Processo nº 419/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 24 de Novembro de 2022
ASSUNTO:
- Má-fé
SUMÁRIO:
- A figura da má-fé também visa cominar quem não tenha actuado com a diligência que lhe era exigida aquando da preparação e instauração de acção judicial;
- Usar a inscrição do registo predial e cadastral de prédio alheio como sendo aquele de que se arrogava ser possuidor, o qual era omisso no registo predial, não cuidando de forma grosseira se a informação indicada correspondia à verdade é susceptível de integrar o conceito de negligência grave punível nos termos do instituto da litigância de má-fé.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 419/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 24 de Novembro de 2022
Recorrente: A
Recorridos: B, Região Administrativa Especial de Macau e Interessados Incertos
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A instaurou acção contra Região Administrativa Especial de Macau e Interessados Incertos pedindo que seja declarada única e legítima titular do domínio útil sobre o prédio sito no nº 29 da Rua dos ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 4*** a fls. 184 do Livro B21.
Proferida sentença a julgar a acção procedente, vem posteriormente B interpor recurso de revisão ao qual veio a ser concedido provimento sendo anulados os termos da acção posteriores à citação edital e ordenando-se que fosse citado o Recorrente para os termos da causa.
Relegando-se para momento posterior a decisão sobre a litigância de má-fé, veio a ser decidido:
«- julgar improcedente o pedido da Autora A, no sentido de ser a mesma declarada única e legítima titular do domínio útil sobre o prédio n.º 29 da Rua dos ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4***, a fls. 184 do Livro B21;
- julgar improcedente a excepção da inoponibilidade suscitada pelo Interveniente C, uma vez que o mesmo não é terceiro de boa-fé, nos termos do disposto no art. 284º do Código Civil;
- julgar, por provado, procedente o pedido reconvencional formulado pelo Réu/Reconvinte B, declarando-se o mesmo único e legítimo titular do domínio útil do prédio sito em Macau, na Rua dos ......, actualmente com o n.º 34, anteriormente n.º 29, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, descrito na Conservatória sob o n.º 4***, a fls. 184 do Livro B21, por causa da sua aquisição por usucapião;
- ordenar o cancelamento das inscrições n.º ***078G e n.º ***807G da Conservatória do Registo Predial de Macau.».
Posteriormente veio a ser proferida decisão quanto ao incidente de má-fé sendo a Autora condenada no pagamento da multa igual a 30 UC´s e indemnização a favor do Réu/Reconvinte no valor de MOP200.000,00.
Não se conformando com essa decisão veio a Autora recorrer da mesma apresentando as seguintes conclusões:
A. A Autora entende existir 'erre.de. julgamento, tanto de facto como de direito, na decisão que a condenou, como litigante de má-fé, em multa de 30 UCs e em indemnização de MOP$200.000,00 a pagar ao Réu,
B. A acção foi proposta pela Autora em 3.04.2006 com total, inequívoca e clara boa-fé, sem jamais conceber a hipótese de poder estar a lesar os direitos de quem quer que fosse, com a firme convicção de que o imóvel sobre o qual exerce a posse (prédio n.º 29 da Rua dos ......, na Taipa, inscrito na matriz predial sob o artigo ***81) corresponde ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4***.
C. O próprio Tribunal a quo, na sua resposta ao Quesito 57.º, considerou “PROVADO QUE, no sistema da Contribuição Predial Urbana da Direcção dos Serviços de Finanças, a matriz n.º ***81 corresponde à descrição n.º 4*** (fls. 10 dos autos)”. Ademais, o Tribunal a quo, nas respostas aos Quesitos 51.º e 52.º, considerou não ter sido provada qualquer intenção da Autora; ao Quesito 54.º considerou que o único número de polícia que existiu na porta do imóvel da Autora, antes da interposição da acção, foi o n.º 29; ao Quesito 55.º considerou provado que os documentos relativos a contribuições prediais, contribuição industrial e licenças municipais referem que o prédio cuja posse pertenceu a XX (ou seja, o prédio da Autora) era o n.º 29 da Rua dos ......; ao Quesito 56.º, considerou provado que, antes de 24 de Julho de 2015, a descrição predial n.º 4*** indicava que a mesma descrição correspondia ao n.º 29 da Rua dos ......; e, na fundamentação das respostas à matéria de facto, considerou que “(...) também não há prova nos autos que indique, seguramente, que a Autora intentou a acção tendo a plena consciência e o objectivo de “roubar” a descrição n.º 4*** (...)”.
