Processo nº 321/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 20 de Outubro de 2022
ASSUNTO:
- Erro na apreciação da prova
SUMÁRIO:
- Demonstrando os elementos existentes nos autos que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto enferma de erro, nos termos do artº 629º do CPC impõe-se que aquela seja alterada pelo Tribunal de Segunda Instância.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 321/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 20 de Outubro de 2022
Recorrente: A
Recorrida: B
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
B, também, com os demais sinais dos autos,
Pedindo o Autor/Recorrente que seja declarada a nulidade ou, subsidiariamente, a anulabilidade de dois contratos de compra e venda que, como comprador, celebrou com a Ré/Recorrida, como vendedora, e, em qualquer caso, que a Ré/Recorrida seja condenada a restituir-lhe a quantia que dele recebeu a título de preço, acrescida de juros à taxa legal.
Proferida sentença, foi a acção julgada improcedente, absolve-se a Ré/Recorrida do pedido.
Não se conformando com a decisão proferida vem o Autor e agora Recorrente interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:
1. O recorrente entende que a decisão recorrida padece dos vícios do erro notório na apreciação da prova e do erro na interpretação e aplicação da lei.
2. O recorrente não concorda que não se verifica, como indicam os factos provados e), g) e i), o objecto de compra e venda entre a ré e o autor.
3. Primeiro, o recorrente entende que, dos anexos 2, 3, 8, 9, 11 da petição inicial e art.º 6.º a 10.º da contestação da recorrida, se pode ver que, o terreno adquirido pelo recorrente da recorrida é da propriedade plena.
4. Os art.º 6.º a 10.º da contestação mostram que, a recorrida confessou que ela exibiu e justificou ao recorrente a notificação da fixação do valor.
5. Na fls. 2 da notificação, indica-se que a recorrida adquiriu a propriedade plena do lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ..., o valor do terreno novamente fixado é de MOP$705.762.000,00, descreve-se concretamente que a recorrida adquiriu a propriedade plena do terreno.
6. A seguir, a recorrida confirmou o teor desta notificação da DSF, solicitou ao recorrente preparar dinheiro para pagar o respectivo imposto necessário.
7. A recorrida afirmou expressamente no art.º 9.º da contestação que, “…o autor pagou o referido imposto do selo no valor de MOP$22.034.833,00, a ré alienou-lhe o direito de 6% das duas casas de cobertura de ferro construídas no lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ....”
8. De facto, na negociação, o recorrente e a recorrida concentraram-se sempre no teor da notificação da fixação do valor, que induziu o recorrente em erro de que a recorrida possuía o terreno.
9. O recorrente e a recorrida confirmaram que, o preço da respectiva transacção foi integralmente usado para pagamento do imposto constante da notificação da fixação do valor, o que nos proporciona ver que a transacção entre o recorrente e a recorrida e o teor dessa notificação têm relação estreita.
10. Senão, seria desnecessário para a recorrida e o recorrente ir juntos à DSF verificar se a notificação foi emitida por esta e se o seu teor foi verdadeiro e correcto.
11. O recorrente já solicitou, quanto mais possível, à recorrida demonstrar no documento assinado por ela que, o recorrente comprou uma proporção da propriedade plena do terreno do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ..., a qual não foi especificada no documento de compra e venda (sic.).
12. Segundo os anexos 3, 8, 9 e 11 da petição inicial, assinala-se no recibo assinado pela recorrida que o terreno vendido é o lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ...:
- Anexo 3: “essa quantia destina-se à aquisição de 3% das acções do lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ...…”;
- Anexo 8: “eu, B, alieno voluntariamente a A 6% do terreno do lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ..., descrito em meu próprio nome no Conservatória do Registo Predial…”
- Anexo 9: “foi recebida de A a quantia em HKD$... sobre o lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ... (sic.)”;
- Anexo 11: “nesse recibo regista-se o pagamento da quantia sobre o lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ... (sic.) …”.
13. Segundo as regras de experiência comum, o objecto de transacção entre a recorrida e o recorrente foi com certeza a propriedade plena desse terreno, mas não as casas de cobertura de ferro no terreno ou terreno de escrita de papel de seda que não faz sentido de forma qualquer.
