Processo nº 271/2022
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data do Acórdão: 28 de Setembro de 2022
ASSUNTO:
- Recurso contencioso
- Irrecorribilidade do acto Recorrido
SUMÁRIO:
- Resultando do Estatuto da Associação que das decisões da Direcção cabe impugnação administrativa necessária para a Assembleia Geral e que apenas dos actos definitivos e executórios da Assembleia Geral cabe recurso contencioso, os actos praticados pela Direcção são irrecorríveis;
- A irrecorribilidade do acto de acordo com a al. c) do nº 2 do artº 46º do CPAC é elevada a pressuposto processual relativo ao objecto do recurso que uma vez não verificado obsta a que o tribunal conheça do mérito o que se traduz numa excepção dilatória, de conhecimento oficioso e que conduz à absolvição da instância nos termos da indicada disposição legal.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 271/2022
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)
Data: 28 de Setembro de 2022
Recorrente: Direcção da Associação dos Advogados de Macau
Recorrido: A
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
veio interpor recurso da deliberação de 3 de Fevereiro de 2021 da Direcção da Associação dos Advogados de Macau que decidiu suspender a inscrição do Recorrente como advogado estagiário pelo período de um ano, com efeitos a partir de 9 de Fevereiro de 2021.
Pelo Tribunal Administrativo foi proferida sentença na qual se deu provimento ao recurso anulando o acto recorrido.
Não se conformando com a decisão recorrida veio a Direcção da Associação dos Advogados de Macau interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. 267 a 280 v. proferida nos autos de Recurso Contencioso de Anulação referenciados em epígrafe, na medida em que o julgou procedente, para o efeito, anulando o acto em causa - deliberação da ora Recorrente, de 3 de Fevereiro de 2021 - que, recorde-se, decidiu suspender a inscrição como advogado estagiário, do Dr. A (doravante o “Estagiário”), pelo período de um ano, com efeitos a partir de 9 de Fevereiro de 2021.
2. Esta suspensão foi decidida ex vi da aplicação do disposto no n.º 10 do Art.º 35.º do Regulamento do Acesso à Advocacia (doravante o “RAA”), norma esta aprovada nas sessões de 11 e 16 de Maio de 2017, pela Assembleia Geral da Associação Pública dos Advogados de Macau e, ulteriormente publicado no Boletim Oficial da RAEM n.º 25, II Série, de 21 de Junho de 2017.
3. Para tal, invocou o douto Tribunal a quo que “Em síntese: a norma em apreço ao proceder a uma ampliação inovadora do elenco das causas restritivas da liberdade de escolha da profissão, sem ter sido legitimada pela norma habilitante prévia constante do artigo 19.º, n.º 3 do Estatuto do Advogado, intrometeu-se no domínio da reserva da lei da Assembleia Legislativa, definido pelas normas do Artigo 35.º e o segundo parágrafo do Artigo 40.º da Lei Básica e o artigo 6.º alínea 1) da Lei n.º 13/2009, o que inquinou, por consequência, o acto impugnado que naquela se fundou.”.
4. Estamos em crer, no entanto, que a sentença recorrida enferma do vício errada aplicação de Lei Substantiva, pelas razões que passamos a expor.
5. A habilitação de competência para a aprovação deste regulamento consta de norma legal formal, a saber, os artigos 30.º e 31.º do Estatuto do Advogado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31/91/M, de 6 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei n.º 26/92/M e pelo Decreto-Lei n.º 42/95/M que revestem forma de Lei, sendo mister destacar, também, o que vem estabelecido no Art.º 48.º do denominado Estatutos da Associação Pública dos Advogados de Macau.
6. Em suma, face ao normativo legal acima descrito, jurisprudencialmente e doutrinariamente confirmado, só se poderá concluir pela legitimidade da AAM para a elaboração, aprovação e execução do referido Regulamento do Acesso à Advocacia.
