Processo n.º 375/2022
(Autos de recurso laboral)
Data: 20/Outubro/2022
Assuntos: Cessação da relação laboral
Declaração negocial
Quitação
Reconhecimento negativo de dívidas
SUMÁRIO
A quitação pode ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
O n.º 1 do artigo 228.º do Código Civil determina que a declaração negocial não pode valer com um sentido com o qual o declarante não podia razoavelmente contar.
No caso dos autos, o recorrente (trabalhador) prestou a seguinte declaração:
“Declaro que recebi todo o salário pendente e pagamento final a mim devido referente ao meu emprego…”
Por não se ter provado qualquer negociação prévia ou que o trabalhador fosse alertado para todas as compensações a que tinha direito, não podia o declaratário, ou seja, a entidade patronal, agindo de boa fé, deduzir a existência de um reconhecimento negativo de todas as dívidas (em especial, todas as indemnizações) laborais.
E por parte do declarante, ora recorrente, não podia razoavelmente contar que ao assinar uma declaração de quitação e pagamento de direitos, sem que se tenha provado que tenha sido informado de todas as compensações a ele devidas, estaria a reconhecer negativamente todas as dívidas da sua entidade empregadora.
Atento o conteúdo da declaração prestada pelo trabalhador, ora recorrente, é de verificar que essa quitação, acompanhada de reconhecimento negativo de dívidas, diz respeito apenas aos créditos a que ele tinha direito numa situação em que não se verificaria violação dos direitos laborais.
Pelo contrário, isto é, se existiria violação dos direitos laborais, não se podia dizer que foi dada quitação acompanhada do reconhecimento negativo de dívidas.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo n.º 375/2022
(Autos de recurso laboral)
Data: 20/Outubro/2022
Recorrente:
- A (autor)
Recorrida:
- B, S.A. (ré)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A, com sinais nos autos (doravante designado por “autor”) intentou junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM acção declarativa de processo comum do trabalho, pedindo a condenação da B, S.A. (doravante designada por “ré”) no pagamento do montante de MOP$137.993,83, acrescido de juros legais até efectivo e integral pagamento.
Citada para contestar, a ré defendeu-se por excepção, tendo alegado que o autor já tinha aceite o cálculo dos créditos laborais efectuado pela ré como correcto e que aceitou nada mais lhe ser devido.
Realizado o julgamento, foi julgada procedente a excepção e, em consequência, foi a ré absolvida dos pedidos formulados pelo autor.
Inconformado, recorreu o autor jurisdicionalmente para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
“1. Versa o presente Recurso sobre a douta Decisão na parte em que entendeu que “(…) o documento a fls. 147 dos autos (…) assinado pelo Autor no último dia da relação laboral (…) vale como quitação acompanhada de reconhecimento negativo de toda a dívida”, razão pela qual foi julgada procedente a excepção invocada pela Ré e absolvida a mesma de todos os pedidos formulados pelo Autor na sua Petição Inicial.
2. Salvo o devido respeito, está o ora Recorrente em crer que não se mostra correcto concluir que a declaração inserta no último recibo de pagamento do salário do Autor/Recorrente e assinada por este no último dia da sua relação de trabalho com a Ré/Recorrida, possa valer como “quitação acompanhada de reconhecimento negativo de toda a dívida”, razão pela qual se impõe que a douta Decisão seja revista, porque carecida de fundamento jurídico.
Mais detalhadamente.
3. Na sua – brevíssima – fundamentação jurídica, o douto Tribunal a quo convoca duas Decisões das mais altas Instâncias Superiores de Justiça da RAEM, com vista à qualificação da declaração em causa como sendo um “recibo de quitação”.
4. Salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo, ignora, porém, que a situação em apreciação nos presentes autos em nada se confunde e/ou em pouco se identifica com as situações anteriormente apreciadas pelo Tribunal de Última Instância e pelo Tribunal de Segunda Instância.
5. De onde, tratando-se de situações jurídicas distintas terão as mesmas de ser merecedoras de tratamento e de solução jurídica também ela distinta.
Em concreto,
6. Resulta do Sumário do Acórdão do TUI de 05/06/2013, tirado do Processo n.º 21/2013, entre outro, que: “5. A remissão de créditos do contrato de trabalho é possível após extinção das relações laborais; 6. Face ao conteúdo e aos termos em que foi dirigida, a declaração emitida pelo trabalhador, após a cessação (e não, concessão como por erro manifesto se refere) da relação laboral (…) vale como quitação acompanhada de reconhecimento negativo de toda a dívida”.
