Processo nº 660/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 01 de Dezembro de 2022
ASSUNTO:
- Concessão de crédito para jogo
- Formulação do quesito
SUMÁRIO :
- A concessão de crédito para jogo, legalmente prevista e regulada pela Lei nº 5/2004, que consiste em que “um concedente de crédito transmita a um terceiro a titularidade de fichas de jogos de fortuna ou azar em casino sem que haja lugar ao pagamento imediato, em dinheiro, dessa transmissão” (cfr. artº 2º, nº 1 da citada Lei), é um mútuo especial destinado para jogo de fortunas ou azar nos casinos da RAEM, pelo que não é um contrato de compra e venda de fichas para jogo, nem um contrato para prestação de serviço.
- As conclusões genéricas e os conceitos jurídicos que constituem questão de fundo controversa dos embargos à execução não podem ser objecto do quesito da Base Instrutória.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 660/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 01 de Dezembro de 2022
Recorrente: A (Executado/Embargante)
Recorrida: B Macau Limitada (Exequente/Embargada)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
Por despacho saneador de 31/05/2019, julgou-se improcedente a excepção peremptória de prescrição deduzida pelo Executado/Embargante A.
Dessa decisão vem recorrer o Executado/Embargante, alegando, em sede de conclusões, o seguinte:
A. O presente recurso tem por objecto o despacho de fls. 915 e ss., na parte em que o mesmo indefere a excepção peremptória de prescrição deduzida pelo ora Recorrente, fundada na presunção legal de cumprimento prevista no artigo 310º, al. b) do Código Civil;
B. Entende, em suma, o Tribunal recorrido que o negócio causal da dívida exequenda não se caracteriza como de compra e venda, mas antes como um negócio de prestação de serviços mediante um preço e, como tal, não se mostram preenchidos todos os pressupostos de que depende o estabelecimento de uma presunção legal de cumprimento, nos termos da primeira parte do disposto na no artigo 310º, al. b) do Código Civil.
C. Com o devido respeito, trata-se, à luz dos factos e da normatividade vigente, de uma interpretação completamente alheada da realidade.
D. O Recorrente indicou, no capítulo II da presente alegação, uma súmula da factualidade relevante para a decisão recorrida.
E. E, à luz dessa factualidade, impunha-se a conclusão de que se mostram verificados todos os pressupostos da referida presunção de cumprimento prevista na primeira parte do disposto no artigo 310º, al. b) do Código Civil.
F. A presunção que resulta da referida norma legal constitui uma mera presunção de pagamento e não uma presunção extintiva. O seu fundamento assenta, por um lado, na consideração de que o decurso do tempo sem que o credor comerciante se manifeste contra a falta de pagamento por parte do devedor constitui, normalmente, uma manifestação de cumprimento e, por outro lado, com a protecção do devedor que pode ter dificuldade de prova do pagamento, por não ser normalmente dada quitação do mesmo ou, simplesmente, por não ser natural que o mesmo guarde tal documento por um período tão alargado de tempo. É este o caso dos presentes autos.
G. Nesta medida, os pressupostos positivos de que depende a prescrição presuntiva prevista no art. 310º, al. b) do Código Civil, são:
1. Que o credor seja comerciante;
2. Que o devedor seja um não comerciante ou, sendo-o, que actue fora do seu comércio;
3. Que o crédito emirja da venda de um objecto;
4. Que tenham decorrido pelo menos dois anos desde a data em que a obrigação se tornou exigível;
H. É inquestionável que a Recorrida é, por natureza, comerciante (ou no dizer do Código Comercial, empresário comercial), nos termos do disposto no artigo 1º, al, b) do Código Comercial. E é, conforme a mesma alega e prova, uma sociedade licenciada para a promoção de jogos (cf. documentos nº 3 a 5, juntos com o requerimento executivo), exercendo, ao abrigo da Lei 5/2004, a actividade de concessão de crédito para jogo.
I. É também claro que os créditos que a Recorrida pretende executar foram obtidos no exercício da sua actividade comercial normal e para a qual se encontra licenciada.
J. Por seu turno, o Recorrente também não é comerciante ou, pelo menos, não utilizou as fichas de jogo no exercício de qualquer actividade comercial sua.
K. Do mesmo modo, decorreram já mais de dois anos desde que as dívidas exequendas se tornaram exigíveis - decorreram, aliás, mais de 6 anos até ao começo da presente execução.
