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Processo n.º 441/2022
(Autos de recurso em matéria cível)

Relator: Fong Man Chong
Data: 22 de Setembro de 2022

ASSUNTOS:

- Prazo para apresentar um precatório-cheque a pagamento e prescrição (artigo 1167º/2 do CPC)

SUMÁRIO:

I – Dos factos assentes resulta claramente que um precatório-cheque foi entregue à Senhora Mandatária da Recorrente em 26/10/2016 e esta só veio a devolver o cheque ao Tribunal em 28/01/2021 mediante seu mandatário, tendo alegado que a Recorrente (uma sociedade comercial sediada em Beijing, sem sucursais nem filiais na RAEM) não tem conta bancária aberta em nenhuma instituição bancária da RAEM, assim não conseguiu levantar as quantias referidas no cheque em causa.

II – Perante a ausência de motivos justificativos de tal “inércia” prolongada de mais de 4 anos, é de concluir pela verificação da prescrição prevista no artigo 1167º/2 do CPC. Trata-se de uma prescrição “sui generis”, ou seja, uma prescrição “ope legis”, com efeito, quer subjectivo quer objectivo, expressamente previsto pela norma em causa.
    
    
O Relator,

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Fong Man Chong

















Processo nº 441/2022
(Autos de recurso em matéria cível)

Data : 22 de Setembro de 2022

Recorrente : A Co. Ltd (A有限責任公司)

Objecto do Recurso : Despacho que declarou a importância dos precatório-cheques a favor do Cofre dos Assuntos de Justiça (宣告將委託付款支票款項撥歸法務公庫的批示)