14. Senão, seria desnecessário para a recorrida e o recorrente focar-se na notificação da fixação do valor da DSF e essa notificação não desempenharia função relevante. Além disso, está absolutamente desconforme ao senso comum se o recorrente só comprou 6% de duas casas de cobertura de ferro pelo preço de mais de HKD$4.000.000,00.
15. Pelo que, o Tribunal a quo cometeu erro na apreciação da prova quando considerou não provado o objecto de compra e venda entre as partes simplesmente com fundamento em que o recorrente não apresentou testemunha, que é apenas um dos meios de prova previstos pela lei, mas não o único.
16. Portanto, mesmo não havendo testemunha, de acordo com os documentos apresentados pelo recorrente e a contestação da recorrida, já podemos confirmar que o objecto de compra e venda entre a recorrida e o recorrente foi o que consta da notificação da fixação do valor, ou seja, a propriedade plena do lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ....
17. É incorrecto o teor dos factos provados e), g) e i) da decisão recorrida, deve ser alterado em:
e) No início do ano 2015, a ré e o autor negociaram a transacção da propriedade plena do lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º .... (quesito 4.º)
g) O autor adquiriu à ré pelo preço não apurado 6% da propriedade plena do lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º .... (quesitos 9.º e 10.º)
i) Após celebrado o acordo supracitado na alínea g), o autor e a ré chegaram a acordo sobre a aquisição por pagamento duma quantia não apurada 4% da propriedade plena do lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º .... (quesitos 12.º e 13.º)
18. Em conjugação com os outros factos provados, deve-se julgar que, foi impossível que a recorrida vendesse 10% da propriedade plena do lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ..., o acto é nulo e é necessário restituir ao recorrente a quantia de MOP$4.687.877,12.
19. Se o fundamento acima exposto não for aceite pelo Tribunal, o recorrente entende que a decisão recorrida tem erro na aplicação da lei.
20. É óbvio que exista entre o recorrente e a recorrida um contrato de compra e venda, o recorrente (sic.) vendeu 6% do direito sobre o lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ..., não se verifica somente quais direitos o terreno estão em causa.
21. Segundo os factos provados, o terreno em apreço não é propriedade privada, até hoje, ainda não é concedido à recorrida nem registado. Ao abrigo do art.º 7.º da Lei Básica e o art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 10/2013 (Lei de terras), trata-se do terreno do Estado.
22. Por isso, não deixa de ser impossível para a recorrida dispor de qualquer direito sobre o lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º ..., tampouco alienar 6% do direito.
23. Pelo que, no momento de celebração do acordo de compra e venda, foi impossível para a ré alienar ao autor, meramente com o título da sua posse, 6% de qualquer direito sobre o terreno, o acto de compra e venda entre as partes é nulo.
Contra-alegando veio a Ré/Recorrida apresentar as seguintes conclusões:
a) A depoente não concorda com a motivação do recorrente.
b) A depoente entende que a decisão recorrida não padece dos vícios do erro notório na apreciação da prova e erro na interpretação e aplicação da lei.
c) O recorrente entende que há erro notório na apreciação da prova, não concorda, portanto, com a decisão da matéria de facto, nomeadamente o teor dos factos provados e), g) e i):
“e) No início do ano 2015, a ré e o autor negociaram o conteúdo não apurado sobre o lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º .... (quesito 4.º)
g) O autor adquiriu à ré pelo preço não apurado o direito não apurado de 6% sobre o lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º .... (quesitos 9.º e 10.º)
i) Após celebrado o acordo supracitado na alínea g), o autor e a ré chegaram a acordo sobre a aquisição por pagamento duma quantia não apurada do direito não apurado de 4% sobre o lote do Caminho da Povoação de Cheok Ka n.º .... (quesitos 12.º e 13.º)”
d) O recorrente entende que, dos anexos 2, 3, 8, 9, 11 da petição inicial e art.º 6.º a 10.º da contestação da depoente, se pode ver que, o terreno adquirido pelo recorrente da depoente é da propriedade plena.
