a natureza e as finalidades do procedimento cautelar.
4. O Tribunal a quo deferiu só parcialmente os pedidos da recorrente no procedimento cautelar, mas o recorrido entende que a decisão a quo já está conforme aos caracteres preventivo e proporcional do procedimento cautelar como providência antecipatória.
5. O recorrido entende que, o procedimento cautelar, como processo de urgência, pode ser instaurado antes do processo principal, as suas disposições procedimentais especiais visam garantir que podem ser realizados os pedidos pendentes do titular deduzidos no processo principal, mas não visam julgar directamente a matéria pendente em substituição do processo principal.
6. Pelo que, o Tribunal a quo só deu assentes no julgamento os “factos indiciários”, mas não reconheceu os factos directamente como no processo principal. Isto é, deixou julgarem se os factos devem ser dados assentes ou não no processo principal, basta que a decisão a quo no presente procedimento cautelar atinja a finalidade de prevenir que a imagem da recorrente seja afectada pelas condutas do recorrido, sem necessidade de satisfazer todos os pedidos da recorrente.
7. E mais, salvo o devido respeito, na petição inicial do processo principal (n.º CV1-21-0050-CAO), a recorrente pediu:
a) ficar impedido de utilizar, alterar ou dispor de quaisquer pertences da autora no Templo de A, sito em [Endereço(1)], particularmente as estátuas as existentes;
b) desocupar e retirar os seus pertences do Templo de A;
c) abster-se de se arrogar como representante da Associação, gestor ou responsável do Templo de A; e
d) abster-se de praticar qualquer acto no Templo de A, ou aí organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos,
e) abster-se de praticar qualquer acto no Templo de A, ou ai organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos;
f) abster-se de receber doações dos fiéis ou quaisquer contribuições de terceiros que sejam direcionadas para o Templo de A. (sub. nosso)
8. Os pedidos b) a d) da petição inicial do processo principal são completamente iguais aos da motivação, salvo o devido respeito, o recorrido entende que a recorrente confundiu a relação entre o procedimento cautelar e o processo principal, nem como as finalidades que estes pretendem atingir.
9. Os pedidos da recorrente na motivação já se afastam das finalidades e âmbito do procedimento cautelar, não visam “assegurar a efectividade do direito ameaçado”, mas sim realizar directamente o seu direito pretendido, designadamente de expulsar o recorrido do Templo de A1 Mio em causa.
10. Pelo exposto, o recorrido entende que os pedidos da recorrente obviamente ultrapassam as finalidades que o procedimento cautelar pretende atingir, não são matéria que merece conhecimento no procedimento cautelar, deste modo, pede-se que sejam rejeitados todos os pedidos do recurso.
III. Proporcionalidade da decisão a quo
11. A recorrente sustentou na motivação que: “……parece-nos que a argumentação do Tribunal a quo foi lógica, mas não acautelou devidamente o receio referido.” Salvo o devido respeito, o recorrido não concorda.
12. Embora o Tribunal a quo só defira parcialmente os pedidos da recorrente no procedimento cautelar, não se implica que a decisão a quo não tingiu as finalidades do procedimento cautelar.
13. De acordo com o teor da motivação, o recorrido entende que, o desejo da recorrente consiste em defender o seu “direito à honra” (ou seja direito de honra da Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”)
14. Dos factos indiciários dados assentes pelo Tribunal a quo não se mostra que o recorrido praticou qualquer acto que influenciou a reputação da recorrente, nem que só quando o recorrido seja expulsado do Templo de A1 Mio pode ser atingida a finalidade de prevenção de danos de difícil reparação para o direito à honra da recorrente.
15. De facto, a decisão a quo já proíbe o recorrido de realizar em nome da recorrente qualquer actividade no Templo de A1 Mio e de declarar que é representante da recorrente.
16. Com base nisso, pede-se que sejam rejeitados os pedidos da recorrente pela manifesta improcedência.
IV. Questão jurídica controvertida
17. A recorrente (sic.) sabe bem que, as interpretações da recorrente e do recorrido sobre a qualificação jurídica do “acordo de gestor do templo” são extremamente distintas, mas o recorrido entende que o esclarecimento da questão da propriedade do Templo de A1 Mio em causa se ajuda na solução do litígio.
18. Segundo os factos indiciários dados assentes pelo Tribunal a quo, “O lote do Templo de A1 Mio em causa pertence ao Governo da RAEM”, quer a recorrente quer o recorrido não têm impugnação sobre tal facto.
19. Desde que o Governo da RAEM é o titular da propriedade do Templo de A1 Mio em causa, o recorrido entende que é mais adequado tomar a decisão só depois de deixar a RAEM pronunciar-se sobre a matéria de administração do Templo em causa e se o recorrido deve abandonar-se do Templo.
20. No processo principal, o recorrido já pediu provocar a intervenção da RAEM para se pronunciar sobre a matéria em causa.
21. Por outro lado, na doutrina, o Código de Processo Civil prevê os seguintes requisitos de viabilidade do procedimento cautelar:
- Há um determinado direito da aparência desse acto;
- Revela-se um risco de impossibilidade de satisfação desse direito;
- Há sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado.
22. Desde 15 de Junho de 1999, o recorrido começou a administrar o Templo de A1 Mio, todos os dias era responsável por limpar o Templo, acender as lâmpadas a óleo, apresentar aos ídolos oblação de incensos, chá, flores e frutas, etc.
23. Até hoje, o recorrido ainda é responsável pelos referidos trabalhos efectivos de gestão no Templo todos os dias.
24. Em Julho de 2021, o recorrido recebeu a carta do Instituto Cultural, assinada e enviada em 26 de Julho de 2021, cujo teor parcial relacionado ao Templo em causa se encontra transcrito no seguinte: “no primeiro, agradecemos muito pela cooperação e apoio que o vosso Templo tem prestado ao nosso Instituto. Em 13 de Julho de 2021, o Corpo de Bombeiros foi ao bem imóvel referido realizar uma inspecção para prevenção de incêndio, e depois elaborou o relatório sobre o estado de segurança contra incêndio do bem imóvel e deu propostas para melhoramento (vide o anexo), portanto, para conservar o bem imóvel referido, vem o nosso Instituto remeter o relatório e solicitar que o vosso Templo tome medidas adequadas e viáveis de aperfeiçoamento após a leitura do relatório. Ao mesmo tempo, também solicitamos que reforce a gestão e execute as Medidas de Segurança contra Incêndios para os Templos de Macau, para satisfazer as exigências. ……” (vide o doc. 1)
25. Em Setembro de 2021, o recorrido recebeu a carta do Instituto Cultural, assinada e enviada em 17 de Setembro de 2021, cujo teor parcial relacionado ao Templo em causa se encontra transcrito no seguinte:“no primeiro, agradecemos muito pela cooperação e apoio que o vosso Templo tem prestado ao nosso Instituto, bem como pela vossa atenção e investimento na segurança contra incêndios e na gestão do Templo, o que promove eficazmente o trabalho de protecção do património cultural de Macau.