7. O Decreto-Lei n.º 31/91/M, de 6 de Maio, o qual Aprova o Estatuto do Advogado, logo no seu preâmbulo e após destacar o relevo da Declaração Conjunta na matéria, afirma, «Constitui-se, assim, a Associação dos Advogados de Macau que, enquanto pessoa colectiva pública, não só representa a profissão e assegura a participação dos profissionais na organização e regulação da profissão duma forma autónoma, como lhe compete elaborar um código deontológico, e regulamentar e dirigir o estágio profissional.».
8. Ou seja, a AAM é uma associação pública, o que resulta tanto da própria qualificação directamente conferida por diploma legal, como também do conteúdo que perpassa o seu regime legal, designadamente, mas não apenas das suas atribuições, e também das suas competências e poderes que são atribuídos aos seus órgãos.
9. Recorde-se, porque deveras importante, a Lei Básica, no artigo 92.º «Com base no sistema anteriormente vigente em Macau», e no artigo 129.º «O Governo da Região Administrativa Especial de Macau reconhece, nos termos dos respectivos regulamentos, as profissões e as associações profissionais que tenham sido reconhecidas antes do estabelecimento da Região ...».
10. Como muito bem se afirma na decisão ora posta em crise, a propósito de um concreto poder mas facilmente aplicável em geral à AAM e seus traços fundamentais caracterizadores, «Mesmo após a reassunção do exercício do poder soberano pela república Popular da China (…) tal poder regulamentar que fora pelo Estatuto do Advogado conferido à AAM, sempre mantém-se na sua esfera, por força do princípio da continuidade da vigência da legislação que anteriormente vigorava em Macau, consagrado no artigo 92.º da Lei Básica da RAEM».
11. Pois bem, o Estatuto do Advogado criou, por conversão, uma associação pública profissional: a Associação dos Advogados de Macau. Vejam-se os artigos 3.º e 37.º do Estatuto do Advogado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31/91/M, de 6 de Maio.
12. E no mesmo sentido vai a jurisprudência da RAEM. Por exemplo, no mui bem fundamentado Acórdão do TUI, exarado no processo n.º 129/2020 «apresenta-se-nos de ter como mais adequado considerar a “Associação de Advogados de Macau” (A.A.M.)., (da qual faz parte o ora recorrente), uma “associação pública” com a natureza de “pessoa colectiva pública” – “sui generis” - que, no âmbito do exercício de atribuições e competências (públicas) por Lei atribuídas, deve ser considerada como integrante da Administração da R.A.E.M.;».
13. Pois bem, se resulta da lei vigente, incluindo a Lei Básica - enlaçada com o sumo princípio da continuidade jurídica -, da jurisprudência e da doutrina locais que a AAM é uma associação pública profissional, isto é, por conseguinte, uma pessoa colectiva pública autónoma, daí resultam, pois, necessariamente, determinados caracteres que lhe são incindíveis, nomeadamente a prossecução de fins públicos e de interesses próprios dos profissionais, a existência e exercício de competências jus-públicas, v.g., regulamentares, deontológicos, disciplinares.
14. «A advocacia colegiada é a predominante na Europa ocidental e define-se pela existência de um ou mais organismos em que é obrigatória a inscrição dos advogados. Caracteriza-se pela sua independência e autonomia face ao Estado, pertencendo à Ordem (...) o poder disciplinar e a organização jurídica da profissão.».
15. Resulta sem mácula de dúvida que o sistema de organização profissional dos advogados em Macau e, correspondentemente, a AAM, insere-se na sobredita advocacia colegiada cujos caracteres essenciais e co-naturais à sua especial natureza jurídica - de ordem constitucional, legal, jurisprudencial e doutrinária - representam uma opção clara e fundada não, podendo, destarte, ser objecto de alteração essencial, menos ainda de simples extinção, sob pena de tal representar uma desconformidade com a Lei Básica e com a Declaração Conjunta e um desafio frontal ao princípio da continuidade.
