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Processo n.º 428/2022
(Autos de recurso em matéria cível)

Relator: Fong Man Chong
Data: 13 de Outubro de 2022

ASSUNTOS:

- Ónus especificado de impugnar a matéria de facto fixada pela Tribunal de 1ª instância

SUMÁRIO:

I - No âmbito de reapreciação da decisão de facto, de realçar que, em conformidade com o regime de recursos aplicável (artigo 599º do CPC), não cabe ao Tribunal ad quem proceder a um novo julgamento latitudinário da causa, mas apenas sindicar os invocados erros de julgamento da 1.ª instância sobre os pontos de facto especificamente questionados, mediante reapreciação das provas produzidas nesse âmbito, tomando por base os factos tidos por assentes, a prova produzida ou algum documento superveniente, oportunamente junto aos autos, que imponham decisão diversa.
II - A especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
III - É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
IV – No caso, como a Recorrente não cumpriu este ónus específico de impugnar a decisão de facto, é de rejeitar o recurso nesta parte.


O Relator,

________________
Fong Man Chong




Processo nº 428/2022
(Autos de recurso em matéria cível)

Data : 13 de Outubro de 2022

Recorrentes : Recurso Principal
A (Réu)

Recurso Subordinado
B (Autor)

Recorridos : Os mesmos

*
   Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I - RELATÓRIO
    A, Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 05/11/2021, dele veio, em 28/01/2022, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 352 a 382, tendo formulado as seguintes conclusões:
     1) O presente recurso vem interposto do acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Base a fls. 328 a 336 dos autos que considerou a acção proposta pelo Recorrido parcialmente procedente e, em consequência: declarou o Autor, aqui Recorrido, legítimo proprietário da pintura da autoria de C; condenou o Réu, ora Recorrente, a restituir ao Autor a referida pintura; absolveu o Réu dos demais pedidos formulados pelo Autor e, por último, absolveu o Autor/Reconvindo do pedido reconvencional formulado pelo Réu/Recovinte, ora Recorrente;
     2) Com o devido respeito, o acórdão ora impugnado encontra-se viciado por uma errada decisão sobre a matéria de facto que influenciou decisivamente (e em sentido incorrecto) a solução jurídica do caso, notando-se que o Tribunal nem sequer cuidou de ponderar as mentiras que o Autor foi defendendo ao longo do processo para sustentar a realidade factual que alegou;
     3) Acresce que a matéria de facto foi decidida com base em prova testemunhal que era legalmente inadmissível em face do artigo 388.º do Código Civil e, sem qualquer outra base factual sólida e legalmente admissível, o Tribunal aceitou as extraordinárias alegações de facto feitas pelo Autor para, assim, concluir por uma decisão que constitui uma deturpação da realidade demonstrada e apurada nos autos;
     4) Ora, a convicção do Tribunal Judicial de Base não pode prevalecer quando, na verdade, se atenta as regras legais sobre a admissibilidade da prova e contra os mais elementares padrões de normalidade, razoabilidade e experiência da vida que devem fazer parte da correcta valoração da prova sob o critério da probabilidade lógica;
     5) O Tribunal de Segunda Instância, nos termos do artigo 629.º do CPC, tem poderes para proceder a uma efectiva reapreciação da matéria de facto apurada nos autos e formar de modo independente a sua convicção a partir dos depoimentos das testemunhas (desde que admissível) conjugados com todos os demais elementos probatórios resultantes dos autos;
     6) Tem ainda o Tribunal de Segunda Instância poderes, nos termos do referido artigo 629.º do CPC, para alterar as respostas dadas à matéria de facto quando as mesmas se basearam em prova proibida, como é o caso da situação descrita no artigo 388.º do Código Civil, o que por si só justificaria que as mesmas fossem tidas por não escritas de acordo com o artigo 549.º, n.º 4, do CPC;
     7) Refira-se que as mentiras num processo judicial não são-ditas por ingenuidade, incúria ou inocência, visando antes conformar uma falsa realidade e quadro factual que é favorável à Parte que se socorre da mentira, pelo que não poderia o Tribunal Judicial de Base desprezar e ignorar essas falsidades na ponderação da matéria de facto;
     8) Ora, o Recorrido mentiu quando afirmou que a Pintura tinha o seu nome desenhado no canto inferior direito (artigo 5.º da petição inicial), o que está claro do resultado da perícia que para o efeito foi realizada (fls.208, 219 e 220 dos autos), tendo sido feita uma verdadeira prova do contrário do que o Recorrido alegou (e não mera contraprova);
     9) O Recorrido mentiu também quando omitiu na sua petição inicial que, além do contrato de arrendamento, os seus pais D e E alienaram o restaurante F a G e H (este último enquanto sócio de G, não surgindo expressamente no contrato de trespasse) e quando, na réplica, negou activamente a existência do contrato de trespasse (como se pode constatar dos artigos 8.º, 9.º, 21.º a 24.º da Réplica);
     10) O contrato de trespasse celebrado em 16 de Junho de 1995 está documentalmente comprovado nos autos através da cópia certificada do mesmo, a qual foi obtida junto da Direcção dos Serviços de Turismo e que veio a ser apresentada nos autos com o requerimento de 3 de Abril de 2018 (fls. 162 a 166 dos autos);
     11) É evidente que através destas mentiras o Recorrido procurou estabelecer um vínculo entre si e a Pintura, pois no período relevante para estes autos (ou seja, antes dos pais do Recorrido terem decidido alienar o Restaurante até ao presente momento) o Recorrido nunca teve qualquer poder de facto sobre a pintura, visto que a mesma se encontrava no Restaurante dos seus pais e ali se manteve depois de esse Restaurante ter sido alienado por aqueles;
     12) Além disso, o Recorrido não podia alegar que alguma vez teve qualquer contacto directo com os adquirentes do Restaurante: nem antes do contrato de trespasse, nem no momento em que o contrato de trespasse veio a ser celebrado nem durante os vinte (20!) anos em que os adquirentes do Restaurante exploraram a sua actividade na fracção autónoma "BR/C" do prédio melhor identificado nos autos, nunca se tendo interessado pela Pintura durante todo esse tempo;
     13) Também se compreende muito facilmente a razão pela qual o Recorrido faltou à verdade e negou que os seus pais haviam vendido o Restaurante em Junho de 1995, defendendo antes que aqueles apenas arrendaram o imóvel onde o Restaurante se encontrava (supostamente encerrado) e era explorado;
     14) É que tal pintura fazia parte do mobiliário do Restaurante, pelo que existindo apenas um arrendamento (ou locação do Restaurante) não poderia ser reclamado qualquer direito de propriedade sobre os bens que faziam parte do Restaurante;
     15) Faltou-se assim activa e conscientemente à verdade com o fito evidente de prejudicar a correcta percepção dos factos pelo Tribunal;
     16) No presente recurso impugnam-se as respostas positivas que recaíram sobre os quesitos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º e 7.º da Base Instrutória;
     17) Não se pode perder de vista que os quesitos 1.º a 4.º e, ainda, o quesito 7.º, dizem respeito a factos que não podem ser confirmados por quaisquer outros meios de prova constantes dos autos nem podem ser verificados pelo Tribunal e, muito menos, pelo Recorrente;
     18) Não se poderia deixar de ponderar também que o Recorrido não se coibiu de recorrer a mentiras ao longo do processo para tentar conformar uma realidade de facto que lhe é favorável;
     19) Dando-se ainda o caso das testemunhas 2.ª a 4.ª do Recorrido, cujo depoimento fundamentou a resposta positiva dada pelo Tribunal recorrido aos quesitos 1.º a 4.º e 7.º da Base Instrutória, são familiares do Recorrido e, por isso, têm interesse directo na procedência da acção;
     20) Não se podendo retirar do depoimento de testemunhas parciais sobre factos inverificáveis qualquer fundamento de credibilidade, sobretudo quando estão em causa factos que são alegados por uma Parte que, em relação a factos verificáveis, foi apanhada a mentir no Processo;
     21) Além disso, o próprio Recorrido quando negou a existência do contrato de trespasse fê-lo sustentando que apenas teria sido um contrato de cessão temporária do uso e exploração do Restaurante, alegando: "Assim sendo, enquanto arrendatários G e H, eram meros detentores do Restaurante, e sabiam que um dia teriam de devolver o Restaurante ao seu proprietário, o Autor. Por outras palavras," (artigo 23.º da Réplica), “A alegada posse de G e H sobre o Restaurante e os bens que o compunham trata-se, pois, de uma detenção ou posse em nome alheio, e não uma posse com animus domini." (artigo 24.º da Réplica);
     22) Reconhecendo assim na Réplica que a Pintura fazia parte dos bens que compunham o Restaurante, Restaurante que era dos seus pais, pelo que inadvertidamente o Recorrido acabou por reconhecer que a Pintura não era sua, elemento que consta do processo e que por si só serviria para desmentir a matéria dos quesitos 1.º a 4.º da Base Instrutória;
     23) Acresce ainda que, de modo curioso, dentro do leque de factos entre o quesito 1.º a 5.º da Base Instrutória, o único facto que era passível de directa verificação e confirmação foi o único facto que o Autor, ora Recorrido, não conseguiu provar (quesito 5.º da Base Instrutória), de nada lhe tendo valido, em face da clareza do relatório pericial a fls. 208, 219 e 220 dos autos, a insinuação de que a pintura teria sido objecto de deturpação-ou alteração;
     24) Sendo ainda certo que o Tribunal Judicial de Base deu como provado o quesito 3.º em clara infracção das mais elementares regras da experiência, já que é inconcebível que alguém considere que um objecto seu de valor sentimental seja posto nas mãos de terceiros desconhecidos por um período indefinido de tempo (que se prolongou por mais de duas décadas) sem que o pudesse recuperar;
     25) Pelo que também por isso o quesito 3.º deveria ter sido dado como não provado, já que a matéria de facto que é passível de verificação e confirmação demonstra o contrário do que é alegado, revelando uma atitude de desprendimento e desinteresse do Autor, ora Recorrido, pela Pintura da qual se intitula como Proprietário;
     26) Diga-se ainda que o quesito 4.º estava intimamente relacionado com o quesito 5.º, na medida em que a demonstração de que a obra teria sido executada propositadamente para o Autor resultava do facto de ter sido desenhado o nome do Autor no canto inferior direito daquela Pintura (veja-se os artigos 4.º e 5.º da Petição Inicial).
     27) Pelo que não se tendo demonstrado o quesito 5.º, também não se poderia dar como provada a matéria do quesito 4.º, já que aquele era a prova deste último;
     28) Pelo que, ao contrário do juízo e valoração que o Tribunal Judicial de Base fez, não só há fortes razões para duvidar das declarações prestadas pelas 2.ª a 4.ª testemunhas do Autor, ora Recorrido, como existem elementos nos autos (incluindo a própria alegação do Recorrido na Réplica) que impunham uma decisão diversa;
     29) Assim, os quesitos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º deveriam ter tido a resposta "Não Provado" e o quesito 7.º deveria ter apenas obtido uma resposta limitativa no sentido de "Provado apenas que a Pintura foi pendurada no interior da fracção id. em B";
     30) Impugna-se ainda a resposta dada pelo Tribunal aos quesitos 10.º a 14.º e 21.º a 25.º da Base Instrutória;
     31) Como resulta da própria fundamentação do Tribunal Judicial de Base, todos estes quesitos estão intimamente relacionados, sendo que a resposta negativa aos quesitos 21.º a 25.º (este só em parte) deve-se à resposta positiva aos quesitos 10.º a 14.º, justificada com base nos depoimentos das testemunhas 2.ª a 4.ª do Recorrido;
     32) A fundamentação apresentada pelo Tribunal Judicial de Base está viciada por um viés confirmatório e consequentes erros de raciocínio, cometendo-se uma violação da lei ao admitir a prova testemunhal para discutir os factos em apreço e, em todo o caso, por erros de valoração da prova (pois não tomou em consideração todos os elementos constantes dos autos, incluindo as falsidades alegadas pelo Autor), e, mais grave ainda, o recurso a uma questão de direito para responder a matéria exclusivamente factual.
     33) Com efeito, o Tribunal Judicial de Base ao considerar mais credíveis as testemunhas apresentadas pelo Autor e ao dar como provados os quesitos 10.º a 14.º da Base Instrutória e, consequentemente, ao dar como não provados os quesitos 21.º a 25.º (este, apenas em parte) da Base Instrutória, incorreu numa violação da lei;
     34) Diz o artigo 388.º, n.º 1, do Código Civil que “É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 367.º a 373.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.";
     35) É precisamente esse o alcance dos quesitos 10.º a 14.º da Base Instrutória, pois através dos mesmos visa-se fazer a prova de uma convenção adicional aos contratos escritos assinados naquele dia 16 de Junho de 1995, em especial ao contrato de arrendamento (contrato de arrendamento e contrato de trespasse a fls. 162 a 166 dos autos);
     36) Nessa matéria o Tribunal não podia apoiar-se no princípio da livre apreciação das provas em face da limitação constante do n.º 2 do artigo 558.º do CPC, onde se diz que "Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.";
     37) Regra processual civil que, conjugada com o artigo 388.º do Código Civil, implica que as respostas dadas em violação dessas normas sejam tidas por não escritas, ao abrigo do artigo 549.º, n.º 4 do CPC, por estarem em causa questões de facto que só podiam ser provadas por documentos;
     38) Em suma, é inegável que a prova testemunhal era manifestamente inadmissível, sobretudo quando nem sequer tinham um princípio de prova do que afirmam.