L. As fichas de jogo são, verdadeiramente, títulos de crédito ao portador.
M. E, como tal, as mesmas caracterizam-se ainda como documentos, ou seja, nos termos do disposto no artigo 355º do Código Civil como objectos elaborados pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.
N. Enquanto documentos que incorporam ou representam uma determinada relação de crédito, as fichas de jogo são, por natureza, “objectos” (corpóreos) e, como tal, cabem inquestionavelmente no âmbito da previsão normativa do artigo 310º al. b) do Código Civil.
O. Os direitos concretamente titulados (ou incorporados) em tais objectos são, em concreto, o direito ele exigir o respectivo reembolso pelo seu valor facial (que as concessionárias de jogo se obrigam a garantir ao abrigo dos respectivos contratos de concessão) e, bem assim, o direito de através das mesmas realizar apostas em jogos de fortuna ou azar em casino. Trata-se, no fundo, de verdadeira “moeda de jogo” que circula nos casinos da RAEM.
P. Como títulos de crédito ao portador, a transmissão da respectiva titularidade, rectius dos direitos neles incorporados, opera-se nos termos do disposto no artigo 1093º do Código Comercial.
Q. Da factualidade resultante dos presentes autos resulta absolutamente inequívoca a existência de um acordo entre a Recorrida e o Recorrente para que aquela entregasse a este determinada quantia de fichas de jogo, mediante o pagamento de um preço (in casu, uma determinada quantia em dinheiro).
R. Ficou do mesmo modo provada a efectiva entrega das fichas de jogo ao Recorrido (cf. alíneas B) e E) do rol de factos assentes).
S. Nenhuma das partes questionou ou, muito menos, disputou o carácter translativo da referida entrega. Atenta a natureza, função e sentido económico das fichas de jogo, se tivesse sido essa a verdadeira vontade das partes, cabia-lhes dizê-lo expressamente, sob pena de a entrega das mesmas mediante o pagamento de um preço ser naturalmente interpretada como a transmissão onerosa dos direitos nelas incorporados - a transmissão da respectiva titularidade. O que não se verificou.
T. As fichas de jogo, enquanto títulos de crédito que são, incorporam verdadeiros direitos de crédito, ou seja, o direito a exigir o cumprimento de determinadas prestações (a aceitação para efeitos de aposta e o direito a receber uma quantia em dinheiro equivalente ao seu valor nominal). A negociação das mesmas significa, pois, a transmissão dos direitos que nelas se acham incorporados.
U. O portador das fichas passará a ser o titular desses direitos que se acham representados pelas fichas de jogo e poderá, como qualquer outro título de crédito ao portador, exercer tais direitos, transmiti-los novamente segundo as respectivas regras de circulação, com ou sem preço, ou, simplesmente, não os exercer e ficar com as fichas para sempre sem que ninguém lhe possa exigir a respectiva restituição.
V. E sendo as fichas transmitidas mediante um preço, o negócio causal da sua transmissão é, nos termos do artigo 865º do Código Civil supra citado, um negócio de compra e venda.
W. Nos termos do referido preceito legal, o âmbito abstracto da compra e venda não se restringe ao negócio translativo do direito de propriedade, abrangendo, do mesmo modo, qualquer negócio que, mediante um preço, tenha por objecto a transmissão de quaisquer outros direitos.
X. Deste modo, mostram-se inquestionavelmente preenchidos todos os pressupostos da presunção de pagamento previstos no artigo 310º, nº 2, do Código Civil, da qual o ora Recorrente inequivocamente beneficia e que deveria ter determinado a absolvição do respectivo pedido, o que desde já, como a final, se requer.
Y. E não se diga, para obstar à aplicação de tal preceito, que as regras das prescrições presuntivas não aplicáveis aos títulos de crédito. Com efeito, a dívida exequenda é a dívida que resulta da transmissão dos títulos de crédito, mais concretamente das fichas de jogo - e que verdadeiramente já foi satisfeita - e não a obrigação cambiária em si cujo objecto se traduz, essencialmente, nos direitos referidos na alínea O) das presentes conclusões.
*
Por sentença de 17/01/2022, julgou-se totalmente improcedentes os embargos à execução.
Dessa decisão vem recorrer o Executado/Embargante, alegando, em sede de conclusões, o seguinte:
A. Ficou provado que o Recorrente fez vários depósitos de fichas de jogo junto de salas de jogo exploradas pela Recorrida.
