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Processo nº 495/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 17 de Novembro de 2022

ASSUNTO:
- Causa de Pedir
- Caso julgado
- Prova

SUMÁRIO:
- A causa de pedir haverá de ser construída com os “factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil”;
- Não ocorre a excepção do caso julgado se não houver identidade de causas de pedir entre as várias acções propostas ainda que o objectivo seja o reembolso da mesma quantia de dinheiro;
- Sendo manifesta a contradição entre as respostas aos quesitos da Base Instrutória sem que o processo forneça os elementos de prova que imponham uma decisão diversa insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova, deve ser anulada a resposta dada e ordenada a repetição do julgamento quanto a essa matéria.



_______________
Rui Pereira Ribeiro












Processo nº 495/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 17 de Novembro de 2022
Recorrentes: A (Recurso Final)
B, S.A. (Recurso Interlocutório)
Recorridos: Os mesmos
C
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

A, com os demais sinais dos autos,
vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
C e
B S.A.
também com os demais sinais dos autos,
Pedindo a condenação destes a restituírem-lhe solidariamente HKD10.000.000,00 em fichas de jogo ou numerário acrescido dos juros de mora à taxa legal das obrigações de natureza comercial, contados desde 06.01.2016 até integral pagamento.
Citados os Réus, apenas a 2ª Ré o fez invocando a excepção do caso julgado e a sua ilegitimidade, defendendo-se no mais por impugnação.
O Autor respondeu pugnando pela improcedência das excepções invocadas.
Proferido despacho saneador foram as referidas excepções julgadas improcedentes.
Não se conformando com a decisão proferida quanto à excepção do caso julgado vem a Ré B S.A interpor recurso do mesmo, apresentando as seguintes conclusões:
I. Nos presentes autos, veio o A. formular o seguinte pedido:
“1. Condenar o 1º Réu e a 2º Ré a devolver de forma solidária ao ora Autor as fichas vivas de HK$10,000,000.00 ou o valor numerário equivalente, correspondente a MOP$10,300,000.00;
2. Condenar o 1.º Réu e a 2.º Ré a pagar de forma solidária ao ora Autor os juros de mora a contar de 6 de Janeiro de 2016 à taxa legal acrescida da taxa comercial no total de 11.75% até integral pagamento da dívida; e
3. Condenar os Réus a pagar todas as custas judiciais e as procuradorias decorrentes do presente processo.”
II. Sucede que, já numa outra acção que correu os seus termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base de Macau, RAEM, sob o número de processo CV2-16-0044-CAO, onde os sujeitos processuais eram os mesmos, o Recorrido tinha formulado um pedido igual:
“1. Julgar procedentes os pedidos deduzidos pelo ora Autor, condenando o 1º Réu e a 2º Ré a pagar a este de forma solidária a quantia de HK$10,000,000.00, equivalente a MOP$10,300,000.00, acrescida dos juros de mora à taxa legal a contar de 1 de Janeiro de 2016 até ao pagamento deste valor ao ora Autor pelo 1º Réu e pela 2ª Ré.
2. No final, condenar os dois Réus a pagar as custas judiciais do presente caso.”
III. Face à coincidência de pedido, de sujeitos e também de causa de pedir, nesta e naquela outra acção, a ora Recorrente invocou, em 1.ª instância, a excepção dilatória do caso julgado, prevista nos artigos 413.º, al. f), 416.º e 417.º do CPC, requerendo a absolvição da instância, a qual veio a ser indeferida em sede de despacho-saneador, por o Tribunal a quo ter entendido que, entre as duas acções, não havia identidade do pedido e da causa de pedir, decisão com a qual a ora Recorrente não pode conformar-se.
IV. A única diferença entre a presente acção e aquela que correu termos no CV2 é a qualificação jurídica que o Recorrido fez dos factos e é dela que nasce a alegada “diferença” nos pedidos.
V. Essa “diferença”, porém, é meramente aparentes, pois que, apesar de o Recorrido configurar, na acção que correu termos sob o número CV2-16-0044-CAO, a alegada entrega de HKD$10,000,000.00 como uma entrega de dinheiro feita no âmbito de um contrato de mútuo, e na presente acção como “entrega de dinheiro para aquisição de fichas de jogo”, a verdade é que está em causa exactamente o mesmo: entrega do (mesmo) dinheiro, pelo mesmo sujeito, ao mesmo sujeito.
VI. O efeito prático que o ora Recorrido pretendeu nos dois processos é o mesmo, i.e., a condenação dos dois Réus na devolução do valor de HKD$10,000,000.00 e dos respectivos juros de mora.
VII. E em bom rigor sempre se diga que o pedido alternativo realizado na presente acção de o valor de HK$10,000,000.00 lhe ser devolvido em fichas vivas ou em dinheiro é só mais um subterfúgio utilizado pelo Recorrido para “tentar fazer entrar pela janela aquilo que a lei não deixa entrar pela porta”, pois tanto faz que os HK$10,000,000.00 alegadamente depositados/mutuados/doados/entregues pelo Recorrido ao 1.º Réu sejam restiuidos em numerário ou em fichas vivas, pois que estas são automaticamente convertíveis em dinheiro ...
VIII. Caso o ora Recorrido viesse a discordar da decisão proferida pelo tribunal, naquela outra acção que correu termos no CV2 (nomeadamente quanto à não requalificação jurídica, nos termos do artigo 567.º do CPC), teria sempre à mão a possibilidade de recorrer da decisão ali proferida (o que entendeu não fazer), o que não pode é conformar-se com a decisão ali proferida para depois vir propor uma nova acção, com base nos mesmos factos, a pedir o mesmo dinheiro, apenas com uma qualificação jurídica diferente.
IX. Aquilo que o ora Recorrido está a fazer, é precisamente aquilo que o legislador quis evitar, ao desenhar as regras relativas ao caso julgado (arts. 416.º e 417.º do CPC).
X. Assim, parece-nos que, entre a acção em discussão nos presentes autos e aquela que esteve em análise nos autos do CV2-16-0044-CAO, existe uma identidade de pedidos.
XI. Quanto à identidade de causa de pedir, sempre se diga que aquilo em que o Recorrido baseia o seu pedido nas duas acções é na alegada mesma entrega pelo Recorrido ao 1.º Réu do montante de HK$10,000,000.00 dividido nos tais dois depósitos de HKD$7,000.000.00, em 7 de Maio de 2012 e de HKD$3,000,000.00, em 12 de Dezembro de 2012).
XII. Da comparação das duas acções não resulta que tenham-estado em causa entregas de dinheiro distintas.
XIII. O que sucedeu é que, numa primeira acção, o ora Recorrido configurou os factos como um mútuo e na segunda configurou-os como um depósito, sendo que o dinheiro em causa é o mesmo, mas o Recorrente deu aos factos nomes diferentes.
XIV. O critério para percebermos se existe identidade das causas de pedir reside, parece-nos, nos factos alegados, e não na qualificação jurídica dos mesmos que é feita pelas partes.
XV. In casu, a causa de pedir é a mesma, porque a descrição factual é a igual, e a qualificação jurídica feita do facto, pelo ora Recorrido, não releva para que se possa falar na existência de diferenças entre os pedidos nas duas acções.
XVI. Ora, “chamar nomes” diferentes a esta alegada entrega de dinheiro é uma qualificação jurídica a que o juiz não está vinculado, nos termos do disposto no artigo 567.º do CPC. Mas isso não altera em nada a conclusão de que os factos que estiveram em causa numa e noutra acções são os mesmos, e forçoso se torna concluir que existe também identidade nas causas de pedir.
XVII. E sempre se diga que, no âmbito daqueloutra acção, o Recorrido nem sequer aventou ou alegou factos que se prendessem com a entrega do dinheiro a título de depósito para a aquisição de fichas, e, ademais conformou-se com a decisão final proferida, a qual, transitou em julgado sem ter sido objecto de recurso.
XVIII. O que aqui se discute resume-se pura e simplesmente a segurança jurídica, ao cumprimento e uso diligente e não temerário da lei processual e do direito material, e, salvo devido respeito, se V. Exas. confirmarem a decisão recorrida estar-se-á a abrir a porta ao Recorrido, caso também improceda a presente acção, a intentar uma outra invocando quiçá que a entrega dos HK$10,000.000.00 ao l.º Réu se destinavam ao pagamento do preço de uma jóia que o 1.º Réu, a final, não lhe entregou ...
XIX. Ao decidir como decidiu o douto Tribunal a quo incorreu em violação do disposto nos artigos 413.º, al. j), 416.º e 417.º e 567.º, todos do CPC.
Contra-alegando quanto à decisão sobre a excepção do caso julgado, veio o Recorrido (Autor) pugnar para que fosse negado provimento ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. Não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal a quo no despacho saneador, nomeadamente foi julgada improcedente a excepção de caso julgado invocada na contestação, veio a Recorrente interpor recurso para o Tribunal de Segunda Instância.
2. Salvo o devido respeito, o Recorrido não pode dar a sua concordância, entendendo que o recurso interposto pela Recorrente deve ser rejeitado por improcedência.
3. Quanto ao conceito do caso julgado, tal como a Recorrente referiu na contestação e na petição de recurso, A excepção do caso julgado material exige a satisfação cumulativa dos seguintes requisitos:
1) A repetição da causa quanto às partes, ao pedido e à causa de pedir;
2) A causa anterior tem sido decidida por sentença já transitada em julga:
3) A decisão recai sobre o mérito da causa.
4. Neste sentido, o MM.º Juiz do Tribunal de Última Instância, Dr. Viriato Lima, também refere na sua obra “Manuel de Direito Processual Civil”: “O caso julgado material refere-se ao trânsito em julgado da decisão relativa à relação material em litígio.”
5. Por outras palavras, caso se pretenda, em qualquer processo civil, invocar caso julgado para servir de fundamento da excepção, é necessário satisfazer cumulativamente os aludidos três requisitos.
6. Porém, tal como referiu o Tribunal a quo, embora os sujeitos sejam idênticos, o pedido e a causa de pedir do processo CV2 são diferentes do presente processo, não constituindo a excepção de caso julgado entre os dois processos.
7. Para pesar se há identidade do pedido, a doutrina dominante portuguesa é mais ou menos idêntica. Tal como Castro Mendes refere na sua obra que pedido é a solicitação do autor de uma actuação judicial determinada e que está na base do processo; enquanto Antunes Varela também aponta que O pedido traduz-se na pretensão de tutela jurisdicional visada pelo Autor.
8. Comparando os pedidos em litígio no presente processo e em conjugação com as aludidas doutrinas, os pedidos formulados pelo Recorrido nos dois processos são manifestamente diferentes, quer o conteúdo substancial quer os fundamentos.
9. De facto, o que o Recorrido pede no processo CV2 é o pagamento do capital do empréstimo e os respectivos juros de mora enquanto no presente processo, o Recorrido pede a restituição a seu favor das fichas de jogo convertíveis em dinheiro por si depositadas ou o valor equivalente em dinheiro; por outro lado, no processo CV2, o Recorrido pede os juros de mora à taxa legal contados a partir do dia 1 de Janeiro de 2016 enquanto no presente processo pede os juros de mora à taxa legal e à taxa comercial, no total de 11,75%, contados a partir do dia 6 de Janeiro de 2016. É evidente que os pedidos formulados nos dois processos não são idênticos.
10. Aliás, é de referir que, no presente processo, o Recorrido pede que o Réu e a Ré lhe restituam as fichas de jogo convertíveis em dinheiro depositadas, o que é distinto do capital do empréstimo mencionado no processo CV2. Embora possivelmente idênticos os valores, as fichas de jogo convertíveis em dinheiro e o capital do empréstimo, independentemente da sua natureza ou do uso, são manifestamente duas coisas completamente diferentes, as primeiras podem ser juridicamente consideradas como título de crédito ao portador comum ou coisa objectiva que só podem ser usadas nos jogos enquanto o último é dinheiro real.
11. Já que os pedidos do Recorrido não são idênticos, quer da natureza, quer do uso ou do nível jurídico da coisa, não se trata apenas de uma divergência da qualificação jurídica entre os pedidos do processo CV2 e do presente processo como alegada pela Recorrente.
12. De facto, é verdade que o Recorrido mencionou no seu pedido “ou o valor equivalente em dinheiro”, porém, isto tem apenas por finalidade facilitar o Réu e a Ré, dando-lhes oportunidade de escolha. É de saber que a referida expressão não equivale a que o Recorrido pede directamente o pagamento da referida quantia, sendo, obviamente, duas coisas diferentes!
13. Assim sendo, o efeito jurídico pretendido pelo Recorrido no presente processo é diferente do pretendido no processo CV2, e o fundamento invocado pela Recorrente no recurso – trata-se apenas de uma mera divergência aparente ou divergência da qualificação jurídica - não é procedente.
14. Por outro lado, a Recorrente invocou, subsidariamente, no recurso que a causa de pedir do presente processo e a do processo CV2 são idênticas, entendendo que o Recorrido alterou apenas o facto de mútuo no processo CV2 para o depósito, mesmo apontando que as verbas dos dois processos são a mesma verba, pelo que, trata-se apenas de uma alteração da qualificação jurídica pelo Recorrido, havendo assim identidade da causa de pedir.
15. Quanto à causa de pedir, tal como Teixeira de Sousa refere na sua obra, a causa de pedir é integrada pelos factos necessários para fundamentar o direito ou interesse invocado pela parte e o pedido por ela formulado; é integrada pelos factos essenciais para individualizar a situação subjectiva alegada. E são essenciais aqueles factos sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente.
16. Sintetizando os artigos 20.º a 30.º dos factos constantes da petição inicial do Processo CV2 e os artigos 19.º a 46.º dos factos do presente processo, pode-se ver que os factos jurídicos objectivos que fundamentam o processo CV2 e o presente processo são manifestamente diferentes.
17. Em primeiro lugar, a causa de pedir invocada pelo Recorrido no processo CV2 consiste no facto de o Autor ter concedido ao 1.º Réu um empréstimo no valor total de dez milhões dólares de Hong Kong (HKD$10.000.000,00), a fim de obter mensalmente o juro à taxa de 1,5%, isto é, tem como fundamento o facto de concessão de empréstimo.
18. Pelo contrário, a causa de pedir invocada pelo Recorrido no presente processo consiste no facto de que o 1.º Réu prestava aos seus membros o serviço de depósito de fichas convertíveis em dinheiro na sua tesouraria e, por causa disso, o Recorrido depositou, em 7 de Maio e em 7 de Dezembro de 2012, as fichas convertíveis em dinheiro no valor de sete milhões dólares de Hong Kong e no valor de três milhões dólares de Hong Kong, respectivamente, na sua conta de troca de fichas, de forma a jogar na “Sala VIP XXX” explorada pelo 1.º Réu localizada no Casino XXX quando vinha a Macau, isto é, tem como fundamento o facto de depósito de fichas.
19. Secundariamente, no processo CV2, o Recorrido invocou ter feito interpelação ao 1.º Réu, pedindo a restituição da quantia do empréstimo, isto é, dez milhões dólares de Hong Kong.
20. Porém, no presente processo, o Recorrido invocou ter feito interpelação ao 1.º Réu, pedindo a restituição das fichas convertíveis em dinheiro depositadas na conta de troca de fichas da “Sala VIP XXX”, no valor de dez milhões dólares de Hong Kong.
21. Daí resulta que as causas de pedir e os factos concretos invocados nos dois processos não são idênticos e os dois processos apresentam duas vontades subjectivas e dois factos objectivos completamente diferentes, pelo que, absolutamente não se trata de uma alteração da qualificação jurídica como alegada pela Recorrente.
22. É de referir que a qualificação jurídica implica que a parte qualifica um facto objectivo do ponto de vista jurídico que entende ser aplicável, porém, a Recorrente parece confundir o facto objectivo com a qualificação jurídica pois o que o Recorrido invocou no presente processo é um novo facto objectivo – depósito de fichas de jogo, isto, manifestamente, não se refere à questão da qualificação jurídica.
23. Aqui, vejamos um exemplo semelhante: X comprou uma garrafa de água num supermercado e pagou $10,00, X emprestou $10,00 a um amigo e X depositou $10,00 num banco. Nas aludidas três situações, os referidos três actos são obviamente diferentes, será que envolvem a questão da qualificação jurídica? A resposta é manifestamente negativa pois se trata apenas de uma alegação dos três factos objectivos diferentes.
24. Porém, nas alegações de recurso, a Recorrente utilizou a expressão “entrega de dinheiro” para substituir o facto objectivo diferente e considerou o novo facto objectivo invocado no presente processo como alteração da qualificação jurídica.
25. Por outras palavras, o facto jurídico invocado pelo Recorrido no presente processo é diferente do invocado no processo CV2, nomeadamente o facto necessário/essencial que constitui a causa de pedir do presente processo.
26. Além disso, a Recorrente mais alegou que nos dois processos não existe a entrega de duas quantias diferentes, e caso não haja identidade da causa de pedir, deve existir a entrega de quantias no valor total de vinte milhões dólares de Hong Kong.
27. É de notar que, quanto à identidade da causa de pedir como requisito do caso julgado, a limitação reside apenas em que a pretensão não pode proceder do mesmo facto jurídico, causando a repetição da causa.
28. Quer isto dizer que as livranças e as provas apresentadas pelo Recorrido no processo CV2 e no presente processo não só podem comprovar que o Recorrido concedeu empréstimo ao 1.º Réu, como também podem comprovar que o Recorrido depositou as fichas de jogo na sua conta de troca de fichas da “Sala VIP XXX” explorada pelo 1.º Réu.
29. Assim, pode-se ver que não existem situações jurídicas contraditórias entre os dois, mesmo que não se consiga provar que o Recorrido concedeu empréstimo ao 1.º Réu, isto não significa que o Recorrido não depositou as fichas de jogo no 1.º Réu.
30. Considerando que os factos jurídicos invocados pelo Recorrido que servem de fundamento à pretensão do presente processo e à do processo CV2 são diferentes, não há identidade da causa de pedir.
31. Nestes termos, embora sejam idênticos os sujeitos do presente processo e do processo CV2, dado que os efeitos jurídicos pretendidos pelo Recorrido nos dois processos são diferentes e as causas de pedir do presente processo e do processo CV2 são manifestamente diversas, é evidente que não constitui a repetição da causa nem satisfaz o requisito do caso julgado.
32. Pelos acima expostos, o Recorrido entende que os fundamentos invocados pela Recorrente no recurso devem ser julgados totalmente improcedentes e deve ser absolvido o Recorrido de todos os pedidos formulados no recurso.

