Processo nº 560/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 17 de Novembro de 2022
ASSUNTO:
- Deveres conjugais
- Indeminização
SUMÁRIO :
- O dever de fidelidade, em princípio, deve subsistir na separação de facto, uma vez que ainda se mantém a relação matrimonial, daí que os cônjuges, não obstante separados de facto, deveriam ser mutuamente fiéis.
- No entanto, com o progressivo da separação de facto e tendo em conta a necessidade da natureza humana, não se nos afigura exigível o cumprimento do dever de fidelidade com uma separação de facto de período relativamente longo.
- O dever de respeito, defendemos que a separação de facto não exime tal dever, já que este dever existe não só nas relações matrimoniais, antes é um dever geral da civilização social, resultante da necessidade da tutela da dignidade humana.
- Os danos causados pelo cônjuge culpado ao outro, cujo ressarcimento visa tutelar o artº 1647º/1 do CC, não devem limitar-se aos causados pela própria cessação definitiva dos laços matrimoniais, mas sim devem abranger também os danos produzidos na constância do casamento pelas condutas violadoras de deveres conjugais da autoria do cônjuge declarado culpado que acabaram por ser acolhidas pelo Tribunal para determinar a cessação definitiva das relações matrimoniais. E portanto, o ressarcimento desses danos pode ser peticionado na própria acção de divórcio, e não tem de o fazer em acção autónoma à do divórcio por via do instituto geral da responsabilidade civil.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 560/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 17 de Novembro de 2022
Recorrente: B (Réu)
Recorrida: A (Autora)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
Por sentença de 15/03/2022, julgou-se parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção.
Dessa decisão vem recorrer o Réu B, alegando, em sede de conclusões, o seguinte:
1. Nos autos resultaram provados os seguintes factos: Desde o princípio do ano de 20l4 que a Autora deixou de ter vontade de coabitar e manter a relação matrimonial com o Réu [art. 30.º da Base Instrutória] e a separação de facto de Autora e Réu foi acordada entre ambos em 2014 [art. 42.º da Base Instrutória], pelo que, desde o ano de 2014, apesar de as partes viverem na mesma casa, já se encontravam em separação.de vida, de leito e de mesa; o Réu deixou de contar à Autora sobre o seu paradeiro e trabalho, nem a Autora se preocupava em saber da vida do Réu [art. 20.º da Base Instrutória], sendo que, no princípio do ano de 2018, o Réu abandonou a casa de morada da família em Macau e passou a viver com a tal pessoa de apelido Io e a filha de ambos em Hong Kong [art. 21.º da Base Instrutória].
2. A prova destes factos demonstra que a Autora e o Réu já haviam feito cessar por acordo a comunhão de vida própria do casamento, com o firme propósito de não a restabelecer, o que fez cessar a exigibilidade recíproca dos deveres conjugais, à excepção de dever de assistência, embora este tenha que estar justificado na necessidade - entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação do que se dispõe nos artigos 1638.º e 1536.º, n.º 2, pelo nele positivado e "a contrario", do C.C. de Macau.
3. Cessando nessa data, de inícios de 2014, a exigibilidade de cumprimento recíproco dos deveres conjugais, o cônjuge que tenha o direito de pedir o divórcio com fundamento na violação dos deveres conjugais por parte do outro cônjuge está necessáriamente limitado pelo prazo de caducidade do direito de acção de 3 anos, ou seja, a acção de divórcio com tal causa de pedir teria que ser necessáriamente intentada no ano de 2017, e não em 01 de Março de 2021 como o foi - entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação do que se dispõe no artigo 1641.º do C.C. de Macau.
4. Inexiste alegado ou provado qualquer dano não patrimonial da Autora que tenha por causa a dissolução do casamento por divórcio, casamento que pelos factos acima alinhados se mostrava em completa falência no início de 2014.