     39) O que bem se compreende, pois "O objectivo será o de afastar os perigos que a admissibilidade da prova testemunhal seria susceptível de originar – quando uma das partes (ou ambas) quisesse infirmar ou frustrar os efeitos do negocio, poderia socorrer-se de testemunhas, destruindo mediante uma prova extremamente insegura a eficácia do documento. Nas palavras de Mota Pinto (10) assim «se defende o conteúdo dos documentos (o seu carácter verdadeiro e integral) contra os perigos da precária prova testemunhal, em conformidade com a máxima "Iettres assent témoins"." [Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de Novembro de 2006, proferido no Processo n.º 5173/2006.2, disponível em www.dgsi.pt);
     40) Acresce que nenhuma das excepções ao funcionamento do artigo 388.º do Código Civil se verifica no caso dos autos, pelo que a prova testemunhal era inadmissível quando tinha por objecto a prova da matéria dos quesitos 10.º a 14.º da Base Instrutória e a contraprova dos quesitos 21.º a 25.º da Base Instrutória;
     41) Não se diga tão-pouco que o Recorrido é um terceiro em face dos contratos de arrendamento e de trespasse celebrados no dia 16 de Junho de 1995 e que, por essa razão, não lhe é aplicável a regra do n.º 1 do artigo 388.º do Código Civil;
     42) É que o n.º 3 do artigo 388.º do Código Civil, onde se dispõe "O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros.", uma vez que "Terceiros para efeitos do n.º3 do art.º 394.º do C.Civil são todos aqueles que, não sendo os autores da convenção contrária ao conteúdo do documento autêntico, e seus herdeiros, vejam a sua situação jurídica afectada, com a eventual prova por testemunhas da convenção. Ou seja, o preceituado no n.º3 do art.º 394.º do C.Civil só se aplica a terceiros desinteressados. (...) Ou seja, em concreto, a posição dos réus/apelantes de compradores na última escritura pública em referência não é dissociável da posição de G ... na escritura de doação, pelo que eles são terceiros interessados, na pretendida prova por testemunhas do alegado acordo divisório e alegadas consequências materiais decorrentes do mesmo, logo não se lhes aplica o preceituado no n.º3 do art.º 394.º do C.Civil." (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Outubro de 2019 indicado supra);
     43) Ora, o Autor/Recorrido é o principal interessado na prova por testemunhas de uma convenção meramente verbal que vai para além dos contratos escritos assinados no dia 16 de Junho de 1995, tendo todo o interessado nas consequências materiais decorrentes do mesmo, não podendo assim beneficiar do regime previsto no n.º 3 do artigo 388.º do Código Civil;
     44) De outro modo, era muito fácil defraudar a lei e o alcance pretendido com o artigo 388.º do Código Civil, bastando por exemplo alegar que a convenção teria como parte alguém que não era Parte nos negócios principais (o alegado dono da Pintura que nunca antes foi tido nem achado nem tinha a detenção material do objecto) para assim se poder conseguir recorrer à prova testemunhal para provar convenções que vão para além do conteúdo daqueles negócios principais;
     45) Assim, na ausência de qualquer outra prova admissível, os quesitos 10.º a 14.º da Base Instrutória devem ter a sua resposta alterada para "Não Provado" visto que a sua prova se apoiou, única e exclusivamente, em prova legalmente inadmissível por contrariar o disposto no artigo 388.º do Código Civil;
     46) Além disso, tendo a "prova" - em clara violação do disposto no artigo 388.º do Código Civil - desses factos influenciado a resposta negativa aos quesitos 21.º a 24.º da Base Instrutória e a resposta limitativa ao quesito 25.º, cremos que também se impõe a alteração dos quesitos 21.º a 24.º para "Provado" e o quesito 25.º também para uma simples resposta de "Provado", o que se diz sem prejuízo da restante argumentação nesse sentido;
     47) Com efeito, não se pode defender que as respostas negativas aos quesitos 21.º a 24.º e a resposta limitativa ao quesito 25.º da Base Instrutória estão desligadas da prova testemunhal inadmíssivel que o Tribunal recorrido, em violação da lei, usou para fundamentar uma livre apreciação que lhe estava vedada;
     48) É isso que verdadeiramente se constata no exame feito pelo Tribunal Judicial de Base do contrato de trespasse a fls. 162 a 166 dos autos, procurando ainda responder às questões de facto colocadas nos quesitos 21.º a 25.º com recurso a uma solução de direito em violação das próprias regras jurídicas sobre interpretação das declarações negociais;
     49) No contrato de trespasse é dito claramente que E, com o consentimento da sua mulher D, trespassou o estabelecimento de comidas F a G, "incluindo todo o activo, designadamente, o direito ao arrendamento, todos os seus móveis e utensílios, e demais elementos constitutivos do mesmo estabelecimento, com exclusão, porém, dos respectivos créditos e de qualquer passivo do mesmo estabelecimento, actualmente existentes.";
     50) Tendo já decidido pela resposta positiva aos quesitos 10.º a 14.º da Base Instrutória com base prova testemunhal inadmissível, o Tribunal Judicial de Base entendeu que "a pintura, pela sua natureza, não é, vulgarmente, entendida, como um elemento componente, por si, ou em conjunto das outras coisas, com capacidade lucrativa para um restaurante. Portanto, perante o teor abstracto do contrato de trespasse e sem indicação específica, não podemos considerar o quadro como elemento componente do restaurante e ser transferido, automaticamente, para os adquirentes.";
     51) Ora, com todo o respeito, é evidente que o Tribunal parte de uma questão de direito para resolver uma questão de facto, o que constitui uma clara violação das regras de valoração da prova;
     52) O apuramento da vontade real das partes é uma questão de facto, o que ocorre quando as partes articulem factos relevantes sobre a intenção na redacção de determinadas cláusulas (Acórdão nº 111/2019 do TUI);
     53) Mas não foi esse o caso, desde logo porque a existência do contrato de trespasse foi negada pelo Recorrido, tendo sido o Réu que apresentou a sua existência como comprovativo da transmissão do estabelecimento comercial, incluindo o seu recheio, onde se encontrava a Pintura;
     54) É pacífico que a interpretação das cláusulas contratuais constitui matéria de direito quando se deva proceder de acordo com o artigo 228.º, n.º 1, do Código Civil (Acórdão n.º 02A1442 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal de 4 de Junho de 2002, disponível em www.dgsi.pt);
     55) Ora, se a Pintura se encontrava no interior do Restaurante e se o mesmo é transmitido "incluindo todo o activo, designadamente, o direito ao arrendamento, todos os seus móveis e utensílios, e demais elementos constitutivos do mesmo estabelecimento, com exclusão, porém, dos respectivos créditos e de qualquer passivo do mesmo estabelecimento, actualmente existentes.", de que modo é que um declaratório normal conclui que a Pintura não faz parte do que é transmitido, quando não vem integrada naquilo que é excluído da transmissão?
     56) Até o próprio Recorrido, na Réplica, reconheceu inadvertidamente nos artigos 21.º a 24.º daquela peça processual que a Pintura era um dos bens que compunham o Restaurante, defendendo apenas que o Restaurante não tinha sido trespassado mas apenas sido cedido temporariamente o seu uso e exploração!;
     57) Por isso, terá de se concluir que não é esse o sentido normal da declaração nem é exigível que as Partes assumam que estão excluídos do trespasse os objectos que efectivamente se encontram no interior do estabelecimento comercial trespassado e que são usados na sua decoração;
     58) Destarte, como não conseguia ultrapassar a questão da existência do trespasse, que havia sido negado pelo Autor, ora Recorrido, o Tribunal entra por uma questão de direito para dizer que o trespasse não importa para nada e que G e H não agiam na convicção de serem proprietários de todos os bens que se encontravam no interior do Restaurante, entre os quais a Pintura;
     59) No fundo, o que está em causa é o esvaziar de todos os elementos materiais que o Réu, ora Recorrente, conseguiu trazer para os autos para preferir em seu lugar uma prova testemunhal que era inadmissível;
     60) Traduzindo-se isto numa encapotada inversão do ónus da prova, passando para o Réu a difícil tarefa de provar que não foi celebrado qualquer contrato verbal no momento em que as Partes se encontravam no cartório notarial a celebrar outros contratos escritos (é mesmo prova diabólica);
     61) Precisamente o que o legislador pretendeu acautelar ao proibir a prova testemunhal nas situações previstas no artigo 388.º do Código Civil;
     62) Em suma, o Tribunal Judicial de Base ignorou as alegações do Recorrido ao longo do processo e a forma como foram desmentidas, para se focar única e exclusivamente nos depoimentos das testemunhas - que era prova inadmissível em face do artigo 388.º do Código Civil (!) - e tornar irrelevantes todas as provas existentes nos autos, interpretando ainda à margem da lei o contrato de trespasse para o conseguir desvalorizar;
     63) Requerendo-se assim que as respostas aos quesitos 10.º a 14.º sejam alteradas para "Não Provado" e as respostas aos quesitos 21.º a 25.º sejam alteradas para "Provado";
     64) Por outro lado, ainda que se entendesse que era admissível o recurso à prova testemunhal apesar do artigo 388.º do Código Civil, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, há prova nos autos que conjugada com a valoração da prova produzida nos autos sob o critério da probabilidade lógica tornaria insustentável a decisão tomada pelo Tribunal Judicial de Base quanto aos quesitos 10.º a 14.º e 21.º a 25.º da Base Instrutória;
     65) A valoração do depoimento testemunhal tem de obedecer a um "padrão de prova" sob um critério de probabilidade lógica, o que "significa que uma hipótese pode aceitar-se como verdadeira se não for refutado pelas provas disponíveis e estas a confirmam, tornando-a mais provável que qualquer outra hipótese alternativa sobre os mesmos factos. Concorrem aqui três requisitos, quais sejam: 1. Requisito da confirmação; 2. Requisito da não refutação; 3. Escolha entre as diferentes hipóteses alternativas" (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal: Noções de Psicologia do Testemunho, 2.ª Edição, pág. 415);
     66) O requisito da confirmação exige que "uma prova p confirma uma hipótese h se existir um nexo causal e lógico entre ambas que faz com que a existência daquela constitua uma razão para aceitar a segunda. (...)” (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal: Noções de Psicologia do Testemunho, 2.ª Edição, pág. 415).
     67) Ainda que se considerasse que tanto a versão do Autor como a versão do Réu são igualmente fundadas - o que por mera cautela de patrocínio se admite - sempre seria necessário proceder à escolha entre as diferentes hipóteses alternativas: "Após a produção das provas, pode acontecer que duas ou mais hipóteses contraditórias sobre os factos em discussão estejam suficientemente fundadas. Coloca-se, então, a questão de que critério conjunto utilizar para a decisão final sobre a fixação dos factos provados, operando - do mesmo passo - uma escolha entre as hipóteses alternativas excludentes" (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal: Noções de Psicologia do Testemunho, 2.ª Edição, pág. 417);
     68) Desenvolvendo este critério, "Carlos de Miranda Vásquez propõe que o enfrentamento das hipóteses "Consiste em examinar que hipótese explica a maior quantidade de prova - potência explicativa - e qual delas contradiz menos dados provados - índice de contradição. Assim deve atender-se aos seguintes parâmetros: que hipótese concorda ou casa melhor com factos relacionados, qual delas é mais credível ou verosímil, postas em comparação e devidamente contextualizadas e, finalmente, qual delas é mais simples (princípio da navalha de Ockham)." (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal: Noções de Psicologia do Testemunho, 2.ª Edição, págs. 417 e 418);
     69) Acresce ainda que "Michael Pardo defende que deve dar-se prevalência a uma explicação que: (i) justifique a maior quantidade de prova e os elementos de prova mais importantes, (ii) seja compatível com o conhecimento e experiência acumulados e que (iii) não requeira assunções insólitas" (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal: Noções de Psicologia do Testemunho, 2.ª Edição, pág. 418);
     70) Atentemos então que o Recorrido mentiu ao Tribunal quando negou a existência de um contrato de trespasse que teve por objecto o Restaurante onde se encontrava a Pintura (vejam-se os artigos 8.º, 9.º, 10.º, 21.º a 24.º da Réplica apresentada pelo Autor);
     71) O Tribunal recorrido ignorou em absoluto a versão factual apresentada pelo Recorrido, excepto naquilo que lhe permitia fundamentar a propriedade e a reivindicação da Pintura, sem cuidar de observar que toda a versão do Recorrido depende de assunções insólitas que vão contra o conhecimento e experiência da vida comum;
     72) Para a versão do Recorrido ter sentido é preciso aceitar que é normal e racional que alguém deixe um objecto de suposto valor sentimental num local encerrado por um período indefinido de tempo;
     73) É preciso aceitar que o Recorrido tenha "solicitado" (artigo 14.º da Petição Inicial) a terceiros desconhecidos que recebam uma pintura que supostamente tem valor sentimental.
     74) Sendo por isso, um acordo ou convenção que teria sido celebrada no interesse do Recorrido e não do interesse dos adquirentes do Restaurante;
     75) É por isso preciso aceitar que os adquirentes do Restaurante (e que não tinham qualquer relação pessoal com o Recorrido) resolveram assumir, sem qualquer contrapartida, uma obrigação de guarda e devolução da Pintura perante o Recorrido;
     76) É ainda preciso aceitar que a Pintura, de valor sentimental, ali ficou entregue sem prazo definido para a sua recuperação, fazendo depender esse prazo do termo de uma relação de arrendamento independentemente do número de renovações a que o arrendamento pode ser sujeito.
     77) É ainda preciso aceitar que a Pintura, de valor sentimental, foi entregue por acordo meramente verbal, não se deixando qualquer registo do mesmo.
     78) Mais, é necessário aceitar que as Partes decidiram fazer esse acordo meramente verbal no momento em que se encontravam perante um notário a celebrar dois contratos escritos!