Vindo a final a ser a acção julgada improcedente, veio o Autor interpor recurso da mesma apresentando as seguintes conclusões:
1. Salvo o devido respeito, o recorrente está inconformado com a aludida sentença. A seu ver, a mesma padece de erro na apreciação da prova, viola as regras da experiência comum, do ónus da prova e da eficácia probatória, bem como incorre em vícios de insuficiência da fundamentação e de contradição entre a fundamentação e a decisão.
2. No entender do recorrente, das provas documentais constantes dos autos e dos depoimentos testemunhais resulta prova suficiente da existência da relação contratual de depósito de fichas entre o recorrente e o 1º réu, razão pela qual deve julgar-se procedente a acção em causa condenando-se os dois réus a solidariamente restituir-lhe as fichas de numerário no valor acima mencionado ou pagar-lhe o equivalente valor em dinheiro.
3. Para efeitos previstos no artigo 599.º, n.º 1 do CPC, vem agora o recorrente especificar que vai impugnar os factos n.º 5 a 7, 9 a 11, 13 a 15 e 18 da decisão da matéria de facto.
4. Ressalvado o devido respeito, o recorrente é da opinião de que o Tribunal recorrido incorreu em erro, contradição e omissão na apreciação da prova, bem como violou as regras da experiência comum e as regras do ónus da prova e da eficácia probatória, o que conduziu a erro de julgamento em matéria de facto.
5. Em primeiro lugar, do anexo 6 à petição inicial se constata claramente um recibo de custódia (custody receipt) emitido ao recorrente pelo “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu. Isso também foi corroborado pelo facto provado w).
6. Compulsado o teor do recibo de custódia em causa, constata-se que o “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu declarou ao recorrente, em 7 de Dezembro de 2012, ter (até à falada data) recebido dele dez milhões de dólares de Hong Kong (HKD$10.000.000,00), e notou que o número da sua conta de membro era de “#959”. Além disso, no espaço destinado ao “depositante” encontra-se a assinatura do recorrente, e no espaço destinado ao “receptor” a assinatura do funcionário do “Clube VIP XXX”.
7. Acresce que, no verso do recibo em questão constam as seguintes “regras de custódia”:
1) Este serviço só está disponível para os clientes deste casino.
2) Devem ser apresentados documentos de identificação no momento do depósito/levantamento, sendo necessárias as assinaturas do responsável do casino e do portador.
3) Este recibo é válido por 6 meses.
4) A perda deste recibo deve ser comunicada imediatamente, este casino não será responsável por qualquer levantamento fraudulento.
5) Em caso de força maior, este casino não é responsável pela custódia das fichas/dinheiro.
6) Este recibo só permite ao depositante efectuar o levantamento.
8. Embora o sistema jurídico de Macau não tenha contratos típicos denominados de “custódia” nem regimes jurídicos ou disposições legais que ostentem o termo, tendo em consideração o entendimento do homem comum, a linguagem coloquial da sociedade e a definição do dicionário da língua chinesa, podemos definir a “custódia” como “guarda temporária em lugar do proprietário”, e o objecto da custódia pode ser qualquer bem ou coisa.
9. De acordo com o artigo 8.º do Código Civil(CC), embora o intérprete não possa considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
10. Ao abrigo do disposto no artigo 1111.º do CC, Depósito é o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida.
11. Tal como ensina VAZ SERRA, O contrato de depósito tem por objecto a guarda(custódia) de uma coisa. É esta a obrigação dominante no negócio: o depositário recebe a coisa para a guardar. (negrito e sublinhado nossos)
12. A “custódia” acima referida significa precisamente o mesmo que a palavra inglesa “custody” encontrada no recibo em causa, isto é, tem o significado de “guarda” a que se refere o contrato de depósito.
13. Daí que a correspondência dessa “custódia” no sistema jurídico de Macau é exactamente o “depósito” e a “guarda” a que aludem os artigos 1111.º e 1131.º do CC.
14. Importa ainda mencionar que as “regras de custódia” no verso do recibo também estabelecem as regras do levantamento. Na verdade, de acordo quer com a experiência comum, quer com as regras gerais do funcionamento dos casinos e das salas VIP, quer com a disposição do artigo 1113.º(sic) do CC sobre o depósito irregular, o recorrente, enquanto depositante, tem direito a exigir ao 1º réu (depositário), a todo o tempo, a restituição das fichas depositadas.
15. Por outras palavras, no recibo de custódia constante do anexo 6 à petição inicial, o funcionário do “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu declarou (confessou), em nome desta sala VIP, ter recebido as fichas de numerário entregues pelo recorrente para depósito/guarda temporária, e que as mesmas deviam ser restituídas, a todo o tempo, a pedido do recorrente.
16. De acordo com, entre outros, os artigos 345.º a 347.º e 340.º do CC, a respectiva declaração tem força probatória plena.
17. Em segundo lugar, de acordo com o requerimento de compra de livrança de fls. 12 a 13 da certidão de tribunal em anexo (anexo 4) à petição inicial, o recorrente usou a sua conta do Banco da China para comparar, em diferentes vezes, duas livranças, encarregando o respectivo banco de pagar à 2ª ré HKD$7.000.000,00 e HKD$3.000.000,00.
18. Além disso, o conteúdo de fls. 33 a 36 da mesma certidão de tribunal demonstra claramente que os funcionários D e E do “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu ao receberem as duas livranças emitiram logo à 2 ré as correspondentes declarações de responsabilidade, onde referiram claramente que as livranças destinavam-se exclusivamente à compra, pelo 1º réu, das fichas do “Clube VIP XXX” junto da 2ª ré (registos de compra de fichas n.ºs XXXXX479 e XXXXX477). De acordo com a Tabela de registos de compra de fichas (fls. 33 a 35 da referida certidão de tribunal junta aos autos da petição inicial como anexo 4), no espaço destinado ao valor de fichas compradas se encontra preenchido “fichas de numerário”.
19. Das respectivas provas documentais e factualidade provada j), k), p), q), r), s), t), u), v) e w) resulta provado que o “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu usou as livranças do recorrente para adquirir à 2ª ré “fichas de numerário” no valor de HKD$7.000.000,00 e HKD$3.000.000,00, respectivamente. No entanto, conforme demonstrado pelo facto provado z), os 1º e 2ª réus nunca restituíram ao recorrente quaisquer fichas ou dinheiro de valor equivalente.
20. Terceiro, para além das provas documentais acima mencionadas, as declarações da testemunha F também corroboram (directa e indirectamente) os pertinentes factos necessários e instrumentais, de que o recorrente frequentou diversas vezes o “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu para jogar, abrir conta de membro e depositar fichas, as quais até agora ainda não recuperou (vide depoimentos supra transcritos nos pontos 28 a 30, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido)
21. Face ao exposto, das respectivas provas documentais (recibo de custódia e registos de compra de fichas) e declarações testemunhais resulta suficientemente provado que o “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu recebeu as fichas de numerário entregues/depositadas pelo recorrente para as guardar temporariamente, mas até agora ainda não lhas restituiu.
22. No entanto, o Tribunal recorrido ao apreciar a respectiva factualidade referiu que (fls. 9 a 11 da decisão da matéria de facto):
Quanto à abertura de conta de troca de fichas com o n.º 959 por parte do autor e quanto ao objectivo da conta (facilitar o jogo), nenhuma prova foi feita, sendo o documento de fls. 77 o único onde se faz referência ao número da conta 959… Acresce ainda para dificultar o esclarecimento do tribunal que a testemunha F, que nestes autos referiu conclusivamente que o autor depositou dinheiro no primeiro réu para facilitar o jogo do próprio autor e de amigos, também prestou depoimento nos autos CV2-16-0044-CAO onde, segundo a fundamentação da respectiva decisão da matéria de facto a fls. 316 a 318, disse que o autor emprestou dinheiro ao primeiro réu e que a própria testemunha chegou a receber juros em representação do autor.
23. Compulsada a fundamentação acima transcrita, observa-se que o Tribunal a quo não considerou suficientemente todas as provas documentais constantes dos autos, nomeadamente o respectivo recibo de custódia e os registos de compra de fichas e declarações de responsabilidade de fls. 33 a 36 da falada certidão de tribunal.
24. Na verdade, no âmbito do regime do processo civil de Macau, a prova ou não prova de um facto não depende da quantidade dos meios de prova produzidos. O que importa é se a cadeia de prova é completa, suficiente e imperativa.
25. Tal como se referiu anteriormente, as diversas provas documentais supra aludidas, tais como os registos de compra de fichas, as declarações de responsabilidade, o recibo de custódia e as regras de custódia escritas no verso deste, corroboram suficientemente que o recorrente adquiriu, mediante o 1º réu, fichas de numerário à 2 ré e depositou-as junto do 1º réu.
26. Além disso, o depoimento da testemunha F também corrobora os pertinentes factos, necessários e instrumentais, de que o recorrente frequentou diversas vezes o “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu para jogar, onde depositou fichas por várias vezes, as quais até à data ainda não lhe foram restituídas.
27. Acresce que nos autos não há qualquer prova contrária de que as livranças do recorrente não se destinavam à compra de fichas de numerário ou ao depósito. Portanto, no caso vertente, estamos perante uma cadeia de prova completa e impecável, absolutamente convincente no sentido da prova de todos os quesitos da base instrutória.
28. Por outro lado, importa salientar que o processo n.º CV2-16-0044-CAO citado pelo Tribunal recorrido na sua decisão sobre a matéria de facto é outra acção cível (doravante designada por processo CV2).
29. Tal como esclarece o recorrente na réplica, houve um mal-entendido de comunicação entre ele e o advogado do processo CV2 devido ao desconhecimento da lei de Macau por parte do recorrente, o que levou à errada compreensão, pelo então advogado, do que expressou o recorrente, acabando o advogado por alegar, erroneamente, na petição inicial, uma relação contratual de mútuo entre o recorrente e o 1º réu.
30. No que diz respeito à questão de saber se a sala VIP do 1º réu pagou qualquer comissão de fichas, oferta ou bónus, isto nada tem a ver com os depósitos de fichas efectuados pelo recorrente.
31. De facto, o que os promotores de jogo fazem é exactamente ajudar as concessionárias (casinos) a atrair e reter clientes. Comissões, ofertas ou bónus não passam de ser uma estratégia comercial destinada à promoção dos jogos, e não alteram o facto de o recorrente ter depositado as fichas.
32. Acresce que, nos termos do artigo 575.º do CPC, Os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem recurso.
33. Ao abrigo do artigo 576.º do mesmo livro de leis, A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga. Se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, não ter decorrido um prazo ou não ter sido praticado determinado acto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se cumpra ou o acto se pratique.
34. Dito de outra forma, o conteúdo do processo CV2 limita-se a produzir efeitos dentro do próprio processo e não afecta outras acções. O Tribunal a quo, quando recorreu a outro caso (acção CV2) para conhecer e julgar da presente causa, excedeu manifestamente os limites da eficácia da respectiva sentença, sendo a abordagem infundada e inadequada.
35. Na verdade, a sentença dos autos CV2 não logrou provar a existência duma relação de mútuo entre o recorrente e o 1º réu, pelo que a referência ao processo CV2 não poderia trazer nada de útil nem relevante.
36. Além disso, embora os advogados pratiquem actos processuais em representação das partes, é inegável que tais actos são, afinal, praticados pelos advogados (o que é especialmente susceptível de conduzir a erro na descrição da relação jurídica e dos factos objectivos). Razão pela qual, o que têm mais relevância e valor probatório são as provas documentais em que participaram pessoalmente o recorrente e os dois réus, nomeadamente as duas ordens de pagamento, o recibo de custódia, os dois registos de compra de fichas e as declarações de responsabilidade.
37. Apesar do Tribunal recorrido poder apreciar as aludidas provas documentais com base no princípio da livre apreciação da prova, isso não implica que possa avaliar o valor probatório destas de forma arbitrária, devendo antes a valorização da prova ser efectuada de modo razoável e analítico e de acordo com as regras da experiência comum, do ónus da prova e da eficácia probatória legal.
38. Como se sabe, as regras da experiência comum são generalizações empíricas relativas ao nexo causal ou estado naturalístico das coisas que se retirem daquilo que geralmente ocorre na vida quotidiana. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma regra que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas.
39. De acordo com as regras da experiência comum e tendo em consideração vários casos da mesma natureza em Macau, os recibos de depósito de fichas ou outros documentos da mesma natureza têm sempre sido o comprovativo de depósito reconhecido pelos casinos e salas VIP de Macau (incluindo concessionárias e promotores de jogo). Em geral, basta apresentar o recibo de depósito de fichas e o documento de identificação para que o jogador/membro depositante possa requerer ao casino ou sala VIP o levantamento das fichas depositadas.
40. Como anteriormente se referiu, no recibo de custódia constante do anexo 6 à petição inicial, o funcionário do “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu declarou (confessou), em nome desta sala VIP, ter recebido as fichas de numerário entregues pelo recorrente para depósito/guarda temporária, e que as mesmas deviam ser restituídas, a todo o tempo, a pedido do recorrente. De acordo com o disposto nos artigos 345.º a 347.º, 335.º e 340.º, todos do CC, a respectiva confissão tem força probatória plena e, não logrando os 1º e 2ª réus apresentar prova contrária, devem ser dados como provados o direito do recorrente emergente do recibo em causa e os correspondentes factos.