5. A Autora só alegou e provou efeitos psicológicas, perturbação psicológica, falta de crença no relacionamento conjugal, afectação da auto-estima e do sonho e expectativa que tinha em relação ao casamento, por longo tempo, devido à traição do Réu, ou seja, os presumidos danos (já que se duvida que se possam considerar as referências "efeitos psicológicos" e "perturbação psicológica" como formas válidas concretização de danos não patrimoniais) ocorreram no passado e a causa dos mesmos foram os actos que consubstanciaram a violação do direito de fidelidade por parte do Réu e não a dissolução do casamento.
6. A sentença do Tribunal "a quo" ao condenar o Réu a pagar à Autora indemnização por estes danos, que decorreram dos actos de violação do dever conjugal de fidelidade por parte do Réu e não da dissolução do casamento por divórcio, incorre em erro de julgamento - entendimento diverso faria indevida interpretação e aplicação do que se dispõe no artigo 1647.º, n.º 1, do C.C. de Macau.
7. Aliás, nos termos dos factos provados alegados pela Autora todo o sofrimento ficou no passado e teve por causa o comportamento de traição do Réu e, desde o princípio do ano de 2014 deixou de ter vontade de coabitar e manter a relação matrimonial com o Réu, sendo que nesse ano acordou com o Réu a separação de facto e a partir desse ano apesar de Autora e Réu viverem na mesma casa, já se encontravam em separação de vida, de leito e de mesa.
8. Inexiste alegado ou provado qualquer dano não patrimonial da Autora que tenha por causa a dissolução do casamento por divórcio, casamento que pelos factos acima alinhados se mostrava em completa falência no início de 2014, pelo que, não pode ser fixada, em termos de equidade, qualquer indemnização para ressarcimento de danos que não foram concretizados.
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A Autora A respondeu à motivação do recurso do Réu, nos termos constantes a fls. 238 a 245, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do mesmo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II - FACTOS
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
a) A Autora e o Réu contraíram matrimónio em Macau, em 08 de Dezembro de 1973.
b) A Autora e o Réu começaram a namorar no ano de 1969, na altura a Autora tinha apenas 21 anos de idade, o Réu foi o seu primeiro e único namorado e marido. (Q. 1º)
c) Durante a constância do matrimónio, tiveram quatros filhos em comum: (Q. 2º)
1. C (C), do sexo feminino, nasceu em 30 de XX de 1974;
2. D (D), do sexo masculino, nasceu em 21 de XX de 1975;
3. E (E), do sexo feminino, nasceu em 25 de XX de 1979;
4. F (F), do sexo feminino, nasceu em 10 de XX de 1981.
d) A Autora é uma mulher muito tradicional e de pensamento tradicional chinês, considera que uma mulher casada tem de apoiar o seu marido e educar os seus filhos, e é normal contribuir totalmente para a família. (Q. 3º)
e) Depois de a Autora se casar com o Réu, ela dava todo o seu tempo ao cuidado do marido e dos filhos, sem reclamação, fazia tudo para o bem da família e para manter uma relação harmoniosa com o marido. (Q. 4º)
f) No final do ano de 1977, a Autora sentiu que o Réu pretendia se afastar dela, ele arranjava muitas vezes pretextos para não regressar a casa durante a noite toda, e saía de Macau por alguns dias ou até por uma semana. (Q. 5º)
g) Finalmente, a Autora descobriu que, frequentemente, o Réu não voltava para casa à noite, porque tinha estabelecido uma relação extraconjugal, já havia algum tempo, com uma colega do serviço, de apelido Io. (Q. 6º)
h) Pouco tempo depois de a Autora ter descoberto os factos, recebeu cartas anónimas, que relatavam que o Réu tinha um relacionamento extraconjugal, o que causou tristeza à Autora. (Q. 7º)
i) O Réu prometeu terminar o relacionamento extra-conjugal e reatar a relação conjugal. (Q. 8º)
