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Processo n.º 554/2022 Data do acórdão: 2022-11-3
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– envio de videograma por via electrónica
– Messenger de Facebook
– intercepção do videograma de pornografia de menor
– relatório de denúncia de pornografia de menor
– consentimento de utente de Facebook
– prova não proibida
– art.o 113.o, n.o 3, do Código de Processo Penal
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. É facto notório para a generalidade de utentes da plataforma de “Facebook” que no uso disto, nomeadamente para efeitos de comunicação com outrem, há que aceitar todas as regras de uso da plataforma, incluindo as atinentes à fiscalização de actos, considerados pela plataforma como ilícitos, de transmissão de materiais contentores de pornografia de menor, podendo a plataforma, segundo essas regras, interceptar o conteúdo desse tipo de materiais e denunciar isso para a entidade denominada “National Center for Missing and Exploited Children” dos Estados Unidos da América.
2. A aceitação, pela arguida, sem sinais de incapacidade de discernimento, das ditas regras de uso equivale à já prestação de concordância expressa e concreta (concordância essa que é legalmente admissível, por não estar em causa qualquer matéria indisponível para quem de direito – para constatar isto, veja-se a referência feita na parte final do n.o 3 do art.o 113.o do Código de Processo Penal ao consentimento do titular) a actos de intercepção e de denúncia a praticar por aquela plataforma (não se encontrando, aliás, tais regras de uso na parte ora em mira incompatíveis com o disposto nos art.os 11.o, 12.o e 13.o da Lei n.o 17/92/M, de 28 de Setembro, a respeito de “cláusulas contratuais gerais”).
3. Daí que são lícitos os actos de intercepção e subsequente denúncia, pela plataforma de “Facebook”, do videograma de pornografia de menor enviado pela arguida, através de “Messenger” dessa plataforma, para um outro indivíduo para este o visionar, o que faz garantir a licitude da apreciação, pelo tribunal recorrido, em sede de julgamento dos factos imputados à arguida, do teor do relatório de denúncia enviado (com aquele videograma anexado) pela referida entidade “National Center for Missing and Exploited Children” dos Estados Unidos de América para a Polícia Judiciária de Macau, com base na denúncia feita pela plataforma de “Facebook”.
4. Quanto ao teor do relatório de denúncia, este valeria propriamente como uma denúncia de ilícito sobre pornografia de menor, podendo o tribunal recorrido apreciar livremente o teor do relatório, à luz do art.o 114.o do Código de Processo Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 554/2022
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguida): A





ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA
REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 147 a 152v do Processo Comum Singular n.° CR5-22-0110-PCS do 5.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida A ficou condenada como autora material de um crime consumado p. e p. pelo art.o 170.o-A, n.o 2, do Código Penal (CP), na pena de seis meses de prisão, substituída por cento e oitenta dias de multa, à quantia diária de setenta patacas, no total, pois, de doze mil e seiscentas patacas de multa.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI) através da motivação apresentada a fls. 164 a 186 dos presentes autos correspondentes, para pedir que fosse anulado o julgamento, ou reenviado o processo para novo julgamento, com sempre almejada absolvição penal dela, mediante a invocação de seguintes questões: valoração de prova proibida, erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, com violação do disposto nos art.os 170.o-A, n.o 2, do CP e nos art.os 114.o, 172.o e 175.o do Código de Processo Penal (CPP) (vigentes à data dos factos).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 188 a 196 dos presentes autos, no sentido de não provimento do recurso.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fls. 207 a 209v, opinando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se o seguinte:
1. O inquérito subjacente ao presente processo penal foi instaurado na sequência do recebimento pela Polícia Judiciária de Macau, em 28 de Outubro de 2020, de um relatório enviado por uma entidade denominada “National Center for Missing and Exploited Children” dos Estados Unidos da América, com um anexado videograma sobre pornografia de menor (cfr. o teor de fls. 12 a 29), resultante e com base da denúncia feita pela plataforma de “Facebook”.
2. A sentença ora recorrida pela arguida, sem sinais de incapacidade de discernimento, ficou proferida a fls. 147 a 152v dos autos, cuja fundamentação fáctica e probatória se dá por aqui integralmente reproduzida.
3. Segundo a factualidade dada por provada nessa sentença, a arguida ora recorrente enviou, através de “Messenger” da plataforma de “Facebook”, aquele videograma para um terceiro, para este o visionar.
4. É facto notório para a generalidade de utentes da plataforma de “Facebook” que no uso disto, nomeadamente para efeitos de comunicação com outrem, há que aceitar todas as regras de uso da plataforma, incluindo as atinentes à fiscalização de actos, considerados pela plataforma como ilícitos, de transmissão de materiais contentores de pornografia de menor, podendo a plataforma, segundo essas regras, interceptar o conteúdo desse tipo de materiais, e denunciar isso para a referida entidade “National Center for Missing and Exploited Children”.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Desde já, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, decidindo.