41. Por conseguinte, o recorrente é da opinião de que o Tribunal recorrido incorreu em erro notório e omissão na apreciação da prova, bem como violou grosseiramente as regras da experiência comum e o ónus da prova e a eficácia probatória a que se referem os artigos 335.º e 340 do CC, o que conduziu a erro de julgamento em matéria de facto referente aos quesitos n.ºs 5 a 7, 9 a 11, 13 a 15 e 18 da BI, particularmente os factos respeitantes ao depósito de fichas pelo recorrente.
42. Ao abrigo do disposto no artigo 571.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
43. Na sua fundamentação da sentença (de fls. 531 a 538 dos autos), o Tribunal recorrido especifica no sentido seguinte: “O autor não provou que depositou tais fichas. Provou que entregou ordens de caixa, mas não provou qual a finalidade da sua actuação, designadamente que fosse para depósito de fichas a adquirir. Também não se provou qualquer outra finalidade da actuação do autor, nem que fosse para guarda, para empréstimo, para pagamento de uma dívida, para doação, etc. …Também o autor não provou o depósito das fichas, mas apenas que entregou as ordens de caixa (resposta aos quesitos n.º 9º a 13º) que o empregado do primeiro réu trocou por fichas mortas. No que diz respeito à finalidade que o primeiro réu teve com a sua actuação, nada se alegou nem nada se provou. … Temos então provado apenas que o autor entregou ordens de caixa ao primeiro réu e que este lhe emitiu um comprovativo.”
44. Portanto, importa reiterar que ficou provado, no julgamento da matéria de facto pelo Tribunal recorrido, que o recorrente entregou, em duas vezes, as duas ordens de pagamento ao 1º réu, que por seu lado as trocou por fichas de numerário de valor equivalente, e emitiu ao recorrente um recibo de custódia (custody receipt).
45. Por outras palavras, o 1º réu bem sabia, desde a entrega das fichas pelo recorrente, que este último desejava que o 1º réu guardasse as fichas. O 1º réu só lhe emitiu o referido recibo de custódia por concordar com a guarda das fichas.
46. De acordo com as disposições dos artigos 1111.º e 1131.º do CC, o contrato de depósito irregular tem como elementos constitutivos: que uma das partes entrega à outra uma coisa fungível, para que a guarde, e a restitua quando for exigida.
47. Ora, o depositante entregou as fichas e assinou o recibo no espaço destinado ao “depositante”, e o depositário emitiu o recibo de custódia assinado pelo seu funcionário no espaço destinado ao “receptor”. De acordo com a experiência comum e as práticas habituais dos casinos, tais factos em si são factos externos de depósito de fichas e também uma declaração expressa.
48. Na verdade, se a tesouraria do “Clube VIP XXX” explorado pelo 1º réu não tivesse tido o serviço de guardar as fichas dos clientes, não teria emitido guia de depósito de fichas ou recibo de guarda.
49. O recibo de custódia pode ser um comprovativo de um direito ou facto, ou um documento ou acordo contendo a declaração do agente.
50. É como depositar dinheiro nas instituições bancárias, excepto que o “Clube VIP XXX” do 1º réu não exercia actividades bancárias, mas antes fornecia serviços aos jogadores enquanto promotor de jogo, entre os quais a guarda de numerário ou fichas para os clientes. Trata-se de serviços mais ou menos iguais em termos de prática.
51. Se uma pessoa depositar dinheiro na sua conta bancária através do balcão do banco sem acordar especificamente com o funcionário bancário que o dinheiro ser-lhe-á restituído quando for exigido, será que isso leva a um acordo de outra natureza entre o depositante e o banco? A resposta é claramente negativa, sendo que tal dinheiro é, seguramente, considerado como estando depositado na conta bancária desta pessoa.
52. Portanto, apesar de o Tribunal a quo limitar-se a dar por provado, na decisão da matéria de facto, que “Temos então provado apenas que o autor entregou ordens de caixa ao primeiro réu e que este lhe emitiu um comprovativo”, atentos o teor do respectivo documento e, sobretudo, a declaração negocial revelada pelos actos das partes, deve considerar-se que o recorrente e o 1º réu chegaram, mediante declaração expressa, a um acordo de vontade relativo ao contrato de depósito irregular, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 1111.º e seguintes do CC em termos da qualificação jurídica.
53. O Tribunal recorrido ao fundamentar a sua sentença também referiu o seguinte: “…São escassos os factos para encontrar o sentido com que deve valer a declaração negocial tácita das partes. Apenas que o primeiro réu é promotor de jogo e que o autor lhe entregou quantias consideráveis em ordens de caixa que o funcionário do primeiro réu trocou por fichas mortas da segunda ré. Com tão escassa factualidade não é possível ao tribunal saber qual o sentido com que a declaração negocial deve valer. É certo que se pode concluir que a declaração negocial tácita de entregar ordens de caixa a um promotor de jogo que emite documento comprovativo da entrega não deve valer com o sentido de doação ou de alienação gratuita, mas não se pode ter certeza que tal declaração tácita deve valer como acordo de guarda das fichas para restituição futura ou como acordo de empréstimo ou de investimento na actividade do receptor promotor de jogos, assim não se pode entender que se trata de um pagamento de dívida.”
54. Na decisão da matéria de facto e sentença final, o Tribunal recorrido por várias vezes substituiu a expressão “emitiu o recibo de custódia” por “emitiu um comprovativo”, o que só pode levar as pessoas a entender o recibo de custódia como um comprovativo. Se bem que não tenha especificado o que em concreto visava este documento comprovar, é, ainda assim, aceitável.
55. Porém, no trecho acima transcrito, a instância recorrida usou a expressão “emite documento comprovativo da entrega”, o que é inadequado.
56. De facto, do referido recibo de custódia constam a denominação e o sinal do “Clube VIP XXX”, e o seu texto começa assim: “Confirma-se a recepção de:…”. Tudo isso, conjugado com as regras de guarda no verso do documento e a assinatura de funcionário da sala VIP em causa, torna evidente que tal documento foi uma declaração escrita emitida pelo “Clube VIP XXX”.
57. Tal recibo foi emitido pelo 1º réu para valer como declaração de concordância com a guarda das ordens de pagamento (convertidas em fichas pelo 1º réu) que lhe foram entregues pelo recorrente. Também contém em si, implicitamente, a relação jurídica existente entre as partes, para que o mesmo possa se reflectir através da aplicação da lei.
58. Obviamente, o recibo de custódia em questão é muito mais do que um simples comprovativo de entrega. A sentença recorrida distorceu completamente o verdadeiro sentido do documento.
59. Além disso, a mesma sentença também incorreu em várias contradições na interpretação do recibo de custódia em causa.
60. Por um lado, o Tribunal recorrido entendeu tal documento como um comprovativo da entrega de fichas pelo recorrente ao 1º réu. O que não só alterou directamente o significado literal do texto da prova documental, como ainda modificou a relação jurídica entre o recorrente e o 1º réu.
61. Por outro lado, no facto n.º 15 da decisão da matéria de facto, o Tribunal a quo concluiu que: “Provado que a fim de provar o valor total das supracitadas ordens de pagamento entregues pelo autor ao primeiro réu, um funcionário deste emitiu, em nome de “Clube VIP XXX ”, ao autor, um “recibo de custódia” (Custody Receipt) no valor de dez milhões de dólares de Hong Kong (HKD$10.000.000,00), confirmando com assinaturas do autor e do funcionário do 1º réu.”(negrito e sublinhado nosso)
62. O mesmo documento, “recibo de custódia” na decisão da matéria de facto, acabou por ser degradado em “documento comprovativo da entrega” na fundamentação do Tribunal.
63. Tal fundamentação, para além de ser ilógica e pouco convincente, é manifestamente contraditória em si mesma. Parece-nos que o Tribunal recorrido falhou em justificar como um documento já reconhecido como recibo de custódia acabou por se tornar num “documento comprovativo da entrega”.
64. Aparentemente, o “comprovativo” que o Tribunal a quo mencionou em todo o texto da fundamentação é efectivamente “documento comprovativo da entrega”. Essa interpretação distorceu totalmente a letra do recibo de custódia bem como a verdadeira declaração das partes, e podia influir decisivamente na direcção da decisão final, especialmente no que diz respeito à qualificação jurídica. Trata-se, no entanto, de uma ultrapassagem dos limites da livre apreciação da prova pelo Tribunal a quo.
65. Na verdade, não tendo o Tribunal a quo considerado o documento em causa como comprovativo da entrega na decisão da matéria de facto, não pode, na decisão final, alterar a sua convicção a esse respeito, ou pelo menos não é permitida a existência de dois entendimentos incompatíveis.
66. Por outras palavras, ou o Tribunal a quo incorreu em erro grosseiro ou omissão no julgamento da matéria de facto ou apreciação da prova relativamente ao facto n.º 15 da decisão da matéria de facto (facto provado w) da sentença recorrida), ou a sua fundamentação da sentença final está em oposição manifesta com a decisão da matéria de facto.
67. Dessarte, no entender do recorrente, por a fundamentação da sentença recorrida ser insuficiente e ilógica, e existir oposição manifesta entre a respectiva fundamentação e a decisão da matéria de facto, a sentença recorrida é nula e deve ser revogada.
  Pela 2ª Ré foram apresentadas contra-alegações com as seguintes conclusões:
I. Vem o Recurso a que ora responde interposto da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo e que julgou a acção intentada pelo Autor, o aqui Recorrente, improcedente e, em consequência, absolveu os réus, dentre eles a ora Recorrida, do pedido.
II. O Recorrente assaca à decisão sub judice os seguintes vícios: erro na apreciação dos factos decorrente da violação grave das regras de experiência comum, do erro e à omissão na apreciação de prova, insuficiência de fundamentação e existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
III. Ao Recorrente não agrada o resultado da avaliação que o douto Tribuna a quo fez da prova produzida nos presentes autos, e procura então, a todo o custo, atacar o processo de formação da convicção do julgador imputando-lhe erros de julgamento, incluindo a violação de regras e princípios de valoração da prova.
IV. O Recorrente insurge-se com a resposta dada pelo douto Tribunal a quo à matéria quesitada nos artigos 5.º a 7.º, 9.º a 11.º, 13.º a 15.º e 18.º da base instrutória.
V. A decisão assim tomada em relação à resposta a estes quesitos é clara, escorreita, perceptível e devidamente fundamentada, dela se apreendendo com facilidade o iter percorrido pelo douto Tribunal a quo para chegar às respostas dadas aos quesitos impugnados.
VI. Se ao Recorrente não agrada tal decisão sibi imputat, com efeito, o mesmo não logrou carrear para os presentes autos provas suficientes para convencer o douto tribunal a quo da versão dos factos que, desta vez, invocou.
VII. O documento junto como n.º 6 da petição inicial não tem força probatória plena, as menções nele contidas não constituem confissão, nem judicial, nem extrajudicial, trata-se de um mero documento particular, tendo os factos nele atestados sido devidamente impugnados pela ora Recorrida que, de resto, nem sequer é parte no documento, não podendo por isso as declarações contidas no mesmo revestir em relação a si qualquer tipo de confissão e nem sequer ter força probatória plena, não se lhe aplicando por isso o disposto nos artigos 345.º a 347.º e 340.º do C.C.
VIII. O artigo 8.º do Código Civil não tem aplicabilidade à interpretação dos negócios jurídicos, e claramente se aplica à interpretação da lei.
IX. O Recorrente apenas logrou provar que entregou ao primeiro réu as ordens de caixa mencionadas nos quesitos 6.º e 13.º, não provou com que intuito o fez, e nem com que intuito o primeiro réu as recebeu.
X. O Autor/Recorrente apresenta uma versão titubeante dos factos, ora alegando no âmbito de um outro processo (CV2-16-0044-CAO) que entregou as ordens de caixa ao primeiro réu a título de empréstimo remunerado, ora alegando nos presentes autos que as entregou para facilitar o joga e para tanto que as mesmas deviam ser trocadas por fichas vivas e depositadas na conta que abriu junto do primeiro réu. (vide fls. 176)
XI. O certo é-que, conforme claramente resulta da decisão recorrida, o Recorrente não provou a abertura de conta junto do primeiro réu, não provou que as ordens de caixa foram trocadas por fichas vivas e depositadas na sua putativa conta e nem provou que utilizava essa putativa conta para facilitar o jogo naquela sala ... ou seja, nada provou acerca do alegado contrato de depósito que o ligava ao primeiro réu e que determinou a entrega dos cashier orders.
XII. O “Custody Receipt” não adianta mais nada e em nada altera a decisão assim tomada pelo douto Tribunal a quo pois que, com efeito, este douto Tribunal não nega que o primeiro réu terá recebido os valores do Autor ao abrigo de um contrato não translactivo de propriedade, mas, não tendo o Recorrente provado a que título foram entregues, não podia o douto Tribunal a quo condenar o primeiro réu a devolver-lhe tais quantias por alegado incumprimento de um contrato, cuja natureza, deveras, não se provou.
XIII. O título ou a denominação dada pelas partes aos negócios que celebram não vinculam o julgador e muito menos quando não existem nos autos sinais de verdadeira correspondência entre esse título e a vontade das partes. como é o caso dos presentes autos.
XIV. Se não for com o objectivo de facilitar o jogo, a entrega de valores a um promotor de jogo contra a emissão de um documento que garanta a sua alegada devolução não pode ser tido como depósito irregular, nos termos em que é desenhado pelo Recorrente!