B. O documento de fls. 1008 e 105 dos autos é uma pública-forma do título de depósito de fichas de jogo com o n.º 71559, não foi impugnado e faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor, conforme o respectivo original (cf. artigos 368.º, 370.º e 380.º do Código Civil);
C. Foram juntos outros títulos de depósito de fichas (a fls. 1017 a 1127 dos autos), dos quais os títulos com os números 28470, 71284, 71291, 71303, 71310, 71313 e 71320, cuja inscrição “CANCELLED” não é da autoria do Recorrente, nem foi pelo mesmo consentida ou confirmada.
D. Cita-se doutrina relevante sobre a necessidade da prova do contrário (e, por conseguinte, insuficiência da mera contraprova) dos factos que se achem provados por documento com força probatória plena.
E. Ficou provado que a Recorrida reconhecia que o depósito de fichas pelo Recorrente poderia ter um carácter liberatório, ou seja, podia ser realizado com intuito de liquidação de empréstimos de jogo concedidos ao Recorrente.
F. Ficou provado que a recorrida não emitia qualquer recibo de quitação: transcreve-se o depoimento da testemunha C, Translator 1, Recorded on 10-Nov-2021 at 17.03.45 (3J6Q(_NW02620319) aos 02m:15s.
G. Ficou provado, bem assim, que o título de depósito de fichas é o mesmo, quer este seja meramente temporário (quando o jogador pretenda continuar a jogar mais tarde), ou definitivo (quando o jogador pretende reembolsar um empréstimo): procede-se à transcrição dos depoimentos das testemunhas D (Translator 3 “Recorded on 10-Nov-2021 at 16.20.04 (3J6OIS)G02520319)”; às 01h:33m:50s; Translator 1, Recorded on 10-Nov-2021 at 18.29.21 (3J6SV)-W02620319), aos 09m:37s) e C (Translator 1 - Recorded on 10-Nov-2021 at 17.17.15 (3J6QE)E102620319), aos 02m:41s e aos 03m:16s).
H. Tendo sido produzida prova plena do depósito de fichas de jogo (de valor superior ao da dívida exequenda) e estabelecendo-se - pelo menos - um princípio de prova quanto ao respectivo carácter liberatório, incumbia à Recorrida fazer contraprova do referido facto (demonstrando que não houve depósito ou de que o depósito não foi efectuado com intuito de reembolso do empréstimo) ou apresentar prova do contrário (ou seja, prova de que o depósito foi feito para um outro fim, designadamente para ora Recorrente continuar a jogar).
Porém:
I. Foi alegada a falsidade do documento de fls. 1042 e não foram removidas as dúvidas sobre a sua autenticidade, nos termos e para os efeitos do artigo 361.º do Código Civil, existindo, outrossim, prova de que tais dúvidas são fundadas:
(i) Em primeiro lugar, porque a Recorrida alega não saber do paradeiro do original desse documento, não obstante a mesma reputar tais documentos como muito importantes e os mesmos deverem ser guardados no respectivo cofre;
- transcreve-se o depoimento da testemunha C (cf. Translator 1, Recorded on 10-Nov-2021 at 16.27.22 (3J6OSE- 102620319), aos 27m:25s e 05m:35s)-
(ii) Depois, porque, não obstante a importância do documento e o seu estranho desaparecimento, a Recorrida não solicitou ao Recorrente informação sobre o seu paradeiro ou a entrega do respectivo original;
- transcreve-se o depoimento da testemunha D, Translator 1 - Recorded on 10-Nov-2021 at 18.04.59 (3J6S-JFG02620319), aos 14m:39s –
(iii) E, ainda, porque nenhuma das testemunhas presenciou a aposição da menção “CANCELLED” no título de depósito em causa, pelo que nenhuma prestou depoimento directo quanto à atribuição da autoria ao Recorrente;
- transcreve-se o depoimento da testemunha C, aos 03m:18s da Gravação Recorded on 10-Nov-2021 at 17.24.09 (3J6QO2B102620319), e da testemunha D, aos 13m:14s da Gravação Recorded on 10-Nov-2021 at 18.04.59 (3J6S-JFG02620319) (Translator 1).
Assim:
J. É manifestamente infundada a convicção formada pelo Tribunal a quo de que o depósito de fichas (sic) “acabou por ser levantado para outos fins” (cf. fls. 3 do Acórdão da matéria de facto), porquanto a mesma se funda num documento sobre cuja autenticidade há dúvidas, que não foram sanadas.