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   Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I - RELATÓRIO
    A Co. Ltd (A有限責任公司), Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando do despacho proferido pelo Tribunal de primeira instância, datado de 16/09/2021 (fls. 940 e 941), veio, em 09/11/2021, interpor recurso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 972 a 985, tendo formulado as seguintes conclusões:
     I. Vem o presente recurso interposto do despacho de fls. 956 que, baseando-se no prazo de prescrição a que alude o artigo 1167.º, n.º 2 do CPC, ordenou o pagamento, ao Cofre de Justiça e dos Registos e Notariado, do valor do precatório-cheque de fls. 917 (MOP$47,290,950.68).
     II. O cheque de fls. 917, no valor de MOP$47.290.950,68, tem a ora Recorrente como beneficiária, e aquele montante corresponde ao pagamento dos créditos que esta reclamou no presente processo de falência.
     III. A decisão ora recorrida aplica o prazo de prescrição de 1 (um) ano a que alude o artigo 1167.º, n.º 2 do CPC.
     IV. Estando em causa um prazo de prescrição, o artigo 297.º, n.º 1 do CC estipula que o beneficiário tem "[...] a faculdade de [...] se opor [...] ao exercício do direito prescrito."
     V. Porém, e nos termos do artigo 296.º, n.º 1 do CC, a prescrição não é de conhecimento oficioso, tendo de ser invocada por quem beneficie dela.
     VI. No caso que aqui tratamos, o Tribunal a quo determinou oficiosamente a aplicação do prazo de prescrição referido no artigo 1167.º, n.º 1 do CPC sem que nunca a prescrição tenha sido invocada pelo respectivo beneficiário - neste caso o Cofre de Justiça e dos Registos e Notariado.
     VII. Ao decidir proceder a este pagamento ao Cofre de Justiça e dos Registos e Notariado, a decisão recorrida violou o artigo 296.º, n.º 1 do CC, por aplicação oficiosa de um prazo de prescrição, devendo aquela decisão ser revogada e substituída por outra em que se ordene a reemissão do precatório-cheque de fls. 917, no valor de MOP$47.290.950,68, a favor da Recorrente.
     Subsidiariamente,
     VIII. Ainda que se considerasse que a prescrição não teria de ser invocada pelo beneficiário e que poderia ser declarada oficiosamente pelo tribunal, sempre se teria pelo menos de aceitar que, in casu, o prazo de prescrição aplicado não tinha sequer começado a correr.
     IX. O artigo 1167.º, n.º 1 do CPC estipula que os pagamentos são feitos por meio de cheque a ser remetido aos interessados sob registo de correio.
     X. Porém, no caso que aqui tratamos o precatório-cheque não foi remetido à ora Recorrente sob registo do correio, como obriga o artigo 1167.º, n.º 1 do CPC.
     XI. Só quando o endereço dos interessados for desconhecido é que o cheque poderá não ser enviado por correio para a beneficiária.
     XII. Neste caso, o endereço da ora Recorrente constava dos autos, pelo que deveria o precatório-cheque ter sido remetido para o endereço da mesma.
     XIII. Acresce que, da conjugação do artigo 1167º, nº 1 com o artigo 200.º, n.º 2 do CPC, resulta que estamos perante um caso de notificação para prática de acto de natureza pessoal, cuja notificação deve também ser expedida por correio registado para a própria parte.
     XIV. Referindo-se o n.º 2 do artigo 200.º a "acto pessoal", este contrapõe-se, necessariamente, ao acto processual.
     XV. O recebimento do crédito reclamado num processo de falência é um acto pessoal e não processual.
     XVI. No artigo 1167.º, n.º 1 do CPC o legislador demonstra que, para entrega dos precatório-cheques aos credores, quis expressamente derrogar a regra geral de que as notificações podem ser feitas aos mandatários dos credores.
     XVII. Sendo o recebimento do precatório-cheque um acto pessoal, aplica-se ao seu envio o artigo 203.º do CPC, relativo à notificação pessoal às partes, o qual remete para as disposições relativas à citação pessoal.
     XVIII. Essas disposições sobre a citação impunham, por um lado, a notificação por via postal nos termos do art. 180º, nº 2 al. a) do CPC, e por outro lado, ainda que se considerasse a notificação na pessoa do mandatário constituído, essa notificação só poderia ocorrer caso o mandatário tivesse poderes especiais para as receber através de procuração passada há menos de 4 anos, como estabelece o n.º 5 do mesmo artigo.