26. Para consolidar continuadamente a segurança contra incêndios dos templos de Macau e aumentar a consciência do pessoal na linha da frente dos templos sobre a segurança contra incêndios e a administração quotidiana, o nosso Instituto vai realizar em 12 de Outubro de 2021 formação sobre segurança contra incêndios em templos, ora vem por este meio convidar a comparência do pessoal do vosso Templo.” (vide o doc. 2)
27. Em 12 de Outubro de 2021, o recorrido participou a “Palestra de prevenção contra incêndios e exercício de evacuação”, realizada pelo Instituto Cultural. (vide o doc. 3)
28. Pelo que, a RAEM é o proprietário do Templo (de A1 Mio); em 2021, as autoridades competentes da RAEM enviou carta ao responsável (gestor efectivo), ora recorrido, do Templo (de A1 Mio) do Largo do Pagode do Bazar, para solicitar reforçar a gestão e executar as Medidas de Segurança contra Incêndios para os Templos de Macau.
29. Deste modo, a RAEM, como proprietário do Templo de (A1 Mio), pelo menos desde 2021, instruiu ao recorrido praticar actos de administração para o Templo.
30. Os pedidos da recorrente no presente procedimento cautelar só visam evitar prejuízo para o seu direito à honra, entretanto, o recorrido entende que não se pode ignorar, apenas por causa disso, a matéria de administração quotidiana do Templo de A1 Mio.
31. A referida questão jurídica ainda está em discussão, se agora expulsar-se o recorrido do Templo de A1 Mio só para defender o direito à honra da recorrente, obviamente serão influenciadas de forma grave a administração quotidiana do Templo e as visitas dos fiéis.
32. A falta de gestão também pode conduzir ao risco de prejuízo dos ídolos e outras instalações do Templo.
33. Portanto, se tiverem sido deferidos os pedidos da recorrente na motivação, será sacrificado interesse maior, estando assim desconforme ao requisito de viabilidade do procedimento cautelar - “Há sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado”.
34. Pelo exposto, salvo o devido respeito, pede-se que seja rejeitado o recurso e mantida a decisão a quo pela improcedência da motivação e pedidos da recorrente.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos:
Na decisão recorrida foi dada por assente a seguinte factualidade:
1- O lote do Templo de A1 Mio em causa pertence ao Governo da RAEM.
2- O requerido e a requerente celebraram o “acordo de gestor do templo” em 1999, pelo qual o requerido era responsável pela administração do Templo em causa e organização de eventos religiosos adequados.
3- Constam das cláusulas do acordo referido os direitos e deveres acordados entre as partes (vide as fls. 58 a 62 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido).
4- As partes acordaram fixar o prazo do contrato a partir de 2 de Maio de 1999 a 1 de Maio de 2003 do calendário lunar.
À factualidade apurada na decisão recorrida aditaríamos um outro que resulta do requerimento inicial e foi confessado na contestação nos artigos 23º a 25º e que consiste em:
5- O Requerido tem as chaves do templo.
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«A requerente pediu instaurar o presente procedimento cautelar contra o requerido, com o fim de impedir o requerido de continuar a cumprir em nome da requerente o “acordo de gestor do templo” no Templo de A1 Mio, considerando que o contrato já foi cessado.
A única questão em causa consiste em qualificação jurídica do “acordo de gestor do templo” celebrado entre as partes. A requerente entende que o acordo é um contrato de prestação de trabalho com prazo fixado, em face do vencimento do prazo, o requerido deve abandonar-se do Templo, restituir o poder de administração e abster-se de praticar qualquer acto em representação da requerente.
No entanto, o requerido entende que se trata de um contrato de arrendamento, o arrendamento ainda está válido até hoje com base na renovação do contrato, portanto, recusou-se de restituir o poder de administração e o Templo.
O Tribunal entende que, a referida questão tem a ver puramente com a qualificação jurídica, mas não com o conhecimento da matéria de facto, por isso, as diligências de prova requeridas pela requerente e o requerido não se ajudam na solução da questão referida.
Além disso, conhecei na apreciação oficiosa dum outro processo (CV1-21-003-CPV) que, o terreno do Templo em causa não é registado na Conservatória do Registo Predial.
Ao abrigo do art.º 429.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil, sem necessidade de mais provas, permitem-se a apreciação das faltas e excepções deduzidas e o reconhecimento dos seguintes factos indiciários:
(factos já referidos supra autonomamente)
Conforme os autos, nomeadamente o “acordo de gestor do templo” constante das fls. 58 a 62 dos autos, podem ser dados assentes os factos indiciários supracitados.
Os outros factos constantes da petição inicial e do articulado de contraditório não são selecionados pela irrelevância para o conhecimento do processo. E mais, não são dadas provadas as outras alegações, constantes da petição inicial e do articulado de contraditório, relacionadas a questões jurídicas e estruturalistas (sic.), nem os factos repetidos.
**
Dispõe o art.º 7.º da Lei Básica que, os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.
Pelo que, salvo o Governo da RAEM, qualquer pessoa não pode praticar para o terreno em causa (A1 Mio) acto de sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como seu arrendamento ou concessão para uso ou desenvolvimento.
Não assiste razão ao requerido quando pretende considerar o acordo como contrato de arrendamento, pelo mais mostra-se que o requerido reconhecia que a administração da requerente sobre o Templo era autorizada pelo Governo da RAEM, senão, não iria celebrar o acordo de gestor do templo com a requerente.
No articulado de contraditório (art.º 6.º e ss.), o requerido admite que celebrou em 1999 com a requerente o “acordo de gestor do Templo de A1 Mio”.
Conforme o “acordo de gestor do templo” constante das fls. 58 a 62 dos autos, a requerente entregou o Templo ao requerido para administração, o acordo dispõe os eventos que a requerente era responsável por realizar, designadamente por indicar os objectos de oblação, e o requerido era responsável pelo respectivo trabalho, também dispõe as penalidades no caso de incumprimento por parte do requerido.
No momento de celebração, o requerido gostava de outorgar com a requerente o “acordo de gestor do templo”, isto é, o requerido aceitava que, antes de celebração, o Templo foi administrado pela requerente.
De acordo com os factos provados, indicia-se a natureza do “acordo de gestor do templo”, celebrado entre a requerente e o requerido, como um contrato de administração e prestação de serviço com prazo fixado.
Nos termos do art.º 1080.º do Código Civil que, contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
Segundo o princípio do cumprimento contratual, após do vencimento do prazo, o requerido deve terminar qualquer actividade de gestão do Templo, senão, incorre em gestão dos assuntos de outrem.
Como se sabe, qualquer pessoa não deve gerir os assuntos de outrem sem autorização desta (embora a lei permita a gestão de negócios em situações especiais). Mas a gestão dos assuntos de outrem em face da oposição desta pode conduzir à lesão de direito.