Acresce que:
K. A inscrição da menção “CANCELLED” nos talões de depósito de fichas números 28470, 71284, 71291, 71303, 71310, 71313 e 71320 (Anexos 31 a 37 ao requerimento de fls. 1017) não se acha subscrita pelo Recorrente.
L. Não foi produzido depoimento directo do levantamento das fichas ou da aposição da menção “CANCELLED” nos referidos títulos.
M. O valor dos depósitos efectuados pelo Recorrente, e cujo cancelamento ou levantamento não foi por si confirmado, nem é sustentado por qualquer elemento probatório constante dos autos, tem valor superior ao da dívida exequenda (mais concretamente, HKD5.600.000).
N. O documento de fls. 1020 é uma lista de todos os créditos concedidos ao ora Recorrente; esse documento não faz menção a qualquer reembolso efectuado pelo Recorrente (sendo certo que a Recorrida admitiu a existência de reembolsos: cf. confissão a fls. 45 e depoimento da testemunha D, cf. a Gravação Translator 1 - Recorded on 10-Nov-2021 at 17.24.09 (3J6QO2B102620319), aos 11m:28s);
O. Considerando, bem assim, que os valores de crédito concedido referidos no documento de fls. 1020 são nominalmente os mesmos que constam dos markers juntos aos autos;
P. Fica provada a falsidade da tese da Recorrida, de os markers provam o valor líquido em dívida (deduzido das importâncias pagas pelo Recorrente) (veja-se, a título exemplificativo, o título de concessão de crédito n.º 040226, de fls. 1036, e ao título n.º 040217, de fls. 1024).
Q. É infundada a convicção formada pelo Tribunal a quo de que (sic) “o facto de os 2 markers (fls 37 e 38 dos autos principais), que serviram de base de execução, continuarem a ficar na posse da embargada, dos quais não constando nenhuma indicação certificativa de qualquer liquidação (total ou parcial) das dívidas, não deixa de constituir princípio de prova no sentido de as dúvidas aí tituladas ainda não terem sido liquidadas”.
R. O valor constante dos títulos é o valor inicialmente mutuado ao Recorrente, sem que haja qualquer reemissão de títulos com o reembolso parcial (veja-se, relativamente aos títulos n.º 040217 e n.º 040226, que o documento de fls. 1020 não tem qualquer entrada datada de 25/03/2012, às 19:50), nem a emissão de qualquer outro documento de quitação.
S. Dito doutro modo, os markers não provam o contrário do que ficou demonstrado (nos termos alegados supra) pela junção dos títulos de depósito de fichas.
T. O Acórdão da matéria de facto deve, pois, ser revogado e, nos termos do disposto no artigo 629.º do Código de Processo Civil, substituído por outro que julgue provado o quesito 1.º da base instrutória;
U. E, com consequência, deve ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue provado o teor dos Embargos deduzidos pelo Recorrente.
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A Exequente/Embargada B Macau Limitada respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 1281 a 1290 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – FACTOS
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
1. O Executado é jogador de jogos de fortuna ou azar e em 28 de Março de 2012, pediu emprestado ao Exequente HKD$1.000.000 em fichas mortas, destinando-as a jogos de fortuna e azar. (alínea A) dos factos assentes)
2. No mesmo dia, pelas 3h54, um funcionário da exequente entregou ao Executado, que as recebeu, fichas mortas em uso exclusivo da sala VIP “XXX”. (alínea B) dos factos assentes)
3. O Executado prometeu devolver a referida quantia dentro de 14 dias, ou seja, a até 11 de Abril de 2012. (alínea C) dos factos assentes)
4. Em 02 de Maio de 2012, o Executado solicitou à Exequente um empréstimo de HKD$2.000.000 em fichas mortas, destinando-as a jogos de fortuna e azar. (alínea D) dos factos assentes)
5. No mesmo dia, pelas 16h20, o funcionário da sala VIP “XXX” entregou ao Executado, que as recebeu, fichas mortas em uso exclusivo da sala VIP “XXX” no valor de HKD$2.000.000. (alínea E) dos factos assentes)
6. O Executado prometeu devolver a referida quantia dentro de 14 dias, ou seja, a até 16 de Maio de 2012. (alínea F) dos factos assentes)
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III – FUNDAMENTAÇÃO
(A) O Recurso Interlocutório
A decisão recorrida tem o seguinte teor:
“...
A questão colocada pelo embargante prende-se com a qualificação do contrato que celebrou com a embargada. O embargante qualifica-o como compra e venda e entende aplicável o respectivo regime de prescrição.