D. Era ao Réu que que cabia fazer a prova de que a Autora tinha litigado com dolo ou negligência grave, prova essa que não fez. E nunca o Réu pediu a condenação do mandatário da Autora como litigante de má-fé, nem provou a existência de qualquer litigância de má-fé do mandatário da Autora.
E. A própria Autora alegou na sua petição inicial que, “em 2005, em virtude do estado de decadência do prédio, foi o mesmo demolido”, pelo que a partir de então a posse da Autora passou a incidir sobre o terreno - se a sua intenção fosse a da apropriação indevida, obviamente que não o teria alegado, pois o prédio do Réu tinha nessa altura (em 2006, e tem ainda hoje em dia, como foi possível constatar por inspecção ao local realizada pelo Tribunal a quo) um imóvel construído!
F. Em 2011 a Autora pediu à Direcção dos Serviços de Finanças da RAEM informação que pudesse esclarecer melhor a questão registral do prédio, tendo sido informada que tal não seria possível - e mostrou ao Tribunal a quo que o fez.
G. A descrição constante do registo é muito antiga, sendo normal que as confrontações actuais não correspondam exactamente ao que era na altura em que o registo foi efectuado; e, também pela sua antiguidade, é normal que a área constante do registo não seja a área exacta. O próprio Tribunal a quo reconheceu que a situação jurídica é complexa em termos registrais, não sendo de-fácil apreensão-até para os operadores judiciários. Pelo que, é perfeitamente normal-que um cidadão médio (um bonus pater familias) considere que o registo predial n.º 4*** seja efectivamente o correspondente à matriz predial n.º ***81 (que é incontestavelmente a do prédio da Autora), conforme a própria matriz refere.
H. A litigância de má-fé pressupõe uma actuação dolosa ou gravemente negligente - cfr. art. 385.º, n.º 2, do CPC -, devendo entenderse a negligência grave “como como imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/12/2016, no processo n.º 1220/14.6TVLSB.L1-7). Não há dolo, e não há qualquer negligência grosseira da Autora, pois estava convicta de que o registo predial correspondia ao seu prédio, dada a c1aríssima referência da matriz predial do seu prédio ao dito registo predial. O próprio Tribunal a quo assim o considerou provado! Pelo que, não pode haver condenação da Autora em multa e indemnização ao Réu.
I. O Tribunal a quo parece fazer decorrer a litigância de má-fé da Autora de uma eventual litigância de má-fé do seu mandatário original, que não se teria certificado que os factos que lhe foram facultados pela Autora, sua cliente, eram correctos. Contudo, os documentos existentes parecem ser esclarecedores, pois não existe qualquer divergência evidente entre o que consta na matriz predial e o que consta no registo predial para o qual a matriz aponta, e inexiste normativo legal que imponha ao advogado que se certifique de que o que o seu cliente lhe comunica é correcto. Veja-se, por todos, em termos de direito comparado, o acórdão de 7 de Fevereiro de 2017 do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º 2520/12.5TBPBL.C1, em que se refere que “A má-fé do advogado exige uma clara, pessoal e direta intervenção/responsabilização nos/pelos factos de que-decorre a má fé do cliente (…)”, e que “Não preenche a previsão desta norma não ter o advogado diligenciado pela certificação da veracidade do facto alegado pelo cliente (…)”.