No caso, o “acordo de gestor do templo” é um contrato celebrado entre a requerente e o requerido, as pessoas comuns não ponderam se esse contrato existe ou não. Segundo as regras de experiência, considera-se geralmente na sociedade que a requerente é responsável pela gestão do Templo em causa uma vez que ela é exactamente a Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”. Deixando de lado a averiguação de como a requerente obteve a autorização do Governo da RAEM para gerir o Templo em causa, podemos dar assente, a nível indiciário, que, antes de celebração do contrato de gestor do templo em apreço, o requerido reconhecia que a requerente era responsável pela gestão do templo.
Evidentemente, a requerente opôs-se a que o requerido continuasse a gerir os assuntos do Templo, porém, o requerido continuou a gerir o Templo ao contrário da vontade da requerente, mesmo que as actividades realizadas por ele não lesassem a crença religiosa, as suas condutas não foram aceites e confirmadas pela requerente, mais gravemente, foram susceptíveis de influenciar a imagem da requerente e confundir a caracterização e a impressão da sociedade sobre a requerente.
Nos termos do art.º 326.º n.º 1 do Código de Processo Civil, sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer, se ao caso não convier nenhuma das providências reguladas no capítulo subsequente, a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
Se tiverem permitido ao requerido a continuar a gerir o Templo em causa e realizar eventos, a imagem da Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio” vai ser afectada, até vai induzir a sociedade em erro de que as condutas são praticadas pela requerente no Templo em causa, por isso, o Tribunal entende necessário tomar medidas para evitar que a imagem da requerente sofra danos de difícil reparação devido às actividades realizadas no Templo em causa.
Com base nisso, o Tribunal julga procedente o recurso e, por conseguinte:
1- Proíbe o requerido de realizar qualquer actividade no Templo de A1 Mio em nome da autora Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”, nomeadamente de realizar qualquer actividade em 20 de Junho de 2021 no Templo de A1 Mio.
2- Proíbe o requerido de declarar que é representante da autora Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”.».
Cumpre apreciar e decidir.
No requerimento inicial pedia a Requerente que o Requerido fosse condenado a:
«a) ficar impedido de realizar o evento a 20 de Junho de 2021 nas imediações do Templo de A, sito em [Endereço(1)], incluindo de utilizar, alterar ou restaurar quaisquer pertences da Autora (desde logo as estátuas);
b) desocupar e retirar os seus pertences do Templo de A;
c) abster-se de se arrogar como representante da autora, gestor ou responsável do Templo de A (em chinês “甲一廟主持”; e
d) abster-se de praticar qualquer acto no Templo de A, ou aí organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos.».
Na decisão Recorrida foi ordenado que:
«1- Proíbe o requerido de realizar qualquer actividade no Templo de A1 Mio em nome da autora Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”, nomeadamente de realizar qualquer actividade em 20 de Junho de 2021 no Templo de A1 Mio.
2- Proíbe o requerido de declarar que é representante da autora Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”.».
Ou seja, apenas os pedidos referidos em a) e c) foram concedidos nada se dizendo quanto aos demais.
Tal como já se reconheceu na decisão deste Tribunal que mandou admitir o recurso é evidente que não houve pronúncia quanto a dois dos quatros pedidos, a saber:
b) desocupar e retirar os seus pertences do Templo de A;
d) abster-se de praticar qualquer acto no Templo de A, ou aí organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos.
Pelo que, cabe agora a este tribunal decidir sobre os mesmos.
Sobre a natureza, função e estrutura dos procedimentos cautelares, ensina Viriato Lima em Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, 3ª Ed., pág 619 e sgts:
«Como escreve ANSELMO DE CASTRO “Os procedimentos cautelares nada mais são que simples medidas destinadas a prevenir os perigos da natural demora do julgamento ou do curso de qualquer acção...
A necessidade de recorrer ao processo não deve ocasionar dano à parte que tem razão: a realização jurisdicional do direito deve proporcionar ao autor satisfação idêntica de interesses à que ele obteria através da realização pacífica e pontual do seu direito. A isto tendem os procedimentos cautelares”.
Na verdade, por virtude de várias razões, umas conaturais à necessidade de qualquer processo ter uma duração normal mínima, outras ligadas a factores de outro ordem, que provocam uma demora anormal na tramitação processual, para que a decisão judicial a proferir conserve utilidade para a parte que deduz uma pretensão, por vezes, é imprescindível tomar medidas que permitam a conservação desta utilidade.
“A principal função da tutela cautelar consiste, pois, em neutralizar os prejuízos a suportar pelo interessado que tem razão, derivados da duração do processo declarativo ou executivo e que não sejam absorvidos por outros institutos de direito substantivo ou processual com semelhante finalidade”.
As providências cautelares ou visam acautelar os resultados da acção, mantendo o statu que para que ele se não altere em condições tais que não seja susceptível de reintegração (medidas conservatórias), ou antecipam a realização do direito que venha, eventualmente, a ser reconhecido, dada a urgência na sua efectivação (medidas antecipatórias).».
Como também ensina o citado Autor na obra indicada «O sucesso da acção cautelar depende sempre de dois requisitos:
- A verificação da aparência dum direito;
- A demonstração do perigo de insatisfação desse direito.».
É pelos termos da p.i. do procedimento cautelar que deve ser avaliado se são invocados os requisitos para a eventual concessão da providência pedida.
Ora, a Requerente invocava que o Requerido se mantinha como gestor do templo estando inclusivamente na posse das chaves do mesmo, situação que é confessada pelo próprio quando diz que abre e fecha as entradas do templo.
Na decisão recorrida veio a concluir-se que entre a Recorrente e o Recorrido foi celebrado um contrato de gestor do templo, isto é, um contrato de prestação de serviços o qual foi denunciado pela agora Recorrente.
Concluindo que a continuação do Requerido como gestor do templo pode afectar negativamente a imagem da Requerente e induzir em erro no sentido de dar a ideia de que o Requerido ainda actua em nome da Requerente, decide-se na decisão recorrida no sentido indicado.
No que concerne a esta parte não é interposto recurso da decisão recorrida.
Ora, tendo-se por assente que subjacente à relação entre Recorrente e Recorrido está um contrato de prestação de serviços, regulado no artº 1080º e seguintes do C.Civ. ao mesmo se aplicam as disposições sobre o mandato com as necessárias adaptações, uma vez que o contrato em causa nestes autos não está regulado especialmente.
De acordo com a al. e) do artº 1087º do C.Civ. aqui aplicável por força do artº 1082º do mesmo diploma o prestador de serviços terá de entregar àquele com quem contratou o que recebeu em execução do contrato.
Ora, dúvidas não há em face dos autos que enquanto esteve incumbido de gerir o Templo em representação da Recorrente o Recorrido detinha o mesmo tendo as respectivas chaves.
