Processo nº 428/2022
(Reclamação para a Conferência)
I – Introdução
Em 13 de Outubro de 2022 foi proferido por este TSI o acórdão constante de fls. 461 a 483, que foi notificado às Partes em 19/10/2022 (fls. 486), veio o Recorrente (A) em 01/11/2022 pedir a declaração da nulidade do acórdão com os fundamentos constantes de fls. 488 a 499, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais.
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Ao Recorrido (B) foi notificado o pedido em causa em 08/11/2022 (fls. 501 dos autos), tendo oferecido a resposta constante de fls. 502 a 508, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais, defendendo a improcedência da reclamação.
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Cumpre analisar e decidir.
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II – Apreciando
No essencial o Reclamante invocou o seguinte:
“(…)
6. A referida violação do artigo 388.º do Código Civil e o recurso a uma questão de direito (a interpretação manifestamente contrária à letra do próprio contrato, violando os termos do artigo 228.º, n.º 1, do Código Civil), configuram questões de direito com reflexos na matéria de facto que não se resolvem com base no artigo 599.º do Código de Processo Civil.
(...)”
Veio a concluir desta forma:
10. Lido com cuidado o acórdão constata-se que o Tribunal de Segunda Instância não se pronunciou de todo sobre a impugnação da resposta dada ao quesito 28.º da Base Instrutória.
11. Em face da presente arguição de nulidade não se diga que estão em causa questões sem importância (se assim fossem nem sequer teriam sido quesitadas), dado que a alteração das respostas nos termos propugnados em sede de alegações de recurso provocam um volte-face à solução jurídica do caso.
12. É que não havendo prova da existência de qualquer acordo meramente verbal quanto à "guarda" da Pintura pelos C e D, a celebração do contrato de trespasse a fls. 162 a 166 dos autos levou a que os referidos C e D tivessem julgado legitimamente que lhes pertenciam todos os bens móveis que se encontravam no interior do Restaurante (entre os quais a Pintura), dedução que é clara e evidente em face do teor do contrato e das suas acções, nomeadamente a doação da pintura conforme o facto assente do ponto J.
13. É esta a interpretação do contrato de trespasse por parte de um declaratário normal (e não um Tribunal ou um jurista) em face do artigo 228.º, n.º 1, do Código Civil, como se alegou em sede de recurso.
14. Desconhecendo C e D, em absoluto, que a Pintura não era propriedade dos alienantes do Restaurante, onde a mesma se encontrava, mas do Autor, com o qual aqueles adquirentes do Restaurante nunca tiveram qualquer contacto, nem antes nem depois do trespasse, num período que foi de duas décadas.
15. Agiram, por isso, na convicção de serem proprietários de todos os bens integrados no Restaurante, entre os quais a Pintura, e exerceram sobre eles uma posse pública, pacífica, titulada e de boa fé sobre durante pouco mais de 20 anos.
16. Tendo decidido doar a Pintura ao Réu, aqui Recorrente, este pode efectuar a acessão na posse nos termos permitidos pelo artigo 1180.º n.º1, do Código Civil, podendo assim reclamar a usucapião da Pintura ao abrigo dos artigos 1212.º e 1224.º do Código Civil.
17. Não foi por acaso que o próprio Autor procurou contrariar esta posse com animus domini de C e D alegando em sede de Réplica que "O Restaurante XXX não foi alienado a C e D," (artigo 21.º da Réplica) mas "Foi tão-só cedido o seu uso e exploração, na sequência do contrato de arrendamento (...)" (artigo 22.º da Réplica) e "Assim sendo, enquanto arrendatários C e D, eram meros detentores do Restaurante, e sabiam que um dia teriam de devolver o Restaurante ao seu proprietário, o Autor. Por outras palavras," (artigo 23.º da Réplica), "A alegada posse de C e D sobre o Restaurante e os bens que o compunham trata-se, pois, de uma detenção ou posse em nome alheio, e não uma posse com animus domini." (artigo 24.º da Réplica).
18. É por isso inegável para a boa solução jurídica da causa o exame das questões supracitadas e sobre as quais o Tribunal de Segunda Instância omitiu pronúncia.
