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Processo nº 89/2022
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Nos Autos de Revisão e Confirmação de Decisões proferidas por Tribunais ou Árbitros do Exterior de Macau no Tribunal de Segunda Instância registados com o n.° 603/2021 proferiu-se o seguinte Acórdão:

“(…)

I.
As requerentes A e B, melhor identificadas nos autos, vêm formular o presente pedido de revisão e confirmação da sentença civil proferida pelo Supremo Tribunal da Austrália do Sul, com os seguintes fundamentos principais:
- O Supremo Tribunal da Austrália do Sul proferiu a sentença (n.º PROB-19-006225) em 11 de Outubro de 2019.
- A referida sentença já produziu efeito.
- Não há dúvidas sobre a autenticidade da referida sentença.
- Tem competência o tribunal que proferiu a sentença, não se verificando qualquer vício ou dúvida.
- Não há excepção de litispendência ou de caso julgado deduzida nos tribunais da RAEM.
- Foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.
- A sentença não contém decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
- Por isso, está completamente preenchido o art.º 1200.º do CPC, e deve ser confirmada a supracitada sentença, para que possa produzir efeito na RAEM.
*
Este Tribunal citou o requerido C nos termos legais, e este apresentou a contestação constante das fls. 111 a 114 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Colhido o visto do Ministério Público, que pugnou pela inexistência de qualquer impedimento à revisão e confirmação da sentença em causa.
Foram colhidos os vistos dos MM.ºs Juízes-Adjuntos.
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O Tribunal é o competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
II.
Factos apurados:
- Por sentença de 11 de Outubro de 2019, o Supremo Tribunal da Austrália do Sul homologou o testamento do D no qual foram nomeadas como testamenteiras as requerentes.
- A referida sentença já produziu efeito.
III.
Entendeu o requerido que devia ser indeferido o pedido de confirmação da sentença formulado pelas requerentes, com fundamento em que ele e as requerentes já tinham chegado ao acordo de partilha da herança homologado pelos tribunais da Austrália. Conforme esse acordo, os depósitos nas duas contas no banco HSBC em Macau pertencem ao requerido.
As requerentes não concordaram com tal entendimento, alegando que, não obstante a existência do acordo de partilha da herança, não foi alterada a função delas de administrador/executor da herança, e a decisão judicial que homologou a nomeação delas como administradorexecutor da herança teve como objectivo permitir-lhes exercer a respectiva função, para o posterior cumprimento do acordo de partilha da herança.
Dispõe-se no art.º 1200.º do CPC que:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.”
E no art.º 1204.º:
“O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200.º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.”
Das normas acima transcritas vê-se que, o fundamento de não confirmar a sentença em causa, apresentado pelo requerido, não constitui qualquer assunto que impossibilite a confirmação, elencado no art.º 1200.º do CPC.
No caso sub judice, as requerentes apresentaram a respectiva sentença e a sua tradução.
Após a revisão, este Tribunal entende que não há dúvidas sobre a autenticidade da respectiva sentença.
A referida sentença já transitou em julgado.
Da contestação apresentada pelo requerido resulta que, este participou no respectivo processo.
Não há indícios da desigualdade das partes.
Os tribunais de Macau não têm competência exclusiva sobre a respectiva matéria.
Não há indícios de que a competência do tribunal que proferiu a sentença tenha sido provocada em “fraude à lei”, e que haja litispendência ou caso julgado nos tribunais de Macau.
A respectiva sentença não ofende manifestamente a ordem pública da RAEM.
Com base nisso, o pedido de confirmação formulado pelas requerentes está conforme o art.º 1200.º do CPC.
*
Pelo exposto, acordam neste Tribunal Colectivo em confirmar a sentença civil de 11 de Outubro de 2019 (n.º PROB-19-006225), proferida pelo Supremo Tribunal da Austrália do Sul e apresentada pelas requerentes A e B.
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Custas pelo requerido.
*
Na RAEM, aos 31 de Março de 2022”; (cfr., fls. 165 a 166-v e 4 a 9 do Apenso que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, veio o requerido – C – recorrer para este Tribunal de Última Instância.