16. A Lei Básica de Macau (aprovada em 31 de Março de 1993, para entrar em vigor em 20 de Dezembro de 1999), na sequência da Declaração Conjunta de 13 de Abril de 1987, contém um catálogo substantivo de direitos fundamentais, entre os quais o da liberdade de escolha de profissão e de emprego, donde se salientam os preceitos normativos jus-constitucionais enunciadores de importantes princípios definidores do sistema de direitos fundamentais em Macau que constam dos Art.ºs 4.º, 11.º e 25.º.
17. Pois bem, um desses princípios é, precisamente, o da reserva de lei, rectius, da reserva de lei quanto às restrições dos direitos fundamentais. Com efeito, determina o segundo parágrafo do artigo 40.º da Lei Básica: «Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau, não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei.»,
18. A restrição a um direito fundamental pode ser brevemente descrita como uma actuação que atinge ou afecta o conteúdo dos direitos e liberdades fundamentais gozados pelos residentes de Macau, uma compressão ou diminuição do âmbito material ou pessoal destas posições jurídicas subjectivas fundamentais.
19. Fácil de ver, portanto, que no caso concreto que ditou a prolação da sentença do Tribunal a quo, será, precisamente, esta linha e raciocínio que, prima facie, esteve subjacente à decisão ora posta em crise.
20. Isto é, no entendimento do Tribunal, a actuação de uma entidade que é pessoa colectiva pública integrante da Administração autónoma, dotada de poderes públicos, por via normativa - o RAA -, normação esta que não reveste forma de lei, e que veio comprimir o conteúdo de direito fundamental consagrado na Lei Básica - impondo, em determinada situação fáctica uma suspensão da inscrição como advogado estagiário, pelo período de um ano. Suspensão esta que não se acharia prevista nem pela Lei Básica, nem por qualquer outra norma de estalão hierárquico Lei - particularmente o Estatuto do Advogado.
21. Tendo o douto Tribunal a quo adoptado a tese de que o referido regulamento, aparentemente de uma forma inovadora, teria, pois, ampliado o elenco das causas restritivas da liberdade de escolha de profissão, sem ter sido, portanto, legitimado por qualquer norma legal ou constitucional habilitante prévia donde terá, então, invadido o perímetro sujeito a reserva de lei da Assembleia Legislativa.
22. Ora, ressalvado o devido respeito que nos merece, ao enveredar pela linha de raciocínio acima exposta, equivocou-se o douto Tribunal a quo, na medida em que fez um enquadramento errado da aludida norma do RAA, assim como dos vastos e necessários poderes Regulamentares que são conferidos à AAM.
23. A figura da intervenção restritiva, afinal, a principal modalidade de afectação de um direito fundamental concretamente considerado numa determinada pessoa significa que se afecta o conteúdo de posição individual, mas, deixando intocada a norma e os efeitos gerais da norma de direito fundamental, ou seja, se se considerasse ou valorasse primacialmente a decisão concreta da aplicação da suspensão de inscrição, sem contudo observar as normas que fundamentam tal decisão, somos a concordar que faltaria sempre o requisito do prévio apoio numa norma legal - havendo, somente, apoio numa norma infralegal - mas, decididamente, este não é o caso.
24. O legislador ao estatuir «regulamentar o acesso à profissão e o estágio» estaria a pressupor, de forma imanente, dir-se-á, que, dessa regulamentação poderão brotar, naturalmente, limitações, condicionantes, configurações co-naturais ao processo de acesso à profissão - isto é, para lá do que vem disposto nos números precedentes do artigo 19.º do Estatuto do Advogado.
25. Ao dispor-se, por concessão legislativa expressa, do poder de regulamentar o acesso á profissão e o estágio, então, terá de conceber-se a possibilidade de, nessa regulamentação, serem previstas causas que possam suster esse processo e interromper o estágio.