7. Ora, a leitura do referido Sumário é quanto baste para fazer saltar à vista que a situação apreciada pelo Tribunal de Última Instância – seja no âmbito do referido Proc. n.º 21/2013, seja em outras dezenas de processos similares – em muito se distingue da situação ajuizada pelo Tribunal a quo, quer no que respeita à matéria de facto, quer à conclusão de Direito, o que por si só faz “inquinar” a fundamentação jurídica avançada pelo Tribunal Judicial de Base.
8. Desde logo, porque, na situação apreciada pelo douto Tribunal Superior estava em causa aferir da validade de uma declaração relativa a uma relação de trabalho que havia cessado há mais de três anos; ao invés, nos presentes autos, o documento de fls. 147 foi assinado pelo Autor/Recorrente no último dia da relação de trabalho e, como tal, ainda no decurso da mesma.
9. Ora, esta “grande” diferença faz necessariamente cair por terra o primeiro “fundamento” da Decisão Recorrida, porquanto, como a própria Decisão expressamente o sublinha: a remissão de créditos só é possível após a extinção da relação de trabalho em causa, o que na situação dos presentes autos se não verificou.
10. De onde se conclui que, tendo o documento junto de fls. 147 sido assinado pelo Autor/Recorrente, em 31/05/2008 e, como tal, ainda durante o período da relação de trabalho, em caso algum o mesmo poderá configurar uma “remissão” de créditos laborais, contrariamente ao que terá sido entendido pelo Tribunal Judicial de Base.
Acresce que,
11. Para além de o documento de fls. 147 ter sido assinado (ainda) no decurso do contrato de trabalho, também o seu concreto teor e amplitude em muito se aparta das “Declarações de quitação” – especialmente redigidas para o efeito, em regra, no âmbito de uma negociação com vista a pôr termo ao contrato de trabalho e/ou na sequência da cessação do mesmo – e que têm vindo a ser objecto de cuidada apreciação por parte das nossas Instâncias Superiores de Recurso.
12. Para o que ao presente Recurso mais directamente importa, resulta do documento de fls. 147 o seguinte: “Declaro que recebi todo o salário em dívida e o pagamento final do meu emprego devido a mim (…). Concorda e aceita o cálculo e declaração acima realizado”.
13. Diferentemente, em regra, as Declarações de quitação que têm vindo a ser apreciadas pelo TSI e pelo TUI consagram, o seguinte: “Declaração. Eu, A, Titular do BIR n.º ______ declaro que recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$______ da C, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença da maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a C. Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a C subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à C, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.”
14. Ora, a comparação literal da redacção – leia-se, do teor e da amplitude – das referidas declarações, deixa ver que a primeira, ao contrário da segunda, não consagra em si uma qualquer “intenção remissiva”, que permita concluir que o Autor/Recorrente terá pretendido conferir ao documento de fls. 154 um efeito de “quitação total e plena” de todos os seus créditos laborais, desde logo pela ausência de indicação de qualquer expressão neste sentido, v.g., “(…) que nada mais tinha a receber do seu empregador”, que “(…) se considera integralmente pago de todos os seus créditos emergentes do contrato de trabalho”, o que “(…) com a assinatura da presente declaração mais nenhum outro direito subsiste que possa vir a ser reclamado no futuro”, conforme é típico nestes tipo de Declarações e tal qual tem vindo a ser pacificamente entendido pelos nossos Tribunais Superiores a respeito da mesma Questão de Direito.
15. Ao não ter procedido assim, a douta Decisão Recorrida enferma um erro de julgamento, traduzido numa errada interpretação jurídica, pelo que deve a mesma ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a excepção invocada pela Recorrida, o que desde já e para os devidos e legais efeitos se invoca e requer.
Depois,
16. Num segundo momento, a douta Decisão Recorrida convoca um excerto do douto Acórdão do TSI, Proc. n. º 154/2020, por forma a justificar que “(…) no momento da cessação da relação laboral, na medida em que a relação laboral vai extinguir já em muito breve (…) a remissão da dívida laboral ou o seu reconhecimento negativo declarada por parte do trabalhador é legalmente admissível (…)”.
17. Ignora, porém, uma vez mais o douto TJB que, também aqui, a situação que foi apreciada pelo douto Tribunal de Recurso em muito se distingue da questão em apreciação nos presentes autos, o que por si só inquina todo o raciocínio e juízo decisório levado a cabo pelo douto Tribunal a quo.
18. É que, no Ac. do TSI, Proc. n.º 154/2020, estava em causa uma situação em que a iniciativa de pôr termo ao contrato de trabalho partiu da própria trabalhadora – mediante comunicação escrita produzida com mais de um mês e meio de antecedência – tendo a declaração em causa sido preparada pelo Entidade Patronal uma semana antes da extinção da relação do trabalho.