Nestes termos e no mais de Direito, requer-se a V. Ex.ªas, Venerandos Juízes do Tribunal de Segunda Instância, que considerem procedente a presente arguição de nulidade do acórdão proferido em 13 de Outubro de 2022 no Processo n.º 428/2022 por omissão de pronúncia ao abrigo do artigo 571, no. 1, al. d), do CPC.
Em conformidade com a presente arguição e com as alegações de recurso, deveria o Tribunal de Segunda Instância proferir novo acórdão, onde se apreciam as questões de direito colocadas em face dos quesitos 10.º a 14.º e 21.º a 25.º da Base Instrutória e a impugnação da resposta dada ao quesito 28.º da Base Instrutória, alterando-se as respostas dadas de acordo com o requerido em sede de alegações de recurso, provocando uma alteração à solução jurídica do caso e a declarar-se que:
1) O Réu/Reconvinte é o legítimo possuidor e proprietário da Pintura de E, adquirida por usucapião, uma vez que por força da acessão da posse, possui aquela obra há mais de vinte anos e,
2) Condenar o Autor/Reconvindo a reconhecer que o Réu é o legítimo proprietário da referida obra de arte.
No acórdão ora reclamado, chegamos a apreciar todas as questões levantadas pelo Recorrente, nomeadamente no que se refere à impugnação da resposta dos quesitos indicados pelo mesmo, altura afirmamos expressamente:
“(…)
Depois, o Recorrente veio a impugnar também as respostas dos seguintes quesitos (10º a 14º , 21º a 28º):
10º
(…)
Sobre esta parte da matéria, o Tribunal Colectivo fundamentou a sua posição nos seguintes termos:
“De acordo com o depoimento das testemunhas do Réu, em conjugação com as fotografias juntas aos autos de fls. 103 a 106, e na sequência da convicção sobre os factos dos quesitos 21° a 25°, permite concluir os factos dos quesitos 26°, 27° e 28° nos termos respondidos.
Segundo o depoimento das testemunhas do Autor e tendo em conta a posição tomada pelas partes, é de concluir que o Réu recusou a devolver o quadro, dando-se como provado o facto do quesito 15°. Porém, como não há qualquer reporte quanto aos outros meios de interpelação ao Réu, apenas se considera como provado o facto do quesito 17° nos termos respondidos.
Porém, não se consideram como provados os factos dos quesitos 16°, 18° e 19°, por não ter produzido provas suficientes que permitem ter convicção positiva sobre esses pontos.
Ora, é de ver, mais uma vez, o que o Recorrente fez é atacar a convicção do julgador, limitou-se a fazer esforços para que a versão factual que lhe seja favorável possa ser aceite, mas fz-lo sem fundamentação factual.
É de realçar um ponto: o que se discute essencialmente é procurar saber se o Recorrido é ou não proprietário da pintura ora por ele reinvindicada, no caso de sim, com que legitimidade é que o Recorrente vinha afirmar que ele tem direito sobre tal pintura? De realçar igualmente que este objecto, um qudro de pintura, enquanto peça artística que é, não faz parte dos componentes integrates de restaurante, e como tal a sua cedência depende de acordo expresso das partes legítimas! Pelo que, todas as outras questões são irrelevantes para este processo.
Como o Recorrente não conseguiu apresentar provas bastantes para convencer o Tribunal que ele tem “título” bastante do quadro de pintura, nem no julgamento de 1ª instância, nem nesta sede de recurso, concretamente dita, nesta parte da impugnação da matéria de facto, é de rejeitar também esta parte do recurso, por incumprir o ónus especificado no artigo 599º do CPC.
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Por isso, vai rejeitar liminarmente esta parte do recurso que a Recorrente interpôs para atacar a matéria de facto, por desrespeitar o artigo 599º do CPC.
Rejeita-se o recurso nesta parte.
(…)”.
Agora, em sede da reclamação, a Recorrente veio a imputar ao acórdão o vício de omissão de pronúncia, por entender que este TSI não valorou devidamente o depoimento de testemunhas e como tal violou o artigo 388º do CCM.
Será?