26. Desde logo, a possibilidade de identificar causas de reprovação, mas não apenas.
27. De contrário, seria assumir o acesso e o estágio como mera formalidade destituída de qualquer substância.
28. Se assim fosse, seria colocado em crise um elemento essencial e que se enlaça decididamente com a prossecução de um interesse público, qual seja, a de garantir que serão advogados somente aqueles que se achem devidamente preparados técnica e deontologicamente. De resto, é sobretudo este interesse público - e não os interesses de índole privada que coexistem - que justifica a criação de uma associação pública profissional.
29. Nestes vários preceitos estatuídos em forma de lei é recorrente a ideia pressuposta, ou imanente, que à AAM é disponibilizada uma ampla e necessária competência regulamentar genérica com vista a dar concretização prática à exigência plasmada no artigo 11.º.
30. Em síntese, ainda que seja verdadeiro que não poderá um regulamento de carácter administrativo restringir um direito fundamental, ou sequer condicionar, limitar ou configurar esse direito fundamental, sem prévia habilitação legal, na realidade, esta habilitação legal existe verdadeiramente em diversos preceitos do Estatuto do Advogado.
31. Admite-se, pois, a possibilidade de algumas nuances, por exemplo, quanto à natureza material da matéria concretamente considerada, nomeadamente a sua essencialidade, ou o facto de haver domínios onde, objectivamente, «o legislador não deve desenvolver todo o regime, em ordem a dar a devida relevância às circunstâncias particulares em que a Administração vai exercer os seus poderes».
32. Estamos, assim, perante uma colisão entre um direito de quem quer permanecer inscrito como advogado estagiário e um bem digno de protecção jurídica, nomeadamente a promoção e defesa da dignidade e prestígio da profissão e, mais ainda, a defesa dos interesses da comunidade em geral e daqueles que, potencialmente, poderão recorrer aos serviços destes advogados estagiários, os quais, dado terem falhado por três vezes consecutivas a conclusão do estágio, não estarão dotados das competências técnicas mínimas que lhe permitam exercer a preceito as funções e, não apenas não conseguirão representar devidamente os interesses dos seus clientes, como estarão a colocar em causa o interesse geral da comunidade.
33. É linear que a norma colocada em crise detém um objectivo claro de garantir a eficácia da formação e a valorização profissional do estágio, estando em causa a boa formação profissional dos futuros Advogados, associadas à dignidade funcional e ao prestígio social da profissão de advogado e, concomitantemente, ao interesse público.
34. Como bem se sabe, em casos de colisões de direitos e de colisões entre direitos e bens públicos dignos de protecção jurídica poderá haver lugar a um sacrifício adequado e proporcional do direito para, deste modo, se salvaguardar o superior interesse público e genérico da sociedade. Este é, precisamente, o caso dos autos.
35. Atente-se no seguinte: «Há inúmeras situações em que essa consequência seria absurda ou totalmente injustificada à luz das razões substanciais que fundamentam as exigências de reserva de lei. É assim quando a intervenção restritiva, ainda que legalmente não prevista, tem um carácter de necessidade tão óbvia e pacífica que se pode inferir, com segurança, que o legislador teria habilitado a Administração a intervir com o sentido e alcance restritivos com que esta o faz caso tivesse previsto ou podido prever a ocorrência da colisão que a Administração procura resolver».
36. Aliás refira-se, tal actuação da Administração não é de todo desconhecida na RAEM, veja-se meramente a título exemplificativo, em virtude do combate à pandemia do Covid-19, as várias ordens executivas, avisos, regulamentos administrativos, etc. que encerram decisões que, salvo melhor apreciação, estando embora respaldados em geral pelo bem público defesa da saúde pública, não deixam de interferir restritivamente em vários direitos fundamentais e, ao que se saiba, ao menos em alguns desses casos, poderão não estar dotados de qualquer habilitação legal prévia exposta de um modo expresso e inequívoco.
37. Afirmou o douto Tribunal a quo, que a norma do RAA viola o direito fundamental de livre escolha da profissão consagrado na Lei Básica, no entanto, ressalvado o devido respeito, está igualmente equivocado, na medida em que tal direito fundamental não é, de todo, violado.