Em sede das suas alegações apresenta as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso é interposto contra o Douto Acórdão do Venerando Tribunal de Segunda Instância, proferido em 31 de Março de 2022, constante de fls. 152 a 155 dos autos à margem epigrafados, que confirmou a sentença estrangeira apresentada pelas Requerentes.
2. Imputa o Recorrente à decisão proferida pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância o vicio de errada aplicação da lei de processo, nos termos do art.º 639.º do Código do Processo Civil, nomeadamente por violação do art.º 653.º, alínea c), ex vi do art.º 1202.º, n.º 1, ambas disposições do Código do Processo Civil.
3. O Douto Acórdão recorrido entendeu que a sentença estrangeira apresentada pelas Requerentes a confirmação reunia todos os requisitos cumulativos previstos no art.º 1200.º, n.º 1, alíneas a) a f), do Código de Processo Civil.
4. O Requerido, ora Recorrente, não se conforma com tal decisão, pois entende que, a sentença confirmada pelo Douto Tribunal a quo, ou seja, o "Grant of Probe" proferido pelo "SUPREME COURT OF SOUTH AUSTRALIA", não constituiu a última decisão judicial sobre a matéria em questão emitida pelos Tribunais da Austrália.
5. Pois, por força de um litigio que emergiu relativamente à herança do de cujus, houve necessidade, posteriormente, de se elaborar um acordo de partilha da herança do de cujus, D, que viria a ser objecto de homologação em 23 de Junho de 2021, por decisão proferida pelo mesmo "SUPREME COURT OF SOUTH AUSTRALIA", designada de "Order", que alterou, substancialmente, a sentença confirmada.
6. Nos termos do ponto 4) da nova decisão ("Order") suprarreferida, os bens residuais pertencentes ao De Cujus pertencem ao Requerido.
7. Nos termos do parágrafo 12 dos Termos de Compromisso (Anexo A da referida "Order") é previsto o seguinte: "As partes acordam que, para evitar dúvidas e com sujeição à formalização das decisões, o [Testamentary Trust] referido na cláusula 6 do testamento não será estabelecido."
8. É ainda disposto nos demais parágrafos dos Termos de Compromisso, os termos em que é feita a distribuição directa dos bens constantes da herança, em contraposição à sua integração num "Trust Fund" a ser gerido pelas Requerentes, conforme vinha previsto na Cláusula 6 do testamento do De Cujus.
9. O douto Acórdão recorrido, ao confirmar a sentença apresentada pelas Requerentes, sem tomar em consideração a "Court Order apresentada pelo Recorrente como Doc. 1 da sua Contestação; produziu assim um resultado distinto daquele que deveria resultar das decisões proferidas pelos Tribunais da Austrália sobre esta questão, globalmente consideradas, conforme deveria ter sido feito.