19. Ao invés, nos presentes autos, a iniciativa de pôr fim ao contrato de trabalho partiu exclusivamente da Ré/Recorrida, mediante comunicação ao Autor/Recorrente no próprio dia, isto é, no último e derradeiro dia do termo da relação de trabalho, dia 31/05/2008, o que levou a Ré/Recorrida a pagar ao Autor/Recorrente a quantia devida a título de “aviso prévio em falta” (“Payment in lieu of notice”).
20. Ora, também aqui, tal diferença será, quanto baste, para se concluir que a situação apreciada pelo douto Tribunal de Recurso em muito se distingue da presente, na medida em que naquela, no momento da cessação da relação de trabalho a trabalhadora já sabia que a mesma relação iria extinguir-se em “muito breve”, razão porque se compreende que o douto Tribunal a quo tenha ali afirmado que: “(…) a eventual necessidade de sujeição do trabalhador à entidade patronal deixa(ria) (em breve) de subsistir” e, neste particular, que iria qualquer eventual temor reverencial que a trabalhadora pudesse ter, a partir do momento em que a própria decidiu pôr termo ao contrato de trabalho que a unia à sua então empregadora.
21. Tratam-se, pois, de situações díspares, que partem de uma diferente premissa o que, por si só, justifica uma diferente solução jurídica, ao invés do que terá sido concluído pelo Tribunal a quo.
Sem prescindir,
22. Ora, a respeito de uma situação que se acredita similar à presente, resulta do Ac. do TSI, Proc. n.º 210/2013, o seguinte: “Estando perante uma situação, a dos autos, em que não se mostra finda a relação laboral, o trabalhador não pode renunciar previamente à sua retribuição ou a parte dela, o que resulta de razões de ordem pública, na própria subordinação, que impede o trabalhador de ser verdadeiramente livre na sua decisão, na constância da relação laboral e na imprescritibilidade dos créditos remuneratórios (…). Na pendência de uma relação laboral não é válida a declaração do trabalhador que renuncia ao percebimento de determinadas quantias que lhe são devidas por trabalho prestado e que não foram pagas ou que foram insuficientemente pagas, o que viola o princípio da efectividade mínima, segundo o qual a retribuição deve ser concretizada mediante a entrega do seu valor real ao trabalhador”.
23. Na mesma linha decisória, também no Ac. do TSI, Proc. n.º 763/2014, se deixou dito que: “(…) A Autora, em 19.12.2006, subscreveu a declaração de quitação de todas as quantias que lhe eram devidas pela Ré em decorrência da relação laboral, desobrigando a Ré, de qualquer pagamento adicional, nomeadamente a título de “subsídios”. Esta declaração produzirá o efeito jurídico da remissão de dívida tal como é pretendido pela Ré? A resposta, para nós, não deixa de ser negativa, na medida em que aquela declaração foi assinada na constância da relação laboral (…). O artº 33º do DL nº 24/89/M proíbe de forma expressa a cedência, a qualquer título, de créditos resultantes da prestação de trabalho por parte do trabalhador (…). No caso sub justice, a declaração de quitação não foi feita após a extinção da relação laboral, mas sim na constância da relação laboral”. Assim sendo, (…) não pode produzir o efeito jurídico da remissão de dívida, sob pena de violar o artº 33º do DL nº 24/89/M.
24. A leitura das referidas Decisões permite, pois, concluir que o documento de fls. 154 – assinado pelo Autor/Recorrente em 31/05/2008, isto é, no último dia da relação de trabalho – em caso algum pode ser entendido como sendo um documento de “remissão de dívida” e/ou de “quitação acompanhada de reconhecimento negativo de toda a dívida”, porquanto se trata de uma declaração assinada ainda na constância da relação laboral, sabido que a remissão de créditos resultantes da prestação de trabalho apenas se torna possível após a extinção da respectiva relação laboral.
25. Ao não entender assim, a douta Decisão Recorrida mostra-se em manifesta oposição com o disposto no art. 33º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, e, neste sentido, inquinada por uma errada aplicação de Lei, que deverá conduzir à sua nulidade, o que desde já e para os devidos e legais efeitos se invoca e requer.
26. De resto, salvo o devido respeito, ao aceitar que o Autor/Recorrente fosse “livre” de dispor dos seus “créditos laborais” apenas porque estava “para breve” o momento da cessação do contrato de trabalho, o TJB estará, antes de mais, a recuar um nível na protecção legal que o legislador de Macau quis expressamente dispensar a quem se acredita ser a “parte mais fraca” da relação…
27. Dito de outro modo, concluir que o Autor/Recorrente fosse “livre” de dispor dos seus “créditos laborais” apenas porque estava “para breve” o momento da cessação do respectivo contrato, será fazer uma leitura enviesada de uma norma destinada à protecção do trabalhador, em sentido menos favorável àquele, o que por si só se mostra violador dos mais elementares Princípios que regem e dão suporte a todo o Direito do Trabalho.