38. Ou seja, no caso em apreço, o que está em causa não é a liberdade de escolha de profissão em sentido nuclear, mais estrito e cuja dimensão se acha expressamente vertida na Lei Básica, mas, diferentemente, a liberdade de exercício da profissão, uma dimensão distinta, que goza de menor intensidade de protecção, e não está sequer, expressamente ali inscrita.
39. Isto é, o exercício de uma profissão ou actividade profissional regulamentada pode, naturalmente, estar sujeito à verificação de alguns requisitos profissionais, que devem estar definidos em legislação sectorial, designadamente: incompatibilidades ou impedimentos; sigilo profissional; regras deontológicas ou técnicas; verificação periódica de conhecimentos, capacidades ou aptidões, etc.
40. Tal como acontece com a Advocacia, nem todos os Residentes, mesmo que licenciados nas áreas específicas, podem exercer a profissão de Médico, Enfermeiro, Farmacêutico, Engenheiro, Arquitecto ou Juiz, pois o acesso a todas estas profissões está, naturalmente e por razões de ordem e interesse público, condicionado à satisfação de requisitos adicionais para além da obtenção de um grau académico.
41. De outra banda, o que sucede in casu, é meramente, um postergar de um dado índice de acesso. Está em causa uma suspensão, por tempo curto e determinado e que mais não faz do que, no fundo, transferir um ónus para o interessado - vir mais bem preparado tecnicamente com vista a poder, finalmente, ao cabo de três tentativas goradas, passar os exames. Suspende-se por forma a habilitar o candidato um período de estudo mais dedicado e concentrado.
42. Acresce, igualmente, que advogado estagiário não é uma profissão em si mesma, mas sim um iter legalmente exigível de um procedimento, o qual, depois de concluído, abre as portas para o cabal exercício da profissão de Advogado. É um tirocínio, por regra necessário para lograr algo mais - de, através do estudo das matérias e da obtenção da aprovação nos exames realizados para o efeito, se chegar ao exercício da Profissão de Advogado - mas não é uma profissão; é algo transitório por natureza.
43. Ora, por maioria de razão, se não é uma profissão, se é algo transitório por natureza, então, precisamente pela sua natureza nunca se poderia reconduzir a uma profissão, sendo-lhe inaplicável o preceito constitucional que cura de tutelar a liberdade de escolha de profissão.
44. Isto é, não está aqui em causa um direito fundamental, logo não há que se atender à reserva de lei em matéria de restrições a direitos fundamentais.
45. Pelo que, ao ter considerado que a norma contida no n.º 10 do Art.º 35.º do RAA não se encontra habilitada pelo disposto no n.º 3 do Art.º 19.º do Estatuto do Advogado o que, alegadamente, violara o disposto nos Art.ºs 35.º e 40.º (segundo parágrafo) da Lei Básica e a alínea 1) do Art.º 6.º da Lei n.º 11/2009, o douto Tribunal a quo incorreu no vício de errada aplicação de Lei Substantiva.
Pelo Recorrido foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida sem que daquelas constassem conclusões.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, aderindo também às razões constantes do parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo, foi emitido parecer no sentido de ser revogado o acórdão recorrido e ordenada a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo para conhecimento das demais questões suscitadas.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre assim apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos Factos
Da decisão recorrida consta a seguinte factualidade:
1) O ora Recorrente é advogado estagiário inscrito na Associação dos Advogados de Macau com o n.º 1/2015 (conforme o doc. junto a fls. 113 dos autos).
2) Em 3/2/2021, a Direcção da Associação dos Advogados de Macau tomou a seguinte deliberação:
“1. (...)
2. Deliberado por esta Direcção suspender a inscrição, como advogado estagiário, do Dr. A, nos termos do disposto no art.º 35.º, n.º 10, do Regulamento do Acesso à Advocacia, com efeitos a partir de 9 de Fevereiro de 2021;
(...)” (conforme o doc. junto a fls. 79 dos autos).