10. A presente acção foi apresentada em 8 de Julho de 2021 e a "Court Order" que alterou a forma da distribuição dos bens do testamento, através de um acordo de partilha dos bens da herança, foi proferida em 23 de Junho de 2021, de onde resulta que as Requerentes tinham pleno conhecimento e consciência de que a decisão judicial apresentada a revisão e confirmação não é a decisão final e definitiva relativamente à questão em apreço.
11. A referida "Court Order" é mais favorável ao Requerido.
12. A posição de executoras testamentárias, de que se arrogam as Requerentes, foi substancialmente alterada no que se refere à sua função, ou seja, deixou de haver o trust a que aludia o Art.º 6.º do testamento, o [Testamentary Fund], e passaram a existir diferentes obrigações e direitos, tanto para as executoras (ora Requerentes) como para os beneficiários herdeiros ou legatários (onde se inclui o Requerido).
13. Nos termos da nova "Court Order" e "Terms of Compromise", uma vez feitos os pagamentos aos beneficiários ali referidos, o Recorrente passa a ser o beneficiário directo das quantias depositadas em Macau nas contas do de cujus, na medida em que são residuais e a ele foram deixadas.
14. A acção de revisão e confirmação de decisão proferida por tribunal do exterior de Macau foi apresentada omitindo propositadamente a existência de documento que modifica a decisão em sentido mais favorável ao Recorrente e da qual este não podia ter feito uso na acção cuja sentença foi confirmada pelo douto Tribunal a quo.
15. Nos termos do art.º 653.º, alínea c) ex vi do art.º 1202.º, n.º 1, ambas disposições do Código do Processo Civil, sendo a "Court Order", apresentada pelo ora Recorrente como Doc. 1, em anexo à sua Contestação, suficiente, por si só, para modificar a decisão confirmada em sentido mais favorável ao Recorrente, constituía esse facto fundamento de impugnação do pedido de confirmação de sentença estrangeira formulado nos vertentes autos, e deveria esse mesmo fundamento de impugnação ter sido atendido pelo Douto Tribunal a quo.
16. Entende-se, por conseguinte, que o douto Acórdão recorrido, ao confirmar a sentença estrageira, in casu, violou o art.º 653.º, alínea c) ex vi do art.º 1202.º, n.º 1, ambas disposições do Código do Processo Civil.
17. Por não ter relevado, para os devidos efeitos legais, a "Court Order" junta pelo Recorrente como o Doc. 1, em anexo à sua Contestação, que opera alterações à sentença confirmada em sentido mais favorável ao Recorrente e constitui documento de que o Recorrente não podia ter feito uso no processo em que a sentença ora confirmada foi proferida”; (cfr., fls. 174 a 186).