28. Num sentido que se acredita ainda possível, sempre se dirá que ao aceitar que: “(…) no momento da cessação da relação laboral (…) a remissão da dívida ou o seu reconhecimento negativo é legalmente admissível”, a douta Decisão deixa antever que, afinal de contas, os “créditos laborais” a que se refere o art. 33º do DL 24/89/M, de 3 de Abril apenas são objecto de protecção legal até ao penúltimo dia da relação de trabalho, porquanto, depois desse momento, “a necessidade de sujeição do trabalhador à entidade patronal deixa de subsistir”, passando o trabalhador a ser “livre” para renunciar e/ou ceder todos os seus créditos…
29. Trata-se, porém, salvo o devido respeito, de uma conclusão que se mostra em gritante oposição com o conteúdo literal, histórico, racional e teleológico da referida disposição jurídica e, como tal, em caso algum poderá ser aceite como correcta, justa ou admissível.
30. Pelo exposto, deve a douta Decisão Recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a excepção alegada pela Ré/Recorrida, condenando a mesma a pagar ao Autor/Recorrente as quantias por este reclamadas em sede de Petição Inicial, atento o concreto teor da matéria de facto provada sob os pontos 1 a 15, o que desde já e para os devidos e legais efeitos se invoca e requer.
Ex abundandis,
31. É sabido que a questão em apreciação nos presentes autos não é desconhecida da doutrina e Jurisprudência portuguesas, em termos que se acredita de especial relevância e utilidade para a sua clarificação.
32. Entre outros, convoca-se, a este respeito e a título de direito comparado, o Acórdão do STJ, de 20/01/2010, tirado do Proc. n.º 2059/07.0TTLSB.L1.S1, nos termos do qual se refere o seguinte: “(…) a quitação é um documento em que o credor declara ter recebido a prestação que lhe é devida, constituindo uma simples declaração de ciência certificativa do facto de que a prestação foi cumprida pelo devedor e recebida pelo credor”, ao passo que “a remissão é a renúncia do credor ao direito de exigir a prestação feita com aquiescência da contraparte, e provoca a extinção das obrigações visadas, resultando assim, do acordo entre os dois titulares da relação creditória.”
33. No caso dos autos, não só não se provou a existência de qualquer negociação prévia, como o teor do texto que o trabalhador assinou não sugere, nem alerta, para qualquer remissão abdicativa: a própria letra do documento, significativamente intitulado “declaração de quitação; pagamento de direitos” – refere que o trabalhador “declara ter recebido o pagamento” – e não que renuncia, perdoa, remite – “de todos os direitos emergentes da presente relação laboral, pelo que nada mais tem a reclamar ou exigir a esta empresa”.
34. Em sentido próximo, do Ac. do STJ, tirado do Proc. n.º 2236/15.0T8AVR.P1.S1, pode ler-se que: “[a] declaração de “nada ter a receber” do empregador “seja a que título for” constante de um “acordo”, assinado pelo trabalhador no dia em que cessou o contrato a termo que vigorava, não consubstancia uma remissão abdicativa se o trabalhador ao efetuá-la apenas estava a receber as quantias legalmente devidas na perspetiva do contrato a termo que vigorara, pois não tendo havido negociações prévias (…) não se pode depreender da declaração do trabalhador que fosse sua vontade renunciar à faculdade de impugnar a validade do termo do contrato, tanto mais que nenhuma quantia lhe era paga para o compensar, minimamente que fosse, da renúncia a esse direito”. Não está, pois, demonstrada a existência de uma qualquer genuína vontade de remitir por parte do trabalhador. E, em bom rigor, nem ela resulta do documento assinado pelo trabalhador.”
35. Ora, a leitura das referidas Decisões permite, uma vez mais, concluir que também nos presentes autos, face ao conteúdo e aos termos em que foi redigida a declaração de fls. 147, tendo a mesma sido assinada pelo Autor/Recorrente no dia em que cessou o seu contrato, em caso algum lhe pode ser atribuído um cariz “liberatório”.
36. Ao assinar o Autor/Recorrente limitou-se a afirmar que estava a receber as quantias salariais constante do documento (“Declaro que recebi todo o meu salário em dívida e o pagamento final do meu emprego devido a mim (…)”, mas sem que tenham existido quaisquer negociações prévias, e sem que o Autor tivesse declarado ser sua vontade “renunciar” a todos os “créditos laborais” que lhe fossem devidos.
37. Nem tal, sequer, se encontra reflectido minimamente na letra do documento, visto que em lugar nenhum se afirma, v.g., “(…) que se declara ter recebido o pagamento e que deste modo renuncia, perdoa, remite todos os direitos emergentes da relação laboral, pelo que nada mais tem a reclamar ou exigir a esta empresa”, contrariamente ao que terá sido entendido pelo douto Tribunal Judicial de Base na Decisão Recorrida.