j) Como a Autora é uma mulher tradicional e estava convicta de que depois do casamento, esta relação era para sempre e inalterável, protegia sempre essa relação matrimonial de ambos e a vida familiar; jamais aceitaria uma outra pessoa a intervir no casamento; além do mais, na altura, o casal já tinha dois filhos menores, a Autora não queria a ruptura do casamento, assim perdoou o Réu, na esperança de que este voltasse para ela. (Q. 9º)
k) O Réu nunca terminou a relação extraconjugal. (Q. 10º)
l) Na sociedade de Macau dos anos 80, as pessoas eram conservadoras, e não defendiam o divórcio, até o consideravam vergonhoso; portanto, as mulheres dessa época sofriam silenciosamente as dores psicológicas, decorrentes da ruptura do casamento. (Q. 11º)
m) A Autora tinha receio de enfrentar a opinião e os comentários da sociedade e da sua família; depois do casamento, a Autora não tinha qualquer rendimento proveniente do trabalho, vivia sempre à custa do Réu e tinha medo de que se pedisse o divórcio ao Réu, podia prejudicar o crescimento dos filhos; não tendo capacidade financeira para sustentar sozinha a vida dos filhos, a Autora não teve outra alternativa senão continuar a cuidar da família, ao mesmo tempo que suportava grande pressão psicológica.(Q. 12º)
n) A Autora deu à luz as 3ª e 4ª filhas, respectivamente, nos anos de 1979 e 1981, mas, na verdade desde que descobriu que o Réu tinha relação extraconjugal, a Autora deixou de ter vontade de dormir com o Réu no mesmo quarto; como ao longo do tempo, a posição que a Autora ocupava era de subordinação ao Réu, assim a Autora não tinha coragem de se recusar nem resistir aos pedidos do Réu. (Q. 14º)
o) Em 1981, no mesmo ano em que nasceu a 4.ª filha, a amante do Réu, de apelido Io, deu à luz uma filha do Réu em Hong Kong. (Q. 15º)
p) Mesmo após o nascimento das 3ª e 4ª filhas da Autora, o Réu mantinha a relação extraconjugal com a tal pessoa de apelido Io e depois de o Réu ter organizado a vida da tal pessoa em Hong Kong, passou a viver em Hong Kong e Macau. (Q. 17º)
q) A partir do ano de 1995, quando as 3ª e 4ª filhas foram estudar para o Reino Unido, a Autora também as acompanhou para ir ali viver, a fim de cuidar da vida quotidiano dos filhos. (Q. 18º)
r) A partir do ano de 2006, o Réu deixou de pagar à Autora as despesas da casa, ela usava o dinheiro da poupança e o do rendimento de investimento para pagar as despesas da vida quotidiana. (Q. 19º)
s) Desde o ano de 2014, apesar de as partes viverem na mesma casa, já se encontravam em separação de vida, de leito e de mesa; o Réu deixou de contar à Autora sobre o seu paradeiro e trabalho, nem a Autora se preocupava em saber da vida do Réu. (Q. 20º)
t) No princípio do ano de 2018, o Réu abandonou a casa de morada da família de Macau e passou a viver com a tal pessoa de apelido Io e a filha dos ambos em Hong Kong. (Q. 21º)
u) Durante vários anos, quer a família, quer os amigos da Autora e os parceiros e amigos do Réu e até os quatro filhos da Autora sabiam que o pai tinha uma relação extraconjugal e uma filha nascida fora do casamento. (Q.22º)
v) A Autora não tem vontade de manter a comunhão de vida com o Réu. (Q. 23º)
w) A Autora contraiu matrimónio com o Réu no ano de 1973, quando casados ela manifestava sempre sinceridade e contribuía de forma séria no cuidado do Réu e da sua família e disponibilizou a sua vida e amor para a família. (Q. 24º)
x) Devido à traição do Réu e aos efeitos psicológicos desta por longo tempo, a Autora deixou de acreditar no relacionamento conjugal e sentiu-se perturbada psicologicamente. (Q. 25º)
y) A conduta do Réu afectou a auto-estima da Autora e o sonho e a expectativa que tinha em relação ao casamento. (Q. 26º)