     79) E aceitar ainda que não foi colocada qualquer cláusula em nenhum desses dois contratos escritos porque o pai do Autor, que não é o titular da pintura, considerou que não valia a pena apesar quando estavam em causa pessoas que lhe eram desconhecidas!
     80) É preciso aceitar que a pintura tem valor estimativo mas que estava bastante degradada, não tendo o Recorrido revelado qualquer interesse na mesma durante os 20 anos que durou o contrato de arrendamento;
     81) E, por fim, é preciso aceitar que tendo sido celebrado um mero contrato de arrendamento e cedido o uso e exploração do Restaurante era ainda necessário fazer um acordo verbal sobre um objecto que fazia parte do recheio do Restaurante que não ia ser transmitido a ninguém por qualquer meio!;
     82) Por outras palavras, é preciso ignorar a própria inconsistência interna da versão factual apresentada pelo Recorrido;
     83) Pelo contrário, em relação à hipótese proposta pelo Réu, basta aceitar o que consta da prova documental junta aos autos, isto é, que a Pintura se encontrava no Restaurante no momento em que G e H celebraram o contrato de trespasse através do qual adquiriram aquele estabelecimento comercial e todo o seu mobiliário (entre os quais, a Pintura);
     84) Contrato de trespasse cuja existência, como se disse e aqui se repete, foi negada pelo Recorrido;
     85) Que não houve nenhum acordo verbal sobre a Pintura à margem dos contratos escritos e assinados perante o Notário, até porque não havia qualquer interesse destes na manutenção e guarda da Pintura em favor ao Recorrido;
     86) Que tendo decidido encerrar o Restaurante e dar por terminado o contrato de arrendamento, a Pintura foi entregue ao Réu, ora Recorrente, conforme resulta do ponto J dos Factos Assentes;
     87) Como se vê, toda a versão do Autor depende de assunções insólitas que vão contra as regras da experiência da vida;
     88) Pelo que também por um critério de probabilidade lógica se impunha a resposta "Não Provado" aos quesitos 10.º a 14.º e resposta "Provado" aos quesitos 21.º a 25.º da Base Instrutória;
     89) Impugna-se ainda a resposta restritiva dada ao quesito 28.º da Base Instrutória, pois a mesma não é mais do que um lapso evidente, que o Tribunal Judicial de Base acaba por implicitamente reconhecer na sentença recorrida;
     90) Desde logo, o Réu tem a seu favor a presunção contida no artigo 1193.º do Código Civil e o ponto J. dos Factos Assentes, que demonstram o seu título sobre a Pintura;
     91) Foi também alegado que os anteriores proprietários, G e H, adquiriram a Pintura com base no contrato de trespasse (falsamente negado pelo Autor), a fls. 162 a 166 dos autos, que teve por objecto o Restaurante F, fazendo a Pintura F parte do respectivo recheio;
     92) Não existe nenhum elemento probatório nos autos (nem o Autor alguma vez o alegou) que demonstre que o Réu sabia da invalidade do seu título sobre a Pintura;
     93) O próprio Tribunal Judicial de Base reconhece na sentença impugnada que "Conforme os factos assentes, a pintura foi entregue ao Réu pelos G e H por causa da doação, ainda que o negócio jurídico fosse considerado inválido por falta de legitimidade substancial dos doadores, na altura, o Réu recebeu a pintura na qualidade de donatário, no pressuposto de que os G e H fossem seus proprietários, tendo assim legitimidade para a dispor. Nada consta dos factos assentes que o Réu, no momento de aceite da pintura, conhecia que a pintura não pertencia aos doadores. Na ausência de outros elementos, não permite concluir que o Réu actuou com culpa." (ver fls. 335 dos autos);
     94) Como tal, o Tribunal recorrido errou ao considerar que o Réu não actuava na convicção de ser proprietário da pintura;
     95) Pelo contrário, o Réu actuava na convicção de ser proprietário da Pintura, como se reconhece na sentença recorrida, até porque de outro modo nem a disputa na presente acção nem a dedução do pedido reconvencional teriam qualquer razão de ser;
     96) Pelo que a resposta ao quesito 28.º deve ser alterada para dela constar, simplesmente, "Provado".
     97) Em face da alteração justificada das respostas sobre a matéria dos quesitos 1.º a 4.º, 7.º, 10.º a 14.º, 21.º a 25.º e 28.º da Base Instrutória, provoca-se um volte-face na solução jurídica do caso;
     98) Na verdade, fica claro que o Autor, ora Recorrido, não fez prova suficiente de ser o proprietário da Pintura - não tendo o seu nome desenhado na Pintura conforme tinha sido por si alegado para assim procurar sustentar um título sobre a mesma -, integrando-se a Pintura entre o mobiliário do Restaurante F, como o próprio Recorrido o reconheceu nos artigos 21.º a 24.º da Réplica, aquando do momento em que o referido estabelecimento comercial foi trespassado;
     99) Inexistindo qualquer prova legal nos autos (considerando o artigo 388.º do Código Civil) para sustentar a existência de convenções que vão para além do contrato de arrendamento e do contrato de trespasse celebrados no dia 16 de Junho de 1995;
     100) Do exposto, resulta que através do contrato de trespasse a fls. 162 a 166 dos autos (que o Autor faltando à verdade negou), G e H adquiriram a Pintura em causa nestes autos, uma vez que a mesma (como é facto indiscutível) fazia parte do mobiliário do Restaurante F, devendo assim considerar-se transmitida nos termos da cláusula do contrato de trespasse onde se diz expressamente que "incluindo todo o activo, designadamente, o direito ao arrendamento, todos os seus móveis e utensílios, e demais elementos constitutivos do mesmo estabelecimento, com exclusão, porém, dos respectivos créditos e de qualquer passivo do mesmo estabelecimento, actualmente existentes.";
     101) Tendo, posteriormente, G e H decidido doar a Pintura ao Réu, ora Recorrente, nos termos do ponto J. dos Factos Assentes, impõe-se a decisão de que o Réu é o legítimo proprietário da Pintura em face dessa doação (artigos 934.º e 1241.º do Código Civil);
     102) Admitindo-se que o Venerando Tribunal de Segunda Instância considere que não houve um erro de apreciação nem de valoração de prova em relação à matéria dos quesitos 1.º a 4.º e 7.º da Base Instrutória, sempre se dirá que é evidente que não houve nem foi feita prova da existência de qualquer acordo meramente verbal quanto à "guarda" da Pintura pelos G e H;
     103) Pelo que tendo sido celebrado o contrato de trespasse a fls. 162 a 166 dos autos, G e H julgaram que todos os bens móveis que se encontravam no interior do Restaurante - entre os quais a Pintura - lhes pertenciam, dedução que é clara e evidente em face do teor dos contratos e das suas acções, nomeadamente a doação da pintura conforme o facto assente do ponto J, desconhecendo aqueles que a Pintura não era propriedade dos alienantes do Restaurante, onde a mesma se encontrava, mas do Recorrido;
     104) Agiram, por isso, na convicção de serem proprietários de todos os bens integrados no Restaurante, entre os quais a Pintura, e exerceram sobre eles uma posse pública, pacífica, titulada e de sobre durante pouco mais de 20 anos;
     105) Tendo decidido doar a Pintura ao Réu, ora Recorrente, este pode efectuar a acessão na posse nos termos permitidos pelo artigo 1180.º, n.º 1, do Código Civil, podendo assim reclamar a usucapião da Pintura ao abrigo dos artigos 1212.º e 1224.º do Código Civil.
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    B, veio, 06/04/2021, a apresentar as suas contra-alegações constantes de fls. 419 a 447, tendo formulado as seguintes conclusões:
     A. O sentença recorrida não merece qualquer juízo de censura, não padecendo de qualquer vício ou erro que afecte a sua validade, a sua bondade ou o seu conteúdo.
     B. O facto de ter sido dado como não provado que a Pintura não tinha aposto o nome do Autor (resposta ao quesito 5°) não tem qualquer relevância para a prova da titularidade do direito de propriedade do Autor, ora Recorrido.
     C. As pinturas tal como quaisquer Obras de Arte são bens móveis objecto do direito de propriedade, sem que para tal das mesmas tenha que constar o nome do respectivo titular/proprietário.
     D. O que resulta dos autos, nomeadamente, da réplica apresentada pelo Autor foi que, em causa nunca esteve a transmissão da propriedade dos imóveis, mas apenas o arrendamento dos imóveis e o trespasse do estabelecimento comercial (O restaurante F).
     E. Contrariamente ao que diz o Recorrente, a Pintura da titularidade do Autor não foi deixada ao "abandono", continuou antes no interior das fracções que pertencem ao Autor e aos seus familiares (conferir alíneas B), C) e D) dos factos assentes).
     F. Tal como correctamente dilucidado nos autos, a questão curial seria apurar se a Pintura objecto dos presentes autos foi ou não transmitida com o trespasse (ou, na terminologia na lei, com a alienação da empresa comercial).
     G. O Recorrente não dá cumprimento ao disposto nos arts. 599° e 629° do CPC, pois apesar de identificar os factos cuja impugnação pretende, não indica os meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida; faz extensas considerações sobre a matéria de facto, cita doutrina e vai introduzindo e repetindo as suas opiniões, o que não se traduz na impugnação da matéria de facto, com o rigor exigido pelos referidos normativos.
     H. A propósito da impugnação da matéria de facto, vem sendo jurisprudência dos Tribunais Superiores de Macau que: "I - Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal "ad quem", salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. (entre outros, vide Acórdãos do TSI proferidos nos processos n.º 332/2015 e n.º 277/2016, bem como o recente Acórdão proferido pelo TUI, no âmbito do processo nº 79/2021, todos disponíveis em www.court.gov.mo)
     I. No caso, o Recorrente não impugna a matéria de facto, mas antes a convicção do Tribunal, no sentido e numa tentativa de sobrepor a sua própria convicção à convicção do Tribunal (cfr. exemplificativamente o que vem alegado sob os números 4 e 64 e seguintes, 103, 109, 154, 173, 176, 189 das alegações e por aí adiante).
     J. Como é bom de ver, - como não raras vezes acontece -, no caso, deparam-se duas versões opostas, sendo que o Recorrente foi totalmente incapaz de provar os quesitos cujo ónus da prova inequivocamente sobre si recaía e recai.
     K. Basta ouvir a gravação do julgamento para imediatamente se perceber quem tem conhecimento dos factos, quem está a falar com verdade e quem está a mentir, questões que o Tribunal a quo - como é timbre (!) - soube muito bem identificar.
     L. As argumentações do Recorrente são puramente conclusivas e imaginárias, não valem para o julgamento que teve lugar nestes autos, nem reflectem o que se passou na audiência. Mais parece que o Recorrente terá estado num outro julgamento que não o dos presentes autos.
     M. Os quesitos 1° a 4° e 7° da base instrutória foram correctamente dados como provados, o que não foi posto em causa por nenhuma das testemunhas arroladas pelo Recorrente. A respectiva prova resulta, nomeadamente, das declarações prestadas por I e J (tradutor 1, gravação 3EUSDV-W00620319), às 10h16min (cfr. depoimentos transcritos nas alegações).
     N. No que diz respeito à impugnação dos quesitos 10° a 14° e 21° a 25° da base instrutória, a primeira questão a notar é que o Recorrente pretende impugnar a resposta a tais quesitos com fundamento numa questão de direito - uma pretensa impossibilidade de recurso à prova testemunhal, por via do art. 388° do Código Civil, normativo que não tem aplicação ao caso em apreço, sendo antes de aplicar o disposto no art. 387°, n.º 3 do mesmo diploma legal.
     O. A prova dos quesitos 10.° a 14.°, resulta nomeadamente do depoimento das seguintes testemunhas I, J e K (tradutor 1, gravação 3EUSDV-WOO620319), às 10h16min (cfr. declarações transcritas nas alegações).
     P. Por outro lado, o Recorrente não fez prova alguma dos quesitos 21° a 25°, cujo ónus da prova sobre si recaía e recai, sendo que as testemunhas arroladas pelo próprio relevaram não ter qualquer conhecimento da factualidade em apreço nos autos, tendo inclusivamente referido que nunca foi dada qualquer importância à Pintura.
     Q. Pelo exposto, no que diz respeito aos referidos quesitos 10.° a 14.° e 21.° a 25.° da base instrutória, nenhuma alteração à matéria de facto se impõe, devendo considerar-se a matéria de facto provada (e não provada) nos precisos termos que resultam da douta sentença recorrida.
     R. O mesmo se diga da impugnação do quesito 28° da base instrutória no segmento relativo " ... actuando na convicção de ser proprietário": na ausência de prova sobre os quesitos 21.° a 25.°, deverá também, e consequentemente, a resposta ao quesito 28° da base instrutória permanecer inalterada.
     S. Da prova produzida pelo Recorrente, apenas resultou que durante os anos em que perdurou o contrato de arrendamento dos imóveis, os titulares do estabelecimento comercial (o restaurante F) foram meros detentores da Pintura e que nunca lhes deram importância.
     T. Quanto à alegada violação do art. 388.° do Código Civil, atento o objecto dos presentes autos, não está em causa nenhuma convenção verbal contrária ao contrato de trespasse, mas antes uma questão de mera interpretação do conteúdo e âmbito do objecto do trespasse, sendo de aplicar o disposto no art. 387.°, n.º 3 do Código Civil que diz expressamente ser admissível prova testemunhal respeitante à interpretação do contexto do documento.
     U. No caso em apreço, uma Pintura não tem qualquer relação com a cessão de um estabelecimento comercial cujo objecto social é a exploração de um restaurante, nos termos e com o alcance definidos pelo artigo 105.° (âmbito da empresa na alienação) do Código Comercial, tal como bem considerou o Tribunal a quo.
     V. Perante os factos dados como provados nos autos, e que, como visto, não devem merecer qualquer modificação, deverá manter-se a douta sentença proferida nos .presentes autos, declarando-se procedentes os pedidos deduzidos na petição inicial e improcedente, por não provado, o pedido reconvencional.