Uma última nota:
38. Impõe o art. 228º do Código Civil que a declaração constante de fls. 147 deva ser interpretada com o sentido que um “declaratário normal” poderia deduzir do comportamento do “declarante” (leia-se, do Autor/Recorrente) no momento da sua assinatura, em 31/05/2008, sem que se possa descurar o contexto concreto em que a mesma foi emitida, bem sabido que a posição do “real declaratário” (leia-se, da Ré/Recorrida) não é de uma mera desconhecida, mas antes de alguém que conhece ser devedora, entre outros, dos “créditos laborais” que resultam da matéria vertida sob os pontos 8 a 15 dos Factos Assentes.
39. Acresce que, em momento nenhum o Autor/Recorrente foi “alertado” para todo o conjunto “de direitos” a que estaria – pretensamente – a “renunciar”, pelo que não se crê que um “declaratário normal”, agindo de boa fé, pudesse deduzir a existência de uma “remissão” com a assinatura do seu último recibo de vencimento, sabido que “pagamento de salário” e “remissão” são causas bem distintas de extinção das obrigações.
40. Ora, em face do que se deixou dito, em caso algum se poderá razoavelmente aceitar que ao assinar a declaração constante de fls. 147 o ora Recorrente estaria na verdade a “remitir” ou, se se preferir, dar “quitação, acompanhada de um reconhecimento negativo de toda a dívida” relativamente à totalidade de “créditos laborais” que lhe fossem devidos pela da Ré/Recorrida, pelo que, também por aqui, se impõe que a douta Decisão Recorrida seja revogada, o que para os devidos e legais efeitos se invoca e requer.
Nestes termos e nos de mais de Direito que V. Exas. encarregar-se-ão de suprir deve a douta Sentença, na parte em que conclui que a declaração assinada pelo Autor/Recorrente configura uma “quitação, acompanhada de um reconhecimento negativo de toda a dívida”, ser julgada nula e substituída por outra que atenda ao pedido tal qual supra formulado, assim se fazendo a já costumada JUSTIÇA!”
*
Ao recurso respondeu a ré tendo formulando as seguintes conclusões alegatórias:
“A. Na Douta Sentença, o Digno Tribunal a quo decide (e bem) pela procedência da excepção invocada pela Ré na sua contestação.
B. Alega o Autor, aqui Recorrente, que o Tribunal a quo aplicou erradamente o direito, nomeadamente, quanto aos efeitos jurídicos que se devem extrair do documento a fls. 147 dos presentes autos – o final payment notice.
C. O documento a fls. 147 dos presentes autos contém uma declaração negocial por parte do Autor.
D. Uma declaração negocial é um comportamento humano portador de um sentido e destinado, pelo seu autor (o aqui Recorrente), a produzir determinados efeitos jurídico-privados de acordo com o sentido dessa mesma declaração.
E. Assinar um documento que contêm uma declaração é um comportamento.
F. Tal comportamento, sendo sempre uma acção humana, existe na medida em que determinado comportamento ou, mais importante, o resultado do comportamento (o significante) integre um código significativo que é exterior ao comportamento considerado, e, por efeito desse código, o comportamento é entendido, pela comunidade utilizadora do código, como tendo determinado significado. Ou seja, os comportamentos têm significado na medida em que são entendidos por certa comunidade como significantes.
G. Era procedimento e prática comum da Ré, relativamente à emissão deste tipo de documento (de quitação), oferecer toda a oportunidade aos seus trabalhadores (no que se incluiu o Autor, aqui Recorrente) de, aquando da cessação, pedirem esclarecimentos e/ou rectificação de qualquer item compensatório que lhes seria (ou não) devido.
H. O documento a fls. 147 dos presentes autos está assinado pelo Autor (facto que este nunca pôs em causa), quer a declaração intitulada “final payment notice”, quer a cópia dos cheques nos montantes de MOP14.449,10 e de MOP5.000,00 que recebeu.
I. Vem provado nos autos em crise que o Autor trabalhou para a Ré entre 6.07.2006 a 31.05.2008 (vide Facto Assente A da matéria de facto), sendo aquela a data de cessação da relação laboral entre as partes.
J. Ficou provado que foi no dia 31.05.2008 que o Autor assinou o documento a fls. 147 dos presentes autos (vide decisão da matéria de facto, Quesitos 23º, 25º a 27º).
K. O documento a fls. 147 dos presentes autos – intitulado final payment notice – foi assinado no exacto dia em que a relação laboral entre as partes cessou.