z) A Autora nasceu na sociedade dos anos 40 e tinha uma influência profunda do pensamento tradicional, entendia que “uma mulher só tem um único marido”, “devendo cumprir os deveres de esposa perante o marido e a sua família”; a Autora, desde que conheceu, namorou e casou com o Réu, nunca pensou que iria acontecer a ruptura e perda do casamento, a Autora tinha sempre esperança e confiança em relação ao seu casamento e ao Réu. (Q. 27º)
aa) A relação extraconjugal do Réu causou um grande choque à Autora, face à traição do Réu, ela tinha dificuldade em contar esses factos à mãe dele e aos seus amigos e também precisava de cuidar e viver com a família do Réu, razão porque se sentia muito infeliz. (Q. 28º)
bb) O comportamento de traição do Réu provocou na Autora sofrimento psicológico durante muitos anos. (Q. 29º)
cc) Desde o princípio do ano de 2014 que a Autora deixou de ter vontade de coabitar e manter a relação matrimonial com o Réu. (Q. 30º)
dd) Cerca de 1976, já Autora e Réu eram pais de dois filhos, viviam em casa da mãe do Réu juntamente com a irmã e irmão deste, pois o dinheiro não abundava, já que tanto Autora como Réu eram de famílias pobres. (Q. 31º)
ee) O Réu iniciou uma relação afectiva análoga à conjugal com uma colega de trabalho. (Q. 35º)
ff) Numa comunicação via fax endereçada pela Autora ao Réu em 09 de Outubro de 1996 a ré referiu a seguinte expressão, em tradução para a língua portuguesa: “eu tinha sugerido a coexistência de nós os três”. (Q. 39º)
gg) A separação de facto de Autora e Réu foi acordada entre ambos em 2014. (Q. 42º)
hh) A Autora tem actualmente 73 anos de idade. (Q. 44º)
ii) A Mighty ......, Limitada, detida pelo Réu, encontra-se actualmente em funcionamento, matriculada na Conservatória de Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º ****4 SO, com sede da pessoa colectiva em Macau, na Zona de Aterros do Porto Exterior, Rua de ......, n.º ...-..., ...... Centre, ...º andar ... e .... (Q. 45º)
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III – FUNDAMENTAÇÃO
1. Da caducidade do direito da acção de divórcio com fundamentos na violação dos deveres conjugais:
No caso sub justice, o Réu, ora recorrente, foi julgado ter violado os seguintes deveres conjugais:
- o dever de fedilidade, por ter uma relação extraconjugal com outra mulher deste 1977;
- o dever de coabitação, por ter abandonado o lar da família a partir de 2018;
- o dever de assistência, por não ter deixado de contribuir para as despesas domésticas desde 2006; e
- o dever de respeito, por ter uma relação extraconjugal conhecido no círculo social do casal, causando deste modo vergonha e sentimento de desconsideração à Autora.
Na óptica do Réu, à excepção do dever de assistência, os restantes deveres conjugais cessaram em 2014, data em que se ocorreu a separação de facto acordada entre ele e a Autora (facto provado do quesito 42º da Base Instrutória), daí que o prazo de 3 anos da caducidade do direito da acção ao divórcio prevista no artº 1641º do C.C. em relação àqueles deveres deve contar a partir daquela data. Assim sendo, tendo a presente acção interposto em 2021, já se encontra caducado o respectivo direito.
O Tribunal a quo julgou improcedente a invocada excepção da caducidade por entender que se trata duma violação continuada dos deveres conjugais em causa pelo que não se iniciou a contagem do prazo da caducidade.
Quid iuris?
Começamos pelo dever de coabitação.
Salvo o devido respeito, entendemos que tal dever cessa com a separação de facto acordada entre o Réu e a Autora em 2014, já que com a separação de facto, tal dever deixa de existir ou ser exigível por natureza das coisas.
Em relação ao dever de fidelidade, a resposta já não é tão linear.
Na vigência do C.C. anterior, o instituto da separação judicial de pessoas extingue os deveres de coabitação e assistência, mantendo portanto o dever de fidelidade (cfr. artº 1795º-A do C.C. de 1966).
Com a entrada em vigor do actual C.C., o dito instituto deixou de existir.