*

Contra-alegando, e em síntese, dizem as requerentes ora recorridas – A e B – o que segue:

“1. O recurso a que ora se responde foi interposto do douto acórdão proferido pelo TSI em 31 de Março de 2022, nos termos do qual foi confirmada a sentença estrangeira apresentada a revisão pelas Requerentes, ora Recorridas;
2. Insurge-se o Requerido, ora Recorrente, contra o douto acórdão do TSI, por considerar que não foi devidamente considerado um documento que alega ser-lhe favorável por alterar, na sua opinião, a sentença confirmada e o qual não podia ter sido usado no processo em que essa sentença foi proferida;
3. Pretende o Recorrente servir-se do disposto na alínea c) do artigo 653.° do CPC aplicável ex vi do n.º 1 do artigo 1202.° do CPC, para reverter a decisão proferida pelo venerando tribunal a quo;
4. O documento que o Recorrente alega ser essencial para reverter a decisão revidenda e, bem assim, para que seja dado provimento ao recurso interposto, é absolutamente impertinente para a decisão dos presentes autos;
5. Está em causa, no âmbito dos presentes autos de revisão e confirmação, o reconhecimento e confirmação da decisão judicial emitida pelo Supreme Court of South Australia em 11 de Outubro de 2019, ao abrigo da qual as Recorridas foram investidas no cargo de executoras testamentárias do património hereditário do de cujus D, nomeadamente dos montantes de $US101.916,00 e $HK390.580,00 constante das contas bancarias com os n.ºs XXXXXXXXXXXX e XXXXXXXXXXXX, respectivamente, junto do HSBC, Sucursal de Macau;
6. Insiste o ora Recorrente em trazer à liça uma outra decisão proferida pelo Supreme Court of South Australia em 23 de Junho de 2021, da qual pretende o Recorrente extrair a conclusão de que a Decisão Revidenda foi alterada;
7. A longa litigância entre as Recorridas e o Recorrente a propósito da partilha do acervo hereditário do De Cujus, foi resolvida nos termos de um "Terms of Compromise" anexo à Order, na qual apenas se vieram a consagrar os termos do acordo entre as partes sobre a distribuição da herança;
8. Além das disposições contidas na Order a respeito da distribuição da herança, nada foi acordado ou estipulado entre as partes no que diz respeito ao exercício do cargo de executor testamentário em sentido contrário daquele que constava do testamento do De Cujus, e bem assim, da Decisão Revidenda;
9. Ou seja, as ora Recorridas, após o acordo de partilha da herança do De Cujus no âmbito da Order e não obstante o mesmo, foram mantidas nas suas funções de executoras testamentárias;
10. De facto, no ponto 4) da Order, consta expressamente que as Recorridas "na sua capacidade de executoras da herança do falecido, ficarão na posse da herança do falecido em nome de e sujeitas aos fideicomissos declarados no testamento";
11. Assim como no ponto 18. do Terms of Compromise anexo à Order, em que se estipula expressamente que "as executoras concordam em desenvolver todos os esforços razoáveis para completarem a sua administração da herança do falecido assim que exequível";
12. Ou seja, a Order suscitada pelo Recorrente em nada altera as funções das Recorridas como executoras testamentárias e, nessa senda, a necessidade de revisão e confirmação da Decisão Revidenda;
13. De contrário, a confirmação da Decisão Revidenda é, na verdade, um verdadeiro pressuposto para o cumprimento do acordo de divisão da partilha celebrado entre as partes, sem a verificação do qual não será possível observar-se a sua realização integral;
14. Isto porque, só através da revisão e confirmação da Decisão Revidenda é que as Recorridas, na qualidade de executoras testamentárias e administradoras da herança, terão um título bastante para, junto do HSBC, Sucursal de Macau, operarem as contas bancárias do De Cujus em Macau e cumprir com as determinações do testamento e do acordo de partilha celebrado pelas partes ao abrigo da Order;
15. A Decisão Revidenda e a Order, têm objectos diferentes, não se confundem nem se excluem, antes se complementam;
16. Com efeito, a Decisão Revidenda instituiu as Recorridas como formalmente responsáveis pela administração da herança do De Cujus, tendo-lhes sido conferidos, nos precisos termos e de acordo com as instruções deixadas por aquele, nomeadamente no que concerne os saldos bancários das contas com os n.ºs XXXXXXXXXXXX e XXXXXXXXXXXX do HSBC, Sucursal de Macau, tituladas pelo De Cujus;