     XIX. Neste caso, nem a notificação foi feita por via postal à ora Recorrente, nem a mandatária tinha poderes especiais para receber o cheque, e nem a procuração tinha sido passada há menos de 4 anos (a procuração data de 9 de Junho de 2005 e o cheque foi entregue a 26 de Outubro de 2016, ou seja, mais de 9 anos depois da emissão da procuração).
     XX. Assim, impõe-se concluir que o levantamento do cheque pela mandatária não determinou o começo da contagem do prazo de prescrição.
     XXI. Esclareça-se que ao levantar o precatório-cheque a mandatária estava convencida que a Procuração (junta aos autos com a Reclamação de Créditos de fls. 111 e ss.) passada pela ora Recorrente lhe conferia poderes para tal, mas a verdade é que tal se ficou a dever a um lapso na interpretação de um caracter da procuração.
     XXII. Esse lapso residiu na interpretação dos caracteres 传票, os quais indicam que os poderes conferidos são para receber citações, e não para receber chegues, confusão essa que foi gerada pela leitura isolada do caracter 票.
     XXIII. Aliás, sendo a ora Recorrente uma empresa Estatal da República Popular da China, estava impedida, na altura em que constituiu mandatário nestes autos, de passar procurações a terceiros ou mesmo a mandatários judiciais para recebimento de cheques ou dinheiros, por imposição do próprio Partido Comunista Chinês.
     XXIV. Acresce ainda que, ao longo dos mais de 15 anos de pendência deste processo de falência, muitas foram as mudanças nos corpos sociais da ora Recorrente, razão pela qual o mandatário teve muitas dificuldades em contactar os seus diferentes responsáveis que se foram sucedendo, situação que se mantinha na fase final do processo, em que o cheque para pagamento dos créditos da Recorrente foi emitido.
     XXV. Mais, considerando que a ora Recorrente não tem sede na RAEM, sendo uma empresa pública da República Popular da China, está efectivamente impedida de abrir conta bancária em Macau e, consequentemente, de proceder ao desconto do precatório-cheque aqui em discussão, facto esse que é público e notório.
     XXVI. Por todos os motivos expostos, a ora Recorrente não pôde, efectivamente, exercer o seu direito o que, nos termos do artigo 299.º, n.º 1 do CC, determina que o prazo de prescrição a que alude o artigo 1167.º, n.º 2 do CPC não começou a correr.
     XXVII. Assim, também por esta via, deverá a decisão ser revogada e substituída por outra em que se ordene a reemissão do precatório-cheque de fls. 917, no valor de MOP$47.290.950,68, a favor da Recorrente.
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    Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
    Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
    O processo é o próprio e não há nulidades.
    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
    Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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  III – FACTOS ASSENTES:
    1. A 5 de Maio de 2005 foi declarada a Falência da Agência Comercial Peking Macau, Limitada;
    2. A 16 de Junho de 2005 a ora Recorrente reclamou os seus créditos, no total de RMB$196.952.140,50 (cento e noventa e seis milhões, novecentos e cinquenta e dois mil e cento e quarenta renminbis e cinquenta cêntimos), equivalentes a HKD$184.975.846,24 (cento e oitenta e quatro milhões, novecentos e setenta e cinco mil e oitocentos e quarenta e seis dólares de Hong Kong e vinte e quatro cêntimos);
    3. A 7 de Janeiro de 2009 foi proferida a Sentença de Verificação e Graduação de Créditos, tendo sido reconhecidos os créditos reclamados pela ora Recorrente;
    4. A 6 de Setembro de 2016 foi elaborado o rateio dos créditos, onde ficou determinado que a ora Recorrente receberia o total de MOP$47.290.950,68;
    5. A 12 de Outubro de 2016 foi emitido o precatório-cheque no referido montante;
    6. A 26 de Outubro de 2016 o precatório-cheque foi entregue à mandatária da ora Recorrente;
    7. A 28 de Janeiro de 2021 a ora Recorrente requereu a emissão de um novo precatório-cheque, por impossibilidade de descontar o cheque anteriormente passado;
    8. A 10 de Janeiro de 2021 o Tribunal a quo indeferiu o pedido de emissão de novo precatório-cheque;
    9. A 16 de Setembro de 2016, o Tribunal a quo proferiu o despacho de fls. 956, objecto do presente recurso, onde, tendo considerado ultrapassado o prazo de prescrição do artigo 1167.º, n.º 2 do CPC, ordenou a entrega do valor dos precatório-cheques de fls. 917 e 920 ao Cofre de Justiça e dos Registos e Notariado.
    