A qualificação dos contratos nada mais é que a interpretação da vontade nogocial das partes contratantes e a respectiva subsunção a um determinado tipo contratual nominado ou inominado ou a um contrato atípico.
“Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço” (art. 865º do CC).
Da alegação das partes nos autos resulta que embargante e embargada quiseram transmitir a propriedade de fichas de jogo, quer enquanto coisas corpóreas, quer enquanto “títulos de jogo” ou que quiseram transmitir outro direito sobre as referidas fichas? Afigura-se que a resposta correcta é negativa. Da interpretação que se faz da factualidade alegada pelas partes nos presentes autos a vontade contratual não foi de transmitir direitos sobre fichas de jogo. Foi de permitir ao embargante praticar onerosamente a actividade de jogar jogos de fortuna ou azar em casino. Na vontade negocial das partes, as fichas foram entregues pela embargada ao embargante como instrumento a ser utilizado naquela actividade, instrumento esse que, depois de usado, voltaria à embargada. Desconhece-se qual o direito da embargada sobre as fichas entregues, assim como não se sabe se actuava sobre as fichas como representante do seu “criador”. As fichas foram entregues para um fim vinculado e para voltarem ao entregador. Imagine-se um jogo diferente do de fortuna ou azar, um parque aquático, por exemplo. O explorador do parque proporciona onerosamente diversões a terceiros. Depois de receber a contrapartida estabelecida, em vez de entregar fichas, entrega-lhes uma bóia que estes usam num escorrega que termina numa piscina onde o explorador do parque recupera de novo a bóia para a voltar a entregar para o mesmo fim. A vontade das partes foi a de transmitir a propriedade ou outro direito sobre as fichas e as bóias mediante um preço? Crê-se que não. Nem se sabe quem é o proprietário das fichas e das bóias nem a que título estão na mão do “cedente”. Crê-se que a vontade das partes foi antes a prestação de um serviço mediante um preço. No caso em apreço a vontade negocial das partes é ainda um pouco mais complexa: o jogador recebia imediatamente o instrumento de jogo, jogava usando-o em lugar determinado mas não se sabendo quando nem se o resultado do uso seria do seu agrado, e pagaria obrigatoriamente o preço do acesso ao jogo em 14 dias.
A vontade negocial assim identificada, como se julga que deve ser, é de compra e venda, de transmitir direitos sobre coisas mediante um preço ao ponto de poder qualificar-se o contrato celebrado como contrato de compra e venda? Crê-se que não. É certo que o nº 1 do art. 2º da Lei nº 5/2004 fala em transmissão da titularidade de fichas de jogo, mas a mens legis é apenas de imposição que não haja intermediários entre o jogador e o concedente de crédito para jogo, de forma que o concedente de crédito para jogo tem de ser aquele que entrega as fichas ao jogador e não quem as entrega a outrem que não as irá usar directamente no jogo.
Não se podendo qualificar as fichas entregues pela embargada ao embargante como objectos vendidos, não poderá qualificar-se o contrato entre ambos celebrado como contrato de compra e venda e não é aplicável o prazo de prescrição invocado pelo embargante e regulado no art. 310º do CPC, razão por que se julga improcedente a prescrição presuntiva invocada.
…”。
Para o Executado/Embargante, a decisão recorrida padece do vício do erro de julgamento ao qualificar a relação material subjacente entre ele e a embargada como um contrato de prestação de serviço.
Na sua óptica, o que está em causa é um contrato de compra e venda de fichas para jogo, daí que deve aplicar o prazo de prescrição do direito previsto na al. b) do artº 310º do C.C..
Ora, tendo em conta a factualidade assente e supra transcrita, não achamos que está em causa qualquer contrato de compra e venda de fichas para jogo, nem contrato de prestação de serviço, antes uma concessão de crédito para jogo, legalmente prevista e regulada pela Lei nº 5/2004, que consiste em que “um concedente de crédito transmita a um terceiro a titularidade de fichas de jogos de fortuna ou azar em casino sem que haja lugar ao pagamento imediato, em dinheiro, dessa transmissão” (cfr. artº 2º, nº 1 da citada Lei).
Ou seja, é um mútuo especial destinado para jogo de fortunas ou azar nos casinos da RAEM.
Nos termos do artº 1070º do C.C., o mútuo “é o contrato pelo qual uma partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.