Pelo Réu e Reconvinte foram apresentadas contra-alegações de onde constam as seguintes conclusões:
I. Na essência do alegado pela Recorrente, esta opõe-se à sua condenação como litigante de má fé pelo “(...) facto de a matriz predial urbana, nas finanças, fazer referência clara de que a matriz n.º ***81 - que é indubitavelmente a matriz do prédio da Autora - corresponder à descrição predial n.º 4***. (...)”;
II. No entanto, quer a documentação existente no momento da propositura da acção quer os factos que sempre foram do conhecimento da Recorrente - e que resultaram provados - eram suficientes para esta concluir que a descrição predial n.º 4*** correspondia ao prédio possuído pelo Recorrido e que ao prédio por si possuído não correspondia qualquer descrição predial;
III. A correspondência da descrição predial n.º 4*** com o número policial “34”, prédio possuído pelo Recorrido, sempre resultou clara da área constante do registo predial (59,60 m2) e sua correlação com aqueloutras áreas constantes das plantas cadastrais definitivas (de 1998), sendo a área de 59,60 m2 quanto à planta n.º 1119.013 e a área de 83,80 m2 quanto à planta n.º 1129.013, sendo esta última a relativa ao prédio onde habitou a Recorrente, a qual, aliás, faz-referência à matriz n.º ***81, sendo o prédio do Recorrido omisso na matriz (cfr. fls. 461 e ss dos autos e fls. 114 a 115v do Apenso A, processo n.º CV2-06-0020-CAO-A);
IV. Por outro lado, atentas as confrontações constantes das plantas cadastrais definitivas (de 1998), a descrição predial n.º 4*** só se poderia objectivamente referir ao prédio possuído pelo Recorrido, confrontando a norte com a Rua dos ......, sendo que o prédio que a Recorrente pretendia adquirir e que habitou durante mais de 20 anos confronta a Sul com essa mesma Rua dos ......, e sendo as restantes confrontações todas diferentes;
V. Tal entendimento, embora com contornos a definir após a ordenada remessa dos autos à primeira instância, tinha já sido notado pelo TSI, no seu Acórdão de 7 de Dezembro de 2016, proferido no âmbito do Recurso Extraordinário de Revisão, o qual correu termos sob o n.º de processo 737/2016 (cfr. fls. 267v e ss do processo CV2-06-0020-CAO-A), aí se referindo que “(...) Quanto à autora, no mínimo o que podemos dizer é que também ela não se deu ao cuidado de promover ou realizar diligência prévia no sentido de obter melhores elementos sobre o assunto antes de instaurar a acção. Uma tal omissão terá sido intencional ou dolosa por parte da autora? Se sim, estaremos perante uma formidável má fé, provavelmente com contornos de actividade criminal. Se não, tudo parece apontar para um tremendo equívoco. De qualquer maneira, o tribunal não pode ficar indiferente e deixar escapar a oportunidade de repor a verdade material e de a agasalhar com a manta da lei (…)” – (Realce nosso);
VI. No mesmo Acórdão mais se referiu que “(…) Mas, como é claro, ainda isso mais será de relevar se tivermos em apreço o facto alegado (a provar em sede própria) no art. 9º do articulado de revisão (fls. 5 dos presentes autos), onde se esclarece que a autora não podia desconhecer este facto se a autora e o réu, e sua família, viveram na mesma rua (bem estreita, de escassos metros de largura), uns em frente aos outros durante mais de vinte anos. Mas, como é evidente, só no momento e fase próprias do processo é que tudo isto será tido na devida ponderação e esclarecido (…)”;
VII. Tal facto foi provado em sede própria, com a resposta dada ao Quesito 18.º: “PROVADO QUE, antes de a Autora se mudar do prédio indicado a fls. 115 e verso do Apenso A para outra casa em data não apurada entre 2000 a 2008, ela morou mais de 20 anos no prédio acima referido (que quando a Autora saiu tinha o n.º 29 e antes da alteração determinada em 1935 pela então Comissão Municipal da Ilhas tinha o n.º 30), em frente ao Prédio referido na al. A e B dos Factos Assentes, tendo mantido com o Réu B e com a sua família relações de vizinhança.”;
VIII. Mesmo assim, diga-se com todos os elementos de prova já existentes à data da entrada da petição inicial, com aqueloutros carreados para o processo pelo Recorrido, com a matéria dada por provada após produção de prova e com a chamada de atenção do TSI supra transcrita, a Recorrente, em consciência, defendeu e persistiu na defesa da sua posse ao longo de todo o processo, relativamente à descrição n.º 4***, pelo que, também pelos fundamentos assertivamente invocados na Decisão do Tribunal a quo constante de fls. 1055 e ss., litigou de ma fé.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Nestes autos foi proferida a seguinte decisão, a qual é objecto deste recurso:
«O réu/reconvinte B (B) pediu, em sede de contestação, para condenar a autora A (A) como litigante de má fé, e no pagamento da indemnização incluindo as despesas já assumidas pelo réu/reconvinte ou as despesas futuras causadas pelos actos de litigância de má fé, e os honorários do patrono, cujo montante será liquidado ao final.
Salvo o devido respeito, e mesmo na perspectiva da ponderação das defesas apresentadas pela autora e pelo seu mandatário, Dr. D, nas fls. 993 a 996, e 1050 a 1054 dos autos, crê-se que a autora agiu, pelo menos com negligência grave, ao instaurar a acção em causa tendo por objecto o prédio descrito sob o n.º 4***.