17. Ao passo que a Order apenas consubstancia os termos concretos da partilha do acervo hereditário a operar entre todas as partes, mas nada referindo quanto à sua administração;
18. Por outras palavras, a Order não afastou as Recorridas do cargo de administradoras da herança, designadamente no que respeita os saldos bancários referidos acima;
19. Para que seja possível distribuir os bens – ainda que os remanescentes ou residuais – é essencial que, a montante, os poderes de administração conferidos às Recorridas pela Decisão Revidenda sejam confirmados em Macau;
20. Prova disso mesmo é que o Recorrente não conseguirá, através da Order, estar habilitado a, mesmo após a revisão e confirmação desta decisão (caso o tivesse sido requerido, o que não sucedeu), operar as contas bancárias tituladas pelo De Cujus, simplesmente porque aquela decisão não o designa como executor testamentário ou administrador da herança, mas tão somente beneficiário do remanescente dos bens do De Cujus;
21. Ao contrário, as Recorridas foram, por via da Decisão Revidenda, instituídas como administradoras da herança, tendo o seu estatuto como tal, sido confirmado (ou, pelo menos, tendo-se mantido inalterado) pela Order;
22. Daí que tenha de se concluir, que ao contrário do que pretende o Recorrente, a Order é, para os efeitos concretos dos presentes autos, um documento estéril e irrelevante;
23. Dessa forma, não poderão proceder, de forma alguma, as conclusões do Recorrente, nomeadamente a de que as Recorridas, apesar de serem as executoras testamentárias, terão de actuar em obediência e cumprimento das suas instruções directas;
24. Só através da revisão e confirmação da Decisão Revidenda, nos termos realizados pelo douto tribunal a quo – e jamais da revisão e confirmação da Order –, que instituiu as ora Recorridas como administradoras da herança, é que será possível operar (rectius, administrar) as contas bancárias tituladas peio De Cujus em Macau;
25. Não tendo os termos de compromisso acordados entre as partes alterado o cargo de executoras testamentárias conferido às Recorrentes pelo testamento de De Cujus, é apenas a estas que incumbe o dever de administração sobre o acervo hereditário do De Cujus localizado em Macau;
26. Não pode o Recorrente retirar da Order aquilo que dela não consta, qual seja a conclusão de que as Recorridas não poderão ver confirmada a Decisão Revidenda em virtude dos termos constantes da Order, precisamente porque a Order não as eximiu ou dispensou do cargo de executoras testamentárias e do dever de administrar os bens da herança;
27. Para que as Recorridas possam ter acesso aos saldos bancários das contas tituladas pelo De Cujus e, subsequentemente, dar cumprimento ao estipulado no acordo de partilha da herança daquele, é necessário que a sua qualidade de administradoras da herança seja confirmada em Macau, conforme bem entendeu o douto TSI;
28. Tal fim só pode ser obtido mediante a confirmação da Decisão Revidenda nos termos realizados pelo tribunal a quo e não da Order, a qual, apesar de posterior à Decisão Revidenda, não contende com aquela nem altera a qualidade de executoras testamentárias das Recorridas;
29. Improcede, assim, totalmente o argumento gizado pelo Recorrente assente na previsão da alínea c) artigo 653.° do CPC, simplesmente porque a Order, apesar de relativa à distribuição da herança do De Cujus, em nada contende com a Decisão Revidenda e com a instituição das Recorridas como executoras testamentárias;
30. Do exposto resulta que, ao contrário do que alega o Recorrente; o venerando TSI não andou mal ao "desconsiderar" a Order, porque pelas razões acima aduzidas dúvidas não devem subsistir relativamente à impertinência desse documento para os efeitos do disposto na referida alínea c) do artigo 653.° do CPC;
31. Face ao que se conclui não estarem reunidas as condições necessárias para a aplicação do disposto no artigo 653.°, alínea c) ex vi do artigo 1202, n.º 1 do CPC, pelo que o acórdão recorrido não enferma de qualquer vício susceptível de afectar a sua validade, razão pela qual deverá ser mantido”; (cfr., fls. 194 a 200).