L. O Autor recebeu os valores referidos no documento a fls. 147 dos presentes autos posteriormente àquela data, tendo a 2 de Junho de 2008, recebido as quantias de MOP14.449,10 e de MOP5.000,00.
M. Os procedimentos da Ré relativos à cessação laboral apenas terminam com o pagamento das quantias que se apurem estar em dívida para com o trabalhador cessante.
N. O Autor aceitou que as quantias de MOP14.449,10 e de MOP5.000,00 eram as únicas que lhe eram devidas.
O. O Autor teve ainda vários dias (pelo menos entre 31 de Maio e até 2 de Junho de 2008) para informar a Ré de que, afinal, ainda lhe eram devidas outras quantias.
P. O Autor nunca fez tal reclamação, não só até 2 de Junho de 2008, mas até ao dia 14.05.2021, dia em que foi submetida no Tribunal Judicial de Base a sua PI.
Q. Se é de revelar a data em que foram concluídas as negociações tendentes à cessação da relação laboral e à liquidação de todos os créditos laborais, então a data relevante deverá ser 2 de Junho de 2008 (e não 31 de Maio de 2008).
R. Durante 12 anos, 11 meses e 11 dias (ao todo 4731 dias) após a data de cessação, o Autor conformou-se com a declaração que assinou no documento a fls. 147 dos presentes autos, que a mesma era suficiente para valer como quitação e reconhecimento negativo de dívida e que as quantias de MOP14.449,10 e de MOP5.000,00 que recebeu eram as únicas que lhe eram devidas.
S. Nos termos da Lei de Macau, não é exigido qualquer linguagem específica ou formalismo específico para um documento valer como “quitação acompanhada de reconhecimento negativo de toda a dívida”.
T. A redação do documento vem inteiramente em língua inglesa, por forma a possibilitar ao Autor ter conhecimento da mesma.
U. À data em que o Autor assinou o documento a fls. 147 e em que, posteriormente, recebeu as quantias de MOP14.449,10 e de MOP5.000,00, este era maior de idade e tinha capacidade jurídica e entendimento do documento que estava a assinar.
V. Como bem diz o Digno Tribunal a quo na Douta Sentença em crise, o Autor jamais invocou a existência de quaisquer vícios da sua vontade em aceitar os termos daquela declaração.
W. Nos termos previstos no artigo 228º do Código Civil de Macau, uma “declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.”
X. O Autor declara que “I have received […] final payment relating to my employment due to me”, em Português “Declaro que recebi […] o pagamento final do meu emprego devido a mim”.
Y. Nos termos do artigo 209º do Código Civil de Macau: “A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro modo directo de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.”
Z. Quem declara que recebeu tudo, mutatis mutandis, está a declarar também que nada mais lhe é devido!
AA. O Autor está claramente a declarar que as quantias apuradas no documento a fls. 147 são as únicas que lhe são devidas em relação à sua relação laboral com a Ré.
BB. Qualquer pessoa comum, mesmo uma que não tenha extensos conhecimentos legais sabe que, quando, na posição de trabalhador, lhe é pedido que aceite os cálculos feitos pelo empregador num documento titulado “final payment notice” e que tais quantias constituem “o pagamento final do emprego” está a declarar que os montantes em dívida são os que estão ali referidos e que mais nenhum montante lhe é devido.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso do Autor ser julgado improcedente e manter-se a decisão proferida na Sentença, ora recorrida, condenando-se o Autor ora Recorrente nas custas do recurso e em condigna procuradoria.
Assim se fazendo a costumada, JUSTIÇA!”