e) Na investigação da matéria de facto, o Tribunal a quo proferiu a respectiva decisão através de analisar os depoimentos das testemunhas prestados na audiência e todos os documentos escritos nos autos e após apreciar livremente todas as provas segundo as regras de experiência e o senso comum.
f) Depois de ser realizada a audiência e analisadas todas as provas documentais, o Tribunal a quo não deu provado que foi a propriedade plena do terreno que o recorrente comprou da depoente.
g) Se o recorrente não concorda com o teor dos factos dados provados pelo Tribunal a quo, não se implica que há erro notório na apreciação da prova.
h) É insuficiente que o recorrente apenas questione a convicção prudente do Juiz, é violado o princípio da apreciação livre da prova, previsto pelo art.º 558.º do CPC.
i) Segundo, o recorrente entende que a decisão recorrida tem erro na aplicação da lei.
j) Sustenta que existe um contrato de compra e venda entre o recorrente e a depoente, o objecto é terreno do Estado, por isso, o contrato de compra e venda é nulo.
k) Entretanto, igualmente, está a questionar a decisão dos factos proferida pelo Tribunal a quo com a sua convicção prudente.
l) O Tribunal a quo conheceu todas as provas documentais nos autos e os depoimentos das testemunhas, decidiu sobre a questão dos factos após a ponderação devida, isto é, o Tribunal a quo não deu provado que existe um contrato de compra e venda entre o recorrente e a depoente, ou contrato de qualquer forma. Por isso, não se constitui erro na interpretação e aplicação da lei.
m) Pelo exposto, a depoente entende incorrectos os fundamentos jurídicos invocados pelo recorrente ao impugnar os factos provados da decisão recorrida, também falta fundamento jurídico (sic.).
n) O recurso deve ser rejeitado pela improcedência da motivação.
o) Com base nisso, a decisão do Tribunal a quo deve ser suficientemente confirmada pelo Tribunal superior porque não padece de qualquer vício, como erro na apreciação da prova e erro na interpretação e aplicação da lei, nem viola qualquer disposição legal. Ao contrário, a decisão é correcta, legal, justa e bastante verificada.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
a) Factos
Vem o Recorrente impugnar a decisão da matéria de facto no que concerne às respostas dadas aos quesitos 4º, 9º, 10º, 12º e 13º, porquanto entende que dos documentos 2, 3, 8, 9 e 11 da p.i., bem como a matéria constante dos artº 6º a 10º da contestação, resulta que o objecto do negócio celebrado entre Autor e Ré foi a compra e venda de parte do terreno a que se reportam os autos.
Vejamos então.
É o seguinte o teor dos quesitos 4º, 9º, 10º, 12º e 13º, aos quais foram dadas as respostas que também se indicam.
«4.º
Em inícios de 2015, a ré contactou o autor, voluntariamente, invocando que adquirira o terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka e o seu direito de propriedade?
Provado apenas que em inícios de 2015 a ré e o autor estabeleceram entre si negociações de conteúdo não apurado relativas ao terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka.
9.º e 10º
A ré invocou ao autor a vontade de vender 6% de quota do terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka, no valor de RMB1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil renminbis) e HKD1.171.000,00 (um milhão, cento e setenta e um mil dólares de Hong Kong)?
O autor concordou com as condições apresentadas pela ré, para a compra de 6% de quota do terreno em causa?
Provado apenas que autor e ré acordaram que aquele adquiriria desta, mediante o pagamento de contrapartida monetária não concretamente apurada, 6% de situação jurídica também não concretamente apurada relativa ao terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka.
12.º e 13º
Em inícios de 2016, a ré, ao aguardar a organização da celebração da escritura de compra e venda, apresentou a vontade de vender ao autor, por um preço mais privilegiado, 4% da quota do terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka, no valor de HKD2.300.000,00, assim como invocou que o autor ficaria com 10% da quota do referido terreno?
O autor concordou com as condições de compra e venda de 4% da quota do terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka?
Provado apenas que, em data posterior àquela em que foi celebrado o acordo referido nas respostas dadas aos quesitos 9º e 10º, autor e ré acordaram que aquele adquiriria desta, mediante o pagamento de contrapartida monetária não concretamente apurada, mais 4% da mesma situação jurídica também não concretamente apurada relativa ao terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka.».