XV. Não credível na acepção de um homem médio que alguém que disponha de HK$10,000,000.00 os “deposite” numa qualquer sala VIP de um casino, sem ter sequer tentado movimentar tal quantia durante mais de 4 anos e, alegadamente, sem qualquer contrapartida, quando tal valor pode ser rentabilizado de forma lucrativa mediante um simples depósito bancário, ou de mil uma outra formas que garantam lucro ao titular de tal quantia ...
XVI. Nada há a-apontar à decisão recorrida pois que a mesma não é violadora de qualquer norma que regula a força probatória dos meios de prova carreados para os autos e nem de qualquer regra de experiência ou interpretação dos negócios jurídicos.
XVII. Resultou provado que as ordens de caixa entregues pelo Recorrente ao primeiro réu foram usadas para adquirir fichas mortas, cfr. resposta aos quesitos 10.º e 14.º.
XVIII. Isto é o que resulta claro dos documentos de fls. 96 e 98 dos presentes autos, donde se fez constar que: “Apresenta-se uma ordem de pagamento do Banco da China com o n.º (...). Esta ordem de pagamento serve para a nossa companhia comprar à vossa companhia fichas exclusivas do clube de XXX VIP (...).”
XIX. Isso é o que resulta também das regras de experiência comum e é do conhecimento público, as fichas de jogo adquiridas pelos promotores de jogo às concessionárias para que prestam serviços, tratam-se de fichas mortas, ou seja, fichas que só podem ser jogadas e não convertidas em dinheiro, e fichas, cuja aquisição, garantem ao promotor de jogo o recebimento de uma comissão.
XX. Isso foi o que resultou do depoimento da testemunha G, gravado na audiência que teve lugar no dia 18.11.2021, Translator 1 Recorded on 18.Nov.2021 at 11.03.19, minutos 37:20 a 38.08
XXI. Isso é o que resulta ainda do teor do contrato de promoção de jogos celebrado entre o primeiro réu e a ora Recorrida, designada mente a cláusula 4.º, por força da qual o primeiro réu comprometeu-se a garantir que os clientes por si angariados adquiririam fichas das salas VIP especiais e exclusivas, que não poderiam ser trocadas por numerário, cheque ou outro tipo de créditos, ou seja, fichas mortas. (vide fls. 81 e 434 a versão traduzida)
XXII. Salvo devido respeito por melhor opinião, nenhum motivo existe para se afastar a análise e o valor probatório atribuído ao depoimento da testemunha F para prova dos factos a que foi inquirido.
XXIII. Conforme resulta da decisão recorrida, o depoimento da referida testemunha não foi suficiente para alicerçar a convicção do tribunal a quo por se ter demonstrado de débil razão de ciência, um depoimento conclusivo e pouco pormenorizado, vacilante e contraditório com o depoimento prestado pela mesma testemunha no âmbito do processo CV2-16-0044-CAO que, quanto confrontado com os mesmos factos, apresentou uma versão dos factos diferente da trazida aos presentes autos, tendo ali afirmado que a entrega de tal valor pelo Autor ao Primeiro Réu, se tratou de um empréstimo com contra partida do recebimento de juros remunerados.
XXIV. Ademais, se atentarmos em partes do depoimento da referida testemunha, registado no Translator 1- Recorded on 18.Nov.2021 at 10.13.22, minutos 4.06 a 8.10 e 11.30 a 17.00, compreende-se que o douto Tribunal a quo não o tivesse considerado suficiente ou apto a provar os factos contra os quais se insurge o ora Recorrente.
XXV. A referida testemunha não tem qualquer conhecimento directo dos factos em discussão nos presentes autos uma vez que nada presenciou e apenas contou aquilo que o Autor, seu amigo, lhe disse, o que, a acrescer ao facto de no outro processo ter relatado que o valor que o Recorrente terá entregue ao 1.º Réu se tratava de um empréstimo, justifica a desvalorização do seu depoimento pelo douto Tribunal a quo.
XXVI. E nesta tarefa o douto Tribunal a quo não violou qualquer regra de experiência comum e, lida e relida a decisão recorrida não se vislumbra em nenhum lugar esta violação.
XXVII. É o Recorrente que para justificar tal vício parte de assumpções e de factos que não conseguiu provar para atacar uma decisão que se apresenta escorreita e conforme às provas (in)existentes nos autos.
XXVIII. Não se provou qualquer facto instrumental que coadjuvasse o douto Tribunal a dar como provada a abertura de conta, pois que, para além de o Recorrente não ter apresentado o documento inicial de abertura de conta, também não apresentou qualquer prova da sua movimentação e nem qualquer testemunha que o tivesse visto. a abrir ou movimentar essa aludida conta.
XXIX. O Recorrente não provou também que a entrega das ordens de caixa ao primeiro réu de destinavam a (i) comprar fichas vivas e (ii) facilitar o jogo, tendo resultado antes apenas provado, e bem, que as ordens de caixa entregues pelo Recorrente ao primeiro réu em Maio de 2012, foram utilizadas por um funcionário deste último para adquirir fichas mortas.
XXX. Resultou ainda provado que só depois da sala VIP ter encerrado, em 2016, o Recorrente tentou contactar o primeiro réu para recuperar os valores que lhe havia entregue e mais se apurou que, no âmbito do processo CV2-16-0104-CAO, o Recorrente alegou que entregou os mesmos HK10,000,000.00 a título de empréstimo remunerado, vindo agora alegar, depois de ter perdido aqueloutra acção, que a entrega de tais montantes se destinou à aquisição de fichas vivas para serem depositadas na sala VIP e facilitar o jogo.
XXXI. Atenta a factualidade assim apurada e ao próprio comportamento processual do Recorrente, a decisão ora em crise em nada viola as regras de experiência comum, conforme acima já se disse.
XXXII. Por outro lado, o Recorrente pretende abalar a convicção do douto Tribunal a quo que assentou no facto de o Recorrente ter apresentado, no âmbito do processo que correu os seus termos pelo CV2-16-0104-CAO, um versão dos factos diferente da aqui alegada, invocando os seguintes fundamentos: (i) que é giro comum os promotores de jogo pagarem comissões aos seus clientes por conta das fichas adquiridas; (ii) que a versão dos factos apresentada no processo CV2-16-0104-CAO se deveu a falta de conhecimento profissional do Recorrente sobre a lei de Macau e a um mal-entendido entre o Recorrente e o seu anterior mandatário.
XXXIII. Em relação ao primeiro argumento, não é verdade e nem resultou provado nos presentes autos que é prática comum os promotores de jogo atribuírem comissões aos seus clientes por conta da aquisição de fichas ... sendo certo que; no âmbito daqueloutro processo, o Recorrente não alegou o pagamento de comissões, mas sim de juros remuneratórios do alegado empréstimo que havia concedido ao primeiro réu,
XXXIV. Tendo sido isso mesmo que resultou do depoimento da testemunha naquele outro processo e que se encontra referido na decisão ora em crise: “Acresce ainda paro dificultar o esclarecimento do tribunal que a testemunha F, que neste autos referiu conclusivamente que o autor depositou dinheiro no primeiro réu paro facilitar o jogo do próprio autor e de amigos, também prestou depoimento nos autos CV2-16-0044-CAO onde, segundo a fundamentação da respectiva decisão da matéria de facto a tis. 316 a 318, disse que o autor emprestou dinheiro ao primeiro réu e que a própria testemunha chegou a receber juros em representação do autor.”
XXXV. Em relação à falta de conhecimento profissional do Recorrente e à existência de um alegado mal-entendido entre o mesmo e o seu anterior mandatário, para além de nada ter sido provado nesse sentido, tais argumentos são altamente reprováveis e dúbios e acrescentam manifesta incerteza quanto à natureza da relação jurídica estabelecida entre o Recorrente e o 1.º Réu.
XXXVI. Será que foi o primeiro mandatário do Recorrente quem percebeu mal, ou será que foi o actual mandatário que, depois daquela primeira acção não ter sucedido, adaptou a história do Recorrente à actual corrente de jurisprudência que tem vindo a ser feita em casos que parecem semelhantes ao do Autor?
XXXVII. A força probatória das declarações contidas naqueloutro processo, pese embora não efectuadas pelo punho do próprio Recorrente, foram feitas pelo seu mandatário ao abrigo da relação de mandato entre eles estabelecida e têm força probatória igual à dos documentos agora apresentados, ou seja, estão sujeitas à livre apreciação da prova do julgador deste processo.
XXXVIII. O facto de existir um “Custody Receipt” emitido por um promotor de jogo a uma qualquer pessoa, não a isenta de alegar e provar a relação material subjacente à emissão de tal documento, principalmente quando, como é o caso dos presentes autos, o Recorrente pretende assacar responsabilidade a um terceiro, a ora Recorrida, pelo cumprimento de uma alegada obrigação que esta, deveras, não assumiu.
XXXIX. Sem prejuízo de se não concordar com a interpretação que tem vindo a ser feita do artigo 29.º do Regulamento Administrativo 6/2002, sempre se diga que, atenta a natureza da actividade exercida e do contrato celebrado entre os Réus nos presentes autos, resultaria manifestamente pernicioso e encorajador da prática de actos manifestamente reprováveis e maliciosos, que se tomassem por certos que todos e quaisquer “Custody Receipts” emitidos pelos promotores de jogo o fossem no âmbito da sua actividade comercial na parte em que a mesma está sujeita à supervisão das concessionárias, ou seja, tão só e apenas aquela que se prende com o estabelecido no artigo 29.º do Regulamento Administrativo 6/2002, ou seja: pela actividade desenvolvida nos casinos pelos promotores de jogo e administradores e colaboradores destes, bem como pelo cumprimento, por parte dos mesmos, das normas legais e regulamentares aplicáveis.
XL. Tomar por certo que todo e qualquer valor recebido por um promotor de jogo, contra a emissão de um “Custody Receipt” se prende com a actividade que o promotor desenvolve no casino será abrir a porta ao cometimento um sem número de situações fraudulentas em que o promotor de jogo e o seu credor sempre se aproveitarão dos bolsos fundos (mas não inesgotáveis) das concessionárias de jogo.
XLI. Assim sendo, bastaria aos promotores de jogo andar a pedir empréstimos a particulares contra a emissão de “Custody Receipt” e assegurando às pessoas que lhes concedem tais empréstimos o seguinte: “Não se preocupe porque se eu não conseguir devolver este valor, a Concessionária vai ser obrigada a fazê-lo por mim ...”
XLII. As Concessionárias não podem responder por toda e qualquer actividade dos promotores de jogo, mas tão somente aquelas que se prendem com a actividade compreendida no contrato de promoção de jogo que com eles celebram, extrapolar essa medida, e responsabilizar as Concessionárias por toda e qualquer dívida do promotor de jogo, seja de que natureza for, desde de que exista um “talão de depósito” abre a porta a um sem número de injustiças materiais e representa também uma interpretação abusiva do disposto no artigo 29.º do Regulamento Administrativo 6/2002.
XLIII. No caso dos presentes autos, não se compreende em que medida a ora Recorrente terá saído sequer beneficiada, pois que, contra o recebimento do valor titulado pelas cashier orders entregues pelo Recorrente ao Primeiro Réu, resultou provado que a Recorrente entregou valor correspondente em fichas mortas, e ainda terá pago a comissão devida ao promotor de jogo por conta das fichas adquiridas, conforme foi referido pela testemunha G no depoimento supra transcrito.
XLIV. Finalmente, o Recorrente assaca à decisão recorrida os vícios de insuficiência de fundamentação e contradições entre os fundamentos e a decisão, dois vícios que são contraditórios entre si: ou bem que há falta de fundamentação ou então, existe a fundamentação e essa está em contradição com a decisão.
XLV. Repita-se: Ao Recorrente não agrada o resultado da avaliação que se faz da prova, e procura então, a todo o custo, atacar o processo de formação da convicção do julgador imputando-lhe erros de julgamento, incluindo a violação de regras e princípios de valoração da prova
XLVI. O douto Tribunal a quo fundamentou a decisão de forma clara e abundante, não incorreu em nenhuma contradição entre a fundamentação e a decisão, não violou qualquer norma relativa à valoração e força probatória das provas, não incorreu em nenhuma omissão ou contradição.
XLVII. O documento intitulado “Custody Receipt” não tem força probatória plena, o julgador não está vinculado à qualificação jurídica que as partes fazem dos factos que alegam, podendo, face à prova produzida, à interpretação dos factos e à integração do direito, concluir que a qualificação jurídica que as partes fazem dos negócios que celebram não está correcta.
XLVIII. O Recorrente não fez prova que a entrega dos cashier orders ao primeiro Réu tinham por fim serem trocados por fichas mortas (e nem mesmo vivas), que ficariam depositadas junto na sala VIP promovida pela 1.ª Ré, a fim de lhe facilitar o jogo, aliás, o Recorrente, em mais de 4 anos em que o valor alegadamente ficou depositado/guardado na Sala Vip nunca o usou para jogar ... nunca o tentou levantar ... não mais usou ou movimentou a alegada conta ...
XLIX. A guarda de dinheiro ou fichas por parte de um promotor de jogo no âmbito da sua actividade comercial só pode ter como objectivo facilitar o jogo por parte do cliente, e é só com esse objectivo que o Cliente deveria aceder no depósito de dinheiro ou fichas de jogo junto de uma Sala Vip.
L. Se não for com o objectivo de facilitar o jogo, a entrega de valores a um promotor de jogo contra a emissão de um documento que garanta a sua alegada devolução não pode ser tido, de forma imediata e automática, como depósito irregular, nos termos em que é desenhado pelo Recorrente, não pode ser tido como ligado à normal actividade do promotor pela qual a concessionária é solidariamente responsável!
LI. Se a concessionária não pode ser responsabilizada, por exemplo por um empréstimo bancário que o promotor contraia para financiar a sua actividade, porque motivo a concessionária pode ser responsabilizada por “parcerias” “empréstimos”ou outras formas que os promotores encontra de se financiar junto de pessoas singulares?
LII. Face ao supra exposto, nenhum vício há a apontar à decisão recorrida e, como tal, salvo devido respeito por melhor opinião, o Recurso a que ora se responde deverá ser indeferido.