Em face disso, achamos que o dever de fidelidade, em princípio, deve subsistir na separação de facto, uma vez que ainda se mantém a relação matrimonial, daí que os cônjuges, não obstante separados de facto, deveriam ser mutuamente fiéis.
No entanto, com o progressivo da separação de facto e tendo em conta a necessidade da natureza humana, não se nos afigura exigível o cumprimento do dever de fidelidade com uma separação de facto de período relativamente longo, tal como foi o presente caso, a saber:
O adultério do Réu começou em 1977 e por causa esta atitude infiel do Réu levou que a Autora acordou com este a separação de facto em 2014.
Nesta conformidade, não se nos afigura razoável que decorrido mais de 7 anos após a separação de facto, a Autora ainda poderia servir tal violação como fundamento autónomo do divórcio litigioso em 2021, não obstante se tratar duma violação continuada.
Assim, deveria ser julgado caducado o direito da acção ao divórcio litigioso com fundamento na violação dos deveres de coabitação e de fidelidade.
No entanto, é de salientar que a violação dos referidos deveres conjugais embora não possa relevar como fundamento autónomo da acção de divórcio litigioso por caducidade do direito da acção, a mesma pode relevar para efeitos de determinar a culpa na separação do facto nos termos dos artºs 1638º, nº 2 e 1642º, ambos do C.C..
No mesmo sentido e a título do Direito Comparado, o STJ de Portugal, em 23/05/1996, fixou a seguinte jurisprudência no acórdão proferido Proc. nº 0880921:
“…
- Mesmo que se não considere esta violação do dever de fidelidade como fundamento autónomo do pedido de divórcio, poderá considerar-se causa do alagarmento ou aprofundamento do estado de ruptura das relações conjugais, tal como ela existia, concretamente à data em que foi requerido o divórcio, pelo que não pode deixar de se declarar que o Réu, cônjuge infiel, foi o único culpado do divórcio.
…”.
Quanto ao dever de respeito, defendemos que a separação de facto não exime tal dever, já que este dever existe não só nas relações matrimoniais, antes é um dever geral da civilização social, resultante da necessidade da tutela da dignidade humana.
Nesta conformidade, não se vê como é que com a separação de facto pode deixar exigir o cumprimento desse dever.
Pois, poderá o cônjuge separado de facto ofender o bom nome, a integridade física e/ou moral de outro cônjuge?
A resposta só pode ser negativa.
Pelo exposto, se conclui que o dever de respeito mantém-se durante a separação de facto, quer como dever especial dos cônjuges, quer como dever geral da civilização social.
Outra questão seria se com o progressivo da separação de facto e tendo em conta a necessidade da natureza humana, deixou de ser exigível o cumprimento do dever de fidelidade com uma separação de facto de período relativamente longo, o seu incumprimento por parte do Réu constitui ou não uma violação do dever de respeito em relação à Autora, tal como afirmou o Tribunal a quo.
Trata-se duma questão que não é objecto do presente recurso jurisdicional, pelo que abstemos de se pronunciar sobre a mesma.
2. Da indeminização condenada:
Para o Réu, o Tribunal a quo ao condenar-lhe pagar à Autora indemnização por danos decorridos dos actos de violação do dever conjugal de fidelidade e não da dissolução do casamento por divórcio, incorre em erro de julgamento, violando assim o disposto do nº 1 do artº 1647º do C.C.
Ora, a propósito dessa questão, este TSI já chegou a pronunciar-se em 19/01/2006, no Ac. proferido no Proc. nº 248/2005, nos termos seguintes:
“…
1- A questão a resolver em sede do presente recurso é a de saber se os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento se se reportam ou não a um momento anterior ou posterior à dissolução do casamento.
2- Na sentença ora posa em crise decidiu-se que, “não há lugar a qualquer indemnização visto que o mal sofrido pela A. teve lugar antes do divórcio” e que como tal “não se trata pois de danos que a A. irá ter com o decretamento do divórcio”, tendo-se absolvido o Réu do pedido.