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
Entre 06/07/2006 a 31/05/2008, o Autor esteve ao serviço da Ré, prestando funções de “guarda de segurança”, enquanto trabalhador não residente. (A)
Entre 06/07/2006 a 30/06/2007 a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$8,700.00, a título de salário de base mensal. (B)
Entre 01/07/2007 a 31/05/2008 a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$8,850.00, a título de salário de base mensal. (C)
Durante o período da relação de trabalho o Autor gozou de 16 dias de férias por cada ano. (D)
Entre 06/07/2006 a 31/05/2008, por ordem da Ré, o Autor prestou a sua actividade nos dias de feriados obrigatórios (1 de Janeiro, Ano Novo Chinês (3 dias) e 1 de Maio e 1 de Outubro), no total de 10 dias. (1.º)
Pelo trabalho prestado em dia de feriado, a Ré pagou ao Autor um acréscimo salarial ao dobro da retribuição normal. (2.º e 22.º)
Durante o período da relação de trabalho, por ordem da Ré, o Autor estava obrigado a comparecer no seu local de trabalho, devidamente uniformizado, com, pelo menos, 30 minutos de antecedência relativamente ao início de cada turno, tendo aí permanecido às ordens e sob as instruções dos seus superiores hierárquicos. (3.º)
Durante o referido período de tempo, tinha lugar um briefing (leia-se, uma reunião) entre o Team Leader (leia-se, Chefe de turno) e os “guardas de segurança”, na qual eram inspeccionados os uniformes de cada um dos guardas e distribuído o trabalho, mediante a indicação do seu concreto posto de trabalho para o referido turno. (4.º)
Entre 06/07/2006 a 30/06/2007, o Autor compareceu com a antecedência de, pelo menos, 30 minutos relativamente ao início dos 301 dias/turnos de trabalho efectivo que prestou para a Ré, tendo aí permanecido às ordens e sob as instruções dos seus superiores hierárquicos. (5.º)
Entre 01/07/2007 a 31/05/2008, o Autor compareceu com a antecedência de, pelo menos, 30 minutos relativamente ao início dos 261 dias/turnos de trabalho efectivo que prestou para a Ré, tendo aí permanecido às ordens e sob as instruções dos seus superiores hierárquicos. (6.º)
A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia pelo período de 30 minutos que antecediam o início de cada turno. (7.º)
Entre 06/07/2006 e 30/06/2007, o Autor prestou para a Ré 10 dias de trabalho ao sétimo dia, após a prestação de seis dias de trabalho consecutivos. (9.º)
Entre 01/07/2007 e 31/05/2008, o Autor prestou para a Ré 9 dias de trabalho ao sétimo dia, após a prestação de seis dias de trabalho consecutivos. (10.º)
Entre 06/07/2006 a 31/05/2008, a Ré nunca pagou ao Autor um qualquer acréscimo salarial, nem fixou ao Autor um dia de descanso compensatório, pelo trabalho prestado ao sétimo dia, após a prestação pelo Autor de seis dias de trabalho consecutivo. (11.º e 12.º)
Durante o período da relação de trabalho, o Autor exerceu a sua actividade para a Ré num regime de 3 turnos rotativos por dia (N, E, D):
Turno Noite (Night): (das 00h às 08h)
Turno tarde (Evening): (das 16h às 00h)
Turno Dia: (Day): das 08h às 16h). (13.º e 14.º)
Os turnos respeitavam sempre uma mesma ordem sucessiva de rotatividade (N-E)-(D-N)-(E-D). (15.º)
Os turnos mudam na passagem de um dia para o outro, ou seja, às 00h. (16.º)
No dia 31/05/2008, o Autor assinou o documento a fls. 147 dos autos onde declarou: “I hereby declare that I have received all of the outstanding salary and final payment relating to my employment due to me and understand that with the separation of the Company, I am solely responsible for discharging any outstanding personal tax whatsoever due with respect to my employment with the Company whether imposed by Macau or other relevant jurisdiction.”. E a Ré já pagou ao Autor a quantia referida no mesmo documento. (23.º, 25.º a 27.º)
O Autor faltou ao trabalho por doença no dia 07/04/2007. (24.º)
O termo do contrato ocorreu por iniciativa e vontade da Ré. (28.º)
*
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Insurge-se o autor ora recorrente contra a decisão do tribunal a quo em que entendeu que a declaração por si prestada (e assinada) no último dia da relação laboral vale como quitação acompanhada de reconhecimento negativo de toda a dívida.
São duas as questões em causa: a primeira é saber se a tal declaração era válida e a segunda é saber se o conteúdo constante dessa declaração valia como reconhecimento negativo de toda a dívida.
Alega o recorrente que a declaração (de que tinha recebido o pagamento dos créditos laborais) por si prestada no último dia da relação laboral não podia ser considerada como válida, por que no momento em que foi assinada ainda não terminou a relação de trabalho, isso fazia com que o recorrente sentisse intimidação ou temor reverencial.
Salvo o devido respeito, somos a entender que o recorrente não tem razão quanto a esta parte.
Atenta a situação de subordinação económica em que o trabalhador se encontra face ao empregador durante a vigência da relação laboral, é entendido pacificamente na doutrina e na jurisprudência que não são livres e válidas as decisões tomadas pelo trabalhador a seu desfavor durante a vigência da relação de trabalho, em resultado do temor reverencial, do medo de represálias ou da possibilidade de ser prejudicado na sua situação profissional.