Segundo as informações do registo predial (vide as fls. 272), o prédio descrito sob o n.º 4*** tem a área registada de 59,6 metros quadrados, com as seguintes confrontações: N – Travessa das ......; S – Rua dos ......; E – Rua da ......; W – a casa da Rua dos ...... n.º 27.
Consta das fls. 114 e v do anexo A a planta cadastral definitiva do prédio possuído pelo réu/reconvinte B, correspondente à descrição n.º 4***, segundo a qual a área é de 52 metros quadrados (52m2), com as seguintes confrontações: N – Travessa das ......; S – Rua dos ......; E – Rua do ......; W – Rua dos ...... n.º 67 e Travessa das ...... n.ºs 9-11 (n.º ***9), Rua dos ...... e Travessa das .......
Consta das fls. 115 e v do anexo A a planta cadastral provisória do prédio sucessivamente ocupado pela autora e pelo interveniente C (C) (ou seja a pessoa que adquiriu os direitos junto da autora), segundo a qual a área é de 82 metros quadrados (82m2), com as seguintes confrontações: N – Rua dos ......; S – Rua dos ......; E – Rua dos ......, Rua dos ...... n.º 22 e terreno que se presume omisso na C.R.P., junto à Rua dos ......; W – Rua dos ...... n.º 27 (n.º ***17) e terreno que se presume omisso na C.R.P., junto à Rua dos .......
De acordo com as supracitadas informações das confrontações e áreas de terreno, é objectivamente óbvio que a autora, em sede de petição inicial, confundiu o prédio descrito sob o n.º 4*** com o prédio ocupado por ela.
Na verdade, há apenas dois documentos relevantes em anexo à petição inicial, ou seja, respectivamente, a inscrição válida do prédio descrito sob o n.º 4*** constante das fls. 6 a 9 dos autos, segundo a qual a área do prédio é de 59,6 metros quadrados, sem informações relativas às confrontações; e o modelo M/11 da contribuição predial urbana constante das fls. 10 dos autos.
De facto, após a leitura dos dois documentos acima referidos, pode-se verificar duas divergências evidentes e significativas:
1. A área indicada no primeiro documento é de 59,6 metros quadrados, mas a área indicada no último é de 83,800 metros quadrados;
2. No primeiro documento, a matriz predial é “omissa”, e no último consta o artigo matricial “***81” (de facto, o advogado Dr. E (E) que preencheu e assinou o respectivo modelo M/11 também apontou que a matriz predial do prédio descrito sob o n.º 4*** é “omisso”).
Face às aludidas divergências significativas, se a parte activa, antes da instauração da acção, não realizasse diligência probatória adequada, por exemplo, verificar com a Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro (como a medida semelhante constante das fls. 114 a 115v do anexo A), ou solicitar ao então Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais que verifique o respectivo número policial (como nas fls. 25 a 29 do anexo A), e intentasse de imediato a acção, obviamente não se verificou a devida atitude de um autor racional e prudente.
Por outro lado, segundo o que alegou a autora na petição inicial, desde os anos 40 do século passado, XX já tinha posse sobre o imóvel n.º 29 possuído por ela, no entanto, não se encontra o nome de XX na certidão de registo predial em anexo à petição inicial (da outra certidão de registo predial constante das fls. 272 e 273 dos autos consta o nome do respectivo titular registado, que dê, no mínimo, a conhecer o apelido “##” desse titular1). Quando a inscrição válida do prédio descrito sob o n.º 4*** constante das fls. 6 a 9 dos autos não indique o nome do titular do domínio útil, é ainda mais necessário que a autora realize a respectiva diligência.
Mesmo com abstracção das circunstâncias de serem adjacentes os prédios ocupados respectivamente pela autora e pelo réu/reconvinte (e pelo seu pai), serem as duas partes vizinhas por muitos anos, o interveniente C exigir no dia 24 de Julho de 2015 a alteração do número policial de 29 para 34, e na verdade, o prédio ocupado pela autora não se encontrar descrito na C.R.P., de qualquer modo, face ao terreno nos bairros antigos cujo registo predial foi aberto há muito tempo, é responsável a parte activa, antes da instauração de acção, por apurar com prudência qual terreno no registo predial é que corresponde ao prédio ocupado por ela, de modo a não prejudicar o direito de outrem.
E o respectivo apuramento deveria ser feito antes, e não depois da instauração da presente acção, ou apenas no ano 2011, pelo que o documento constante das fls. 997 a 1032 não tem qualquer relevância para a apreciação das questões.