Colocou a recorrente a questão de valoração de prova proibida, alegando para o efeito o seguinte: ela foi condenada com base num relatório estrangeiro que resultou de intercepção e gravação de comunicações transmitadas por “Facebook Messenger”; entretanto, nenhum tribunal do ordenamento da Região Administrativa Especial de Macau ordenou ou autorizou, nos termos dos art.os 172.o e 175.o do CPP, a interceptação e gravação de tais comunicações, nem a interceptação e gravação do vídeo de pornografia de menor em causa nos autos; o Tribunal sentenciador, ao ter valorado o teor de tal relatório e o conteúdo desse vídeo para efeitos da formação da convicção sobre os factos, esteve a apreciar uma prova proibida.
Da leitura da fundamentação probatória da sentença recorrida, resulta que o Tribunal recorrido valorou o teor do videograma então anexado ao relatório enviado à Polícia Judiciária pelo acima referido “National Center for Missing and Exploited Children”.
Trata-se, no caso dos autos, de acto de arguida de envio, por “Messenger” da plataforma de “Facebook”, de um videograma sobre pornografia de menor para um outro indivíduo, para este o visionar.
Pois bem, como é facto notório para a generalidade de utentes da plataforma de “Facebook” que no uso disto, nomeadamente para efeitos de comunicação com outrem, há que aceitar todas as regras de uso da plataforma, incluindo as atinentes à fiscalização de actos, considerados pela plataforma como ilícitos, de transmissão de materiais contentores de pornografia de menor, podendo a plataforma, segundo essas regras, interceptar o conteúdo desse tipo de materiais, e denunciar isso para a referida entidade “National Center for Missing and Exploited Children”, a aceitação, pela arguida dos presentes autos, das ditas regras de uso equivale à já prestação de concordância expressa e concreta (concordância essa que é legalmente admissível, por não estar em causa qualquer matéria indisponível para quem de direito – para constatar isto, veja-se a referência feita na parte final do n.o 3 do art.o 113.o do CPP ao consentimento do titular) a actos de intercepção e de denúncia a praticar pela plataforma (não se encontrando, aliás, tais regras de uso na parte ora em mira incompatíveis com o disposto nos art.os 11.o, 12.o e 13.o da Lei n.o 17/92/M, de 28 de Setembro, a respeito de “cláusulas contratuais gerais”).
Assim sendo, não pode a arguida vir, à moda de venire contra factum proprium, defender a ilegalidade da intercepção do videograma de pornografia de menor então enviado por ela para outrem através de “Messenger” da plataforma de “Facebook”.
Daí que são lícitos os actos de intercepção e subsequente denúncia, pela plataforma de “Facebook”, do videograma em causa, o que faz garantir a licitude da apreciação, pelo Tribunal ora recorrido, em sede de julgamento dos factos imputados à arguida no presente processo penal, do teor do relatório de denúncia enviado (com aquele videograma anexado) pelo acima referido “National Center for Missing and Exploited Children” para a Polícia Judiciária, com base na denúncia feita pela plataforma de “Facebook”.
Não houve, pois, qualquer violação, pelo Tribunal recorrido, do disposto no art.o 113.o, n.o 3, do CPP.
E quanto ao teor daquele relatório de denúncia, este valeria propriamente como uma denúncia de ilícito sobre pornografia de menor, podendo o tribunal recorrido apreciar livremente o teor do relatório, à luz do art.o 114.o do CPP.
Por outro lado, preconizou essa recorrente que a decisão condenatória penal recorrida enferma do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Entretanto, tendo o Tribunal recorrido indicado na fundamentação fáctica do seu aresto quais os factos provados e quais os não provados, não pode o mesmo acórdão recorrido ter padecido desse vício aludido na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP (e sobre o sentido e alcance desse vício, cfr., de entre muitos outros, o acórdão do TSI, de 13 de Dezembro de 2007 do Processo n.o 721/2007).
E não deixou a arguida de imputar à decisão condenatória penal recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, mas também em vão, porquanto após apreciados em global e de modo crítico todos os elementos probatórios referidos na fundamentação probatória do aresto recorrido, não se vislumbra ao presente Tribunal de recurso que o julgamento dos factos feito pelo Tribunal sentenciador tenha violado qualquer norma jurídica sobre o valor legal da prova, nem qualquer regra da expriência da vida humana, nem tão-pouco quaisquer leges artis a observar na tarefa de julgamento dos factos.
Naufraga, assim, in totum, o recurso, sem necessidade de indagação sobre o demais alegado pela arguida na motivação, sendo certo que em face da factualidade dada por provada na sentença recorrida, a arguida não pode ser absolvida do crime por que aí vinha condenada.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento ao recurso da arguida, com custas do recurso a seu cargo, com quatro UC de taxa de justiça.
Comunique o presente acórdão, com cópia da sentença recorrida, ao Corpo de Polícia de Segurança Pública, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 3 de Novembro de 2022.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Chao Im Peng
(Segunda Juíza-Adjunta)



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