Decidindo-se que há indícios de que entre as partes foi celebrado um contrato de prestação de serviços que já terminou e que a conduta do prestador de serviços pode influenciar negativamente a imagem da Associação a quem prestava os serviços1, temos que não só está demonstrado o direito da Requerente a que lhe seja entregue tudo o que prestador de serviço recebeu em execução do contrato como também o perigo de lesão grave e de difícil reparação ao direito desta.
Destarte, cessando o contrato e tendo a Requerente direito a reaver o templo, pelos mesmos fundamentos e pressupostos que nortearam a concessão da providência, haveria também que ser decretado que o Requerido desocupasse e retirasse os seus pertences do templo e que se abstivesse de organizar, conduzir ou realizar cerimónias e, ou eventos no templo.
Sendo apenas de indeferir a injunção de “não poder praticar qualquer acto” uma vez que é imprecisa e indeterminada nada obstando que o Requerido como qualquer outro sujeito possa ir ao templo prestar culto na mesma medida e forma que o é permitido a qualquer cidadão comum.
Termos em que pelos fundamentos constantes da decisão recorrida e pelos agora expostos impõe-se conceder provimento ao recurso, decidindo em conformidade.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso, para além do já ordenado na decisão recorrida que em tudo se mantém, ordena-se ainda que o Requerido:
- Desocupe e retire os seus pertences do Templo de A;
- Se abstenha de organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos no Templo de A.
Custas a cargo do Recorrido.
(…)”; (cfr., Ac. de 17.03.2022, a fls. 253 a 264 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
*
Inconformado com o assim decidido, traz o recorrido B, (requerido da providência cautelar), o presente recurso, alegando para, a final, produzir as conclusões seguintes:
“I. Do objecto do recurso
I. O recorrente discorda, em absoluto, do acórdão proferido pelos MM.ºs Juízes do Tribunal de Segunda Instância (adiante designado por “TSI”) em 17 de Março de 2022 (adiante designado por “acórdão”), e vem interpor o presente recurso.
II. No presente processo (procedimento cautelar) não foi realizada a audiência de julgamento, e apenas foram dados assentes uns “factos indiciários” nos termos do art.º 429.º, n.º 1, al. b) do CPC, quer dizer, não há qualquer reconhecimento de facto.
III. Os respectivos factos indiciários incluem os seguintes:
1. O lote do templo em causa – Templo de A1 Mio – pertence ao Governo da RAEM.
2. O requerido e a requerente celebraram o “acordo de gestor do templo” em 1999, pelo qual o requerido era responsável pela administração do Templo em causa e organização de eventos religiosos adequados.
3. Constam das cláusulas do referido acordo os direitos e deveres acordados entre as partes (vide as fls. 58 a 62 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
4. As partes acordaram fixar o prazo do contrato a partir de 2 de Maio de 1999 a 1 de Maio de 2003 do calendário lunar.
IV. A recorrida Associação de Piedade e de Beneficiência “A-Mio” instaurou o procedimento cautelar com o fim de evitar que a sua imagem fosse afectada, e que a sociedade confundisse a caracterização e a impressão da recorrida.
V. Inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Base no processo de procedimento cautelar, a recorrida Associação de Piedade e de Beneficiência “A-Mio” (adiante designada por “recorrida”) interpôs recurso para o TSI, que por sua vez, após julgamento, decidiu o seguinte no seu acórdão n.º 102/2022:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso, para além do já ordenado na decisão recorrida que em tudo se mantém, ordena-se ainda que o Requerido:
- Desocupe e retire os seus pertences do Templo de A;
- Se abstenha de organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos no Templo de A.
VI. O recorrente manifesta a sua discordância do supracitado acórdão do TSI, e ao mesmo tempo, devem ser ponderados os seguintes factos supervenientemente conhecidos:
- A recorrida Associação de Piedade e de Beneficiência “A-Mio” não forneceu a autorização de modo a demonstrar a sua legitimidade para administrar o Templo de A1 Mio;
- A partir de 29 de Março de 2022, em virtude do efeito meramente devolutivo do recurso, o recorrente já desocupou o Templo de A1 Mio para cumprir as medidas conservatórias decretadas pelo TSI;
- Desde 30 de Março de 2022 até ao presente, o Templo de A1 Mio encontra-se fechado. (vide Doc. 1 e Doc. 2)
II. Da finalidade e proporcionalidade da providência cautelar
VII. Segundo o art.º 639.º do CPC, entende o recorrente que o TSI, ao decretar a providência cautelar, violou os dispostos nos artigos 326.º e 332.º do CPC, nomeadamente que não considerou, detalhadamente, a “difícil reparação da lesão” e a “comparação entre o interesse que se pretende acautelar e o interesse prejudicado pela providência”.
Da difícil reparação da lesão
VIII. A recorrida Associação de Piedade e de Beneficiência “A-Mio” formulou os pedidos no procedimento cautelar por entender que os actos praticados pelo recorrente poderiam causar prejuízo ao seu direito à honra, e o recorrente não concorda com a fundamentação feita pelo TSI no seu acórdão.
IX. Durante o julgamento no TJB, não foi realizada a audiência de julgamento, e apenas teve lugar, com base no conteúdo das provas documentais, o juízo de uns factos indiciários nos quais não foi mencionado qualquer risco objectivo dos danos a sofrer pela recorrida, e muito menos a difícil reparação dos mesmos.
X. Mas o TSI entendeu que “Evidentemente, a requerente opôs-se a que o requerido continuasse a gerir os assuntos do Templo, porém, o requerido continuou a gerir o Templo ao contrário da vontade da requerente, mesmo que as actividades realizadas por ele não lesassem a crença religiosa, as suas condutas não foram aceites e confirmadas pela requerente, mais gravemente, foram susceptíveis de influenciar a imagem da requerente e confundir a caracterização e a impressão da sociedade sobre a requerente.”
XI. E que “Se tiverem permitido ao requerido a continuar a gerir o Templo em causa e realizar eventos, a imagem da Associação de Piedade e de Beneficiência “A-Mio” vai ser afectada, até vai induzir a sociedade em erro de que as condutas são praticadas pela requerente no Templo em causa, por isso, o Tribunal entende necessário tomar medidas para evitar que a imagem da requerente sofra danos de difícil reparação devido às actividades realizadas no Templo em causa.”
XII. Salvo o devido respeito, apenas com base nas provas constantes dos autos, entende o recorrente que a supracitada implicação feita pelo TSI está além do que os factos indiciários constantes dos autos podem reflectir.
XIII. Conforme as provas documentais constantes dos autos, sabe-se, somente, que através do “acordo de gestor do templo” celebrado entre o recorrente e a recorrida em 1999, ficava o recorrente responsável pela administração do Templo em causa e organização de eventos religiosos adequados.
XIV. Porém, a recorrida não alegou qualquer facto objectivo para demonstrar que foi lesada a sua honra pelas condutas do recorrente.
XV. Os factos indiciários existentes no procedimento cautelar não passam do entendimento da recorrida de que já expirou o prazo do “acordo de gestor do templo” em causa, não se verificando qualquer facto provado e objectivo de que a recorrida está insatisfeita com o acto de gestão do recorrente.
