--- Decisão Sumária nos termos do art.º 407º, n.º 6 do C.P.P.M. (Lei n.º 9/2013). ----------
--- Data: 28/09/2022 --------------------------------------------------------------------------------------
--- Relator: Dr. Chan Kuong Seng --------------------------------------------------------------------
Processo n.º 632/2022
(Recurso em processo penal)
Recorrente: Ministério Público
Recorrido (arguido): A
DECISÃO SUMÁRIA NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA
1. Inconformado com a sentença proferida a fls. 102 a 105v do Processo Comum Singular n.° CR3-22-0125-PCS do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, absolutória do arguido A da acusada prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de acolhimento, p. e p. pelo art.o 71.o, n.o 1, da Lei n.o 16/2021, veio o Digno Delegado do Procurador recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, para pedir, na motivação apresentada a fls. 117 a 124 dos presentes autos correspondentes, a condenação do arguido nesse crime, em seis meses de prisão, com suspensão na sua execução por dois anos, devido à já verificação do dolo (mesmo que sob a forma de dolo eventual), por parte deste, no cometimento do mesmo delito.
Ao recurso, respondeu o arguido a fls. 127 a 135 dos presentes autos, no sentido de improcedência da pretensão do Ministério Público.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 148 a 151v, pugnando pelo provimento do recurso.
Cumpre decidir sumariamente do recurso, dada a simplicidade da questão principal do dolo do crime a resolver, nos termos permitidos pelo art.o 621.o, n.o 2, do Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do Código de Processo Penal.
2. Do exame dos autos, sabe-se que a sentença ora recorrida se encontrou proferida a fls. 102 a 105v, cuja fundamentação fáctica e jurídica se dá por aqui integralmente reproduzida.
3. No caso dos autos, o Tribunal recorrido julgou que o arguido agiu com dolo eventual na conduta de acolhimento (cfr. o facto provado 6, e o facto provado descrito nas linhas 4 a 7 da página 8 do texto da sentença a fl. 103v), e acabou por decidir, com base na entendida descriminalização, por força da norma do art.o 71.o, n.o 1, da Lei n.o 16/2021, do crime de acolhimento praticado com dolo eventual, pela absolvição penal do arguido (cfr. o último parágrafo da fundamentação jurídica da sentença recorrida, a fl. 105).
Pois bem, segundo o art.o 15.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004 (ainda vigente à data da prática, pelo arguido, do primeiro acto de acolhimento ilegal em determinado dia de Outubro de 2021, e supervenientemente revogada pela Lei n.o 16/2021):
“Quem dolosamente acolher, abrigar, alojar ou instalar aquele que se encontre em situação de imigração ilegal, ainda que temporariamente, é punido com pena de prisão até 2 anos”, sendo a versão em chinês deste preceito como tal constante da redacção do respectivo texto legal o seguinte: “故意收留、庇護、收容或安置非法入境或非法逗留者的人,處最高二年徒刑,即使收留、庇護、收容、安置屬臨時性亦然。”
Enquanto o art.o 71.o, n.o 1, da Lei n.o 16/2021 dispõe o seguinte:
– (em português:) “Quem, sabendo da situação de imigração ilegal em que outrem se encontre, permitir que o mesmo se acolha e pernoite na sua habitação ou de alguma forma lhe faculte o domínio ou posse de sítio, construção, veículo, embarcação ou imóvel ou sua fracção, compartimento ou anexo, para aquele fim, é punido com pena de prisão até 2 anos”;
– (e em chinês:) “明知他人處於非法入境或非法逗留狀況而允許該人在其居所獲收留及留宿,又或以任何方式提供地方、建築物、車輛、船舶或不動產,又或不動產的單位、房間或附屬部分供該人支配或佔有,使該人獲收留及留宿者,處最高兩年徒刑。”
Ante a redacção desses dois preceitos incriminadores da conduta de acolhimento, um proveniente da lei antiga (vigente à data dos factos do primeiro acto de acolhimento ilegal do presente caso), e o outro plasmado na lei nova (vigente pelo menos à data da “última” conduta de acolhimento ilegal até antes do dia 16 de Fevereiro de 2022 em que a imigrante ilegal dos autos ficou interceptada pela Polícia para efeitos de investigação da sua situação de clandestinidade), o juízo jurídico do Tribunal recorrido de o crime de acolhimento cometido com dolo eventual passar a não ser punível por efeito da lei nova apenas poderia relevar, se relevasse realmente, perante a redacção em chinês da mesma lei nova, visto que no preceito incriminador em causa, na lei nova, se usou o termo “明知” (o que significa, em português, “sabendo claramente”), ao passo que na sua redacção em português, se empregou o termo “sabendo”.