Entretanto, decidiu-se no Acórdão deste TSI, no âmbito do Processo n.º 154/2020, o seguinte:
“事實上,一如本上訴法院於本卷宗第1062頁至1076背頁的合議庭裁判中所裁斷,在沒有其他必要性事實顯示原告若不簽署文件則不能收到最後一期的工作報酬的情節,則在原告和被告訂立的勞動合同最後一天最後一刻由原告作出的互不拖欠的意思表示並不會因勞動關係仍未終結而被視為無效。
事實上,在勞動關係完結前的最後一刻,可能妨礙或影響原告意思表示自由的經濟依賴和法律上從屬的理由實質上已不存在,故原告在作出載於本卷宗第604頁的意思表示不應被視為無效。"
No caso concreto, a alegada declaração foi prestada pelo autor ora recorrente no último dia da relação laboral, inserida na própria nota de vencimentos. Apesar de não sabermos em que momento foi assinado o documento, ou seja, se foi no período de trabalho ou fora do período de trabalho, a verdade é que não resulta provado que o autor sentiu qualquer tipo de temor reverencial ou medo de represálias. Em boa verdade, como ambos sabiam que a relação laboral ia terminar, salvo circunstâncias que mereçam atenção especial, tal temor já deixou de existir e que o trabalhador ora recorrente estava livre de prestar qualquer declaração em seu desabono, pelo que esta era válida para todos os efeitos legais.
Resolvida a questão de validade da declaração prestada pelo recorrente, cabe-nos agora qualificá-la juridicamente.
De facto, o Venerando TUI, no âmbito do Processo n.º 21/2013, já teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão em apreço, nos seguintes termos que se transcreve:
“Vejamos. A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
…
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
E no caso dos autos, o recorrente prestou a seguinte declaração:
“I hereby declare that I have received all of the outstanding salary and final payment relating to my employment due to me and understand that with the separation of the Company, I am solely responsible for discharging any outstanding personal tax whatsoever due with respect to my employment with the Company whether imposed by Macau or other relevant jurisdiction.” – sublinhado nosso
Sendo a parte sublinhada traduzida em português nos seguintes termos:
“Declaro que recebi todo o salário pendente e pagamento final a mim devido referente ao meu emprego…”
Estipula o n.º 1 do artigo 228.º do Código Civil que “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
A lei manda que se atenda, quando se interpreta uma declaração, ao contexto concreto em que a mesma foi emitida. A posição do real declaratário não é aqui a de um desconhecido que nunca teve quaisquer outras relações mormente contratuais com o declarante, mas sim a do empregador deste que não desconhece, nem pode desconhecer, que o trabalhador prestou trabalho extraordinário, trabalhou em dias de descanso e em feriados obrigatórios.
Ora bem, face ao teor da declaração que antecede, não se vislumbra que o recorrente quis perdoar qualquer dívida, antes consiste numa declaração prestada pelo recorrente, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, isto é, trata-se de uma quitação ou recibo acompanhada de reconhecimento negativo de dívidas. Não obstante, atento o seu conteúdo, somos a entender que essa quitação, acompanhada de reconhecimento negativo de dívidas, diz respeito apenas aos créditos a que o trabalhador tinha direito numa situação em que não se verificaria violação dos direitos laborais.
A nosso ver, uma vez que não se tendo provado qualquer negociação prévia ou que o trabalhador fosse alertado para todas as compensações a que tinha direito, não podia o declaratário, agindo de boa fé, deduzir a existência de um reconhecimento negativo de todas as dívidas (em especial, todas as indemnizações) laborais.
Ademais, o n.º 1 do artigo 228.º do Código Civil determina que a declaração negocial não pode valer com um sentido com o qual o declarante não podia razoavelmente contar. E o declarante, ora recorrente, não podia razoavelmente contar que ao assinar uma declaração de quitação e pagamento de direitos, sem que se tenha provado que tenha sido informado de todas as compensações a ele devidas, estaria a reconhecer negativamente todas as dívidas da sua entidade empregadora.
Isto posto, é bom de ver que, ao dar quitação, o trabalhador ora recorrente reconheceu ter recebido o pagamento das quantias a ele devidas, exonerando a ré ora recorrida da respectiva obrigação, mas partindo do pressuposto de que os direitos laborais legalmente conferidos ao trabalhador foram assegurados e respeitados pela entidade empregadora. Pelo contrário, se existiria violação dos direitos laborais, não se podia dizer que foi dada quitação acompanhada do reconhecimento negativo de dívidas, uma vez que o pressuposto factual era diferente.
Aqui chegados, julgamos provido o recurso e, em consequência, devendo o tribunal apreciar os pedidos formulados pelo autor ora recorrente.
A fim de assegurar o direito de recurso das partes, baixem os autos à primeira instância que decidirá de acordo com a matéria dada como provada.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, o tribunal colectivo deste TSI acorda em conceder provimento ao recurso interposto pelo autor A contra a ré B, S.A., revogando a sentença recorrida e, em consequência, determina que se aprecie os pedidos formulados pelo autor.
Custas, nesta instância, pela ré.
Registe e notifique.
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RAEM, aos 20 de Outubro de 2022
Tong Hio Fong
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
Fong Man Chong
Recurso Laboral 375/2022 Página 13