XVI. Segundo as regras da experiência comum, nas situações comuns de extinção do contrato de arrendamento em Macau, quando o locador exija a denúncia do contrato de arrendamento, não está sempre e necessariamente insatisfeito com a condição de arrendamento ou de uso da coisa locada, e é mais possível que o arrendatário não seja capaz de suportar a renda ajustada pelo locador.
XVII. In casu, também é possível que a recorrida pretendesse ajustar o valor das “doações dos fiéis” fixado no “acordo de gestor do templo” em causa, e em consequência, solicitou a extinção do contrato.
XVIII. Ao mesmo tempo, salvo o devido respeito, o recorrente não concorda que o “acordo de gestor do templo” em causa trata dum contrato de prestação de serviços, sendo obviamente errada a respectiva qualificação jurídica.
XIX. O TSI mencionou o seguinte:
“Concluindo que a continuação do Requerido como gestor do templo pode afectar negativamente a imagem da Requerente e induzir em erro no sentido de dar a ideia de que o Requerido ainda actua em nome da Requerente, decide-se na decisão recorrida no sentido indicado.
No que concerne a esta parte não é interposto recurso da decisão recorrida.
Ora, tendo-se por assente que subjacente à relação entre Recorrente e Recorrido está um contrato de prestação de serviços, regulado no art.º 1080.º e seguintes do C.Civ. ao mesmo se aplicam as disposições sobre o mandato com as necessárias adaptações uma vez que o contrato em causa nestes autos não está regulado especialmente.”
XX. Salvo o devido respeito, entende o recorrente que o TSI fez uma interpretação extensiva demais.
XXI. Primeiro, está em causa, somente, um procedimento cautelar em vez de processo principal (acção declarativa), e no caso sub judice, não foi realizada a audiência de julgamento nem efectuada a diligência de produção de prova adequada, mas só se fez juízo dos factos indiciários através das provas documentais juntadas aos autos, e adoptou-se providência cautelar adequada para proteger o interesse da recorrida susceptível de ser lesado.
XXII. Na sentença proferida pelo Juízo Cível do TJB no dia 18 de Junho de 2021, foi apenas indicado que “De acordo com os factos provados, indicia-se a natureza do ‘acordo de gestor do templo’, celebrado entre a requerente e o requerido, como um contrato de administração e prestação de serviço com prazo fixado.” (sublinhado e negrito nosso)
XXIII. Salvo o devido respeito, caso se reconheça, apenas com base na falta de recurso interposto da supracitada parte, que o “acordo de gestor do templo” em causa é um contrato de prestação de serviços, entende o recorrente que o TSI confundiu os âmbitos de conhecimento do procedimento cautelar e do processo principal (acção declarativa).
XXIV. Mesmo que o recorrente não interpusesse recurso da providência cautelar decretada pelo TJB, isso apenas reflecte que o recorrente aceitou tal providência provisória, e não significa que o recorrente concordou completamente com o respectivo entendimento.
XXV. Se o acordo de gestor do templo em causa fosse um contrato de prestação de serviços, deveria a recorrida pagar mensalmente ao recorrente as despesas de gestão, e caberia ao recorrente prestar serviços de gestão do Templo de A1 Mio.
XXVI. Mas o que realmente aconteceu é o contrário, e segundo o respectivo contrato, o recorrente precisou de pagar mensalmente à recorrida doações dos fiéis no valor de MOP$830,00, bem como uma caução de MOP$10.000,00 no momento da celebração do contrato.
XXVII. O recorrente, que prestou os serviços, precisou de pagar periodicamente quantias à outra parte contratual (ou seja a recorrida), facto esse que se revela obviamente incompatível com a qualificação do contrato de prestação de serviços, e salvo o devido respeito, é manifestamente errada a qualificação jurídica do “acordo de gestor do templo” feita pela recorrida, pelo TJB e pelo TSI.
XXVIII. E o contrato mais analógico deve ser o previsto no art.º 114.º do Código Comercial, que tem a seguinte noção: “Locação de empresa comercial é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a conceder à outra, temporariamente e mediante retribuição, o gozo, no todo ou em parte, duma empresa comercial”.
XXIX. Tal qualificação jurídica explica melhor a razão por que o recorrente precisou de pagar mensalmente à recorrida as doações dos fiéis quando exercia a função de responsável do Templo de A1 Mio.
XXX. A supracitada qualificação jurídica tem grande relevância para determinar a providência cautelar a adoptar. Se, como indicou o TSI, o respectivo acordo de gestor do templo seja um contrato de prestação de serviços, entender-se-á que está em causa somente a lesão do interesse da recorrida, e que após a expiração do prazo contratual, deve o recorrente cessar toda a gestão do templo.
XXXI. Porém, se o acordo de gestor do templo em causa seja um contrato semelhante ao contrato de locação da empresa comercial, existem nos autos, necessária e simultaneamente, interesses de ambas as partes contratuais, até interesse público da RAEM, atendendo à natureza predial do imóvel envolvido, ou seja do Templo de A1 Mio.
XXXII. Nos conflitos gerais acerca de arrendamento, segundo a jurisprudência de Macau, nunca pode o locador expulsar, de imediato e através de procedimento cautelar, o arrendatário após o termo do prazo de arrendamento, e quando o arrendatário não queira pagar a renda.
XXXIII. Face ao expendido, entende o recorrente que, no que concerne ao pressuposto da providência cautelar adoptada pelo TSI, verificam-se excesso de pronúncia e juízo errado dos factos, e mesmo que não seja adoptada a providência cautelar de expulsar o recorrente do Templo de A1 Mio, não há qualquer facto objectivo demonstrativo da possibilidade de danos de difícil reparação a sofrer pela recorrida; em contrário, o julgamento feito pelo TSI constitui uma antecipação de pronúncia sobre a questão de relação jurídica material que cabe conhecer no processo principal, o que ultrapassa, evidentemente, a finalidade do procedimento cautelar.
Do interesse que se pretende acautelar e interesse prejudicado pela providência
XXXIV. O legislador previu o procedimento cautelar somente com o objectivo de adoptar medidas concretas e adequadas para assegurar a efectividade do direito ameaçado, em vez de servir como instrumento de antecipação do julgamento no processo principal.
XXXV. Ao ponderar se são adequadas as respectivas medidas, é necessário equilibrar o interesse a salvaguardar com o interesse sacrificado, e para salvaguardar o interesse da recorrida (requerente), não pode ser sacrificado interesse consideravelmente superior ao mesmo.
XXXVI. No seu Acórdão, o TSI entendeu que “No caso, o “acordo de gestor do templo” é um contrato celebrado entre a requerente e o requerido, as pessoas comuns não ponderam se esse contrato existe ou não. Segundo as regras de experiência, considera-se geralmente na sociedade que a requerente é responsável pela gestão do Templo em causa uma vez que ela é exactamente a Associação de Piedade e de Beneficiência “A-Mio”. Deixando de lado a averiguação de como a requerente obteve a autorização do Governo da RAEM para gerir o Templo em causa, podemos dar assente, a nível indiciária, que, antes de celebração do contrato de gestor do templo em apreço, o requerido reconhecia que a requerente era responsável pela gestão do templo.”