A convicção do tribunal para as respostas dadas foi a seguinte:
«Análise crítica das provas e especificação dos fundamentos decisivos para a formação da convicção do tribunal.
Uma vez que não foram produzidos meios de prova com força probatória vinculada quanto aos factos da base instrutória, a convicção do tribunal resultou da análise conjunta e crítica da prova produzida, ponderada segundo a sua verosimilhança e em confronto com as regras da lógica e da experiência.
Quanto à prova testemunhal, ponderou-a o tribunal tendo em conta a razão de ciência demonstrada pelas testemunhas inquiridas e a forma mais ou menos espontânea, clara, coerente, serena ou exaltada, pormenorizada ou vaga e fundamentada ou conclusiva como foram prestados os respectivos depoimentos.
Apenas duas testemunhas foram inquiridas e ponderou o tribunal que a primeira demonstrou apenas indirecta razão de ciência dos factos sobre que depôs e a segunda revelou interesse em que o presente litígio seja decidido de forma favorável à ré. Não revelaram, pois, de forma consistente na formação da convicção do tribunal os depoimentos das referidas testemunhas. Com efeito, a primeira inquirida, C, não revelou conhecimento directo dos factos controvertidos por não conhecer as negociações havidas entre autor e ré relativamente ao “terreno nº ...”, tendo apenas conhecimento indirecto por ter tido ela própria relações negociais com a ré também relativas ao “terreno nº ...”, que adquiriram em conjunto. De forma convicta, serena e pormenorizada referiu designadamente que foi dono de 1/5 da “quota do terreno nº ...” e que em 2015 a “cedeu” vindo a saber posteriormente que foi adquirida pelo autor, pelo menos em parte. Referiu também que “investiu” no terreno juntamente com a autora sabendo, como era do conhecimento geral das pessoas do ramo imobiliário, que o terreno era de escritura de papel de seda e a propriedade privada não seria reconhecida, mas nunca pensou “que o Governo os tirasse do terreno”. Referiu ainda desconhecer se o autor sabia que o “terreno era de escritura de papel de seda”. A segunda testemunha inquirida produziu depoimento no sentido de o autor conhecer a situação jurídica do “terreno nº ...” quando celebrou acordos sobre ele com a ré. No entanto, a testemunha foi muito conclusiva e pouco pormenorizada, razão por que, sendo filha da ré e exercendo com esta actividade na área imobiliária e tendo, por isso, natural interesse em que a controvérsia seja decidida em sentido favorável à sua mãe, não relevou de forma substancial na formação da convicção do tribunal.
Quanto à prova documental, não tendo força probatória especial, não tendo sido impugnada pelas partes e não merecendo ao tribunal razões para dúvida ou suspeição, foi ponderada no âmbito da livre convicção, não tendo conteúdo capaz de demonstrar qual foi o teor dos acordos celebrados entre autor e ré, designadamente se tiveram vontade de compra e venda de um prédio ou se tiveram vontade de formar um investimento conjunto. Designadamente o documento de fls. 29 não esclarece a vontade das partes contratantes.
A questão fáctica principal é saber o que foi acordado entre autor e ré, se uma compra e venda, como defende o autor, se um acordo diferente, como defende a ré em impugnação motivada sem efeitos de excepção e sem fazer pedido reconvencional. A divergência das partes colocou o tribunal perante fortes dúvidas. Cabe ao autor o ónus da prova. Porém, o autor não indicou testemunhas nem as indicadas pela ré esclareceram qual o teor do acordo celebrado entre as partes. Também os documentos não permitem ao tribunal alcançar qualquer certeza ou probabilidade quanto a tal acordo. Nos termos do disposto no art. 437º do CPC e no art. 335º do CC, não tendo o tribunal como esclarecer a sua dúvida na prova produzida, não pode considerar provada a alegação do autor que não foi aceite pela ré na contestação. De facto a situação fáctica alegada pelo autor dos presentes autos é incomum e escapa às regras da experiência. Designadamente, não é do dia-a-dia que se compre 10% de um prédio com o valor fiscal de MOP705.762.000,00 pelo preço de cerca de MOP6.000.000,00. A convicção do tribunal quanto ao acordo que terá sido celebrado entre as partes e quanto às concretas negociações entre elas havidas (quesitos 4º a 10º, 12º, 13º, 16º, 18º a 22º e 24º a 24ºC), ancorou-se, pois, na falta de prova capaz de remover a dúvida colocada ao tribunal pela divergência das partes e na repartição do ónus da prova, dúvidas essas que as partes não colocaram em relação aos quesitos 1º, 2º, 11º, 14º, 15º e 17º e que, por isso, o tribunal considerou provados de forma quase integral na parte que não se referem ao teor concreto de qualquer acordo.».