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
    É o seguinte despacho que constitui o objecto deste recurso, proferido pelo Tribunal de primeira instância:
    
     “由於載於卷宗第917頁及第920頁的委託付款支票自簽發之日起一年內未被提示付款,現根據《民事訴訟法典》第1167條第2款的規定,宣告有關支票的款項撥歸法務公庫。
     本批示確定後,將有關款項轉至法務公庫。
     作出通知及必要措施。
     適時將本案歸檔。”
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    Quid Juris?
    O que está em causa é o cumprimento do artigo 1167º do CPC que prescreve:
(Forma dos pagamentos)
    1. Todos os pagamentos são feitos, independentemente de requerimento, por meio de cheque a ser remetido aos interessados sob registo do correio; se o endereço dos interessados for desconhecido e não for possível a remessa, ficam os cheques a aguardar na secretaria.
    2. Se os cheques não forem apresentados a pagamento dentro de um ano a partir da data da respectiva emissão, a sua importância prescreve a favor do Cofre de Justiça e dos Registos e Notariado.
    
    No caso, sem dúvida o cheque não foi enviado por correio sob registo, mas sim foi entregue à Senhora Mandatária da Recorrente (subestabelecimento feito em 19/06/2015, fls. 897), conforme o que consta de fls. 898, em 26/10/2016, por razões não apuradas nos autos, só em 28/01/2021 (fls. 915) é que o Ilustre Mandatário veio a devolver o cheque em causa e pedir a nova emissão (fls. 915 e 196), tendo alegado que a credora reclamante, seu constituinte (ora Recorrente) não tem nenhuma conta bancária aberta nas instituições bancárias da RAEM, nem ele tem poder bastante para levantar tal cheque.
    Foi alegado também pela Recorrente que está em causa um acto pessoal, por produzido no âmbito de um processo de falência, ao abrigo do disposto no artigo 1167º conjugado com o artigo 200º do CPC, e como tal trata de uma “invalidade” do acto (entrega pessoal dos cheques em causa).
    Ora, a Recorrente não chegou a qualificar o vício do acto em causa, será uma nulidade? Ou mera irregularidade? Na pior da hipótese, admitindo-se que seja uma “nulidade” (sui generis, digamos assim), quem contribuiu para tal foi a própria mandatária da Recorrente, pois, depois de 4 anos é que veio a devolver ao Tribunal o precatório-cheque e pedir nova emissão. Isto por um lado, por outro, as razões invocadas não são bastantes para justificar o atraso “exagerado” verificado no caso dos autos.
    Pelo que, improcede este argumento da Recorrente.
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    Depois, a Recorrente veio a alegar que a prescrição do artigo 1167º/2 não é do conhecimento oficioso, já que o Cofre nunca levantou tal questão.
    Relativamente ao conceito de prescrição – diz-se que há prescrição quando alguém se pode opor ao exercício dum direito pelo simples facto de este não ter sido exercido durante determinado prazo fixado na lei. Para que haja prescrição é necessário a verificação dos seguintes requisitos: a) um direito não indisponível; b) que possa ser exercido; c) mas que o não seja durante certo lapso de tempo estabelecido na lei; d) e que não esteja isento de prescrição (Menezes Cordeiro, Dir. Obrigações, 1980, 2.º-155 e 157).
    A prescrição prevista no artigo 1167º/2 do CPC é uma prescrição “sui generis”, até dizemos que se trata de uma prescrição “ope legis”, com efeito expressamente previsto pela norma em exame.
    
    Pode discutir-se que a inexistência de conta bancária aberta nas instituições da RAEM pode constituir um facto impeditivo da verificação da “prescrição” ? Haveria lugar ou não à interrupção e suspensão do prazo? Como não temos dados suficientes sobre este ponto, nem sequer tal foi objecto de alegações por parte da Recorrente, o que poupa as nossas considerações neste ponto.
    Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela Recorrente, confirmando-se a decisão recorrida.
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    Síntese conclusiva:
    I – Dos factos assentes resulta claramente que um precatório-cheque foi entregue à Senhora Mandatária da Recorrente em 26/10/2016 e esta só veio a devolver o cheque ao Tribunal em 28/01/2021 mediante seu mandatário, tendo alegado que a Recorrente (uma sociedade comercial sediada em Beijing, sem sucursais nem filiais na RAEM) não tem conta bancária aberta em nenhuma instituição bancária da RAEM, assim não conseguiu levantar as quantias referidas no cheque em causa.
    II – Perante a ausência de motivos justificativos de tal “inércia” prolongada de mais de 4 anos, é de concluir pela verificação da prescrição prevista no artigo 1167º/2 do CPC. Trata-se de uma prescrição “sui generis”, ou seja, uma prescrição “ope legis”, com efeito, quer subjectivo quer objectivo, expressamente previsto pela norma em causa.
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    Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
    Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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    Custas pela Recorrente.
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    Registe e Notifique.
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RAEM, 22 de Setembro de 2022.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong




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