XXXVII. Porém, entende o recorrente que tal afirmação não é suportada, porque o património mundial é apenas o imóvel “Templo de A1 Mio” com mais de 200 anos de história, e segundo os costumes tradicionais chineses, os templos são administrados pelos seus responsáveis, constituindo-se um factum probandum se a sociedade considera que o templo em causa é administrado pela recorrida, o que não pode ser provado simplesmente com base nas regras de experiência.
XXXVIII. Por outro lado, entendeu o TSI que, nos termos do art.º 1087.º, al. e) do Código Civil, o prestador de serviços terá de entregar àquele com quem contratou o que recebeu em execução do contrato. O recorrente não concorda com essa qualificação jurídica, no entanto, quer no processo sub judice, quer no processo principal, pode-se ver que a recorrida não apresentou o pedido de devolução do imóvel em causa, ou seja do “Templo de A1 Mio”, mas só exigiu que o recorrente desocupasse o templo.
XXXIX. E a razão foi ignorada pelo TSI, que por sua vez, não averiguou como é que a recorrida obteve a autorização do Governo da RAEM para gerir o templo em causa, não é a recorrida proprietário do templo/imóvel em causa, e o facto indiciário dado como assente pelo TJB é “o lote do templo em causa – Templo de A1 Mio – pertence ao Governo da RAEM”.
XL. Então, é de grande relevância para o julgamento da causa se a recorrida teve ou não autorização para gerir o imóvel em causa.
XLI. Após julgamento, o TSI ordenou que o recorrente:
- Desocupasse e retirasse os seus pertences do Templo de A1 Mio;
- Se abstivesse de organizar, conduziu ou realizar cerimónias e/ou eventos no Templo de A1 Mio.
XLII. Considerando que o recurso tem efeito meramente devolutivo, o recorrente teve de executar, de imediato, as medidas conservatórias decretadas pelo TSI, o que prejudicou directamente o interesse público.
XLIII. A providência cautelar decretada no Acórdão do TSI resulta directamente em que o Templo de A1 Mio fica temporariamente fechada, e não é que a recorrida decide fechar o templo, mas é que não tem legitimidade para gerir o Templo de A1 Mio.
XLIV. No caso sub judice, a recorrida não alegou que obteve a autorização do Governo da RAEM para gerir o Templo de A1 Mio; e ao mesmo tempo, o TSI não condenou o recorrente a devolver à recorrida o Templo de A1 Mio, pelo que a recorrida não pode tomar conta directamente do Templo de A1 Mio.
XLV. Sendo um templo chinês com uma longa história, o Templo de A1 Mio tem sempre muitos devotos que vêm queimar incensos e velas, visitar periodicamente o templo e render a homenagem. Ao mesmo tempo, o templo pertence aos patrimónios culturais de Macau, e o Dia de Nascimento de A1 é um dos eventos dos costumes populares tradicionais que têm impacto relativamente grande em Macau, no qual serão realizados vários tipos de actividades para os cidadãos de Macau.
XLVI. O Dia de Nascimento de A1 é o dia 7 de Julho do calendário lunar, isto é, dia 4 de Agosto do presente ano de 2022, e se sejam mantidas as medidas de coação decretadas pelo TSI, o imóvel em causa continuará a ser fechado nos dias da semana e no Dia de Nascimento de A1, causando que os devotos e visitantes não podem render a homenagem, até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida no processo principal.
XLVII. Face ao expendido, entende o recorrente que no procedimento cautelar, deve-se fazer ponderação entre o interesse a proteger e o interesse a sacrificar. No caso vertente, dos factos provados resulta que, o recorrente exerceu a função de responsável do Templo de A1 Mio por muitos anos, mas não se verificou qualquer acto que prejudicou a honra da recorrida, e ao contrário, a expulsão do recorrente do Templo de A1 Mio durante a marcha do processo principal, sem ter qualquer pessoa com legitimidade para tomar conta do templo, prejudicou obviamente o interesse público da RAEM.
XLVIII. Pelo exposto, considerando que a providência cautelar decretada pelo TSI violou obviamente a finalidade e a proporcionalidade do procedimento cautelar, nomeadamente que nos autos não se encontra qualquer facto objectivo que reflecte a possibilidade de lesão da honra da recorrida, e que a desocupação imediata do Templo de A1 Mio deixou o mesmo ficar fechado ao público por não haver pessoa para sua gestão, tal situação prejudicou obviamente o interesse público.
XLIX. Por isso, pede-se ao MM.º Juiz do TUI para anular o acórdão proferido pelo TSI”; (cfr., fls. 387 a 401-v e 4 a 17 do Apenso).
*
Adequadamente processados os autos, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
2. Como se colhe do que se deixou relatado, o presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que – atrás se deixou integralmente transcrito e que – concedendo provimento ao recurso da agora recorrida, (requerente da decretada providência cautelar), acolheu a sua pretensão em toda a sua extensão.
Na verdade, como do transcrito Acórdão resulta (e vale a pena ter presente):
- a requerente pediu que o requerido, (agora recorrente):
“a) Ficasse impedido de realizar o evento a 20 de Junho de 2021 nas imediações do Templo de A, (incluindo de utilizar, alterar ou restaurar quaisquer pertences da Autora);
b) Desocupasse e retirasse os seus pertences do dito Templo;
c) Abstivesse de se arrogar como representante da Autora, gestor ou responsável do Templo; e que se
d) Abstivesse de praticar qualquer acto no Templo”;
- pelo Tribunal Judicial de Base foi decidido:
“- proibir o requerido de realizar qualquer actividade no Templo de A1 Mio em nome da A., (Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”), nomeadamente de realizar qualquer actividade em 20 de Junho de 2021 no Templo de A1 Mio; e
- proibir o requerido de declarar que é representante da referida A.”;
- e em sede do anterior recurso, proferiu o Tribunal de Segunda Instância o Acórdão agora recorrido onde, (para além do já ordenado na decisão recorrida), ordenou também que o requerido:
“- Desocupe e retire os seus pertences do Templo de A”; e que,
- “Se abstenha de organizar, conduzir ou realizar cerimónias e/ou eventos no Templo de A”.
Não tendo o dito requerido da peticionada providência cautelar, (ora recorrente), interposto recurso da decisão pelo Tribunal Judicial de Base proferida, visto está que, agora, em causa tão só estão os “pedidos” da requerente pelo Tribunal de Segunda Instância apreciados e concedidos, (em aditamento ao antes já decidido pelo Tribunal Judicial de Base e que se crê que se deixou explícita referência).
E, batendo-se o aludido recorrente pela revogação do decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, sem mais demoras se passa a decidir.