3) Por carta de 6/2/2021, foi comunicada ao Requerente a deliberação acima referida, cujo teor se transcreve no seguinte:
“…Assunto: Suspensão da sua inscrição como advogado estagiário
…
Vimos, pelo presente, informá-lo de que, em reunião da Direcção da Associação dos Advogados de Macau, de 3 de Fevereiro de 2021, foi deliberado, de acordo com o disposto no n.º 10, do art.º 35.º, do Regulamento do Acesso à Advocacia (R.A.A.), suspender a sua inscrição, como advogado estagiário, com efeitos a partir do dia 9 de Fevereiro corrente, na sequência da sua reprovação em mais um exame final de estágio.
…
Tal inscrição ficará suspensa pelo período de um ano, após o qual se deve sujeitar à avaliação final de estágio seguinte. A falta ou reprovação a esta, terá como efeitos os descritos no n.º 11 do referido artigo.
…
Aproveitamos a oportunidade para relembrar que, nos termos do artigo 12.º, n.ºs 3 e 4, do R.A.A., deverá entregar a sua cédula profissional e o seu cartão de beneficiário do acesso aos cuidados de saúde, nos serviços administrativos da AAM, bem como providenciar pelo encaminhamento dos assuntos dos seus clientes ainda pendentes ao momento da suspensão, e ainda remover ou ocultar todas as placas de identificação que lhe respeitam.
…
Desta deliberação cabe recurso contencioso para o Tribunal Administrativo, a interpor no prazo de trinta dias.
…” (conforme o doc. junto a fls. 80 e 81 dos autos).
4) Em 10/3/2021, o Recorrente interpôs o presente recurso contencioso.
b) Do Direito
Questão prévia
Da recorribilidade do acto impugnado
Compulsados os autos verifica-se que o acto impugnado é uma Deliberação da Direcção da Associação dos Advogados de Macau a qual nos termos do nº 1 do artº 5º do Estatuto da Associação dos Advogados de Macau admite recurso para a Assembleia Geral, só havendo recurso contencioso da decisão que por esta vier a ser proferida, de acordo com o disposto no nº 3 da indicada disposição legal.
Notificadas as partes para dizerem o que tivessem por conveniente sobre esta matéria e dada vista dos autos para parecer ao Ilustre Magistrado do Ministério Publico, todos vieram sustentar que o acto impugnado era recorrível contenciosamente.
Vejamos então.
Sob a epígrafe “Recursos” dispõe o artº 5º dos Estatutos da Associação Pública dos Advogados de Macau o seguinte:
1. Os actos praticados pela Direcção, pelo Conselho Fiscal e pela Mesa da Assembleia Geral da Associação, no exercício das suas atribuições, que sejam lesivos dos interesses de qualquer associado admitem recurso para a Assembleia Geral.
2. O prazo de interposição de recurso é de 15 dias de calendário.
3. Das deliberações da Assembleia Geral da Associação que consubstanciem actos definitivos e executórios cabe recurso contencioso nos termos gerais de direito.
Relativamente a inscrições preparatórias, recusas e recursos, dispõe o nº 5 do artº 47º daquele estatuto que:
5. No caso de recusa de inscrição preparatória ou de inscrição na Associação, pode o interessado recorrer para a Assembleia Geral, nos termos do disposto no artigo 5.º.
Dispõe ainda o nº 2 do artº 21º daquele estatuto que “à Assembleia Geral cabe deliberar sobre todos os assuntos que não estejam compreendidos nas competências especificas dos restantes órgãos da Associação”.