Segundo se diz na convicção do tribunal “a quo” a primeira testemunha ouvida não tinha conhecimento directo das negociações entre o Autor e a Ré, no entanto disse que em 2015 havia adquirido em conjunto com a Ré o terreno a que se reportam os autos, na proporção para si de 1/5, a qual cedeu mais tarde vindo a saber que foi adquirida pelo Autor pelo menos em parte. Mais disse que sabia que o terreno era de escritura de papel de seda, mas não saber se o Autor tinha ou não conhecimento desta situação. Ou seja, esta testemunha ouviu falar do negócio que o Autor invoca.
Relativamente à segunda testemunha ouvida entendeu o tribunal que por ser filha da Ré tinha interesse em que a causa fosse decidida a favor desta, no entanto diz que o Autor tinha conhecimento da situação do terreno, o que significa que sabia tratar-se de um terreno de escritura de papel de seda e que sabia do negócio que o Autor invoca.
Com a petição inicial foi junto o documento de fls. 10 e 11 traduzido a fls. 132 e 134 de onde resulta que D adquiriu de E os direitos relativos ao terreno dos autos e às duas barracas de ferro ali construídas – o que aliás resulta do documento a fls. 11 traduzido a fls. 133/134 - e que D doou a B, aqui Ré, todos os direitos que tinha sobre o dito terreno e barracas ali edificadas os quais entregou a esta.
A folhas 16 a 20 dos autos consta uma notificação da Fazenda Pública de onde resulta terem avaliado o terreno a que se reporta os autos no montante de MOP705.762.000,00, considerando-o como sendo de propriedade plena e liquidado o imposto devido pela aqui Ré pela aquisição de 100% do direito de propriedade do mesmo no valor de MOP22.036.833,00.
No documento de fls. 29 a Ré declara que vende 6% do terreno a que se reportam os autos ao Autor, declaração que é repetida nos documentos de fls. 31, 33 e 35, sendo que neste último já se refere à aquisição de mais 4% passando o Autor a adquirir no total 10%.
Em declarações que a aqui Ré prestou na Polícia Judiciária e por si assinadas – cf. fls. 39/40 traduzidas a fls. 135/136 – em síntese disse que vendeu 10% do terreno em causa nos autos ao Autor pelo que recebeu em várias parcelas a quantia total de MOP2.671.000,00 e RMB1.500.000,00 mas que como não lhe pagou integralmente o preço não lhe alienou o terreno.
Em outras declarações prestadas na Polícia Judiciária e por si assinadas – cf. fls. 40/41 traduzidas a fls. 137/138 – a aqui Ré reitera que vendeu 10% do terreno ao Autor tendo recebido deste pagamentos por conta da venda mas como nunca pagou integralmente o preço nunca realizou a transmissão.
Em mais outras declarações prestadas na Polícia Judiciária e por si assinadas – cf. fls. 42/43 e 44/45 traduzidas a fls. 139/143 – a aqui Ré reitera o que já havia declarado antes.
No artigo 9º da contestação a Ré vem confessar que iria transmitir 6% das duas barracas implantadas no terreno a que se reportam os autos.
Sendo certo que não nos encontramos em jurisdição de direito penal e sujeitos a limitações processuais no que concerne a declarações prestadas pelo arguido, as declarações prestadas pela aqui Ré na Polícia Judiciária constam de documento por si assinado perante a autoridade competente para o efeito e não podem deixar de ser consideradas como confissão extrajudicial em documento autêntico – cf. artº 348º, 351º nº 1 e 2º e 363º e seguintes do C.Civ. -, ou ainda que não se entendesse que se trata de confissão extrajudicial em documento autêntico, sempre haveria que valorizar o conteúdo das declarações dentro do princípio da livre apreciação da prova.