Vejamos.
Tratando de idêntica matéria à ora em apreciação já teve este Tribunal de Última Instância oportunidade de considerar, (nomeadamente), o que segue:
“(…) os Tribunais existem para afirmar e proteger os direitos por Lei reconhecidos às pessoas.
Porém, esta função, para ser eficaz, implica muitas vezes a rápida defesa de direitos ou interesses que, com a habitual e normal demora dos processos, poderiam ficar – irremediavelmente – prejudicados.
Daí se consagrar, logo no art. 1°, n.° 2, do C.P.C.M. que:
“A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção”.
Infere-se assim – da parte final – do normativo em questão que a (principal) função das (aí referidas) “providências” é de evitar a perda da utilidade do efeito jurídico-prático pretendido pelo autor entre o momento em que este recorre ao Tribunal e o momento em que é proferida decisão que lhe reconhece a existência do seu direito.
No que diz respeito às suas características, comum é dizer-se que estas “medidas” são “provisórias”, pois que visam a composição provisória do litígio até à decisão final na acção principal, sendo também “instrumentais”, porque dependentes do processo principal, e “sumárias”, dada a simplicidade no seu processamento.
Atentas estas “características” de “provisoriedade”, “instrumentalidade”, e “sumariedade”, considerava Manuel de Andrade que “através do mecanismo próprio destes procedimentos, pretendeu a lei seguir a linha média entre dois interesses: o de uma justiça pronta, mas com o risco de ser precipitada; e o de uma justiça cauta e ponderada, mas com o risco de ser platónica por não chegar a tempo”; (in “Noções Elementares do Processo Civil”, pág. 10).
Estes “procedimentos” são “especificados”, se especialmente previstos na Lei, porém, sendo a realidade da vida complexa, e não se podendo abarcar todas as situações com “risco de lesão”, prevêem-se também procedimentos “não especificados”, (inominados ou comuns).
No que toca à sua “finalidade”, podem ser agrupados em duas categorias distintas: os “conservatórios” e “antecipatórios”, consoante visem manter inalterada a situação existente ou prevenir um dano, obtendo-se, adiantadamente, a disponibilidade de um bem ou o gozo de um benefício; (sobre o tema, vd., A. dos Reis in, “C.P.C. Anotado”, Vol. I, pág. 624, Jorge Augusto Pais de Amaral in, “Direito Processual Civil”, pág. 32, e A. Abrantes Geraldes in, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. III, pág. 166 e segs.).
(…)”; (cfr., v.g., o Ac. desta Instância de 27.11.2020, Proc. n.° 181/2020 e de 30.07.2021, Proc. n.° 76/2021).
Efectuadas as expostas considerações, continuemos.
No Título respeitante aos “Procedimentos Cautelares”, e no Capítulo respeitante ao “Procedimento Cautelar Comum”, insere-se o art. 326° do C.P.C.M. onde se preceitua que:
“1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer, se ao caso não convier nenhuma das providências reguladas no capítulo subsequente, a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.
3. O tribunal pode decretar providência diversa da concretamente requerida.
4. O tribunal pode autorizar a cumulação de providências a que caibam formas de procedimento diferentes, desde que os procedimentos não sigam uma tramitação manifestamente incompatível e haja na cumulação interesse relevante; neste caso, incumbe-lhe adaptar a tramitação do procedimento à cumulação autorizada.
5. Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que tenha sido julgada injustificada ou tenha caducado”.
In casu, o transcrito preceito legal constitui, por assim dizer, a “base legal” da pela ora recorrida peticionada “providência” que, assim, é não especificada, inominada, ou comum.
Como nota Marco Carvalho Gonçalves in “Providências Cautelares Conservatórias: Questões Práticas Actuais”, (Comunicação apresentada no Centro de Estudos Judiciários de Portugal a 16.03.2018), as providências cautelares conservatórias inominadas visam manter inalterada a situação – de facto ou de direito – existente, assegurando, dessa forma, a efectividade do direito ameaçado; (cfr., v.g., José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto in, “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 8; Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego in, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2.ª ed., pág. 342; e, José Chiovenda in, “Princípios de Derecho Procesal Civil”, pág. 281 e 282).
O mesmo é dizer que a finalidade destas providências não especificadas (inominadas, ou comuns), é, essencialmente, a de “garantir o efeito útil da sentença a ser proferida na acção principal”; (cfr., v.g., António Santos Abrantes Geraldes in, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. III, pág. 90 e 91, e Rui Pinto in, “A Questão de Mérito na Tutela Cautelar – A Obrigação Genérica de não Ingerência e os Limites da Responsabilidade Civil”, pág. 292).
Como igualmente observa V. Lima:
“A principal função da tutela cautelar consiste, pois, em neutralizar os prejuízos a suportar pelo interessado que tem razão, derivados da duração do processo declarativo ou executivo e que não sejam absorvidos por outros institutos de direito substantivo ou processual com semelhante finalidade.
As providências cautelares ou visam acautelar os resultados da acção, mantendo o statu quo para que ele se não altere em condições tais que não seja susceptível de reintegração (medidas conservatórias), ou antecipam a realização do direito que venha, eventualmente, a ser reconhecido, dada a urgência na sua efectivação (medidas antecipatórias).
O arresto, o arrolamento, a suspensão de deliberações sociais e o embargo de obra nova visam a primeira das finalidades.
O arbitramento de reparação provisória, os alimentos provisórios e a restituição provisória da posse são do segundo tipo.
O novo Código previu um procedimento cautelar comum nos artigos 326.° a 337.°, que é aplicável sempre que ao caso não couber uma das providências cautelares especificadas, cujos procedimentos estão regulados nos artigos 338.° a 368.°.
(…)”; (in “Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum”, 3ª ed., 2018, C.F.J.J., pág. 620 e segs.).
Por sua vez, não se pode perder de vista que o procedimento cautelar depende de uma “causa principal” já em curso ou ainda a propor – acção “declarativa” ou “executiva”; (cfr., art. 328°, n.° 1 do C.P.C.M.) – que tenha por fundamento o “direito acautelado”.
A apreciação da matéria de facto e a decisão final nele proferida não têm qualquer influência no julgamento daquela acção principal; (cfr., n.° 5 do referido art. 328°).
Significa tal que a “definitiva resolução do conflito” de interesses subjacente, (em regra), não tem lugar na providência, dadas as suas contingências, e que, embora o seu objecto deva conjugar-se com o da acção de que depende, e o seu fundamento deva também integrar a causa de pedir desta, imprescindível não é uma total identidade dos direitos a tutelar nem do circunstancialismo fáctico a alegar numa e noutra.
Porém, como se afigura claro, o efeito cautelar não excederá os limites que caracterizam todo o procedimento provisório, não podendo conseguir-se por via deste os efeitos de uma “acção definitiva”, cabendo notar que se esta for “constitutiva”, (e, portanto, respeitar a direitos que por meio dela devam ser declarados), nunca o respectivo objecto pode coincidir com o do procedimento cautelar destinado a proteger a consistência prático-jurídica do direito potestativo inerente e limitado a medidas destinadas a garantir-lhe utilidade ou eficácia; (cfr., v.g., A. Abrantes Geraldes in, ob. cit., pág. 150 a 157).