Foram colhidos os vistos.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

São vários recursos interpostos, a saber:
- Recurso do despacho que julgou improcedente a excepção do caso julgado;
- Recurso da decisão final quanto à matéria de facto e quanto à decisão de direito.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Do recurso interposto do despacho que julgou improcedente a excepção do caso julgado.
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
«Da excepção do caso julgado:
Nos presentes autos, vem o A pedir aos RR a devolução das fichas de jogo em numerário no valor de HK$10,000,000.00 ou do dinheiro em numerário correspondente ao mesmo valor e que equivale a MOP$10,300,000.00, bem como os juros legais.
Para tanto alega que para facilitar a jogar tinha sido aderido ao membro da sala VIP explorada pelo 1.º R nas instalações da 2.ª R e que tinha aberta um conta sob o n.º 959.
Em 7 de Maio de 2012 tinha entregue HKD$7,000,000.00 ao 1.º R para a troca de fichas de jogo (fichas vivas) e que tinha depositado na conta n.º 959.
Em 7 de Dezembro de 2012 tinha feito uma troca de fichas de jogo (fichas vivas) montante de HKD$3,000.000,00 e que também procedeu ao depósito das mesmas fichas no mesma conta sob o n.º 959, o que perfaz num total de HKD$10,000,000.00 (cfr. artigo 19º a 33º da p.i. dos autos).
A 2.ª R. invocou a excepção dilatória de caso julgado, entendendo que existe uma identidade tripartida quanto aos sujeitos, pedidos e causa de pedir em relação aos autos CV2-16-0044-CAO, pugnado-pela absolvição da instância.
Dispõe o artigo 416 n.º 1 e 2 que “1. As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado. 2. Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.”
Quanto aos requisitos do caso julgado, consagra o artigo 417.º do CPC que:
“1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, considerando-se como causa de pedir nas acções reais o facto jurídico de que deriva o direito real e, nas acções constitutivas e de anulação, o facto concreto ou a nulidade específica que a parte invoca para obter o efeito pretendido.”
A excepção do caso julgado material exige a satisfação cumulativa dos seguintes requisitos:
1. A repetição da causa quanto às partes, ao pedido e à causa de pedir;
2. A causa anterior ter. sido decidida por sentença jà transitada em julgado; e
3. A decisão recai sobre o mérito da causa.
De fls. 177 a 184 dos presentes autos foi junto a certidão onde consta a petição inicial dos autos CV2-16-0044-CAO. De onde sé verifica que os sujeitos nesta acção e na acção do referido CV2 são os mesmos.
O A. alega no CV2 que tinha dado de empréstimo ao 1.º R um montante de HKD$10,000,000.00 com uma contrapartida de juro a receber numa taxa mensal de 1.5% (artigo 2.º da p.i. do CV2).
E o pedido da acção do CV2 consiste na condenação do pagamento desse montante de HKD$10,000,000.00 bem como os juros legais até o pagamento integral.
Enquanto nos presentes autos, o A. alega que tinha depositado fichas de jogo na conta aberta junto à sala VIP explorada pelo 1.º R num montante de HKD$7,000,000.00 em 7 de Maio de 2012 e num montante de HKD$3,000,000.00 em 12 de Dezembro de 2012, respectivamente (cfr. artigo 20.º a 33.º da p.i.).
Pedindo nos presentes autos a condenação do 1.º e da 2.ª R. a devolver de forma solidária as fichas vivas de HK$10,000,000.00 ou o valor em numerário equivalente, correspondente a MOP$10,300,000.00, acrescida da taxa comercial no total de 11.75%.
Quanto à identidade de sujeitos, não nos levanta dúvida nenhuma. Em ambas as acções, os sujeitos são os mesmos.
Quanto ao pedido, os-pedidos não são exactamente mesmos.
O pedido traduz-se na pretensão de tutela jurisdicional visada pelo A.1
Na acção do CV2, o que o A. pede é a condenação do dinheiro emprestado acrescido de juros legais. Enquanto nos presentes autos, o pedido consiste na devolução das fichas trocadas ou o dinheiro no montante correspondente.
Quanto à causa de pedir, a causa de pedir é o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida pelo autor, que serve de fundamento à acção; não é o facto abstracto configurado na lei, mera categoria legal, mas o facto concreto invocado pelo autor, o acontecimento natural ou acção humana de que promanam, por disposição legal, efeitos jurídicos.2
Em suma, o facto concreto alegado nos autos CV2 consiste no facto de o A. ter acordado com o 1.º R de lhe entregar o dinheiro para dar de empréstimo e em contrapartida com o direito de receber juro mensal de taxa de 1.5%.
Enquanto nos presentes autos, o facto concreto alegado alegado pelo A. consiste na entrega do dinheiro para troca de fichas de jogo e consequente depósito das mesmas fichas na conta aberta junto à sala VIP explorada pelo 1.º R.
Como se vê o acontecimento natural e a vontade subjectiva alegada pelo A. nos autos do CV2 e nos presentes autos são diferentes, o que levamos a concluir que as causas de pedir nas duas acções são também diferentes.
Destarte, julgo a excepção do caso julgado improcedente.».

