Processo n.º 999/2021 Data do acórdão: 2022-9-28 (Autos de recurso penal)
Assunto:
– erro notório na apreciação da prova
S U M Á R I O
Há erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 999/2021
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A (A)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida a fls. 143 a 146 do Processo Comum Singular n.° CR3-21-0166-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que o condenou como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art.o 137.o, n.o 1, do Código Penal (CP), na pena de noventa dias de multa, à quantia diária de cem patacas, no total, pois, de nove mil patacas, convertível em sessenta dias de prisão no caso de não pagamento nem de substituição por trabalho, e na pena acessória de inibição efectiva de condução por seis meses, com obrigação de pagar a quantia indemnizatória, arbitrada oficiosamente, de MOP3.349,00 (três mil e trezentas e quarenta e nove patacas) ao ofendido B (B), veio o arguido A (A), aí já melhor identificado, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir a sua absolvição, alegadamente devido ao erro notório na apreciação da prova cometido pelo Tribunal recorrido aquando do julgamento dos factos (com pertinência à aferição do nexo de causalidade entre a conduta do próprio recorrente e as lesões do ofendido, e à verificação do dolo na prática do crime em causa), e rogar, a título subsidiário, a redução da sua pena de multa e a suspensão da execução da inibição da condução (cfr. em detalhes, o teor da sua motivação apresentada a fls. 159 a 172, com lapso de escrita rectificado a fl. 199, dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 179 a 183v dos presentes autos), no sentido de improcedência do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta, em sede de vista, parecer (a fls. 195 a 198), pugnando pelo não provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cabe decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida ficou proferida a fls. 143 a 146, cuja fundamentação fáctica, probatória e jurídica se dá por aqui integralmente reproduzida.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesse enquadramento, vê-se que o arguido imputou principalmente à decisão condenatória penal recorrida o vício aludido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), e, a título subsidiário, o excesso da medida da pena de multa, sem deixar de pretender a suspensão da execução da inibição de condução.
Sempre se diz que haverá erro notório na apreciação da prova quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
O art.º 400.º, n.º 2, corpo, do CPP manda atender também aos “elementos constantes dos autos” para efeitos de verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
Portanto, todos os elementos probatórios examinados em sede própria pelo Ente Julgador ora recorrido também têm que ser examinados na presente sede recursória, para se poder aquilatar da ocorrência ou não desse vício de julgamento de factos.
Pois bem, depois de vistos todos os elementos probatórios constantes dos autos e então examinados e como tal referidos pelo Tribunal recorrido na fundamentação probatória da sua sentença (tecida a fl. 144 a 144v), entende o presente Tribunal de recurso que não é patentemente desrazoável o resultado do julgamento da matéria de facto feito por esse Tribunal.
É certo que dos elementos probatórios carreados aos autos, sabe-se que do embate da parte frontal do ciclomotor conduzido pelo ofendido na parte traseira do táxi conduzido pelo arguido (embate este causado pela conduta do arguido de aplicação súbita, por duas vezes, sem justificação plausível, do travão durante a circulação rodoviária na via pública em causa) não resultou a queda logo do ofendido para o chão (aliás, o Tribunal recorrido já julgou, congruentemente, que a lesão alegada pelo ofendido na parte do joelho direito não teve a ver com aquele embate – cfr. as últimas duas linhas do primeiro parágrafo da fl. 144v), mas também não é menos certo que por causa desse mesmo embate teria sido provável, de acordo com as regras da experiência da vida humana, ter o ofendido sofrido lesões físicas leves no seu pescoço, ombro esquerdo e articulação do tornozelo esquerdo.
Do exposto, há que julgar a causa de acordo com toda a factualidade já dada por provada na sentença recorrida, sem qualquer erro notório na apreciação da prova. Em face da mesma factualidade, praticou o arguido, sem dúvida, um crime doloso de ofensa à integridade física do arguido.
E agora da questão da medida da pena de multa: Ponderadas em conjunto todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância com pertinência à medida da pena aos padrões vertidos nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, 45.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP dentro da moldura penal de multa aplicável ao delito penal em questão, tendo em conta o elevado grau de ilicitude da conduta de condução do arguido contra o ciclomotor conduzido pelo ofendido, a despeito de as lesões físicas sofridas pelo ofendido só terem demandado a este um dia para convalescença, não se vislumbra que haja injustiça notória por parte do Tribunal recorrido na fixação do número de dias da pena de multa do arguido. E no tocante à quantia diária dessa multa, não sendo o arguido um desempregado, mas sim com três a quatro mil patacas de rendimento mensal, o montante de cem patacas por cada dia da multa como tal graduado na sentença recorrida já está mesmo muito perto do mínimo legal de cinquenta patacas, pelo que nada há a alterar na presente sede recursória.
Por fim, quanto à sempre almejada suspensão da execução da sanção acessória de inibição de condução: Nesta parte em questão, é de louvar, sem mais abordagem por desnecessária, o juízo de valor já formado pelo Tribunal recorrido aquando da decidida não suspensão da execução dessa sanção acessória.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em julgar não provido o recurso, mantendo a decisão judicial recorrida.
Custas do recurso pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça e duas mil e duzentas patacas de honorários da sua Ex.ma Defensora Oficiosa.
Após o trânsito em julgado, comunique o resultado da presente decisão de recurso (com cópia da sentença recorrida) ao ofendido, e envie uma certidão do presente acórdão e da sentença recorrida ao Processo Comum Singular n.o CR4-22-0129-PCS do Tribunal Judicial de Base.
Macau, 28 de Setembro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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