Processo n.º 623/2022 Data do acórdão: 2022-10-13 (Autos de recurso penal)
Assuntos:
– rejeição do recurso
– reclamação da decisão sumária do relator
S U M Á R I O
Ao arguido cujo recurso foi rejeitado por decisão sumária do relator assiste o direito de reclamar dessa decisão para o tribunal colectivo de recurso.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 623/2022
(Autos de recurso penal)
(Da reclamação da decisão sumária de rejeição do recurso)
Arguido recorrente e ora reclamante: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 275 a 288 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR5-22-0061-PCC do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido A, aí já melhor identificado, ficou condenado como autor material de um crime consumado de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado, p. e p. sobretudo pelo art.o 199.o, n.os 1 e 4, alínea b), do Código Penal (CP), na pena de três anos e nove meses de prisão, e na obrigação de pagar ao ofendido B a quantia indemnizatória, arbitrada oficiosamente, de MOP3.200.835,00 (três milhões, duzentas mil e oitocentas e trinta e cinco patacas), com juros legais a contar da data desse acórdão até integral e efectivo pagamento.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a sua absolvição penal (assacando, para o efeito, à referida decisão condenatória a violação do princípio de in dubio pro reo aquando da decidida verificação cabal do dolo dele de praticar o crime por que vinha condenado), ou, pelo menos, a redução da sua pena de prisão para não mais do que três anos de duração, com sempre pretendida suspensão da execução da prisão, tudo nos termos alegados na sua motivação de fls. 306 a 319 dos presentes autos correspondentes.
Ao recurso, respondeu o Digno Delegado do Procurador a fls. 321 a 322 dos presentes autos, no sentido de não provimento do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 337 a 339, opinando pela manutenção do julgado.
Por decisão sumária proferida pelo relator a fls. 346 a 349, foi rejeitado o recurso (por entendida improcedência manifesta do mesmo), nos termos do art.os 407.o, n.o 6, alínea b), e 410.o, n.o 1, do Código de Processo Penal (CPP), com custas do recurso pelo arguido recorrente, com duas UC de taxa de justiça e quatro UC de sanção pecuniária pela rejeição, e mil e oitocentas patacas de honorários a favor do Ex.mo Defensor Oficioso.
Notificado dessa decisão sumária, veio reclamar o arguido através do petitório apresentado a fls. 370 a 384, aí reiterando o defendido na sua motivação do recurso.
Sobre a matéria da reclamação, opinou a Digna Procuradora-Adjunta a fl. 387 a 387v pela manutenção da decisão sumária de rejeição do recurso.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte, com pertinência à decisão:
1. O acórdão recorrido pelo arguido encontrou-se proferido a fls. 275 a 288, cujo teor integral se dá por aqui integralmente reproduzido.
2. A decisão sumária de rejeição do recurso do arguido tem por fundamentação o seguinte, nomeadamente:
<<[…]
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao ente julgador do recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, decidindo.
Começou o recorrente por questionar, através da citação do princípio de in dubio pro reo, o julgamento da matéria de facto feito pelo Tribunal sentenciador no tocante à indagação de factos com pertinência à verificação do seu dolo para a prática do crime por que vinha condenado.
Trata-se, pois, de uma questão reconduzida materialmente ao vício de erro notório na apreciação da prova aludido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP.
Pois bem, sempre se diz que há este vício, quando for patente que a decisão probatória do tribunal violou inclusivamente as leges artis (neste sentido, e de entre muitos outros, cfr. o douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 22 de Novembro de 2000, do Processo n.º 17/2000).
Na verdade, o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 114.º do CPP não significa que a entidade julgadora da prova possa fazer uma apreciação totalmente livre da prova. Pelo contrário, há que apreciar a prova sempre segundo as regras da experiência, e com observância das leges artis, ainda que (com incidência sobre o caso concreto em questão) não existam quaisquer normas legais a determinar previamente o valor das provas em consideração.
Ou seja, a livre apreciação da prova não equivale à apreciação arbitrária da prova, mas sim à apreciação prudente da prova (em todo o terreno não previamente ocupado por tais normas atinentes à prova legal) com respeito sempre das regras da experiência da vida humana e das leges artis vigentes neste campo de tarefas jurisdicionais.