Tem-se pois como adequado esquematizar assim os pressupostos cumulativos do decretamento de uma providência comum (ou não especificada):
a) probabilidade séria (“fumus boni juris”), embora colhida a partir de análise sumária (“summaria cognitio”) e de um juízo de verosimilhança, de o direito invocado e a acautelar já existir ou de vir a emergir de acção constitutiva, já proposta ou a propor;
b) fundado e suficiente receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável (“periculum in mora”) a tal direito, (portanto, que a lesão não se tenha consumado);
c) concreta adequação (ou potencialidade) da providência (como medida de tutela provisória) para remover a situação de lesão eminente e assegurar a efectividade do direito ameaçado;
d) não existência na lei de outro tipo de providência específica que o acautele, (atento o princípio da legalidade das formas processuais); e,
e) que o prejuízo dela resultante para o requerido não exceda consideravelmente o dano que o requerente através dela pretende evitar.
Aqui chegados, vejamos.
A “questão” dos autos evidência aquilo a que, se bem ajuizamos, se poderia eventualmente chamar de um “conflito” – litígio – no que toca ao “direito de exploração/representação e gestão do «Templo de A1 Mio»”.
E, ponderando no teor da decisão proferida e ora recorrida, e tendo igualmente presente o que atrás se deixou exposto, cremos, (ressalvado o devido respeito por melhor opinião), que não se pode manter o pelo Tribunal de Segunda Instância decidido, passando-se a expor o porque deste nosso entendimento, (que, tanto quanto nos parece, não exige uma extensa fundamentação).
Com efeito, e como cremos que sem esforço se alcança da “matéria de facto dada como – indiciariamente – provada”, não resulta assente e suficientemente demonstrado o necessário “fundado receio de lesão” de qualquer direito da requerente, ora recorrida, (tal como expressamente previsto está no n.° 1 do art. 332° do C.P.C.M., onde se prescreve que: “A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”).
E, isto dito, clara se nos mostra pois a solução para o presente recurso, pois que da aludida matéria de facto, pouco, ou mesmo nada resulta quanto ao (alegado) “direito” da requerente, ora recorrida, sobre o referido “Templo”, certo sendo que o (mero) facto (provado) de ter a mesma celebrado com o requerido um “acordo de gestão” relativamente ao mesmo (também) não clarifica ou altera a “situação”, cabendo, igualmente, salientar que da dita matéria de facto não se vislumbra que tipo de “lesão grave e dificilmente reparável” – cfr., art. 326°, n.° 1 – lhe poderá advir em consequência de eventuais “actos” (ou “omissões”) do dito requerido, ora recorrente.
Importa pois ter bem presente que, no que toca aos referidos “aspectos”, (ou “pressupostos”), é a dita factualidade dada como (indiciariamente) provada absolutamente carente de um mínimo de concretização, densificação e demonstração, em grau justificativo, do recurso à “medida cautelar” que foi decretada e que aqui nos ocupa.
Na verdade, e como também refere A. Abrantes Geraldes “não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade (…), não é qualquer lesão que justifica a intromissão na esfera jurídica do requerido com a intimação para se abster de determinada conduta ou com a necessidade de adoptar determinado comportamento ou de sofrer um prejuízo imediato relativamente ao qual não existem garantias de efectiva compensação em casos de injustificado recurso à providência cautelar”; (in ob. cit., pág. 101).
Há pois que evitar eventuais abusos da utilização (não séria) do procedimento e controlar os possíveis pretextos engendrados para tal, balanceando os interesses das partes na composição provisória do conflito dado o seu carácter sumário, medindo-se, e ponderando-se, sempre – de forma objectiva e concreta – a “necessidade de tutela” em contraponto com os “danos previsíveis” e seu “grau de ressarcibilidade”.
Estando em causa eventuais prejuízos “patrimoniais”, o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.
Não estando, ainda assim, de todo excluído o recurso a tal providência para protecção de “interesses” de tal espécie, “devem ser ponderadas as condições económicas do requerente e do requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados”; (cfr., v.g., A. Abrantes Geraldes in, ob. cit., pág. 102).
Por sua vez, e a propósito da expressão legal “lesão grave e dificilmente reparável”, importa também atentar que “(…) não é apenas a gravidade das lesões previsíveis que justifica a tutela provisória, do mesmo modo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil. Apenas merecem a tutela provisória consentida através do procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação”; (cfr., v.g., A. Abrantes Geraldes in, ob. cit., pág. 103).
A “situação de perigo”, deve apresentar-se como de “ocorrência iminente” ou “em curso”, (desde que possam prevenir-se ainda novos danos ou o agravamento dos entretanto já ocorridos), estando, pois, fora da protecção concedida ao abrigo do procedimento cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, (ainda que se trate de lesões graves).
Porém, já nada obsta a que, relativamente a lesões continuadas ou repetidas, seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição dos actos lesivos.
A condição é que se trate de lesão iminente e que ainda não produziu danos ou de lesão consumada, mas cuja persistência, continuação ou repetição se apresenta como susceptível de gerar novos danos ainda preveníveis, devendo o seu receio apresentar-se como “fundado”, (com base numa apreciação naturalmente objecta).
Não bastam pois, e como é evidente, simples “dúvidas”, “conjecturas” (ou “receios meramente subjectivos” ou “precipitados”), assentes numa aligeirada e deficiente apreciação da realidade…
In casu, não se pode perder de vista que pelo Tribunal Judicial de Base decretada já foi a “proibição” de o ora recorrente “realizar qualquer actividade no Templo de A1 Mio em nome da A., (Associação de Piedade e de Beneficência “A-Mio”), nomeadamente de realizar qualquer actividade em 20 de Junho de 2021 no Templo de A1 Mio”, com idêntica “proibição” de “declarar que é representante da referida A.”, e que, em nossa opinião, nenhuma “conduta potencialmente prejudicial” por parte do mesmo se deu (sequer) como indiciada…
Dest’arte, transitado em julgado estando o (assim) decidido pelo Tribunal Judicial de Base, e, demonstrado não estando, (ainda que indiciariamente), que à requerente, ora recorrida, assiste um fundado e suficiente receio de que o ora recorrente lhe cause – qualquer, outra, ou nova – “lesão grave e dificilmente reparável” (no decurso do processo onde irão clarificar os seus direitos e deveres sore o Templo em questão), mostra-se-nos evidente que de confirmar não é decidido, havendo que se decidir em conformidade.
Decisão
3. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam conceder provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrida (requerente), com taxa de justiça de 15 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 27 de Julho de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Note-se que pelo Requerido não foi interposto recurso da decisão recorrida, pelo que nesta parte a mesma transitou.
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