É da competência da Direcção nos termos do nº 1 do artº 29º daquele Estatuto:
1. Compete à Direcção:
a) Representar a Associação em juízo e fora dele, designadamente perante os órgãos de governo e os tribunais;
b) Zelar pelo cumprimento da legislação respeitante à Associação e respectivos regulamentos e pela prossecução das atribuições que lhe são conferidas;
c) Fazer executar as deliberações da Assembleia Geral e do Conselho Fiscal;
d) Promover a cobrança das receitas e autorizar despesas orçamentais podendo, quando necessário, promover a abertura de créditos extraordinários;
e) Apresentar anualmente à Assembleia Geral o projecto de orçamento para o ano civil seguinte, as contas do ano civil anterior e o relatório sobre as actividades anuais;
f) Promover, por iniciativa própria ou a solicitação da Assembleia Geral, os actos necessários ao patrocínio dos Advogados ou para que a Associação se constitua assistente, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 4.º;
g) Cometer a qualquer dos órgãos sociais ou aos respectivos membros a elaboração de pareceres sobre quaisquer matérias que interessem às atribuições da Associação;
h) Dirigir os serviços da Associação;
i) Exercer as demais atribuições que as leis e regulamentos lhe confiram
Como se vê da redacção do nº1 do artº 5º do indicado estatuto está expressamente consagrado o direito a recorrer dos actos da Direcção impondo contudo a lei a impugnação administrativa necessária.
Contrariamente ao que se pretende fazer crer, quando o nº 1 da indicada disposição diz que dos actos da Administração se admite recurso para a Assembleia Geral não se está a consagrar a possibilidade do interessado poder escolher entre a impugnação administrativa e o recurso contencioso, mas tão só a conferir o direito a impugnar administrativamente o acto praticado pela Direcção para a Assembleia Geral.
Interpretação esta que não é contrariada pela versão chinesa do diploma em que o carácter utilizado tem o significado de poder no sentido de conferir o direito a.
Por sua vez, o nº 3 do indicado preceito é claro ao definir que dos actos definitivos e executórios da Assembleia Geral cabe recurso contencioso.
Há que entender que o legislador expressa-se sempre da melhor forma, pelo que, se a intenção tivesse sido a de consagrar a impugnação administrativa facultativa a par do recurso contencioso, assim havia sido dito no referido nº 1 tal como se diz na parte final do nº 3.
No entanto o que resulta da conjugação dos três números do artº 5º do Estatuto da Associação Pública dos Advogados de Macau é que no nº 1 se consagra o direito à impugnação administrativa necessária dos actos praticados pelos órgãos ali indicados para a Assembleia Geral no prazo de 15 dias de calendário, isto é prazo contínuo, e dos actos definitivos e executórios da Assembleia Geral cabe, então, recurso contencioso nos termos da lei de processo.
Alega-se ainda que esta norma só seria aplicável aos associados e que o Recorrente não tem essa qualidade.
Porém, o contrário resulta do nº 5 do artº 47º que determina que qualquer interessado a quem seja recusada a inscrição preparatória pode recorrer para a Assembleia Geral.
Ora, o Recorrente enquanto Advogado estagiário viu ser suspensa a sua inscrição como tal pela Direcção da Associação, pelo que, não faria sentido que estando sujeito à disciplina e decisões da Direcção não pudesse depois reagir como qualquer outro associado.
Por outro lado, a interpretação sistemática do diploma não permite outra conclusão, pois se o interessado a quem é recusada a inscrição provisória tem necessariamente que recorrer à impugnação administrativa necessária para a Assembleia Geral é manifesto que os associados e aqueles que estão sujeitos à disciplina e decisões da Direcção e que queiram reagir contra os actos desta tenham que proceder da mesma forma, impugnando previamente para a Assembleia Geral e só da decisão que por esta venha a ser proferida possam interpor recurso contencioso se preenchidos os demais requisitos.
Mais se alegava a repartição de competências entre a Assembleia Geral e a Direcção, contudo, em momento algum resulta que o acto impugnado haja sido praticado no exercício de competência exclusiva da Direcção e cuja matéria esteja vedada à apreciação da Assembleia Geral.
Ou seja, o estatuto da Associação Pública dos Advogados de Macau mais não faz do que acompanhar o disposto no artº 154º do Código do Procedimento Administrativo e nº 1 do artº 28º do CPAC consagrando a definitividade meramente vertical.