A questão a decidir no caso em apreço – da existência de caso julgado – resulta da resposta que se der quanto à identidade de causas de pedir.
A própria Recorrente e 2ª Ré reconhece que na acção já julgada e transitada em julgado o Autor configurava as entregas em dinheiro como feitas no âmbito de um contrato de mútuo e nestes autos como uma entrega feita para a aquisição de fichas.
Para o efeito, impõe-se identificar o que se entende por causa de pedir.
Sendo a causa de pedir a par com o pedido, um elemento constitutivo do objecto do processo, a sua definição está longe de ser unânime na Doutrina.
Maria França Gouveia em “A Causa de Pedir Na Acção Declarativa”, Colecção teses, Almedina, Coimbra 2004, de forma exaustiva e para cuja leitura se remete, trata o assunto.
Distinguindo aquela Autora entre teses monistas e pluralistas, para a teses monistas identifica 3 grupos de noções, sendo que:
«- Um deles identifica a causa de pedir com a qualificação jurídica dos factos, conceito que vem a ser abandonado uma vez que apenas faz sentido quanto ao principio dispositivo – instituto com o qual a o conceito de causa de pedir também esta relacionado;
- Um outro grupo que identifica a causa de pedir como o conjunto de factos naturais adquiridos no processo, teoria que também vem a ser abandonada porque a selecção dos factos naturais pressupõe também uma pré-decisão quanto à norma aplicável, sendo que a importação dos factos naturais já pressupõe uma instrumentalização jurídica dos mesmos para a acção, pelo que se entende que este critério também não é praticável;
- Um terceiro grupo que entende a causa de pedir como o conjunto dos factos essenciais, a qual é a posição unânime na doutrina portuguesa, a qual por sua vez é também fonte de interpretação do direito em Macau.».
Sobre esta matéria veja Autora e Obra citada a pág. 77 a 80:
«2. Na doutrina portuguesa esta é a posição unânime, normalmente fundamentada no artigo 498.º n.º 4 e quase sempre referenciada à tese da substanciação.
Manuel de Andrade, entendendo que a nossa lei aderiu à teoria da substanciação, define causa de pedir como “acto ou facto jurídico (contrato, testamento, facto ilícito, etc.) donde o Autor pretende ter derivado o direito a tutelar; o acto ou facto jurídico que ele aduz como título aquisitivo desse direito.”
Na versão de Alberto dos Reis, “A causa de pedir é o acto ou o facto central da demanda, o núcleo essencial de que emerge o direito do autor ...”
Já Castro Mendes se detém um pouco mais na noção, aproximando­se ligeiramente da versão naturalista: a causa de pedir identifica o processo - deve ser alegada de forma a identificar suficientemente um acto ou facto. Aqui há uma certa margem de arbítrio: se o acto for nominado basta o nomen iuris; se inominado, exige-se maior detalhe. Neste último caso a descrição limita-se funcionalmente, isto é, há que identificar o facto ou o acto jurídico de que procede a pretensão em juízo. Castro Mendes é, porém, claro ao dizer, logo de seguida, que a causa de pedir só pode ser alegada com base na sua qualificação jurídica.
Estas definições de causa de pedir não são, porém, suficientes para esclarecer o problema e aplicar a noção. No momento da concretização do conceito, as dificuldades surgem, oscilando-se sempre entre uma maior ou menor qualificação dos factos. Por outro lado, atendendo à possibilidade de alteração da qualificação inicial pelo tribunal, esta concepção fica ainda mais comprometida.
As posições mais recentes procuram, pois, ainda que na mesma linha, um conceito mais preciso e capaz.
Miguel Teixeira de Sousa entende que “a causa de pedir é constituída pelos factos necessários para individualizar a situação jurídica alegada pela parte e para fundamentar o pedido formulado para essa situação. A causa de pedir é composta pelos factos constitutivos da situação jurídica invocada pela parte, isto é, pelos factos essenciais à procedência do pedido. São essenciais aqueles factos sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente.”
O autor, porém, prevendo as dificuldades advenientes da alteração da qualificação jurídica, afirma que “os factos que constituem a causa de pedir devem preencher uma determinada previsão legal, isto é, devem ser subsumíveis a uma norma jurídica, mas valem independentemente dessa qualificação.”
Mais recentemente, Miguel Teixeira de Sousa, identificando a causa de pedir com os factos essenciais, define-os como aqueles que “permitem individualizar a situação jurídica alegada na acção”. Os exemplos que apresenta reconduzem os factos essenciais a uma única previsão normativa.
Diz também o autor que os factos serão essenciais segundo um critério de classificação relativo, ou seja, só mediante um certo objecto processual se poderá saber se determinado facto é essencial, complementar ou instrumental.
Este entendimento encerra na sua formulação um ciclo vicioso. É que se os factos essenciais se determinam através da causa de pedir, e se essa causa de pedir constitui um dos elementos do objecto, para determiná-lo é necessária ... a causa de pedir. Ou seja, precisa-se do objecto para determinar a causa de pedir e da causa de pedir para determinar o objecto.
(…)
Lebre de Freitas utiliza também, para a sua definição de causa de pedir, o conceito de previsão da norma jurídica, “matizado porém com a ideia de que o acontecimento da vida narrado pelo autor é susceptível de redução a um núcleo fáctico essencial, tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais como causa do efeito pretendido.”
Numa definição mais recente, diz que a causa de pedir é “o facto constitutivo da situação jurídica material que [o autor] quer fazer valer”, tratando-se do “facto concreto que o autor diz ter constituído o efeito pretendido”.
Abrantes Geraldes define causa de pedir como aqueles “factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo civil” ou “é consubstanciada tão só pelos factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte.” Tendo consciência que a enunciação da noção não é, porém, suficiente, exemplifica com maior ou menor grau de concretização o que deve ser a causa de pedir em determinados tipos de acções: nas acções baseadas em contratos; nas acções constitutivas em geral; nas acções de anulação e declaração de nulidade, etc., etc..».
Continuando a acompanhar a mesma Autora as teses pluralistas não vão mais longe do que as noções das teses monistas, apenas com a especialidade de que os conceitos podem variar consoante os princípios processuais, a espécies de acções ou os institutos a aplicar.
No caso em apreço a questão haverá que ser resolvida de acordo com o instituto do caso julgado por ser aquilo que importa decidir.
Aparentemente o facto natural que subjaz a esta acção e àquela outra já decidida com trânsito em julgado consiste em duas entregas uma no valor de HKD7.000.000,00 e outra de HKD3.000.000,00.
No entanto os factos invocados não são necessariamente os mesmos.
Enquanto na acção que correu termos sob o nº CV2-16-0044-CAO o Autor configurava a entrega daquelas quantias como tendo sido cedidas/emprestadas ao 1º Réu por um determinado espaço de tempo, relativamente ao qual este o 1º Réu haveria de pagar uma remuneração – juros -, na acção que agora nos ocupa o Autor invoca que entregou duas ordens de caixa sacadas sobre fundos seus e que as entregou ao 1º Réu para comprar o valor equivalente em fichas de jogo as quais entregou ao 1º Réu para que ficassem na conta que o Autor tinha na sala VIP explorada pelo 1º Réu.
Como já se referiu supra, os factos são invocados consoante a norma jurídica a que o autor pretende recorrer para obter a sua pretensão.
Isto é, se o contrato que se celebrou entre Autor e Réu foi um mútuo, pese embora a expressão empréstimo seja do domínio comum o Autor deve invocar os factos que constituem o mútuo para que uma vez provados se conclua pela existência do contrato.
Se, por sua vez o Autor entender que o contrato celebrado entre Autor e Réu foi um depósito, embora, igualmente, a expressão depósito seja do domínio comum, sendo este o objecto da acção devem ser invocados os factos que integram o conceito de depósito para que uma vez provado, se possa concluir pela celebração desse contrato.
Ou seja, a causa de pedir são os factos naturais que o Autor invoca com referência a uma norma jurídica, fundamento da sua pretensão.
Ora, na acção que correu termos no CV2 o Autor veio invocar os factos que uma vez provados permitiriam que se concluísse pela celebração de um contrato de mútuo.
Nesta acção o Autor vem invocar os factos que uma vez provados permitem concluir-se pela celebração de um contrato de depósito.
Nas duas acções embora se aluda à compra e entrega das fichas de jogo, o facto de onde emergiu a causa de pedir não foi o facto – entrega das fichas de jogo – mas a razão e o propósito com que foram entregas, na primeira acção para que o valor correspondente às fichas entregues fosse remunerado enquanto estivesse na conta do Autor mediante o pagamento de juros pelo Réu, nesta para que o valor ali ficasse em guarda/depositado para quando o Autor fosse à sala ter as fichas para jogar.
Na primeira acção não se provou a relação de mútuo oneroso – entrega de coisa fungível com determinado valor monetário para ser remunerada mediante o pagamento de juros ficando a parte que a recebeu obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, cf. artº 1070º do C.Civ. -.
Nesta acção vem-se invocar um contrato de depósito – entrega por alguém a outrem de uma coisa, para que a guarde e a restitua quando for exigida -.
Poderia suscitar-se a questão do efeito preclusivo do caso julgado no sentido de que, tendo o Autor invocado os factos naturais e qualificado os mesmos como “empréstimo” já não poder vir a tribunal com base nos mesmos factos invocando tratar-se de um depósito.
Contudo, entendemos que no que concerne ao Autor e à qualificação jurídica dos factos não se verifica o efeito preclusivo.
Sobre esta questão veja-se Acórdão do STJ de Portugal de 12.05.2017 proferido no processo nº 1565/15.8T8VFR-A.P1S1:
«2.1.2. O caso julgado como exceção dilatória: da tríplice identidade exigível para a sua aferição
Conforme ficou referido, para efeitos de exceção, verifica-se o caso julgado quando a repetição de uma causa se dá depois de a primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (cfr. parte final do nº 1 do artigo 580º do Código de Processo Civil).
E o nº 1 do artigo 581º do Código de Processo Civil vem estabelecer que se repete a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2 do mesmo preceito), identidade de pedido quando numa e noutra se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3 do preceito em análise) e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (nº 4 do referido artigo 581º).
(…)
Por sua vez, a identidade de pedido é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos (ainda que implícitos), do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objeto do direito reclamado.
E, assim, ocorrerá identidade de pedido se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional (implícita ou explícita) pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a ação, se pretende obter.
Por último, a identidade de causa de pedir verifica-se quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que emerge o direito do autor e fundamenta legalmente a sua pretensão, constituindo um elemento definidor do objeto da acção.
E, de acordo com a "teoria da substanciação", subjacente ao mencionado nº 4 do artigo 581º do Código de Processo Civil, tal factualidade afirmada pelo autor de que faz derivar o efeito jurídico pretendido terá de traduzir a causa geradora (facto genético) do direito alegado ou da pretensão invocada, de modo a individualizar o objeto do processo e a prevenir assim a repetição da mesma causa.
Visando a salvaguarda de eventuais relações de concurso que se possam estabelecer entre o objeto da decisão transitada e o do processo ulterior, adianta, ainda, TEIXEIRA DE SOUSA que «o caso julgado abrange todas as qualificações jurídicas do objecto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não das qualificações que podem ser atribuídas a esse fundamento3» (in "Estudos sobre o Novo Processo Civil", p. 576).
(…)
2.1.3.3. Dos limites temporais a que o caso julgado está sujeito
Por último, o caso julgado é temporalmente limitado, tomando como referência temporal o momento do encerramento da discussão em 1ª. instância, tal como decorre do disposto no nº 1 do artigo 611º do Código de Processo Civil, pelo que a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
Já para as partes, o estabelecido naquele nº 1 do artigo 611º do Código de Processo Civil significa que têm o ónus de alegar os factos supervenientes, ou a verificação superveniente de factos alegados, que ocorram até ao encerramento da discussão em 1ª. instância.
A relevância desse momento implica, então, a preclusão da invocação, no processo subsequente, das questões não suscitadas no processo em foi proferida a decisão transitada, mas anteriores ao encerramento da discussão e que nele podiam ter sido apresentadas. Ou seja: tal referência temporal do caso julgado consubstancia um momento preclusivo.
(…)
Quanto à posição do Autor, CASTRO MENDES ensinava que «sem sombra de dúvida que a pretensão do autor não está sujeita a este efeito preclusivo» e que «… é lícito ao autor em processo civil formular n vezes a mesma pretensão, desde que a baseie em n causas de pedir» (in “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, p. 179)  
(…)
Por outro lado, importa referir o ensinamento de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA (citado na decisão impugnada), «O âmbito da preclusão é substancialmente distinto para o autor e para o réu. Quanto ao autor, a preclusão é definida exclusivamente pelo caso julgado: só ficam precludidos os factos que se referem ao objeto apreciado e decidido na sentença transitada. Assim, não está abrangida por essa preclusão a invocação de uma outra causa de pedir para o mesmo pedido, pelo que o autor não está impedido de obter a procedência da ação com base numa distinta causa de pedir. Isto significa que não há preclusão sobre factos essenciais, ou seja, sobre factos que são suscetíveis de fornecer uma nova causa de pedir para o pedido formulado.».
Face a isso não resta outra conclusão que não seja a de acompanhar a decisão recorrida de que não há identidade de causa de pedir numa e noutra acção.
Assim sendo será de decidir em conformidade negando provimento ao recurso do despacho saneador na parte em que julgou improcedente a excepção do caso julgado.