     W. Nos termos devidamente dados como provados nos autos, os antecessores do Réu/Recorrente foram meros detentores do quadro objecto dos presentes autos (cfr. art.1177° do Código Civil), sabiam que no termo do contrato de arrendamento teriam de devolver o quadro, juntamente com o imóvel, também da propriedade do Autor.
     X. No caso, não foi invocada a inversão do título da posse, pelo que, perante os factos – não provados -, e respectiva subsunção ao direito, por aplicação dos arts. 1177.° e 1215.° do Código Civil, só pode improceder a pretensão de aquisição do quadro por usucapião invocada pelo Recorrente.
     Y. A sentença recorrida não incorreu na violação de qualquer normativo legal.
     Z. Pelas razões expostas, deverá o recurso ser declarado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se a douta sentença recorrida e declarando-se procedente o recurso subordinado oportunamente apresentado.
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    B, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 05/11/2021, dele veio, em 28/02/2022, interpor recurso subordinado para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 388 a 403, tendo formulado as seguintes conclusões :
     A. Vem o presente recurso subordinado interposto apenas para reapreciação das questões relativas à improcedência do pedido de condenação do Réu pela privação do uso do quadro e de pagamento pelo Réu de uma sanção pecuniária compulsória, questões que, no entender do Recorrente, não foram devidamente dilucidadas na sentença recorrida.
     B. Com efeito, atenta a factualidade em causa nos presentes autos e devidamente dada como provada, entende o Recorrente que, quanto aos dois temas em questão, o Tribunal a quo não só podia, como deveria ter ido mais longe.
     C. Resulta dos factos assentes - e/ou dados como provados nos presentes autos - que o Réu foi devidamente interpelado para devolver o Quadro objecto dos presentes autos ao Autor, mas que se recusa a fazê-lo, situação que se mantém até à presente data.
     D. Entende o Recorrente que, pelo menos, desde a data em que o Réu foi interpelado para devolver a Pintura - ou seja, desde 20 de Abril de 2017 -, o Réu tem pleno conhecimento que a sua detenção sobre o Quadro/Pintura objecto dos autos é ilícita e contra a vontade do Recorrente.
     E. Conforme vem sendo entendimento da jurisprudência: "A privação do uso de um bem constitui, por si, dano patrimonial, visto que constitui lesão do direito real de propriedade correspondente, traduzida na exclusão de uma das faculdades de que ao proprietário é lícito gozar: a de uso e fruição da coisa (artº 1305 do Código Civil). O uso de um bem constitui uma situação favorável que o direito amplamente tutela: a supressão dessa faculdade constitui, juridicamente, um dano"
     F. A conduta do Recorrido, que, ilicitamente, se recusa a entregar a Pintura ao Recorrente traduz-se na privação do uso por parte deste.
     G. A condenação do Réu na reparação desse dano dá, assim, inteira satisfação a duas máximas de justiça: neminem laedere; suum cuique tribuere (não ofender ninguém, dar a cada um o que lhe pertence).
     H. Ora, a partir do momento em que o Recorrido foi interpelado para devolver a Pintura da propriedade do Autor, bem como citado nos termos e para os efeitos da presente acção, dúvidas não podem existir de que detém a Pintura objecto dos presentes autos contra a vontade expressa do Autor, aqui Recorrente.
     I. Tal circunstância demonstra a ilicitude do facto, mas também culpa, na modalidade de dolo, por parte do Recorrido, o qual, pelo menos desde a data da interpelação ou citação para os termos e efeitos da presente acção, tem pleno conhecimento e consciência de que a Pintura não pertencia a G, pai do Réu/Recorrido, mas sim ao Autor, ora Recorrente.
     J. O Réu/Recorrido bem sabe que a sua recusa reiterada de não entregar a Pintura ofende o direito de propriedade do Autor.
     K. Pelo menos desde Novembro de 2015, que o Autor/Recorrente se encontra privado da Pintura de que é legítimo titular e proprietário (conferir factos Assentes sob as alíneas E) e H)
     L. Pelo exposto, deverá o Recorrido ser condenado a pagar ao Recorrente uma indemnização pela privação do uso no valor de MOP$150,000.00 (cento e cinquenta mil patacas).
     M. No que diz respeito à sanção pecuniária compulsória, entende o Recorrente que o Tribunal a quo não interpretou e, consequentemente, não aplicou correctamente e em toda a sua amplitude o preceito legal contido no art. 333º (Sanção pecuniária compulsória) do Código Civil.
     N. Tal como unanimemente vem sendo afirmado pela doutrina, a sanção pecuniária compulsória não tem uma função reparatória, mas antes uma função acessória de compelir o devedor ao cumprimento, assim dignificando a justiça e o respeito pelas decisões dos tribunais, bem como ao cumprimento da relação jurídica violada.
     O. Ora, atenta a finalidade do instituto em causa, nos termos e com o alcance definidos pelo art. 333º do Código Civil, perante a factualidade em causa nos presentes autos, entende o Recorrente que se encontram reunidas todas as condições para a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória ao Réu, a fixar equitativamente pelo Tribunal.
     P. O Recorrente, logo na petição inicial, assim o requereu, precisamente a fim impelir o Réu ora Recorrido a que proceda à entrega voluntária da Pintura em apreço nos autos ao ora Recorrente.
     Q. Em causa nos presentes autos está uma Pintura que, mais do que valor patrimonial, tem elevado valor-sentimental para o Autor.
     R. De outra forma, atentos os valores em causa, estar-se-á a premiar a conduta do Réu, o qual desde há muito que tem perfeito conhecimento que detém a Pintura objecto dos autos contra a vontade do seu legítimo titular.
     S. Pelas razões expostas, atentos os factos e valores em causa nos presentes autos, deverá ser alterada a sentença recorrida, sendo o Recorrido condenado a pagar uma sanção pecuniária compulsória em valor a fixar equitativamente pelo Tribunal por cada dia de atraso na entrega da Pintura ao ora Recorrente.
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    A, com os sinais identificativos nos autos, ofereceu a resposta constante de fls. 408 a 418, tendo formulado as seguintes conclusões:
     1) O Autor, aqui Recorrente, insurge-se contra o acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Base a fls. 328 a 336 dos autos na parte em que considerou improcedentes os pedidos de condenação do Réu no pagamento ao Autor de uma indemnização pela privação do uso da Pintura e no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega da Pintura ao Autor;
     2) Para o Autor, o Tribunal Judicial de Base deveria ter condenado o Réu ao pagamento de uma indemnização de MOP$150,000.00 pela privação do uso da Pintura e ainda numa sanção pecuniária compulsória de MOP$500.00 por cada dia de atraso;
     3) Contudo, o recurso subordinado em apreço afigura-se claramente improcedente;
     4) Em primeiro lugar, importa notar que os presentes autos têm como questão litigiosa de fundo o direito de propriedade sobre uma Pintura, não se confundindo por isso com os casos em que alguém afectou o (indiscutido) direito de propriedade sobre um bem de outrem;
     5) Ora, não se pode esquecer que o princípio geral em matéria de responsabilidade civil é o de que a obrigação de indemnização surge em face de uma actuação dolosa ou culposa em violação do direito de outrem, conforme se dispõe no artigo 477.º, n.º 1, do Código Civil, sendo absolutamente excepcional a existência de responsabilidade sem culpa (artigo 477.º, n.º 2, do mesmo Código);
     6) Não havendo aqui responsabilidade civil sem culpa, também não basta defender que há culpa a partir do momento em que o Autor se arroga um qualquer direito sobre um bem, até porque este não tem qualquer outra prova que não a falível e frágil prova testemunhal (em violação até do artigo 388.º do Código Civil) e quando a sua alegação de titularidade assenta em factos falsos (como seja o nome inscrito na Pintura ou a inexistência de um contrato de trespasse);
     7) Diga-se, aliás, que a versão dos factos exposta pelo Autor constitui um caso verdadeiramente único e excepcional, segundo o qual o Autor, sem nunca ter estado na presença ou estabelecido qualquer contacto com G e H, teria celebrado por interpostas pessoas um acordo meramente verbal (de depósito gratuito?) através do qual deixaria um bem seu (com suposto valor emocional elevado) junto de terceiros desconhecidos por um período indefinido de tempo e que atingiu um total pouco superior a duas décadas
     8) Acordo esse verbalmente celebrado aquando da celebração de contratos escritos de arrendamento e trespasse de restaurante com apoio jurídico de um notário;
     9) Pois bem, sem prejuízo de o Réu se considerar o verdadeiro titular da Pintura nos termos sufragados no recurso por si apresentado, sempre se dirá que, ainda que assim não fosse, também não resulta da matéria de facto que o Réu sabia que a Pintura pertencia ao Autor, que ofendia o direito de propriedade do Autor ou que, por qualquer meio, agiu de forma dolosa ou culposa em ofensa ao suposto direito de propriedade do Autor;
     10) Antes se demonstrando que, em última instância e para todos os efeitos, o Réu sempre teria de ser considerado um terceiro de-boa fé-que adquiriu a Pintura por doação dos anteriores possuidores G e H (pelo menos aparentes possuidores), tendo confiado na presunção do título derivada da posse daí resultante (artigo 1193.º do Código Civil) e na validade da doação celebrada com aqueles;
     11) Assim, o pedido de indemnização pela privação do uso da Pintura é manifestamente improcedente porque o Autor não alegou e muito menos demonstrou que o Réu actuou dolosa ou culposamente ao defender os seus direitos e interesses, mormente no que concerne à propriedade da Pintura;
     12) Por isso, ainda que com base em pressupostos errados (designadamente por conta da questão de fundo, relativa à propriedade da Pintura), bem andou o Tribunal Judicial de Base na conclusão jurídica a que chegou;
     13) Por outro lado, o Tribunal Judicial de Base também decidiu correctamente quando considerou que inexistiam elementos de facto que justificassem a necessidade da aplicação de uma sanção pecuniária compulsória ao Réu;
     14) Sem prejuízo de se entender que está em causa o exercício de um poder discricionário pelo Tribunal Judicial de Base nos termos do artigo 333.º do Código Civil e que, nessa medida, a decisão é irrecorrível em face do disposto no artigo 584.º do Código de Processo Civil, sempre se dirá que não basta alegar que tal sanção foi requerida pelo Autor e que, como tal, deveria ter sido aplicada pelo Tribunal;
     15) A posição assim defendida pelo Autor afronta a própria lógica do poder discricionário conferido ao Tribunal pelo artigo 333.º do Código Civil, sendo necessário desde logo que tenham sido alegados factos que justifiquem a necessidade dessa sanção;
     16) Mais incompreensível se torna quando está demonstrado que o Réu sempre actuou de boa fé (desde logo e ao contrário do Autor, nunca alegou factos falsos) na defesa dos seus direitos e interesses;
     17) Pelo que também bem decidiu o Tribunal Judicial de Base quando entendeu que não havia qualquer necessidade na aplicação de uma sanção pecuniária compulsória
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    Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
* * *
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
    Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
    O processo é o próprio e não há nulidades.
    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
    Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
* * *
  III – FACTOS ASSENTES:
    A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
     Da Matéria de Facto Assente:
     - Existe uma Pintura da autoria de C cuja fotografia está junta com a p.i. sob designação de documento n.º1. (alínea A) dos factos assentes)
     - A fracção autónoma designada por “BR/C”, para comércio, do prédio sito em Macau na Rua de Marques de Oliveira, n.ºs 49, 51, 53 e 55, Travessa da Barca n.º 9, 9-A, 11 e 11-A e Rua da Barca n.ºs 14-A, 14-B e 14-BB, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de Sto. António, descrito na Conservatória do Registo Predial e Matricial, sob o n.º12310 a fls. 42 do Livro B33, está inscrita em nome do A.. (alínea B) dos factos assentes)
     - Na aludida fracção autónoma e bem assim nas fracções designadas por CR/C e DER/C do mesmo prédio estava instalado o Restaurante F, o qual era, à data explorado por D e de E. (alínea C) dos factos assentes)
     - No ano de 1995 as sobreditas fracções BR/C, CR/C e DER/C foram arrendadas a G e a H, através de contrato de arrendamento celebrado entre o Autor, representado por J, D e E, na qualidade de senhorios e G e H na qualidade de arrendatários. (alínea D) dos factos assentes)
     - Desde 1995 que foi renovada a relação arrendatícia sob a forma de celebração de diversos contratos de arrendamento com G e H tendo por objectos tais fracções, o último dos quais em 21 de Julho de 2010, cujo pública foi junta com a p.i. sob designação de documento n.º4 – Doc. 4. (alínea E) dos factos assentes)
     - Em 11 de Novembro de 2015 as referidas fracções foram entregues pelos G e H. (alínea F) dos factos assentes)
     - Aquando da entrega do locado a Pintura já não se encontrava no seu interior. (alínea G) dos factos assentes)
     - Por diversas vezes a pedido do Autor, K procurou junto de G e H reaver a Pintura. (alínea H) dos factos assentes)
     - Mas sem sucesso. (alínea I) dos factos assentes)
     - Com o consentimento de G e H, a Pintura foi retirada do locado pelo próprio Réu, tendo por aqueles sido declarado que a doavam a este e por este aceite tal declaração. (alínea J) dos factos assentes)
     - Logo que recebeu a Pintura, o Réu colocou-a no seu escritório. (alínea K) dos factos assentes)
     - E recusa-se a entregar a Pintura ao Autor. (alínea L) dos factos assentes)
     - O R. foi interpelado por carta registada com aviso de recepção de 20 de Abril de 2017, conforme documento junto com a p.i. sob a designação de documento n.ºs. 6 e 7. (alínea M) dos factos assentes)
     