E no concernente à temática da prova livre, é de relembrar os seguintes preciosos ensinamentos veiculados no MANUAL DE PROCESSO CIVIL (2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, páginas 470 a 472), de autoria de ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA:
– <
[…]
Há, todavia, algumas excepções ao princípio da livre apreciação da prova, que constituem como que justificados resíduos do sistema da prova legal.
[…]
Mas convém desde já conhecer os diferentes graus de convicção do julgador criados pelos meios de prova e precisar o seu alcance prático.
Quando qualquer meio de prova, não dotado de força probatória especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante – ou que há prova suficiente – desse facto.
Se, porém, a esse meio de prova um outro sobrevier que crie no espírito do julgador a dúvida sobre a existência do facto, a prova deste facto desapareceu, como que se desfez. Nesse sentido se afirma que a prova bastante cede perante simples contraprova, ou seja, em face do elemento probatório que, sem convencer o julgador do facto oposto (da inexistência do facto), cria no seu espírito a dúvida séria sobre a existência do facto.
Assim, se a parte onerada com a prova de um facto conseguir, através de testemunhas, de peritos ou de qualquer outro meio de prova, persuadir o julgador da existência do facto, ela preencheu o ónus que sobre si recaía. Porém, se a parte contrária (ou o próprio tribunal) trouxer ao processo qualquer outro elemento probatório de sinal oposto, que deixe o juiz na dúvida sobre a existência do facto, dir-se-á que ele fez contraprova; e mais se não exigirá para destruir a prova bastante realizada pelo onerado, para neutralizá-la […]>>.
No caso dos autos, da leitura da fundamentação probatória da decisão recorrida, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor das provas, ou violado qualquer regra da experiência da vida humana, ou violado quaisquer leges artis a observar no julgamento da matéria de facto.
Aliás, esse Tribunal já expôs congruentemente as razões da formação da sua livre convicção sobre os factos probandos respeitantes ao crime consumado de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado por cuja prática, em autoria material, vinha finalmente condenado o arguido – cfr. o teor da mesma fundamentação probatória, na parte escrita sobretudo a partir do penúltimo parágrafo da página 21 do texto do acórdão recorrido até ao quarto parágrafo da página 22 do mesmo texto (a fl. 285 a 285v), no referente à análise crítica das provas dos autos quanto a esse crime.
Como esse resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal recorrido não é desrazóavel, improcede a tese de violação do princípio de in dubio pro reo, já que conforme a factualidade assente no aresto recorrido, é patente a verificação do dolo do arguido para a prática do crime de abuso de confiança em valor consideravelmente elevado.
Quanto à medida concreta da pena de prisão, vistas todas as circunstâncias fácticas apuradas pela Primeira Instância, é de louvar a decisão condenatória recorrida, sem mais achega por desnecessária.
Sendo condenado em pena de prisão superior a três anos de duração, é inviável qualquer hipótese de suspensão da execução da pena, por inverificação a montante do requisito formal exigido pelo art.o 48.o, n.o 1, do CP.
[…]>>.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Nos termos processuais legais, assiste ao arguido recorrente o direito e o interesse processuais para reclamar da decisão sumária de rejeição do seu recurso.
Pois bem, vistos pelo presente Tribunal Colectivo de recurso todos os elementos dos autos, é de improceder a reclamação sub judice, porquanto há que manter, nos seus precisos termos, a decisão sumária do relator ora sindicada no petitório da reclamação, por essa decisão que rejeitou o recurso por manifestamente improcedente estar conforme com a matéria de facto já dada por provada (sem qualquer violação do princípio de in dubio pro reo) em primeira instância e o direito aplicável aplicado concretamente na fundamentação jurídica da própria decisão sumária.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a reclamação do arguido, mantendo a reclamada decisão sumária de rejeição do recurso.
Para além das custas e taxa de justiça fixadas a seu cargo no dispositivo dessa decisão sumária, pagará ainda o arguido as custas do processado da sua reclamação, com três UC de taxa de justiça e mais quinhentas patacas de honorários a favor do seu Ex.mo Defensor Oficioso.
Comunique o presente acórdão (com cópia do acórdão recorrido) ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, e comunique o resultado da presente decisão do recurso (com cópia do acórdão recorrido) ao ofendido.
Macau, 13 de Outubro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)
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