Ora, para responder às questões suscitadas pelo reclamante nesta sede importa destacar os seguintes aspectos:
1) - Tal como se refere anteriormente, em causa nos presentes autos está apenas saber se a Pintura foi incluída ou excluída do contrato de trespasse, pelo que o que está em causa não é uma convenção verbal contrária ao contrato de trespasse, mas antes de questão de mera interpretação do conteúdo e âmbito do objecto do trespasse.
2) - Em causa está a interpretação do conteúdo e âmbito do trespasse, sendo de aplicar o disposto no art. 387.°, n.º 3 do Código Civil que diz expressamente ser admissível prova testemunhal respeitante à interpretação do contexto do documento.
3) - No caso em apreço, uma Pintura não tem qualquer relação com a cessão de um estabelecimento comercial cujo objecto social é a exploração de um restaurante, nos termos e com o alcance definidos pelo artigo 105.° (âmbito da empresa na alienação) do Código Comercial, tal como decidimos anteriormente.
4) - A existência do trespasse não implica a transferência da titularidade da Pintura.
5) - Ao caso não tem, portanto, a aplicação o disposto no art. 388° do Código Civil, mas antes o disposto no art. 387°, n.º 3 do mesmo diploma legal.
6) - Citando João Gil de Oliveira e José Cândido de Pinho, in Código Civil de Macau Anotado e Comentado, V, pág. 561), pode ler-se o seguinte:
"Há, no entanto, excepções às regras dos n.ºs 1 e 2.
A primeira delas vem imediatamente plasmada no n.° 3, que reproduz a ideia de que a prova testemunhal é admissível juxta scripturum, ou seja, para efeitos de extrair o justo sentido da declaração escrita. (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, pág. 318; Vaz Serra, Provas, no BMJ n.° 112, pág. 203 sgs.)
Decorre, assim, desse preceito a noção de que, ao contrário do que é vazado nos números anteriores, já é possível fazer-se prova testemunhal desde que limitada à interpretação do "contexto do documento ". Nesse caso, o que se acentua é a ideia de que o negócio celebrado - ou alguma das suas cláusulas - pela forma prescrita na lei ou segundo a convenção das partes está sujeito a interpretação. (...) Para além desta situação de excepção, ainda há a considerar as demais regras de interpretação das declarações dos negócios formais, segundo o disposto no art. 230.° supra, que tem por vocação permitir que o sentido da declaração - que deverá, em princípio, ter um mínimo de correspondência no texto, mesmo que imperfeitamente expresso (art. 230.º n.°1) – possa ser alcançado através de prova testemunhal de forma a se lograr determinar a vontade real do declarante. (...)"
Nesse mesmo sentido, e a título meramente exemplificativo, veja-se o Ac. da RC, de 4/11/1986, Processo n.º 16093, em cujo sumário se pode ler o seguinte: "É admissível prova por testemunhas para prova de quesito sobre a averiguação da intenção ou vontade dos contraentes expressa em documento autêntico ... "
7) – Por outro lado, o artigo 388º remete para o artigo 371º do CCM que exige que a autoria do autor do documento deve ser reconhecida nos termos notariais, que não é o caso dos autos, e como tal não produz prova plena, estando tal contrato de arrendamento e o depoimento das testemunhas sujeitos à livre apreciação do julgador. No caso, não foram carreados elementos demonstrativos de que o Tribunal errou na apreciação de provas, aliás, o que o Reclamante pretende é atacar a convicção do julgador.
8) – Nestes termos, é perfeitamente possível e legal recorrer ao depoimento das testemunhas para comprovar o facto de que a pintura era para só ficar temporariamente no restaurante na altura da sua trespasse, nunca tendo sido abdicada a sua propriedade pelo seu dono.
9) – Toda tese invocada pelo Reclamante cinge-se à discordância da argumentação tecida por este TSI, o que não constitui o alegado vício de omissão de pronúncia e como tal é de julgar improcedente a reclamação em análise.
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III – Decidindo
Face ao exposto, e decidindo, acordam em indeferir o pedido da reclamação deduzida pelo Requerente/reclamante.
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Custas pelo reclamante que se fixam em 3 UCs.
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TSI, 07 de Dezembro de 2022.
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong
2022-428- Reclamação 7