     Da Base Instrutória:
     - A referida pintura havia sido oferecida ao Autor nos finais dos anos 80 por C. (resposta ao quesito 1º da base instrutória)
     - … seu amigo de longa data. (resposta ao quesito 2º da base instrutória)
     - Possuindo esta pintura valor sentimental para o Autor. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
     - Já que foi executada propositadamente para o Autor. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
     - A pintura tem as dimensões cerca de 2 metros de largura por 1 metro de altura. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
     - Tendo em conta as dimensões da Pintura, quando a recebeu, o Autor pendurou-a no interior da fracção id. em B). (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
     - No início dos anos 90 os pais do Autor decidiriam emigrar para a Austrália. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
     - … motivo pelo qual fecharam o estabelecimento, continuando a Pintura pendurada no mesmo lugar. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
     - Aquando da celebração do contrato de arrendamento id. em D) o Autor, por intermédio da irmã J, solicitou a G e H para qua a Pintura continuasse no mesmo lugar. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
     - O que por aqueles foi aceite, pois ali continuariam a explorar o restaurante. (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
     - Tendo sido acordado que na data da cessação do arrendamento e aquando da devolução do locado a Pintura ficaria no mesmo local, isto é dentro das fracções, pendurado na parede. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
     - Por todos tendo sido acordado que a Pintura não seria transmitida, fosse a que título fosse, para G e H. (resposta ao quesito 13º da base instrutória)
     - E que apenas a poderiam manter no Restaurante até o terminus da relação arrendatícia, altura em que estavam obrigados a devolvê-la. (resposta ao quesito 14º da base instrutória)
     - Na sequência da entrega id. em F), G e H recusaram-se a entregar a Pintura ao Autor. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
     - Por volta dos meses de Junho e Julho de 1995, além de terem celebrado um contrato de arrendamento, D e E, pais do Autor, alienaram o Restaurante F para G e H, por um montante de cerce de MOP$400.000,00. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
     - Desde então, G e H sempre agiram, à vista de toda a gente, como com a convicção de serem proprietários de Restaurante e dos bens que o compunham. (resposta ao quesito 25º da base instrutória)
     - A declaração id. em J) foi feita por volta do mês de Junho de 2015. (resposta ao quesito 26º da base instrutória)
     - O Réu, após receber a pintura de G e H, mandou fazer nova moldura para o quadro. (resposta ao quesito 27º da base instrutória)
     - E, desde então, o R. passou a dispor da pintura, tendo-a exposto no local de trabalho e por forma a ser vista por toda a gente. (resposta ao quesito 28º da base instrutória)

* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
    Comecemos pela impugnação da matéria de facto feita pelo Recorrente.
    A propósito da impugnação da matéria de facto, o legislador fixa um regime especial, constante do artigo 599º (Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto) do CPC, que tem o seguinte teor:
     1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
     a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
     b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
     2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
     3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
     4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º

    Ora, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
    É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
*
    No que respeita aos critérios da valoração probatória, nunca é demais sublinhar que se trata de um raciocínio problemático, argumentativamente fundado no húmus da razão prática, a desenvolver mediante análise crítica dos dados de facto veiculados pela actividade instrutória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas regras da experiência colhidas da normalidade social, que não pelo mero convencimento íntimo do julgador, não podendo a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade persuasiva e susceptível de objectivação, o que não exclui, de todo, a interferência de factores de índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis. Ponto é que a motivação se norteie pelo princípio da completude racional, de forma a esconjurar o arbítrio1.
    É, pois, nessa linha que se deve aferir a razoabilidade dos juízos de prova especificamente impugnados, mediante a análise crítica do material probatório constante dos autos, incluindo as gravações ou transcrições dos depoimentos, tendo em conta o respectivo teor, o seu nicho contextual histórico-narrativo, bem como as razões de ciência e a credibilidade dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção do julgador na apreciação da prova livre, em conformidade com o disposto, designadamente no artigo 390º do CCM, em conjugação com o artigo 558º do CPC, com vista a obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima.
    Será com base na convicção desse modo formada pelo Tribunal de recurso que se concluirá ou não pelo acerto ou erro da decisão recorrida.

    Ora, no âmbito de reapreciação da decisão de facto, importa ter presente que, em conformidade com o regime de recursos aplicável, não cabe ao Tribunal ad quem proceder a um novo julgamento latitudinário da causa, mas apenas sindicar os invocados erros de julgamento da 1.ª instância sobre os pontos de facto especificamente questionados, mediante reapreciação das provas produzidas nesse âmbito, tomando por base os factos tidos por assentes, a prova produzida ou algum documento superveniente, oportunamente junto aos autos, que imponham decisão diversa.
    São os requisitos 1º a 4º , e 7º que constituem a primeira parte do objecto de impuganção, os quais têm o seguinte teor:


A referida pintura havia sido oferecida ao Autor nos finais dos anos 80 porC?
Provado.


…. seu amigo de longa data?
Provado.


Possuindo esta pintura valor sentimental para o Autor?
Provado.


Já que foi executada propositadamente para o Autor?
Provado.



Tendo em conta as dimensões da Pintura, quando a recebeu, o Autor pendurou-a no interior da fracção id. em B?
Provado.

    No entender do Recorrente, os quesitos deviam receber todas respostas negativas, por carecerem de provas para sustentar uma versão positiva.
    É de verificar que a parte do artigo 6º a 60º da peça de alegações é constituída por alegações de Direito e citações doutrinárias, razão pela qual não temos dever de nos pronunciar sobre ela, muito menos dever de decidir.
    Depois, a partir do artigo 61º até 95º o Recorrente começou a citar e transcrever o depoimento de algumas testemunhas ouvidas pelo Tribunal recorrido, com base no qual veio a defender que este não tem apoio probatório suficiente para dar as respostas positivas aos quesitos acima indicados.
    Sobre esta parte da matéria, o Tribunal Colectivo fundamentou a sua posição nos seguintes termos:
“A convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, nos documentos de fls. 14 a 35, 103 a 112, 161 a 167, 219 a 220 cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
No que respeitante aos factos sobre a origem da pintura, as 2ª a 4ª testemunhas do Autor deram conta de que a pintura era oferecida pelo pintor ao Autor e pendurada no restaurante explorado pelos pais dele mesmo após o encerramento do restaurante, as testemunhas do Réu também admitiram que a pintura era pendurada no restaurante na altura da cessão do restaurante. Assim, não há dúvidas de que a pintura não foi adquirida originalmente pelos adquirentes mas pelos alienantes e também não se vê motivo para duvidar as declarações quase unânimes das testemunhas sobre a sua origem. Pelo que se deram por provados os factos dos quesitos 1° a 9°, com excepção do quesito 5°, perante o relatório do exame pericial constante de fls. 208, 219 a 220.
Em especial, sobre os factos se a pintura tinha sido transmitida para o G e H com o trespasse do restaurante, segundo as 2ª a 4ª testemunhas a pintura era para ser removida do restaurante após o trespasse e dar arrendamento dos imóveis aos G e H, mas, no final, chegou um acordo com os arrendatários/adquirentes para que a pintura continuasse a ficar no restaurante até ao termo do arrendamento, enquanto as testemunhas do Réu negaram que os senhorios/adquirentes tinham mencionado particularmente sobre a pintura, pensando eles que a pintura teria sido transmitida com o trespasse e não foi exigida a restituição pelos senhorios à altura da entrega dos imóveis. Em comparação com o depoimento das testemunhas, depara-se que as testemunhas do Autor depuseram com factos concretos, explicando com pormenores quanto às conversas com os adquirentes sobre o destino do quadro e à exigência da sua restituição no momento da entrega do locado, enquanto as testemunhas da Ré responderam de um modo meramente genérico. Reparamos também que o Autor interpelou, directamente e por carta registada, ao Réu e não aos inquilinos/adquirentes para a restituição do quadro. Se não tivesse quaisquer conversas por parte dos senhorios com os inquilinos, sendo o Réu completamente alheio ao arrendamento e trespasse, é impossível, para o Autor, tomar conhecimento da existência do Réu nem que o quadro tivesse sido passado para ele.”
    Ora, é de ver que o que o Recorrente fez nesta parte de impugnação é atacar a convição do julgador, sem que tivesse indicar concretamente quais os pontos factuais concretos que foram erradamente julgados pelo Tribunal a quo. Pelo contrário, este indicou expressamente o seu raciocínio e base probatória que constituiram as alicerces da convicção formada e a partir daí deu as respostas positivas em causa.
    Pelo que, na falta de elementos proatórios concretos para sustentar a posição defendida pelo Recorrente, aliás, ele também não cumpriu o ónus de impugnação especificada no artigo 599º, é de rejeitar esta parte do recurso interposto pelo Recorrente.
*
    Depois, o Recorrente veio a impugnar também as respostas dos seguintes quesitos (10º a 14º , 21º a 25º):

10º
Aquando da celebração do contrato de arrendamento id. em D o Autor, por intermédio da irmã J, solicitou a G e H para que a Pintura continuasse no mesmo lugar?
Provado.