Como se sabe, o art.o 13.o do CP distingue diferentes modalidades de dolo, através da seguinte redacção:
“1. Age com dolo quem, representando-se um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2. Age ainda com dolo quem se representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3. Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”.
De acordo com a matéria de facto já dada, e descrita, por provada na sentença recorrida, o arguido agiu com dolo eventual ensinado na doutrina jurídica penal geral (subsumível ao n.o 3 do art.o 13.o do CP) na conduta de acolhimento, de maneira que sendo o crime de acolhimento um delito doloso, o arguido deve ser punido como autor material de um crime consumado de acolhimento, mesmo à luz do art.o 71.o, n.o 1, da Lei nova n.o 16/2021.
A acima referida discrepância na letra oficial do n.o 1 do art.o 71.o da Lei n.o 16/2021 acerca do verbo saber não tem a virtude de afastar a aplicação da dita norma do art.o 13.o da parte geral do CP.
Seja como for, a eventual circunstância de algum tipo-de-ilícito penal se encontrar descrito na letra da lei com foco no elemento intelectual do dolo na prática do delito (e como exemplo deste tipo de técnica legiferante, pode ver-se na letra do n.o 2 (proémio) do art.o 255.o do CP) não pode prejudicar a devida punição do mesmo delito em caso de dolo eventual da sua prática, sob pena de pôr em causa o sentido e alcance dos pressupostos de punição previstos nos art.os 12.o e 13.o do CP para crime doloso.
E tudo isto também por força do cânone de hermenêutica jurídica de que quem interpreta uma norma está a interpretar todo o sistema jurídico (cfr. a este propósito, o disposto no n.o 1 do art.o 8.o do Código Civil, em conformidade com o qual a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico [...]).
Assente, por razões acima expostas, a devida condenação do arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime (mesmo por dolo eventual) de acolhimento do art.o 71.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004 por que vinha acusado pelo Ministério Público, resta proceder à medida concreta da pena:
Ponderadas todas as circunstâncias fácticas já descritas como provadas na fundamentação fáctica da decisão ora recorrida, afigura-se justo e equilibrado, aos padrões dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o, n.os 1 e 2, do CP, condenar o arguido em quatro meses de prisão pelo seu crime de acolhimento, pena essa que não se substitui por igual tempo de multa por força das prementes necessidades da prevenção geral deste tipo legal de crime (cfr. o critério material exigido no art.o 44.o, n.o 1, do CP), mas já pode ser suspensa na execução por um ano, nos termos do art.o 48.o, n.o 1, do CP, dada a falta de antecedentes criminais do arguido.
Procede, pois, o recurso.
4. Dest’arte, decide-se, sumariamente, em julgar provido o recurso do Ministério Público, com consequente condenação do arguido como autor material de um crime consumado de acolhimento (por dolo eventual), p. e p. pelo art.o 71.o, n.o 1, da Lei n.o 16/2021, na pena de quatro meses de prisão, suspensa na execução por um ano.
Custas do processo em ambas as duas Instâncias pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça no Tribunal recorrido (passando os honorários do Ex.mo Defensor Oficioso atribuídos na sentença recorrida a ficar a cargo do arguido) e duas UC de taxa de justiça nesta Segunda Instância, com oitocentas patacas de honorários a favor do seu mesmo Ex.mo Defensor por causa da presente lide recursória.
Comunique a presente decisão (com cópia da sentença recorrida) ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 28 de Setembro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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