*

Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. Em sede de exame preliminar suscitou-se a questão da (eventual) “ilegitimidade passiva”.

Tal, tinha como razão de ser, o (teor do) “acordo de partilha da herança” do de cujus, D, (pelo requerido, ora recorrente, junto com a sua contestação, a fls. 115 a 129), do qual resultava a existência de outros interessados na aludida partilha.

Da reflexão que sobre tal “questão” pudemos efectuar (e após sobre a mesma se pronunciarem as partes; cfr., fls. 215 a 226), eis como se nos apresenta de a decidir.

–– Desde já, mostra-se adequado consignar o que segue.

Verifica-se que a “decisão sobre a matéria de facto dada como provada” no Acórdão recorrido é omissa quanto ao atrás referido “acordo de partilha”.

Visto estando que foi o mesmo invocado – e apresentado – em sede de contestação assim como na motivação do presente recurso, inegável é a sua relevância.

Assim, e atenta a “natureza” do documento que o corporiza e ao pelas partes alegado ao longo do processado, considera-se o referido “acordo”, (com o seu exacto teor), como “facto provado” integrante da dita decisão.

–– Isto visto, voltemos à aludida questão da “(i)legitimidade”.

Com a “acção de revisão” que tinha como requerido, o ora recorrente, pediam as requerentes, ora recorridas, a confirmação da decisão judicial “proferida em 11 de Outubro de 2019 pela Testamentary Causes Jurisdiction do Supremo Tribunal da Austrália do Sul ("Supreme Court of South Australia"), em consequência do qual passaram as ora Requerentes A e B a assumir o cargo de executoras testamentárias ("Trustees") do património hereditário do De Cujus D, nomeadamente, dos montantes de $US101.916,00 e $HK390.580,00, respectivamente, das contas bancárias com os n.°s XXXXXXXXXXXX e XXXXXXXXXXXX junto do HSBC, Sucursal de Macau”; (cfr., pedido apresentado a fls. 5).

Sendo – tão só – esta a “decisão” (revidenda e) agora em causa nos presentes autos, e nela apenas figurando como “interessado” o dito requerido, ora recorrente, afigura-se-nos porém de considerar que não se verifica a referida “ilegitimidade”.

Com efeito, e como sobre a matéria prescreve o art. 58° do C.P.C.M.: “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

In casu, é verdade que em momento posterior ao falecimento do referido de cujus e da prolação da decisão revidenda celebrou-se – e homologou-se – o “acordo de partilha” atrás aludido e do qual resulta a existência de outros interessados.

Porém, em nossa opinião, (e admitindo-se outros entendimentos), importa salientar que tal “acordo” não integra a “decisão revidenda” objecto do “pedido de revisão e confirmação” nos termos em que foi deduzido, e, assim, “na falta de indicação de Lei em contrário”, (cfr., art. 58° do C.P.C.M.) – e sem perder de vista o que mais adiante se dirá em sede de apreciação do recurso – motivos não parecem existir para se considerar verificada a aludida “ilegitimidade passiva”, havendo pois de ter também presente que no que toca ao “reconhecimento de decisões do exterior” perfilam-se duas orientações (extremas): uma, no sentido de se tratar de uma “revisão de mérito”, o que implica que quase se ignore o aresto de origem, proferindo-se, a final, uma “decisão de mérito”, e, uma outra, a da chamada “aceitação plena”, advogando-se o acolhimento amplo e total das decisões, estando, porém, o sistema da R.A.E.M., mais próximo de uma “revisão (meramente) formal”, (ou de simples deliberação), em que o Tribunal – como foi o caso dos autos – se limita a verificar se a decisão do exterior satisfaz certos “requisitos”, (os do art. 1200° do C.P.C.M.), não conhecendo do mérito ou fundo da causa; (cfr., sobre o tema e de forma desenvolvida, o Ac. deste T.U.I. de 11.02.2010, Proc. n.° 43/2009, e, mais recentemente, o de 18.11.2020, Proc. n.° 123/2020, podendo-se também ver Luís Lima Pinheiro in, “Direito Internacional Privado”, Vol. III, “Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras”; B. Machado in, “Lições de Direito Internacional Privado”, 1982, pág. 259 e segs.; A. dos Reis in, “R.L.J.”, Ano 87, pág. 369 e segs.; e Botelho de Sousa in, “Rev. Ordem dos Advogados”, Ano 9, n°s 1 e 2, pág. 330 e segs.).

Nesta conformidade, avancemos.

–– Debrucemo-nos, agora, sobre a questão colocada em sede do “recurso”.

Diz o recorrente que “douto Acórdão recorrido, ao confirmar a sentença estrageira, in casu, violou o art.º 653.º, alínea c) ex vi do art.º 1202.º, n.º 1, ambas disposições do Código do Processo Civil”; (cfr., concl. 16ª).