2. Recurso da decisão final.

Impugnação da matéria de facto
   
Vem o Autor recorrer da decisão sobre a matéria de facto no que concerne aos quesitos da Base Instrutória 5 a 7, 9 a 11, 13 a 15 e 18.
Em síntese entende o Autor que esta provado que o autor usou as ordens de caixa para comprar fichas de jogo, vindo depois na conclusão 40 sustentar que o recibo da guarda do valor consiste numa confissão de ter recebido as fichas de jogo – fichas vivas – o que reitera na conclusão 44 de que com as duas ordens de caixa que trocou por fichas de jogo vivas as quais foram depositadas conforme consta do documento junto aos autos.

É do seguinte o teor dos indicados quesitos:
«5.º
Em 2012, para facilitar o jogo, o autor abriu no “Clube XXX VIP” no Casino XXX de Macau uma conta para troca de fichas para membro de VIP, com o n.º 959?
Não provado.
6.º
Em 7 de Maio de 2012, no Casino XXX de Macau, para facilitar os jogos em Macau, o autor trocou a quantia de sete milhões de dólares de Hong Kong (HKD7.000.000,00), em numerários, para fichas vivas, e depositou-as na conta para troca de fichas nº 959 titulada pelo autor, junto do balcão da tesouraria no “Clube XXX VIP”?
Provado apenas que em 7 de Maio de 2012 o autor entregou ao primeiro réu uma ordem de caixa bancária no valor se sete milhões de dólares de Hong Kong (HKD7.000.000,00).
7.º
O 1º réu, Chan Yan Hung, contou ao autor que no “Clube XXX VIP” era obrigatório usar fichas vivas da B, e que era necessário depositar numerário na conta bancária aberta em nome da B, para ser poder trocar fichas vivas de igual valor?
Não provado.
9.º
No mesmo dia, o autor entregou, na tesouraria do “Clube XXX VIP” explorado pelo 1º réu no Casino XXX, a ordem de pagamento atrás referida de HKD7.000.000,00 a um funcionário da tesouraria do Clube VIP do 1º réu, pedindo que fosse trocada para fichas vivas a serem depositadas na conta para troca de fichas nº 959, titulada pelo autor?
Provado que no mesmo dia, o autor entregou a ordem de pagamento atrás referida de HKD7.000.000,00 ao 1º réu.
10.º
O funcionário do 1º réu, depois de receber a ordem do pagamento de numerário atrás referida, trocou-a para fichas vivas emitida pela 2ª ré, B, no valor de sete milhões de dólares de Hong Kong (HKD7.000.000,00), e depositou-as na conta para troca de fichas n.º 959?
Provado que um funcionário do 1º réu trocou a referida ordem de caixa por fichas mortas emitidas pela 2ª ré, B, no valor de sete milhões de dólares de Hong Kong (HKD7.000.000,00).
11.º
Ao mesmo tempo, o funcionário da tesouraria do 1º réu, emitiu ao autor, em nome de “Clube XXX VIP”, um “recibo de custódia (Custody Receipt)” no valor de sete milhões de dólares de Hong Kong (HKD7.000.000,00), confirmado com assinaturas do autor e do funcionário da tesouraria do 1º réu?
Não provado.
13.º
No mesmo dia, o autor entregou, na tesouraria do “Clube XXX VIP” explorada pelo 1º réu no Casino XXX, a ordem de pagamento atrás referida de HKD3.000.000,00 ao funcionário da tesouraria do Clube VIP do 1º réu, pedindo que fosse trocada para fichas vivas a serem depositadas na conta para troca de fichas nº 959, titulada pelo autor?
Provado que no mesmo dia, o autor entregou ao 1º réu a ordem de pagamento atrás referida de HKD3.000.000,00.
14.º
O funcionário da tesouraria do “Clube XXX VIP” do 1º réu, depois de receber a ordem de pagamento de numerário atrás referida de HKD3.000.000,00, trocou-a para fichas vivas emitidas pela 2ª ré, no valor correspondente, e depositou-as na conta para troca de fichas nº 959, titulada pelo autor?
Provado que um funcionário do 1º réu trocou a ordem de pagamento atrás referida para fichas mortas emitidas pela 2ª ré, no valor correspondente.
15.º
A fim de provar o valor total das supracitadas fichas depositadas em duas vezes, o funcionário da tesouraria do 1º réu emitiu, em nome do “Clube XXX VIP”, ao autor, um “recibo de custódia (Custody Receipt) no valor de dez milhões de dólares de Hong Kong (HKD10.000.000,00), confirmado com assinaturas do autor e do funcionário da tesouraria do 1º réu?
Provado que a fim de provar o valor total das supracitadas ordens de caixa entregues pelo autor ao primeiro réu, um funcionário deste emitiu, em nome de “Clube XXX VIP”, ao autor, um “recibo de custódia (Custody Receipt) no valor de dez milhões de dólares de Hong Kong (HKD10.000.000,00), confirmado com assinaturas do autor e do funcionário do 1º réu.
18.º
Até à data da dedução da presente acção, o autor ainda tinha fichas de jogo vivas de dez milhões de dólares de Hong Kong (HKD10.000.000,00), depositadas na conta para troca de fichas no “Clube XXX VIP”?
Não provado.».

A convicção do Tribunal a quo quanto à decisão da matéria de facto na parte em que é impugnada e relevante para este recurso é a seguinte:
«Ponderou o tribunal, designadamente, que a testemunha F demonstrou escassa razão de ciência, pois teve conhecimento dos factos sobre que depôs essencialmente por lhe terem sido relatados pelo autor e por ter presenciado o autor a jogar na sala VIP do primeiro réu e noutros locais, mas não presenciou o autor a abrir conta de troca de fichas na sala VIP do primeiro réu, nem a entregar as ordens de caixa, nem a tentar interpelar o primeiro réu para restituir.
Ponderou também o tribunal que as testemunhas G e H revelaram razão de ciência por serem empregadas da segunda ré exercendo funções na contabilidade desta e prestaram depoimento de forma que ao tribunal se afigurou isenta por ser clara, espontânea, pormenorizada e fundamentada. No entanto, o conhecimento revelado por estas testemunhas foi de pendor genérico relativo ao modo como a segunda ré desenvolve a sua actividade comercial e não de pendor concreto sobre a situação concreta que o autor trouxe ao tribunal para ser dirimida.
Quanto à prova documental que versa sobre a matéria da base instrutória, de reduzido valor probatório formal por se tratar essencialmente de meras fotocópias de documentos particulares, com excepção de fls. 118 e 119, foi ponderado considerando que não mereceu ao tribunal razões de dúvida ou suspeição, mas que não é muito esclarecedora dos factos da base instrutória, apenas indiciando alguns deles.
Em resumo, a prova produzida foi muito pouco esclarecedora dos factos relativos ao relacionamento entre o autor e o primeiro réu, ninguém tendo presenciado a quesitada abertura da conta nem ninguém tendo presenciado qualquer situação que demonstre ou indicie que o objectivo do autor e do primeiro réu no quesitado relacionamento entre ambos fosse facilitar o jogo do autor, objectivo até indiciariamente afastado pelo facto de o autor, como afirma nos arts. 43º e 30º da petição inicial, não ter utilizado as quantias alegadamente depositadas na sala de jogo VIP.
(…)
Quanto à abertura de conta de troca de fichas com o nº 959 por parte do autor e quanto ao objectivo da conta (facilitar o jogo), nenhuma prova foi feita, sendo o documento de fls. 77 o único onde se faz referência ao número de conta 959. Apesar de tal documento estar repetido a fls. 118 (em pública forma), 238, 245 e 253 é claramente insuficiente para prova da factualidade questionada no quesito 5º, a qual, por isso, não foi considerada provada. Acresce que a única testemunha que referiu que o autor tinha conta na sala VIP do primeiro réu para jogar e para facilitar o jogo a amigos, foi a testemunha F, a qual revelou débil razão de ciência (informação do autor e frequência da sala VIP) e prestou depoimento conclusivo e pouco pormenorizado, razões por que o tribunal não lhe pode atribuir segurança suficiente para formar a sua convicção no sentido da verificação dos referidos factos. Além disso, o referido depoimento foi algo vacilante, designadamente quando a testemunha, tendo afirmado que acompanhou o autor a jogar na sala VIP do primeiro réu, foi confrontada com a afirmação que o autor não levantou o dinheiro que depositou e respondeu que às vezes o autor levava consigo dinheiro e fichas e, para jogar, não necessitava de levantar o que havia depositado.
Quanto ao que o autor fez na tesouraria do primeiro réu e mesmo se o autor ali se deslocou (quesitos 6º, 7º, 9º, 10º, 11º, 13º, 14º, 16º e 18º), matéria que o tribunal não considerou provada, a convicção, do tribunal teve por base a total ausência de prova que, minimamente, permitisse ao tribunal assegurar-se se o autor se deslocou à tesouraria do primeiro réu e o que ali fez, designadamente se conversou com funcionários, o que disse e ouviu, se procedeu a abertura de conta, ao depósito de fichas, de dinheiro e/ou de ordens de caixa. Nem uma fotografia, uma imagem de vídeo, uma testemunha presencial ou outro meio de prova foi produzido que permita ao tribunal ancorar um juízo de prova minimamente seguro. Assim, o tribunal, dispondo apenas dos documentos de fls. 74 a 77 e 95 a 98 considerou apenas provado que o autor adquiriu duas ordens de caixa, que as entregou ao primeiro réu e que um funcionário do réu as trocou por fichas mortas na segunda ré e emitiu um comprovativo ao autor (quesito 7º, 8º, 9º, 10º, 12º, 13º, 14º e 15º). À escassez da prova acresce ainda para dificultar o esclarecimento do tribunal sobre a relação comercial que existiu entre o autor e o primeiro réu que o autor já antes intentou outra acção (CV2-16-0044-CAO) onde alegou que o seu relacionamento comercial com o primeiro réu foi de empréstimo remunerado, o que é diferente do que alegou nestes autos e que o tribunal não logrou apurar (depósito), divergência que motivou que o autor tivesse dado a justificação de ter havido um “mal-entendido” (art. 10º da réplica) e que a segunda ré tivesse invocado aqui a excepção de caso julgado (documentos de fls. 176 a 275). Acresce ainda para dificultar o esclarecimento do tribunal que a testemunha F, que nestes autos referiu conclusivamente que o autor depositou dinheiro no primeiro réu para facilitar o jogo do próprio autor e de amigos, também prestou depoimento nos autos CV2-16-0044-CAO onde, segundo a fundamentação da respectiva decisão da matéria de facto a fls. 316 a 318, disse que o autor emprestou dinheiro ao primeiro réu e que a própria testemunha chegou a receber juros em representação do autor.
(…)
Quanto ao facto de o funcionário do primeiro réu ter trocado as ordens de caixa do autor por fichas mortas e não por fichas vivas (quesitos 10º e 14º) foi determinante o depoimento da testemunha G que explicou com clareza o relacionamento comercial entre o primeiro réu e a segunda ré em face dos documentos de fls. 95 e 97 que lhe foram exibidos.».