Por fim, toda a construção da contestação da Ré nestes autos é no sentido de que o Autor não pagou totalmente o preço, que se tratava de um contrato de promessa de compra e venda, não tendo sido pago integralmente o preço a Ré tem o direito a fazer seu o sinal.
Ora perante tudo o que se disse, independentemente de saber se foi por iniciativa da Ré ou do Autor – o que é irrelevante nesta sede - não pode este tribunal deixar de se convencer que em início de 2015 Autor e Ré chegaram a acordo no sentido de que esta vendia àquele primeiro 6% e posteriormente mais 4%, no total de 10% do direito de propriedade que dizia ter sobre o terreno pois não se nega – menos ainda o faz a Ré – que tudo foi feito tendo em vista o pagamento do imposto devido pela Ré pela aquisição da propriedade plena sobre o terreno.
Quanto ao preço acordado concordamos que a prova produzida não esclarece qual o valor acordado aquando da compra dos 6% nem aquando da compra dos mais 4%, pelo que a resposta a dar aos quesitos nesta matéria não deixar de ser indeterminada sem prejuízo do que já se provou quanto aos valores pagos pelo Autor.
Destarte, deve proceder o recurso no que concerne à impugnação das respostas dadas pelo tribunal “a quo” à matéria dos quesitos 4º, 9º, 10º, 12º e 13º, aos quais pelos fundamentos já expostos se passa a responder do seguinte modo:
Quesitos 4º, 9º e 10º:
Provado apenas que em início de 2015 Autor e Ré chegaram a acordo entre si que aquele compraria a esta mediante o pagamento de uma contrapartida monetária de montante não apurado, 6% do terreno identificado na alínea a) dos factos apurados.
Quesitos 12º e 13º:
Provado apenas que em data posterior à do acordo referido na resposta aos quesitos 4º, 9º e 10º Autor e Ré chegaram a acordo entre si que aquele compraria a esta mediante o pagamento de uma contrapartida monetária de montante não apurado mais 4% do terreno identificado na alínea a) dos factos apurados.
Aqui chegados temos que a matéria de facto apurada nestes autos consiste em:
a) No dia 8 de Setembro de 2015, a Direcção dos Serviços de Finanças citou, na notificação da avaliação do preço sobre o terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka na Taipa, o seguinte: “… Conforme os artigos 60.º, 61.º, 62.º e 66.º do “Regulamento do Imposto do Selo”, no que diz respeito ao registo matricial … a Comissão de avaliação efectuou a avaliação do preço no valor de MOP$705.762.000,00 (equivalentes a 100.00% da transmissão de propriedade), para tal, notifica-se ao Exmo. Senhor deslocar-se, no prazo de 30 dias, à Direcção dos Serviços de Finanças, o imposto emergente por custos adicionais, no total de MOP22.034.833,00”. Se não pagar, dentro de prazo, o imposto em dívida será cobrados pela Repartição das Execuções Fiscais e, não impede a multa máxima, cobrando o triplo do montante do imposto em falta …”.
b) A ré nunca chegou a registar na Conservatória do Registo Predial a aquisição do terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka, na Taipa.
c) Além da área de 11 metros quadrados do terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka na Taipa que faz também parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º ..., a área remanescente daquele terreno não se encontra registada na Conservatória do Registo Predial. (quesito 1º)
d) O terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka na Taipa não foi reconhecido como propriedade privada, antes do estabelecimento da RAEM. (quesito 2º)
e) (eliminado)
f) A ré e o autor deslocaram-se, juntamente, à Direcção dos Serviços de Finanças. (quesito 6º)
g) Em início de 2015 Autor e Ré chegaram a acordo entre si que aquele compraria a esta mediante o pagamento de uma contrapartida monetária de montante não apurado, 6% do terreno identificado na alínea a) (quesitos 4º, 9º e 10º).