A propósito de idêntico fundamento de oposição à confirmação, considerava o Prof. José Alberto dos Reis que necessário é que o citado se oponha à confirmação com o fundamento “de que apareceu documento novo, suficiente, por si só, para destruir a prova em que a sentença se fundou.
Tem de exibir esse documento e de mostrar que é novo, isto é, que não podia tê-lo apresentado no processo em que foi proferida a sentença a rever e confirmar.
A Relação terá de examinar e apreciar: 1.º Se se trata realmente de documento novo, de documento de que a parte não dispusesse nem tivesse conhecimento na pendência do processo de que emanou a sentença;
2.º Se o documento é, na verdade, suficiente, por si só, para destruir a prova em que a sentença se fundou.
Se tiver como provados estes requisitos, deve o tribunal negar a confirmação da sentença estrangeira. A isto limitará a sua actividade; não pode proferir decisão que substitua a contida na sentença estrangeira”; (in “Processos Especiais, Vol. II – Reimpressão”, pág. 193 e 194).

Mais recentemente, em comentário a idêntica “matéria” salienta (essencialmente) Rui Pinto o que segue:

“o documento há-de ter a virtualidade de apenas por si só alterar em favor do recorrente o sentido decisório transitado em julgado, i.e, um documento suficiente para o vencimento da pretensão do vencido. Isto significa mais do que uma coisa.
Em primeiro lugar, o objeto documentado há-de ser composto por factos que integrem a matéria de facto que foi oportunamente alegada em sede de causa de pedir ou de exceção. (…)
Em segundo lugar, o novo meio de prova há-de ser suficiente para alterar a decisão sem a necessidade de outros meios de prova, ainda que já apresentados no processo.
A contrario, há-de ser um documento "que não pode ser considerado e apreciado em conjugação com outros meios de prova para alterar a situação de facto emergente da sentença a rever. Há-de, ele próprio, com a sua exclusiva força probatória ter tal virtualidade", explica o ac. STJ l3-7-2010/Proc. 480/03.2TBVLC-E.P1.S1 (MOREIRA ALVES)). Em consequência, o ac. RC 2-12-2014/Proc. 536/2002.C1-A (CARVALHO MARTINS) julgou que "não preenche o fundamento do recurso de revisão do art. 771°, alínea c), do Cód. Proc. Civil (696.° NCPC) a apresentação de documento com relevância para a causa e que, apenas em conjugação com outros elementos de prova produzidos em juízo, poderia modificar a decisão em sentido mais favorável à parte"; no mesmo sentido, ac. STJ 11-9-2007/Proc. 07A1332 (FONSECA RAMOS).
Em terceiro lugar, o documento há-de ser relevante de modo essencial ou decisivo para a pretensão do vencido. Citando, JOÃO ESPÍRITO SANTO, Documento cit., 79, "não se exige […] que o documento seja, por si só, criador de uma radical alteração da situação fáctica em que assentou a decisão revidenda" mas "apenas que a altere de modo a poder modificar-se essa decisão em sentido mais favorável".
Para tanto, o documento tem de provar "um facto inconciliável com a decisão a rever" (STJ 22-5-1979 (COSTA SOARES), BMJ 287, 244; citado por LEBRE DE FREITAS/RIBEIRO MENDES, ob. cit., 226) que permita concluir que a decisão sobre um "concreto ponto da matéria de facto" que "foi, num determinado sentido desfavorável ao recorrente […] agora, com o documento entretanto apresentado, se constata ter sido mal julgado" (STJ 19-9-2013/Proc. 663/09.1TVLSB.S1 (FERNANDO BENTO)). Segundo este critério pode concluir-se com o ac. STJ 22-5-1979/Proc. 067904 (COSTA SOARES) que "Não possui aqueles requisitos um documento que pode, eventualmente, alterar um dos fundamentos com que foi decretada a separação de pessoas e bens, mas mantem intacto um outro que também lhe serviu de fundamento”; (in “C.P.C. Anotado”, Vol. II, pág. 405 e 406, podendo-se ainda sobre este aspecto ver J. L. de Freitas in, “C.P.C. Anotado”, Vol. 3, pág. 197 e 198, onde se refere que o “documento tem de fazer prova de um facto inconciliável com a decisão a rever…”).

Ponderando no que se deixou exposto, não parece que a “situação dos autos” se enquadre na previsão legal dos art°s 1202°, n.° 1, e 653°, al. c) do C.P.C.M., (pelo ora recorrente invocados).