11º
O que por aqueles foi aceite, pois ali continuariam a explorar o restaurante?
Provado.

12º
Tendo sido expressamente acordado que na data da cessação do arrendamento e aquando da devolução do locado a Pintura ficaria no mesmo local, isto é dentro das fracções, pendurado na parede?
Provado que tendo sido acordado que na data da cessação do arrendamento e aquando da devolução do locado a Pintura ficaria no mesmo local, isto é dentro das fracções, pendurado na parede.


13º
Por todos tendo sido acordado que a Pintura não seria transmitida, fosse a que título fosse, para G e H?
Provado.

14º
E que apenas a poderiam manter no Restaurante até o terminus da relação arrendatícia, altura em que estavam obrigados a devolvê-la?
Provado.

    (…)
21º
Entre os bens que compunham aquela empresa comercial, sendo utilizado na sua decoração, encontrava-se a pintura?
Não Provado.


22º
E, desde então, G e H passaram a dispor não só da empresa comercial em causa como também de todos os bens que a compunham, nos quais se incluía a referida pintura?
Não Provado.

23º
G e H, na sequência da aquisição do Restaurante F, sempre assumiram e agiram na convicção de que eram os proprietários de todos os bens que se encontravam no seu interior, entre os quais aquela Pintura?
Não Provado.

24º
Durante os mais de vinte anos em que o G e H exploraram aquele restaurante, nunca ninguém alegou qualquer direito sobre aquela pintura?
Não Provado.

25º
Desde então, G e H sempre agiram, à vista de toda a gente, como com a convicção de serem proprietários de Restaurante e dos bens que o compunham, entre os quais a referida pintura?
Provado que desde então, G e H sempre agiram, à vista de toda a gente, como com a convicção de serem proprietários de Restaurante e dos bens que o compunham.

    Sobre esta parte da matéria, o Tribunal Colectivo fundamentou a sua posição nos seguintes termos:
     “De acordo com o depoimento das testemunhas do Réu, em conjugação com as fotografias juntas aos autos de fls. 103 a 106, e na sequência da convicção sobre os factos dos quesitos 21° a 25°, permite concluir os factos dos quesitos 26°, 27° e 28° nos termos respondidos.
     Segundo o depoimento das testemunhas do Autor e tendo em conta a posição tomada pelas partes, é de concluir que o Réu recusou a devolver o quadro, dando-se como provado o facto do quesito 15°. Porém, como não há qualquer reporte quanto aos outros meios de interpelação ao Réu, apenas se considera como provado o facto do quesito 17° nos termos respondidos.
     Porém, não se consideram como provados os factos dos quesitos 16°, 18° e 19°, por não ter produzido provas suficientes que permitem ter convicção positiva sobre esses pontos. “
    Ora, é de ver, mais uma vez, o que o Recorrente fez é atacar a convicção do julgador, limitou-se a fazer esforços para que a versão factual que lhe seja favorável possa ser aceite, mas fz-lo sem fundamentação factual.
    É de realçar um ponto: o que se discute essencialmente é procurar saber se o Recorrido é ou não proprietário da pintura ora por ele reinvindicada, no caso de sim, com que legitimidade é que o Recorrente vinha afirmar que ele tem direito sobre tal pintura? De realçar igualmente que este objecto, um qudro de pintura, enquanto peça artística que é, não faz parte dos componentes integrates de restaurante, e como tal a sua cedência depende de acordo expresso das partes legítimas! Pelo que, todas as outras questões são irrelevantes para este processo.
    Como o Recorrente não conseguiu apresentar provas bastantes para convencer o Tribunal que ele tem “título” bastante do quadro de pintura, nem no julgamento de 1ª instância, nem nesta sede de recurso, concretamente dita, nesta parte da impugnação da matéria de facto, é de rejeitar também esta parte do recurso, por incumprir o ónus especificado no artigo 599º do CPC.
*
    Por isso, vai rejeitar liminarmente esta parte do recurso que a Recorrente interpôs para atacar a matéria de facto, por desrespeitar o artigo 599º do CPC.
    Rejeita-se o recurso nesta parte.
*
    Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:

     I) RELATÓRIO
     B, titular do BIR nºXXX, casado com XXX no regime de comunhão de adquiridos, residente em XXX, vem intentar a presente
     
     Acção Ordinária contra
     
     A, titular do BIR nºXXX, residente em Macau naXXX
     
     com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 47 a 58.
     Concluiu pedindo que seja julgada procedente por provada e em consequência:
i) Ser declarado o Autor legítimo proprietário da Pintura autoria de C;
ii) Ser o Réu condenado a reconhecer ao Autor o direito de propriedade do supra referido bem;
iii) Ser o Réu condenado a restituir, de imediato, ao Autor a Pintura em bom estado de conservação, e caso assim não o faça, ser condenado a pagar uma indemnização de MOP$500,00 por cada dia de atraso na entrega;
iv) Ser o Réu condenado a para (pagar) ao Autor uma indemnização pela privação do uso no valor de MOP$150.000,00;
v) Ser o Réu condenado a pagar ao Autor uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos no valor de MOP$150.000,00;
vi) Ser o Réu condenado no pagamento das custas processuais, condigna procuradoria e nas demais despesas que a final se vierem a apurar.
     ***
     Citado regularmente o Réu, este apresentou contestação constante de fls. 91 a 102 dos autos, impugnou o valor da causa indicado pelo Autor, defendendo que a pintura era pendurada no restaurante F, trespassado pelos pais do Autor ao G e H, a qual fazia parte da universidade de bens que compunham o referido estabelecimento comercial. A partir do então, eles passaram a actuar sobre ela como seus proprietário e na altura do encerramento do restaurante, o G doou a pintura ao Réu, que, por sua vez, considera como seu proprietário, detendo a posse sobre a mesma, com os quais impugnando a qualidade de proprietário do Autor, pedindo a improcedência da acção do Autor e pede, a título subsidiário, em reconvenção, que seja declarado o Réu/Reconvinte é o legítimo possuidor e proprietário da obra de arte deCeL, adquirida por usucapião e a condenação do o Autor/Reconvindo a reconhecer a sua qualidade de proprietário da referida pintura.
     ***
     Saneados os autos, fixa-se o valor de causa em MOP$420.000. Em seguida, foram seleccionados os factos assentes e organiza-se à base instrutória.
     ***
     Realiza-se a audiência de discussão e julgamento por Tribunal Colectivo de acordo com o formalismo legal.
     ***
     O Tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e internacionalmente e o processo é próprio.
     As partes gozam de personalidade e capacidade jurídicas e são legítimas.
     Não existem excepções, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
     ***
     II) FACTOS
     Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
     (...)
     
     ***
     III) FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
     Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
     Com a presente acção, alegou o Autor que é dono e legítimo proprietário duma pintura da autoria deCquem a executada e lhe ofereceu aos anos 80s, que é actualmente ocupada pelo Réu, pretendendo o reconhecimento do seu direito de propriedade pelo Réu e obter a restituição da pintura, bem como ser indemnizado dos danos patrimoniais pela privação da pintura em causa e danos morais pelo sofrimento do Autor pela falta da pintura.
     Defendeu o Réu que a pintura passou a pertencer ao G e H com o trespasse do estabelecimento comercial – restaurante F pelos pais do Autor, os quais a doaram ao Réu na altura do encerramento do restaurante, sendo ele o verdadeiro proprietário, e que os G e H tinham sempre a posse da pintura que lhe transmitiu, com a duração da posse que o Réu detém com a acessão da posse dos dois ex-possuidores, já adquire a propriedade da pintura por via de usucapião.
     *
     Prescreve-se o n°1 do art°1235° do C.C., que “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”
     Como se sabe, a procedência da acção de reivindicação depende de dois requisitos: o direito de propriedade sobre a coisa reivindicada e detenção ou ocupação ilícita por parte do Réu.
     Conforme as posições expostas pelo Autor e pelo Réu, urge aquilatar, primordialmente, a quem pertence a pintura em causa.
     Segundo os factos tidos por assentes, a pintura é da autoria de C, a qual foi executada por ele, propositadamente, para o Autor, amigo do pintor, e oferecida a este nos finais dos anos 80.
     O Autor pendurou, por sua vez, a pintura no interior da restaurante “F”, explorada pelos pais do Autor – D e E, instalado nas fracções autónomas”BR/C”, “CR/C”e “DER/C”, sitas no prédio com os n°49, 51, 53 e 55 da Travessa da Barca, sendo o Autor um dos proprietários.
     Em meado de 1995, o restaurante F foi trespassado pelo D e E ao G e H, por um montante cerca de MOP$400.000,00, e as fracções autónomas supra identificadas também foram arrendadas aos últimos pelos proprietários. Daí se retira que até ao trespasse do estabelecimento comercial e ao arrendamento das fracções autónomas, a pintura pertencia ao Autor por que lhe foi doada pelo pintor.
     
     Trespasse do estabelecimento comercial
     Coloca-se a questão se a propriedade da pintura foi transferida para os adquirentes do estabelecimento com o trespasse.
     A factualidade apurada aponta que o trespasse não abrange a pintura, visto que vem comprovado que, na altura da celebração do contrato de arrendamento, existe entre o Autor (através da J) e os arrendatários G e H acordo que a pintura não seria transmitida, mas se manteria pendurada nos imóveis até ao termo do arrendamento, altura em que a mesma deveria ser devolvida.
     Havendo esse acordo, torna-se claro que a pintura não faria parte da universidade de bens do estabelecimento comercial, não sendo a pintura considerada transferida pelo alienante ao alienatário com o trespasse do restaurante. Portanto, os G e H não adquiriram a propriedade da pintura com a aquisição do estabelecimento comercial.
     
     Doação da pintura
     Alegou o Réu que a pintura lhe foi doada pelos G e H.
     Dispõe-se o art°934° do C.C. que “Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.”
     Conforme os factos assentes, G e H declararam, efectivamente, que doaram a pintura ao Réu, pelo que a mesma foi retirada do locado por este e a colocou no seu próprio escritório, com o consentimento daqueles.
     Essa factualidade demostra que entre o Réu e os G e H havia estabelecido, de facto, um negócio jurídico de doação.
     Porém, esse negócio não é válido, uma vez que os G e H não eram proprietários da pintura.
     Consoante o disposto do art°950°, n°1 do C.C., “É nula a doação de bens alheios; mas o doador não pode opor a nulidade ao donatário de boa fé.”
     Não tendo os G e H adquirido a propriedade da pintura, não têm, naturalmente, legitimidade para a doar ao Réu. Assim, a doação da pintura por eles para o Réu é nula.
     Pelo que o Réu também não adquiriu a propriedade da pintura por via da doação.
     