Embora o Tribunal não saiba que ao instaurar a presente acção, quanto conhecimento jurídico é que tinha a autora, que já se encontrou acamada em 20 de Maio de 2021 (vide as fls. 929 dos autos), e independentemente da veracidade do depoimento prestado pelo genro da autora F (F) na audiência no sentido de que a autora tinha transmitido o direito sobre o terreno em causa a outrem antes da instauração de acção, salvo o devido respeito por opinião diferente, o mandatário da autora, ou seja Dr. D, é um operador de direito profissional, e na preparação e elaboração da petição inicial, necessita de analisar prudentemente o conteúdo alegado na petição e os respectivos anexos, sendo esta a razão por que o Código de Processo Civil de Macau obriga as partes a ser representadas por advogados2. De facto, no que diz respeito às questões manifestamente profissionais e jurídicas, não se afigura que as respectivas questões não merecem o prudente juízo e apuramento por parte do advogado, senão, será equivalente a abaixar a importância do advogado, e considerá-lo como um carimbo de borracha da parte (quer dizer, independentemente da irrazoabilidade das pretensões da parte, o advogado só tem que agir de acordo com as instruções da parte). Obviamente, não é de acolher tal interpretação.
Se a autora e seu advogado, Dr. D, que preparou e apresentou a petição inicial em questão (examinar e analisar os documentos constantes das fls. 6 a 10 dos autos3, e em consequência, preparar a petição inicial, já se encontram no âmbito das atribuições e do juízo profissional do advogado, e não são algo dominado apenas pela vontade ou conhecimento da própria parte), tivessem procedido à análise adequada até à diligência probatória, seria possível evitar o erro existente na petição. Na verdade, como atrás já se referiu, só é preciso aferir simplesmente as confrontações e áreas do prédio ocupado pela autora e do prédio descrito sob o n.º 4***, qualquer autor razoavelmente prudente e de normal diligência pode notar, e deve notar as diferenças significativas entre as áreas e descrições das confrontações dos dois prédios.
A parte activa não agiu com prudência e instaurou a acção em causa, tendo, erradamente, por objecto o prédio descrito sob o n.º 4***.
Por isso, afigura-se-nos que: independentemente de a parte activa ter ou não, no seu mundo interior, conhecimento do respectivo erro4, ela agiu, pelo menos com negligência grave, ao instaurar a acção em causa com a respectiva petição inicial.
Se for provado o dolo da parte activa, isso significa que foram dolosamente praticados os actos de litigância de má fé, que são susceptíveis de constituir crime, como indicou o TSI no anexo A (processo que corre termos sob o n.º 737/2016)5.
Cremos que, não deve o verdadeiro titular do prédio correspondente à descrição n.º 4*** (ou seja o réu/reconvinte B), por causa da acção instaurada pela autora (pelo menos) com negligência grave, que tem por objecto a aludida descrição predial, sofrer prejuízos incluindo constituir advogado para interpor recurso de revisão, e defender-se na presente acção.
Também queremos apontar que, tal como o TUI recordou no seu Acórdão de 18 de Junho de 2021, proferido no Processo n.º 200/2020:
“Na verdade, a condenação de uma parte como litigante de má fé traduz um juízo de censura sobre a sua atitude processual, visando o respeito pelos Tribunais, a moralização da actividade judiciária e o prestígio da justiça.
Emergente dos princípios da “cooperação”, da “boa fé processual” e da “recíproca correcção”, (cfr., art.ºs 8.º, 9.º, e 10.º do C.P.C.M.), a figura da má fé processual pretende cominar quem, dolosamente ou com negligência grave, ponha em causa tais princípios, que a eles tem subjacente a boa administração da Justiça.
Em conformidade com o exposto, considerando-se que no âmbito dos presentes autos de recurso ocorreu um uso abusivo do processo, em desrespeito dos aludidos princípios, mostrando-se-nos de considerar também que a falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida não deixa de integrar o conceito de negligência grave, e observado que foi o contraditório, vai o requerente/recorrente condenado por litigância de má fé na multa de 20 UCs; (cfr., art. 385.º, n.º 1 do C.P.C.M. e art.º 101.º, n.º 2 do R.C.T. aprovado pelo D.L. n.º 63/99/M de 25.10).