h) Posteriormente ao início das negociações referidas em e), o autor pagou à ré, através das seguintes formas, por conta da contrapartida monetária referida em g), os seguintes valores: (quesito 11º)
• No dia 22 de Setembro de 2015, transferiu para a conta n.º …, titulada em nome de B, a quantia de HKD100.000,00;
• No dia 23 de Setembro de 2015, transferiu para a conta n.º …, titulada em nome de F, a quantia de RMB500.000,00;
• No dia 9 de Outubro de 2015, transferiu para a conta n.º …, titulada em nome de B, a quantia de HKD521.000,00;
• No dia 16 de Outubro de 2015, transferiu para a conta n.º …, titulada em nome de B, a quantia de HKD300.000,00;
• No dia 16 de Outubro de 2015, transferiu para a conta n.º …, titulada em nome de F, a quantia de RMB1.000.000,00.
i) Em data posterior à do acordo referido na alínea g) (resposta aos quesitos 4º, 9º e 10º) Autor e Ré chegaram a acordo entre si que aquele compraria a esta mediante o pagamento de uma contrapartida monetária de montante não apurado mais 4% do terreno identificado na alínea a) (quesitos 12º e 13º).
j) O autor pagou à ré, no dia 15 de Março de 2016, HKD1.500.000,00, por conta da contrapartida monetária referida em i). (quesito 14º)
k) Quando a ré negociou com o autor e quando dele recebeu as referidas quantias monetárias sabia que não tinha o direito de propriedade do tereno e que não o poderia vender. (quesito 15º)
l) O autor e a ré não assinaram, até à data, qualquer contrato de promessa de compra e venda nem qualquer escritura de compra e venda relativa ao terreno n.º ... da Povoação de Cheok Ka na Taipa. (quesito 17º)
b) Do Direito
Como resulta da alínea d) da factualidade apurada o prédio a que se reportam os autos não foi reconhecido como sendo de propriedade privada antes do estabelecimento da RAEM, pelo que, nos termos do artº 7º da Lei Básica o terreno em causa é propriedade do Estado, não podendo sequer ser usucapível nos termos do artº 9º da Lei de Terras aprovada pela Lei nº 10/2013.
A Ré não alega nem demonstra ter direito algum sobre o terreno.
Da factualidade apurada resulta demonstrado que entre Autor e Ré em data não apurada após o início de 2015 foram feitos dois acordos verbais segundo os quais aquele viria a adquirir desta 10% do terreno a que se reportam os autos, o qual a Ré invocava ser seu.
Nada se alegando nem se demonstrado em contrário em face dos sinais dos autos o que resulta é que a Ré se propunha vender ao Réu o direito de propriedade sobre o terreno, pois nada se alega nem demonstra relativamente a um direito real menor e vendendo a Ré 10% do terreno isto não pode significar outra coisa que não seja uma situação de compropriedade.
Note-se que ao contrário do que acontece com os direitos reais de usufruto, uso e habitação – Título III do C.Civ. -, direito de superfície – Título IV do C.Civ. -, relativamente ao direito de propriedade não há definição legal.
O proprietário é aquele que tem o domínio da coisa como sendo sua podendo usar, fruir e dispor da coisa na sua totalidade – ius utendi, fruendi et abutendi -1.
Pelo que, não resultando dos autos que o direito que a Ré se arrogava era um direito menor aquilo que se vendia era o direito de propriedade.
Outra questão é a de saber que direito é que a Ré efectivamente tinha sobre o terreno, e em face da matéria de facto apurada o que acaba por se concluir é que a Ré não tem direito algum sobre o terreno, o qual pertence ao Estado.
Nos termos do artº 882º do C.Civ. é nula a venda de bens alheios.
Assim sendo, não tendo a Ré direito algum sobre o terreno nada poderia vender pelo que o contrato sempre seria nulo.
A esta conclusão não obstava a matéria de facto que já antes se havia dado como provada, pois fosse qual fosse a “situação jurídica”, entenda-se o direito sobre o imóvel que houvesse sido transacionado, não tendo a Ré direito algum sobre o imóvel nada poderia transacionar, e o contrato seria sempre nulo.
O tribunal não pode dar cobertura e admitir como hipotecticamente válidos contratos sobre situações que não tenham na lei fundamento.