Dúvidas não existem de que o “documento” pelo ora recorrente apresentado – e que corporiza o aludido “acordo de partilha” – surgiu em “momento posterior” à “decisão revidenda”, (e em sede de um processo judicial distinto).

Contudo, o mesmo não tem a virtualidade de “destruir a prova” em que se fundou a “sentença” a rever, e, muito menos, de “prejudicar o seu sentido”.

Esta, (a “decisão revidenda”, ou seja, o “Grant of Probate”), garante que o testamento é válido e corresponde à última vontade do de cujus, assegurando, também, os poderes de administração sobre a herança jacente do testador.

O referido “documento novo” – ou “Order” – pelo recorrente junto aos autos, representa, apenas e como já se viu, tão só, um acordo (pelos considerados interessados) celebrado quanto à “forma de partilha” da dita herança do de cujus, e que, (em boa verdade, e) no essencial, não altera o dito “Grant of Probate”.

Não se nega que aí se acordou que não se iria estabelecer o “[Testamentary Trust]”, referido na “cláusula 6” do testamento.

Todavia, tal, em nossa opinião, não prejudica – em absoluto – a “situação jurídica das AA.” enquanto “testamenteiras do de cujus”, sendo, aliás, como tal referidas, (identificadas) e reconhecidas no próprio “acordo”.

De resto, como se diz na alínea 4) do Acórdão do Supremo Tribunal do Sul da Austrália de 22.06.2021 que homologou o mencionado “acordo de partilha”: “Com as ressalvas supracitadas, e sujeitas aos termos dos Termos de Compromisso em anexo marcados como “A”, a primeira requerida e a segunda requerida, na sua capacidade de executoras da herança do falecido, ficarão na posse da herança do falecido em nome de e sujeitas aos fideicomissos declarados no testamento, na medida em que esses fideicomissos possam produzir efeitos”, (sub. nosso, cfr. tradução a fls. 118 dos autos), valendo, ainda, a pena atentar que, dos pontos 18 a 23 do mencionado “Acordo”, (cfr., fls. 140, com a respectiva tradução a fls. 126), consta, com especial relevo, os seguintes trechos:
- “As Executoras concordam em desenvolver todos os esforços razoáveis para completarem a sua administração da herança do falecido assim que exequível”;
- “As Executoras concordam que não procurarão obter uma comissão ou outra remuneração por actuarem como executoras e administradoras da herança do falecido”;
- “As Executoras entregarão a C balanços e actualizações sobre a administração da herança do falecido numa base semestral, com início em 1 de Junho de 2021”; e, ainda,
- “Sujeito ao cumprimento pelas Executoras destes Termos de Compromisso, as partes concordam por este meio isentar as Executoras de toda e qualquer responsabilidade associada à administração da herança do falecido e como directoras da [Empresa(1)] e como administradoras do [Family Trust]”.

Assim, e sendo igualmente de notar (também) que nada é dito – tanto no referido “acordo” como “Acórdão” – em relação às “contas bancárias do de cujus abertas na R.A.E.M.”, adequado não se mostra de concluir que (minimamente) contestados (ou prejudicados) foram os “poderes das testamenteiras” em relação à administração desses activos da herança, cujo efectivo “exercício”, mais ou menos conforme com o “acordado” entre os seus interessados, constitui, certamente, matéria (totalmente) alheia aos presentes autos.

Dest’arte, e com os fundamentos que se deixaram expostos, impõe-se concluir que censura não merece a decisão recorrida – pois que o documento pelo recorrente apresentado não tem a virtualidade de modificar a decisão revidenda em “sentido mais favorável ao R.” conforme é exigido pelo art. 653°, al. c) do C.P.C.M. – sendo assim de negar provimento ao recurso.

Decisão

3. Em face do que se deixou expendido, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Pagará o recorrente as custas do presente recurso com a taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 04 de Novembro de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

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