Considerando-se igualmente verificada a circunstância a que diz respeito o art.º 388.º do C.P.C.M., cabe também decidir em conformidade.” (sublinhado nosso)
Pelas razões expostas, e nos termos do art.º 385.º, n.º 1 e n.º 2, al.s a) e b) do CPC, este Tribunal decide condenar a autora como litigante de má fé, com fundamento em que instaurou, pelo menos com negligência grave, a acção em causa que teve por objecto o prédio descrito sob o n.º 4***, bem como condenar a autora no pagamento da multa de 30UCs e de uma indemnização ao réu/reconvinte B pelos seus actos de má fé.
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Relativamente ao montante da indemnização, é de mencionar que, o réu/reconvinte B não se limitou simplesmente a defender-se, mas também deduziu reconvenção. Por isso, independentemente dos actos de litigância de má fé da autora, o réu/reconvinte pretende ser reconhecido, por usucapião, como titular registado do prédio descrito sob o n.º 4***, e também tem que assumir as despesas correspondentes por sua conta própria. Com base nisso, ao abrigo dos dispostos no art.º 386.º, n.º 3 e n.º 4 do CPC, e no art.º 560.º, n.º 6 do Código Civil, e tendo em consideração as despesas necessárias para a defesa (incluindo o recurso de revisão, mas não a reconvenção) do réu/reconvinte B, e a quantia a receber pelo réu/reconvinte a título de “procuradoria” através do mecanismo das custas processuais, este Tribunal entende que não pode ser integralmente satisfeito o montante da indemnização de MOP$600.000,00 pretendido pela autora nas fls. 1042 a 1046 (ainda que não haja razão para duvidar o pagamento efectivo das respectivas despesas).
É de salientar que, na fixação da indemnização dos honorários de advogados, o respectivo montante não é necessariamente determinado em conformidade com o pretendido pelas partes. O que pode ocorrer é, num processo relativamente simples, uma parte excessivamente prudente constituiu vários advogados para a sua defesa, e pagou honorários relativamente elevados. Perante tal situação, cabe ao tribunal, nos termos do art.º 386.º, n.º 3 e n.º 4 do CPC, e do art.º 560.º, n.º 6 do Código Civil, fixar um montante que considere razoável.
Nestes termos, este Tribunal decide condenar a própria autora a pagar ao réu/reconvinte uma indemnização no montante de MOP$200.000,00 (considerando que se trata dum litígio de direitos sobre terreno, e que o réu/reconvinte necessita de formular pedido de usucapião para se defender da autora, acredita-se que esse montante é razoável conforme o art.º 386.º, n.º 3 e n.º 4 do CPC).».
Concordando com a Douta decisão recorrida à qual nada mais há acrescentar a cujos fundamentos aderimos integralmente e para os quais remetemos nos termos do nº 5 do artº 631º do CPC, impõe-se negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 24 de Novembro de 2022
(Relator)
Rui Carlos dos Santos Pereira Ribeiro
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Fong Man Chong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Ho Wai Neng
1 Nesse sentido, cfr. o Acórdão proferido pelo TSI no anexo A (vide as fls. 268 do anexo A).
2 Neste sentido, cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª Edi., 1948, reimpressão, 2004, Coimbra Editora, p. 104 e 105; Lebre Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código Processo Civi Anotado, Vol. I, 2ª Edi., 2008, Coimbra Editora, p. 72 e 73; Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil – Acção Declarativa Comum, 3ª Edi., 2018, CFJJ, p. 378 e 379.
3 E após examinar as datas do requerimento dos documentos, é razoável inferir que tais documentos foram requeridos a fim de instaurar a acção em causa.
4 Mas sabemos que, em certas situações, a simples boa fé subjectiva não é suficiente, por ser possível o incumprimento, por uma parte de boa fé subjectiva, do dever de prudência e diligência de bom pai de família exigido em casos gerais, o que não pode ser considerada como boa fé objectiva.
5 O texto original é “Quanto à autora, no mínimo o que podemos dizer é que também ela não se deu ao cuidado de promover ou realizar diligência prévia no sentido de obter melhores elementos sobre o assunto antes de instaurar a acção. Uma tal omissão terá sido intencional ou dolosa por parte da autora? Se sim, estaremos perante uma formidável má fé, provavelmente com contornos de actividade criminal. Se não, tudo parece apontar para um tremendo equívoco. De qualquer maneira, o tribunal não pode ficar indiferente e deixar escapar a oportunidade de repor a verdade material e de a agasalhar com a manta da lei.”
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419/2022 CÍVEL 37