Discorda a recorrente do decidido porquanto entende que a indemnização peticionada se enquadra na previsão do artigo 1647.º do Código Civil, fundamento do pedido formulado que estipula que “o cônjuge declarado único ou principal culpado e, bem assim, o cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea c) do art.º 1637.º devem reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento”.
3- Vejamos se houve errada inadequada interpretação do artigo 1647.ºdo CC. O cônjuge declarado único ou principal culpado deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento.
Assim, apreciando esta questão, a Mma. Juiz entendeu ser necessário indagar quais os danos indemnizáveis e se os houve no caso sub judice.
E não deixou de consignar o entendimento, a que a recorrente anui, de que é já doutrina assente que os danos a indemnizar nesta sede são somente os resultantes da dissolução do casamento, o que significa que os danos não patrimoniais causados por factos que alicerçam tal dissolução ou que precedem o divórcio não são contemplados no referido preceito cujo ressarcimento dever ser pedido em acção autónoma com fundamento no art. 477º do CC, citando Jurisprudência pertinente2.
Mas não concedeu a indemnização, - utilizando as suas palavras -, visto que o mal, sofrido pela A. teve lugar antes do divórcio. Não se trata pois de danos que a A. irá ter com o decretamento do divórcio.
A lucidez da Mma Juiz fê-la agarrar-se a uma incorrecta formulação da letra da norma, da qual parece extrair-se que só os danos resultantes da dissolução e, assim, só após o decretamento do divórcio se poderia aquilatar da existência, natureza e profundidade dos danos causados pelo divórcio. Antes deste ser decretado não podia haver danos resultantes da dissolução pela razão simples de que nesse momento o efeito da acto gerador dos mesmos ainda não podia produzir quaisquer efeitos.
Mas a entender-se desta forma ficaria sem sentido útil o conteúdo do n.º 2 da citada norma que determina que essa indemnização seja pedida na acção de divórcio, o que não pode relevar apenas no sentido processual, isto é que só após a prolação da sentença se aproveitará o próprio processo para abrir um incidente de pedido de indemnização por tais danos. Seguramente não foi isso que o legislador pretendeu e o que se requer é que o pedido seja formulado com o pedido de divórcio, embora, reconhece-se, ainda que com formulação incorrecta.
4- Então como atender aos danos resultantes da dissolução, sem que esta tenha ainda ser decretada? Há que radicar tais danos na situação causada por uma situação de ruptura conjugal que levará à dissolução juridicamente decretada, mas já previamente vivida e sentida por algum dos cônjuges.
Não interessa, pois, argumentar tanto com o facto de a lei contemplar os danos decorrentes da dissolução do casamento e não os danos decorrentes de factos que servem de fundamento ao divórcio, pois há situações em que a interdependência entre umas causas e as outras não deixam de ser uma realidade.
A este propósito passamos a acompanhar o entendimento sufragado em acórdão do STJ3 , que aqui se cita em termos de Direito Comparado, segundo o qual não se pode cair numa distinção especiosa, ausente da observação da realidade da vida, isolando a causa do efeito, esperando que este só aconteça, finda definitivamente a acção, é só então se avaliando a existência e a dimensão do dano não patrimonial sofrido pelo outro cônjuge.