Assim e sem necessidade de demais delongas, é de concluir que nunca é aplicável ao caso sub justice o regime da prescrição de direito previsto na al. b) do artº 310º do C.C..
Pelo exposto, o recurso interlocutório não deixará de se julgar improvido, mantendo a decisão recorrida com fundamento algo diverso.
*
(B) O Recurso Final
1. Da impugnação da decisão da matéria de facto:
Vem o Executado/Embargante impugnar a decisão da matéria de facto relativa ao quesito 1º da Base Instrutória, a saber:
1º
O executado já pagou à exequente, em dinheiro ou através da entrega em fichas com o mesmo valor nominal, as quantias correspondentes às fichas de jogo que recebeu daquela como referido em A) a E) dos factos assentes?
A resposta dada ao referido quesito foi “Não Provado”.
Na sua óptica, o facto vertido no quesito supra referido devia ser considerado provado.
Quid iuris?
Nos embargos à execução, o Executado/Embargante confissou ter levantado junto da sala de VIP explorada pela Exequente/Emgargada no valor de HKD$31.500.000,00 no período entre 13/01/2012 e início de Maio de 2012 (artº 37º da p.i.).
No entanto, alegou que:
“… pago, em dinheiro ou através da entrega de fichas com o mesmo valor nominal, durante esse mesmo período, por diversas vezes, o preço de fichas que havia levantado, em valor muito superior ao da dívida exequenda.” (artº 38º da p.i.)
“Concretamente, o preço devido pela transmissão das fichas adquiridas pelo Embargante nos dias 28 de Março de 2012 e 02 de Maio de 2012, já foi integralmente pago pelo ora Embargante.” (artº 39º da p.i.)
Em consequência desta alegação, foi elaborado o quesito 1º supra transcrito e após o devido julgamento, a resposta do mesmo foi de “Não provado”.
Como é sabido, “há certos juízos que contêm subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido e que são de uso corrente na linguagem, como “pagar”, “emprestar”, “vender”, “arrendar”, “dar em penhor” e que são de equiparar a factos”. Estes juízos “poderão figurar na selecção dos factos, mas neste caso quando não constituam o objecto do quesito, quando não constituam questões controversas” 1.
No caso em apreço, o Executado/Embargante liquidou ou não a divida exequenda é uma questão controversa e a resposta positiva ou negativa do quesito, tal como foi reformulado, resolve directamente a questão de fundo dos embargos à execução.
Nesta conformidade, o quesito em causa não é legalmente admissível por ser uma conclusão genérica e conter conceito jurídico que constitui questão de fundo controversa dos embargos à execução.
Assim, é de considerar como não escrito o quesito em causa.
Em vez duma simples alegação/conclusão genérica, o Executado/Embargante tem o ónus de alegar e provar factos concretos que permitem o Tribunal formular o juízo de que a quantia exequenda já se encontra integralmente paga.
Não o fazendo, tem de sofrer as consequências legais, que é justamente o Tribunal não ter matéria de facto para concluir que a quantia exequenda já se encontra integralmente paga, o que determina inevitavelmente a improcedência dos embargos à execução por si deduzidos.
Pois, não tendo alegado factos concretos para o efeito, o Tribunal nem pode reformular o quesito para outra forma.
Aliás, ainda que entendesse, por mera hipótese, que o quesito em causa fosse legalmente admissível, a impugnação do Executado/Embargante também não pode proceder.
Vejamos.
Em primeiro lugar, o documento de fls. 1042 (talão de depósito das fichas sob o nº 71559 no valor de HKD$500.000,00) nunca é suficiente para provar que o Executado/Embargante já liquidou uma dívida no valor de HKD$31.500.000,00.
Em segundo lugar, dos depoimentos das testemunhas transcritos também não resulta de forma inequívoca que a dívida exequenda já se encontra integramente liquidada.
Pois, nenhuma testemunha afirmou neste sentido.
Ou seja, não há prova directa e segura que permite o Tribunal responder o quesito em causa como provado.
Assim, é de manter a sentença recorrida que julgou a improcedência dos embargos à execução.
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IV – DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
(1) negar provimento ao recurso interlocutório, mantendo a decisão recorrida com fundamento algo diverso; e
(2) negar provimento ao recurso final, confirmando a sentença recorrida.
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Custas dos recursos pelo Executado/Embargante.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 01 de Dezembro de 2022.
(Relator)
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
1 MANUAL DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL, Viriato Lima, CFJJ, 2005, pág. 396.
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