     Usucapião
     O Réu deduz ainda a aquisição da propriedade da pintura por via de usucapião, alegando que os G e H, com o trespasse do restaurante “F”, sempre consideram a pintura ser da pertença deles, como fazendo parte integrante do restaurante, exercendo posse sobre ela e no momento do encerramento do restaurante, oferecerá-la para o Réu, passando ele a agir como proprietário dela. Na acessão da sua posse com a posse dos G e H, tem exercido tempo suficiente para a usucapir.
     Como se deixa referido acima, vem comprovado que entre o Autor e G e H havia acordo de que a pintura ficava no locado mas não seria transmitida para estes e, no momento da cessação do arrendamento, a pintura teria que ser devolvida por estes àquele.
     Perante esse acordo, é cristal que os G e H não adquiriram a propriedade da pintura, eles apenas detinham a pintura por consentimento do Autor e não como sendo seus proprietários.
     Nos termos do art°1177°, alínea b) do C.C., os G e H são considerados meros detentores da pintura e não seus possuidores.
     Pelo que, mesmo que os G e H mantiveram a pintura no restaurante que exploravam desde 1995 até o encerramento do mesmo, eles eram apenas detentores da pintura.
     Para efeito da aquisição da posse sobre a pintura pelos meros detentores, impõe proceder à inversão do título da posse, tal como previsto na alínea e) do art°1187° do C.C..
     “A inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía impõe que o primeiro torne, directamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, a sua intenção de actuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em actos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos.” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/04/2011)
     Nesse caso concreto, não se mostraram quaisquer actos praticados pelos G e H reveladores de que eles passam a dispor a pintura como fosse seus proprietários contra o seu proprietário, ora o Autor, assim, eles nunca adquiriram a posse.
     Se bem que a pintura foi, finalmente, entregue ao Réu pelos G e H aquando do encerramento do restaurante, o Réu também não adquiriu a posse com a tradição material da coisa, uma vez que a mesma lhe foi entregue por quem não eram seus possuidores, que a detinham somente em nome doutrem e não em nome próprio.
     Se o Réu quisesse alterou a qualidade de mero detentor, carece ele da inversão do título contra o proprietário.
     Na falta de inversão do título, ainda que o Réu mande fazer nova moldura sobre a pintura, tendo-a exposto no seu local de trabalho, ele é também considerado como simples detentor da pintura.
     Em conformidade, como concluímos que quer os G e H quer o Réu não tinham/tem posse sobre a pintura, os actos praticados por eles nunca permite reconduzir à usucapião da propriedade sobre a pintura, sem necessidade de demais considerações.
     *
     Portanto, não logrou o Réu provar que tem obtido a propriedade da pintura por via da aquisição derivada nem por via da aquisição originária, a propriedade da pintura continua a pertencer ao Autor.
     
     Ocupação ilegítima pelo Réu
     Conforme os factos tidos por assentes, a pintura está actualmente detida pelo Réu, não tendo ele demostrado qualquer título válido que legitima a sua ocupação. A ocupação do Réu é, sem dúvida, ilegítima.
     Portanto, vislumbram-se preenchidos os requisitos da reivindicação, deverão ser jugados procedentes os pedidos de reconhecimento da qualidade do proprietário do Autor e da restituição da pintura a este pelo Réu.
     
     Indemnização
     Formula o Autor ainda dois pedidos de indemnização no valor de MOP$150.000,00 por cada: i) dano patrimonial derivada da privação do uso e ii) dano moral causada por tristeza e ansiedade por falta de pintura.
     
     Danos morais
     No que respeitante aos danos morais, como não logrou o Autor comprovar os factos constitutivos dos danos imateriais sofridos por ele pela falta de devolução da pintura, sem demais delongas, é de julgar improcedente esse pedido por manifesta falta de verificação do requisito de dano.
     
     Danos patrimoniais
     Dispõe-se o art°1229° do C.C. que “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.”
     Por outro lado, estatui-se o art°477° do C.C., “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
     A responsabilidade civil pressupõe a existência dos seguintes requisitos: os factos ilícitos, a culpabilidade, danos, nexo de causalidade entre factos e os danos.
     No caso presente, fica provada a pintura cuja propriedade pertence ao Autor, está colocada pelo Réu no seu local de trabalho sem consentimento do Autor, existe ilicitude, traduzida na intromissão nos direitos reais de terceiros.
     No entanto, não se acha verificado o pressuposto da culpabilidade, nesse caso, a culpa não se presume, sendo necessária alegação dos factos concretos que permitem formular juízo de censura ético-jurídica quanto à conduta do Réu.
     Conforme os factos assentes, a pintura foi entregue ao Réu pelos G e H por causa de doação, ainda que o negócio jurídico fosse considerado inválido por falta de legitimidade substancial dos doadores, na altura, o Réu recebeu a pintura na qualidade de donatário, no pressuposto de que os G e H fossem seus proprietários, tendo assim legitimidade para a dispor. Nada consta dos factos assentes que o Réu, no momento de aceite da pintura, conhecia que a pintura não pertencia aos doadores. Na ausência de outros elementos, não permite concluir que o Réu actuou com culpa.
     Na falta de verificação desse requisito, não pode proceder o pedido de indemnização.
     
     Sanção pecuniária compulsória
     Para além da restituição da pintura, peticiona o Autor a condenação do Réu no pagamento duma indemnização de MOP$500,00 por cada dia de atraso na entrega.
     No entanto, não foi invocada pelo Autor qualquer fundamentação dessa petição.
     Por modo como foi formulado, considerando ainda que o Autor tem peticionado, à parte, indemnizações pela privação do uso, cremo-nos o que pretende é a sanção pecuniária compulsória.
     Dispõe-se o n°3 do art°333° do C.C., que “A sanção pecuniária compulsória só será cominada quando o Tribunal a considere justificada e será fixada segundo a equidade, atendendo à condição económica do devedor, à gravidade da infração e à sua adequação às finalidades de compulsão ao cumprimento.”
     Mas, não foram invocados pelo Autor nenhuns factos justificativos de cominação nem consta dos autos factos indiciadores da sua necessidade menos factos sobre a situação económica do devedor.
     Por manifesta falta de elementos fácticos que justificam a aplicação da cominação requerida, é de julgar improcedente esse pedido.
     ***
     Reconvenção
     O Réu deduz, a título subsidiário, pedido reconvencional para que seja reconhecido como proprietário da pintura por via de usucapião.
     Perante os fundamentos acima expendidos, não se julga que tanto os G e H como o próprio Réu tem posse sobre a pintura, sem a posse não há lugar a usucapião, assim, não poderá deixar de julgar por improcedente esse pedido.
     
     IV) DECISÃO
     Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção, em consequência, decide:
     - Declarar-se o Autor B legítimo proprietário da pintura autoria de C
     - Condenar-se o Réu A a restituir ao Autor a referida pintura;
     - Absolver-se o Réu dos demais pedidos formulados pelo Autor.
     *
     - Absolver-se o reconvindo/Autor do pedido de reconvenção formulado pelo reconvinte/Réu.
     *
     Custas do processo pelas partes em proporção do seu decaimento e da reconvenção a cargo do Réu.
     *
     Registe e Notifique.
     ***
     據上論結,本法庭裁定原告的訴訟理由部分成立及被告的反訴不成立,裁決如下:
     - 宣告原告B為C畫作的合法所有人;
     - 判處被告A將上述畫作返還予原告;
     - 裁定原告針對被告的其餘訴訟請求不能成立,並開釋被告。
     *
     - 裁定反訴人/被告針對被反訴人/原告提起的反訴請求不能成立,並開釋原告/被反訴人。
     *
     原訴的訴訟費用由原告及被告按敗訴比例負擔及反訴的訴訟費用由被告承擔。
     *
     依法作出通知及登錄本判決。

*
    Quid Juris?
    Como o quadro factual fixado pelo Tribunal recorrido não foi alterado e perante a argumentação coerente e exaustiva do mesmo, é da nossa conclusão que o Tribunal a quo fez uma análise ponderada dos factos e uma aplicação correcta das normas jurídicas do CPC, tendo proferido uma decisão conscienciosa e legalmente fundamentada, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de manter a decisão recorrida.
*
    Relativamente ao recurso subordinado, é de julgar improcedente, visto que:
    1) – Não há factos que comprovem o valor que o Recorrente/Autor reclamou a título de “indemnização” pela privação do uso de quadro, o facto de o Réu se ter recursado entregar o quadro em causa, não significa que o Réu incorre automaticamente no pagamento de indemnização reclamada.
    2) – Igualmente faltam dados para aplicar o artigo 333º do CCM nos termos requeridos pelo Recorrente/Autor, uma vez que os direitos deste só ficam definitivamente clarificados pela presente decisão.
    Julga-se assim improcedente o recurso subordinado.

*
    Síntese conclusiva:
    I - No âmbito de reapreciação da decisão de facto, de realçar que, em conformidade com o regime de recursos aplicável (artigo 599º do CPC), não cabe ao Tribunal ad quem proceder a um novo julgamento latitudinário da causa, mas apenas sindicar os invocados erros de julgamento da 1.ª instância sobre os pontos de facto especificamente questionados, mediante reapreciação das provas produzidas nesse âmbito, tomando por base os factos tidos por assentes, a prova produzida ou algum documento superveniente, oportunamente junto aos autos, que imponham decisão diversa.
    II - A especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
    III - É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
    IV – No caso, como a Recorrente não cumpriu este ónus específico de impugnar a decisão de facto, é de rejeitar o recurso nesta parte.
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    Tudo visto e analisado, resta decidir.
* * *
V ‒ DECISÃO
    Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao recurso interposto pela Recorrente e julgar improcedente o recurso subordinado, mantendo-se a sentença recorrida.
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    Custas pelas partes na proporção de 2/3 a cargo do Recorrente/Réu e 1/3 a cargo do Recorrente/Autor(recurso subordinado).
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    Registe e Notifique.
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RAEM, 13 de Outubro de 2022.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong
1 Sobre o princípio da completude da motivação da decisão judicial ditado, pela necessidade da justificação cabal das razões em que se funda, com função legitimadora do poder judicial, vide acórdão do STJ, de 17-01-2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1876/06.3TBGDM.P1 .S1, disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj
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