Não sendo matéria da exclusiva competência da Direcção, e sendo a Assembleia Geral o órgão de topo da Associação, a solução adoptada pelo Estatuto da Associação Pública dos Advogados de Macau corresponde ao regime jurídico consagrado no CPA e CPAC fazendo-se depender a recorribilidade das decisões da Direcção da impugnação administrativa necessária para a Assembleia Geral.
Sendo claro que o espírito do diploma foi reservar o recurso contencioso apenas para os actos definitivos e executórios da Assembleia Geral, outra solução não cabe que não seja a de concluir pela irrecorribilidade do acto impugnado.
A irrecorribilidade do acto de acordo com a al. c) do nº 2 do artº 46º do CPAC é elevada a pressuposto processual relativo ao objecto do recurso que uma vez não verificado obsta a que o tribunal conheça do mérito o que se traduz numa excepção dilatória, de conhecimento oficioso e que conduz à absolvição da instância nos termos da indicada disposição legal.
Neste sentido veja-se José Cândido de Pinho em Notas e Comentários ao Código de Processo Administrativo Contencioso, Vol. I, pág. 354:
«O nº2, no seu proémio, estabelece uma condição geral de rejeição: o recurso será liminarmente rejeitado quando seja manifesta a verificação de circunstâncias que obstem ao seu prosseguimento.
Isto significa que estamos perante uma norma aberta que permite a densificação através de casos concretos que impeçam o prosseguimento do recurso e que tenham natureza meramente processual (nunca substantiva ou de fundo). E esses pressupostos terão que ser “manifestos”, ou seja, é preciso que a ocorrência daquelas circunstâncias adjectivas/formais seja evidente (“…manifesta…”), que não deixe margem para qualquer dúvida. E manifesta, sim, porque a rejeição liminar é uma medida fortemente severa que só deve ser aplicada quando o juiz não é assaltado por qualquer dúvida sobre o assunto. Em caso de dúvida no seu espírito, deve permitir que o processo avance e esperar que as partes tragam ao debate processual fundamentos mais claros que possam, então sim, tranquilamente levar a uma decisão formal muito mais consensual e segura.
4 – Os pressupostos processuais representam uma qualidade que é preciso previamente observar para que o tribunal possa realmente apreciar o direito invocado pelo recorrente. Distribuem-se entre aqueles que são relativos ao tribunal e às partes e os que são relativos ao processo e ao objecto do recurso.
Na medida em que estes pressupostos não forem, ou não puderem ser, sanados, eles confluem naquilo a que se designa por excepções dilatórias e que impedem o conhecimento do objecto do recurso.
As excepções dilatórias se forem apreciados na fase liminar do processo conduzem à rejeição liminar. Assim o proclama o art. 46.º do CPAC.
Ultrapassada a fase liminar do processo – por exemplo, na fase do saneamento e até mesmo na fase da decisão final, a solução processual para elas pode ser a absolvição da instância, tal como emerge dos arts. 230.º e 413.º do CPC.».
Destarte, impõe-se decidir em conformidade, decidindo-se agora pela irrecorribilidade do acto, absolvendo a Recorrida inicial Direcção da Associação dos Advogados de Macau da instância e revogando a decisão recorrida.
No mesmo sentido já se decidiu no Acórdão deste Tribunal de 13.05.2021 proferido no processo nº 33/2021.
III. DECISÃO
Termos em que, pelos fundamentos expostos se decide absolver a Recorrida inicial Direcção da Associação dos Advogados de Macau da instância, revogando a sentença recorrida.
Custas a cargo do Recorrente inicial A fixando-se a taxa de justiça em 5 UC´s.
Registe e Notifique.
RAEM, 28 de Setembro de 2022
Rui Pereira Ribeiro
Lai Kin Hong
Fong Man Chong
Mai Man Ieng
271/2022 ADM 23