Vejamos então.

Como resulta da factualidade assente o 1º Réu possui licença de promotor de jogo e para exercer essa actividade explorava uma sala VIP num dos casinos da 2ª Ré, mediante a celebração de um contrato de promotor de jogo e de contrato de crédito de promotor de jogo.
Quanto ao quesito 5º
Perguntava-se se o:
- O Autor abriu a conta na sala VIP do 1º Réu com o nº 959;
- Se essa conta foi aberta para facilitar o jogo em 2012?
Da prova produzida e do depoimento da testemunha F que o Autor reproduz nas suas alegações apenas resulta que esta testemunha sabe porque o Autor lhe contou que este tinha uma conta na sala VIP XXX, mas nem sabe o número.
Não foi junto aos autos qualquer registo da abertura de conta como resulta do exercício das funções saber-se que é a forma comum de provar a existência da conta aberta na sala VIP.
O recibo que consta de fls. 77/78, 118/119, 233, 245 e 253 - e que é apenas o mesmo e único documento, nunca o original, uma publica forma e várias fotocópias - diz que receberam do Autor o valor de HKD10.000.000,00 e no espaço reservado a “Remarks”, em tradução nossa “observações”, escreveu-se #959.
Normalmente este número costuma identificar uma conta da sala VIP mas sem melhor prova não podemos extrapolar que assim seja, isto é, não se pode concluir que #959 seja uma conta da sala VIP uma vez que não se faz qualquer prova nesse sentido.
Menos ainda se pode concluir que caso seja uma conta na sala VIP que essa conta seja do Autor porque nem a testemunha ouvida o disse e não há documento que o comprove, para além de que, por ter sido o Autor a entregar o valor que no recibo diz ter sido recebido isso não nos permite concluir que seja o titular da conta. Também resulta das regras da experiência não ser menos comum fazerem-se depósitos nas contas de outros para pagar empréstimos/dívidas de fichas de jogo.
Logo, se não temos o mínimo indício do Autor ter aberto uma conta, nem que essa conta seja a 959,
nem tão pouco de que
#959 corresponde a uma conta da sala VIP,
menos ainda podemos afirmar que o Autor abriu a conta com este ou aquele propósito, pois nem sabemos se há conta.
O ónus de que #959 era uma conta bancária e de que essa conta era do Autor cabia ao Autor por ser um facto constitutivo do seu direito – nº 1 do artº 335º do C.Civ. -.
Logo, não tendo o Autor demonstrado o facto que invocava, apenas se podia responder ao quesito 5º como não provado, nada resultando das conclusões de recurso do Autor que permita concluir com a segurança jurídica necessária em sentido contrário.
Como resulta das alíneas J) e K) dos factos assentes em 7.5.2012 e 7.12.2012 o 1º Réu entregou à 2ª Ré as ordens de pagamento com o nºs C011145XXXXX no valor de HKD7.000.000,00 e C011148XXXXX no valor de HKD3.000.000,00, respectivamente, as quais a 2ª Ré depositou na conta bancária aberta em seu nome.
A ordem de pagamento com nº C011145XXXXX tem também o Nº H 45XXXX e a ordem de pagamento com o nº C011148XXXXX tem também o nº H 48XXXX – cf. fls. 96 e 98 -.
Nas respostas dadas aos quesitos 6º e 9º reconhece-se que o Autor entregou ao 1º Réu uma ordem de caixa no valor de HKD7.000.000,00, mas não se dá como provado que essa ordem de caixa foi para comprar fichas de jogo nem que essas fichas foram depositadas na conta 959. Mas na resposta dada ao quesito 10º reconhece-se que o funcionário do 1º Réu trocou a referida ordem de caixa por fichas mortas emitidas pela 2ª Ré no valor de HKD7.000.000,00.
Ora, aqui resulta haver alguma incongruência.
É certo que nos documentos de fls. 95 a 98 não resulta que quem comprou as fichas de jogo foi o Autor, mas se as fichas são compradas com as ordens de caixa entregues pelo Autor se este invoca que as ordens de caixa foram para compra de fichas - diferente seria se não o invocasse -, resulta das regras da experiência que foi a pedido do Autor que as fichas de jogo foram compradas, pelo que, entendemos que as respostas dadas aos quesitos 6º e 9º devem ser:
6.º
Em 7 de Maio de 2012, no Casino XXX de Macau, para facilitar os jogos em Macau, o autor trocou a quantia de sete milhões de dólares de Hong Kong (HKD7.000.000,00), em numerários, para fichas vivas, e depositou-as na conta para troca de fichas nº 959 titulada pelo autor, junto do balcão da tesouraria no “Clube XXX VIP”?
Provado apenas que em 7 de Maio de 2012 o autor entregou ao primeiro réu uma ordem de caixa bancária no valor de sete milhões de dólares de Hong Kong (HKD7.000.000,00) para ser trocada para fichas mortas.
(…)
9.º
No mesmo dia, o autor entregou, na tesouraria do “Clube XXX VIP” explorado pelo 1º réu no Casino XXX, a ordem de pagamento atrás referida de HKD7.000.000,00 a um funcionário da tesouraria do Clube VIP do 1º réu, pedindo que fosse trocada para fichas vivas a serem depositadas na conta para troca de fichas nº 959, titulada pelo autor?
Provado que no mesmo dia, o autor entregou a ordem de pagamento atrás referida de HKD7.000.000,00 ao 1º réu para ser trocada para fichas mortas.
O mesmo se diga relativamente à relação entre as respostas dadas aos quesitos 13º e 14º, pelo que também a redacção da resposta dada ao quesito 13º deve ser alterada nos seguintes termos:
13.º
No mesmo dia, o autor entregou, na tesouraria do “Clube XXX VIP” explorada pelo 1º réu no Casino XXX, a ordem de pagamento atrás referida de HKD3.000.000,00 ao funcionário da tesouraria do Clube VIP do 1º réu, pedindo que fosse trocada para fichas vivas a serem depositadas na conta para troca de fichas nº 959, titulada pelo autor?
Provado que no mesmo dia, o autor entregou ao 1º réu a ordem de pagamento atrás referida de HKD3.000.000,00 para ser trocada para fichas mortas.
No entanto não se sabendo o que é a observação “#959” – repete-se na ausência de prova não sabemos se é uma conta na sala VIP e se o for não sabemos a quem pertence - nunca se pode responder que as fichas provenientes da troca eram para ser depositadas na alegada conta “#959”.
Para além de que, não há documento algum que prove o depósito das ditas fichas mortas em conta alguma como veremos adiante a propósito do documento de fls. 77/78, 118/119, 233, 245 e 253 - que é apenas o mesmo e único documento, nunca o original, uma pública forma e várias fotocópias -.
Pelo que nada mais há a alterar nas respostas dadas aos quesitos 6º, 9º e 13º.
Quanto aos quesitos 7º, 10º, 11º, 14º e 18º nada se invoca que ponha em crise a resposta dada pelo tribunal.
No que concerne ao quesito 15º face ao que se diz não sabemos de que é que o recibo será, isto é, se das ordens de caixa, se das fichas, se de outra coisa qualquer, uma vez que consta do documento a fls. 77 que foi emitido em 7.12.2012 às 13:15.
Das ordens de caixa não será porque:
- A ordem de caixa de 7.5.2012 no valor de HKD7.000.000,00 nessa mesma data foi trocada em fichas de jogo como resulta de fls. 95 e 96;
- A ordem de caixa de 7.12.2012 no valor de HKD3.000.000,00 às 23.08 do mesmo dia foi trocada por fichas mortas;
Pelo que, tendo o documento de fls. 77/78, 118/119, 233, 245 e 253 sido emitido às 13.15 das duas uma, ou depois do depósito foi levantada para ser trocada por fichas ou não foi esta ordem de caixa que foi dada em depósito uma vez que umas horas depois não estava depositada mas a ser usada para trocar as fichas.
Por outro lado, o Recorrente nas conclusões de recurso 40 e 44 expressamente diz que o que foi depositado foram as fichas de jogo compradas com aquelas ordens de caixa.
Ora, se as fichas no valor de HKD3.000.000,00 são compradas horas depois da emissão do recibo de depósito e as fichas no valor de HKD7.000.000,00 foram compradas 7 meses antes da emissão do recibo é impossível que as fichas no valor de HKD3.000.000,00 hajam sido depositadas cerca de 10 horas antes de serem compradas e não é credível que só 7 meses depois de terem sido compradas hajam sido depositadas as fichas adquirias em Maio.
Certo é, contudo, que contrariamente ao que se diz na decisão da matéria de facto o recibo que consta de fls. 77/78, 118/119, 233, 245 e 253 nunca poderia ser de haverem ter recebido para depósito as ordens de caixa porque uma já havia sido trocada por fichas 7 meses antes daquele recibo ser emitido e a outra 10 horas depois estava a ser trocada por fichas por ordem do Autor segundo o que este alega e se prova.
Logo há contradição entre a resposta dada ao quesito 15º e as respostas dadas aos quesitos 6º, 9º, 13º (com a redacção da resposta a estes já na sequência do recurso), 10º e 14º de onde resulta que as ordens de caixa foram trocadas por fichas a pedido do Autor.
Também dúvidas subsistem que as fichas trocadas por aquelas ordens de caixa tivessem sido o objecto do depósito, as do valor de sete milhões porque é estranho o depósito sete meses depois embora não seja impossível, mas impossível será certamente depositar às 13.15 horas o que só se comprou às 23.08 do mesmo dia – cf. fls. 97 -.
Quesitando-se no item 15º se o documento foi emitido para demonstrar o depósito das fichas, não havendo a resposta a este quesito sido impugnada pelas Rés no sentido de ser dado como não provado, mas havendo contradição entre a resposta dada a este quesito e os já indicados, impõe-se a este tribunal oficiosamente nos termos do nº 4 do artº 629º anular a resposta dada ao quesito 15º da Base Instrutória e remeter os autos ao tribunal a quo para proceder a novo julgamento quanto a esta matéria.
No que concerne à impugnação da resposta dada ao quesito 18º da Base Instrutória nada se alega que demonstre o erro de julgamento, para além de que, o que já se disse para a resposta dada quesito 15º também serve para este uma vez que do que o Autor alega o que resulta é que as fichas no valor de três milhões que alega ter depositado foram compradas 10 horas após a realização do depósito, pelo que é contra a ordem da lógica que pudessem ter sido depositadas antes de pertecerem a quem fez o depósito.
Havendo que proceder a novo julgamento sobre a matéria de facto fica sem efeito a sentença proferida e consequentemente prejudicada a apreciação das demais questões.

III. DECISÃO

  Nestes termos e pelos fundamentos expostos:
  - Nega-se provimento ao recurso interposto da decisão sobre a excepção do caso julgado;
  - Concedendo-se parcial provimento ao recurso interposto da decisão sobre a matéria de facto, alteram-se as respostas dadas aos quesitos 6º, 9º e 13º da base instrutória nos seguintes termos:
  6.º
  Provado apenas que em 7 de Maio de 2012 o autor entregou ao primeiro réu uma ordem de caixa bancária no valor de sete milhões de dólares de Hong Kong (HKD7.000.000,00) para ser trocada para fichas mortas.
  9.º
Provado que no mesmo dia, o autor entregou a ordem de pagamento atrás referida de HKD7.000.000,00 ao 1º réu para ser trocada para fichas mortas.
13.º
Provado que no mesmo dia, o autor entregou ao 1º réu a ordem de pagamento atrás referida de HKD3.000.000,00 para ser trocada para fichas mortas.
- Anula-se a resposta dada ao quesito 15º da Base Instrutória remetendo os autos ao tribunal a quo para repetição do julgamento no que concerne a esta matéria, revogando-se em consequência a decisão proferida.

  Custas pela 2ª Ré quanto ao recurso interlocutório e a cargo da parte que a final vier a ficar vencida quanto ao recurso da decisão final.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 17 de Novembro de 2022
  Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
  Fong Man Chong
  Ho Wai Neng

1 A. VARELA, RLI, 115.º-245.
2 Cfr. Ac. S.T.J., de 24-5-1983, MJ 327.º-653.

3 Realce e sublinhado nossos.
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495/2022 CÍVEL 78