Os factos que são fundamento do divórcio conduzem à dissolução do casal, por culpa exclusiva do Réu, considerado único e principal culpado. Não se pode fragmentar o conjunto, isolando a causa, o meio e o resultado. O elemento ponderativo é o conjunto que levou, por forma inevitável para a Autora, ao resultado dissolutório do casal, sendo esse conjunto a dissolução que a lei refere, sem a dissociar da causa que lhe deu origem. Só quando tudo se liga e conduz ao resultado final, a que o Réu subordinou o abandono do lar, após uma relação de amantismo com outra mulher, deixando de sustentar a família, provocando, deliberadamente, como causa geradora do direito potestativo, o divórcio, que assim logrou obter, contra a vontade da Autora, ora recorrente, se compreende o comprovado desgosto desta. O dano está aí! A menos que se recuse olhar a vida!, como se escreve no aludido acórdão. Se olharmos de lado uma realidade formal, ao salientar a causa, alheia ao mais importante que é o efeito dissuasor do casal, então, em primeiro lugar, só haverá direito à indemnização depois do divórcio; segundo, é preciso uma acção própria, para o exercer - tudo isto contra o que diz o n.º2 do artigo 1792º. Por isso, o rigor formal e académico que emerge da decisão recorrida, partindo da distinção entre causa e efeito, a nosso ver, com o merecido respeito, não tem sentido, e é irrealista, porque o efeito lesivo provocado pelo Réu se destina, exactamente, a criar as condições objectivas do exercício procedente do direito potestativo do divórcio, que sabe que a recorrente não pretendia - divórcio por culpa exclusiva dele - muito embora tenha sido ela a requerer o divórcio, mas a que se terá visto obrigada pela conduta do marido. Deve ser o «pôr fim ao casamento» provocado pelo Réu, com condutas reiteradas ao longo do tempo e a que a Autora terá resistido até ao dia em que resolveu propor a acção, que se deve enquadrar na Ac. 257/2020-10 expressão contida pela dissolução do casal, sendo esta dissolução o resultado final da causa, motivadora do dano que lhe origina e continuará a originar, no futuro, o desgosto de que se queixa e que se comprovou. Não é difícil, perante a matéria que vem comprovada, na fragilidade da avaliação, projectar o desgosto existente num momento futuro. Não se pode exigir mais para prova de sofrimento futuro, sob pena de se pedir o impossível de provar, ou nunca, ou raramente, haver demonstração do direito indemnizatório pela dissolução do casal.
…”
Para nós, esta é a correcta interpretação do artº 1647º/1 do CC e pertinente à boa solução da questão em apreço.
Assim, em nome da celeridade e economia processual, fazemos, com a devida vénia, como nossos fundamentos para negar provimento ao recurso nesta parte.
Na realidade, tal como afirmou este TSI no Ac. de 11/06/2020, proferido no Proc. nº 257/2020, que “no caso do decretamento do divórcio com fundamento na culpa exclusiva ou principal de um dos cônjuges, a cessação dos laços matrimoniais tem de ser baseada nos comprovados factos, imputáveis ao cônjuge declarado culpado e integrantes da violação de determinados deveres conjugais na constância do casamento. Assim sendo, os danos causados pelo cônjuge culpado ao outro, cujo ressarcimento visa tutelar o artº 1647º/1 do CC, não devem limitar-se aos causados pela própria cessação definitiva dos laços matrimoniais, mas sim devem abranger também os danos produzidos na constância do casamento pelas condutas violadoras de deveres conjugais da autoria do cônjuge declarado culpado que acabaram por ser acolhidas pelo Tribunal para determinar a cessação definitiva das relações matrimoniais. E portanto, o ressarcimento desses danos pode ser peticionado na própria acção de divórcio, e não tem de o fazer em acção autónoma à do divórcio por via do instituto geral da responsabilidade civil.”.
*
IV – DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento parcial ao recurso interposto, e consequentemente:
- revogar a sentença recorrida na parte que julgou improcedente a excepção da caducidade do direito da acção em relação aos deveres de coabitação e de fidelidade como fundamentos autónomos do divórcio litigioso, julgando-a procedente nos termos acima consignados; e
- manter a sentença recorrida nos demais decididos.
*
Custas em ambas as instâncias pela Autora e pelo Réu na proporção de 1/6 e 5/6, respectivamente.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 17 de Novembro de 2022.
(Relator)
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro
1http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2296ffadd97b9756802568fc003b2470?OpenDocument&Highlight=0,088092
2 Ac. STJ de 28/05/98, in BMJ, n.º477, pg 521; Ac. STJ de 13/03/85, in BMJ, n.º 345, pg. 414 Ac. 257/2020-8.
3 Ac. STJ, Proc. 02B4593, de 30/01/2003, http://www.dgsi.pt Ac. 257/2020-9.
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