Pelo que, salvo melhor opinião ainda que se tivesse entendido que não se tinha provado que o negócio consistia na venda de 10% da propriedade do imóvel, não tendo a Ré direito algum, direito algum poderia vender, pelo que daí haveria de se ter retirado as necessárias conclusões.
Mas ainda, de acordo com o nº 1 do artº 94º do Código do Notariado “ex vi” artº 866º do C.Civ. todos os contratos referentes à transmissão de direitos reais sobre imóveis têm de ser realizados por escritura pública, sob pena de não ser válidos, isto é, de serem nulos.
Ora, o acordo celebrado entre Autor e Ré foi verbal, pelo que, também aqui, independentemente do direito real que se estivesse a vender sempre o acordo seria nulo por falta de forma.
Nulo seria também o contrato-promessa se acaso vingasse a tese da Ré, pois nos termos do nº 2 do artº 404º do C.Civ. havendo o contrato definitivo de ser celebrado por escritura pública, sempre o contrato-promessa haveria de ser celebrado por escrito assinado por ambos sob pena de nulidade.
Concluindo, fosse porque a Ré não tem direito algum sobre o imóvel em causa nada podendo transmitir ao Autor, mais não sendo o acordo celebrado entre ambos do que uma transmissão de direitos alheios, fosse porque a transmissão de direitos reais sobre um imóvel tem de ser celebrada por escritura pública, fosse porque o contrato-promessa de direitos relativos a imóveis tem de ser celebrado por escrito assinado por ambos os outorgantes, outra sorte não teria o acordo subjacente a estes autos que não fosse ser nulo.
A nulidade pode ser invocada por qualquer interessado ou declarada pelo tribunal oficiosamente – artº 279º do C.Civ. -.
A declaração de nulidade do negócio tem efeito retroactivo devendo ser restituído tudo o que houver sido prestado – nº 1 do artº 282º do C.Civ. -.
Tendo-se apurado que o Autor pagou à Ré HKD2.421.000,00 (100.000,00+521.000,00+300.000,00+1.500.000,00 - cf. al. h) e j) dos factos apurados -) equivalentes a MOP2.493.630,00 e CNY1.500.000,00 (500.000,00+1.000.000,00 - cf. al. h dos factos apurados -), de acordo com as disposições legais citadas impõe-se declarar a nulidade do acordo celebrado entre o Autor e Ré por esta não ter direito algum sobre o imóvel e em consequência condenar a Ré a restituir ao Autor as quantias de MOP2.493.630,00 e CNY1.500.000,00, esta última no valor equivalente em Patacas de acordo com o câmbio num dos bancos emissores de moeda em Macau (BNU ou BOC) à escolha da devedora no dia do pagamento.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e em consequência:
1. Alteram-se as respostas dadas aos quesitos 4º, 9º, 10º, 12º e 13º da Base Instrutória nos seguintes termos:
Quesitos 4º, 9º e 10º:
Provado apenas que em início de 2015 Autor e Ré chegaram a acordo entre si que aquele compraria a esta mediante o pagamento de uma contrapartida monetária de montante não apurado, 6% do terreno identificado na alínea a) dos factos apurados.
Quesitos 12º e 13º:
Provado apenas que em data posterior à do acordo referido na resposta aos quesitos 4º, 9º e 10º Autor e Ré chegaram a acordo entre si que aquele compraria a esta mediante o pagamento de uma contrapartida monetária de montante não apurado mais 4% do terreno identificado na alínea a) dos factos apurados.
2. Declara-se a nulidade do acordo celebrado entre o Autor e Ré e em consequência condena-se a Ré a restituir ao Autor as quantias de MOP2.493.630,00 e CNY1.500.000,00, esta última no valor equivalente em Patacas de acordo com o câmbio num dos bancos emissores de moeda em Macau (BNU ou BOC) à escolha da devedora no dia do pagamento.
Custas a cargo da Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 20 de Outubro de 2022
Rui Pereira Ribeiro
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
1 Veja-se José de Oliveira Ascenção, Direito Civil Reais, 4ª Ed. pág. 185 e sgts.
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321/2022 CÍVEL 4