Processo nº 189/2020 Data: 19.10.2022
(Autos de recurso civil e laboral)
Assuntos : Recurso da “decisão sobre a matéria de facto”.
Ónus do recorrente.
Poder/dever do Tribunal de Segunda Instância em sede de recurso da decisão sobre a matéria de facto.
SUMÁRIO
1. O preceituado no art. 599° do C.P.C.M. – sob a epígrafe “ónus do recorrente que impugne a decisão de facto” – decorre dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª Instância possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.
Daí, exigir-se ao recorrente a indicação precisa, clara e determinada dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do Tribunal, devendo fundamentar a sua divergência com expressa referência às provas produzidas, procurando-se, por esta via, tornar praticável uma verdadeira reapreciação dos concretos pontos de facto controvertidos, sem custos desmedidos em termos de morosidade na apreciação dos recursos.
2. Porém, (e reconhecendo-se que em sede de decisão sobre esta “matéria” intervém sempre algum subjectivismo na apreciação da observância do referido “ónus de impugnação” que ao recorrente cabe), mais adequado se mostra de adoptar uma atitude (mais) “prática”, (ou pragmática), sem “formalismos excessivos”, tentando-se privilegiar a “verdade material”, sob pena de se correr o risco de se bloquear (de todo) a possibilidade de impugnação da decisão da matéria de facto.
3. O Tribunal de Segunda Instância não deve limitar-se a verificar se algum erro – “manifesto” – no procedimento probatório inquina a convicção do Juiz da 1ª Instância, devendo, antes, analisar e reflectir sobre (todo) o “processo” que levou àquela “convicção” que vem impugnada, e, em face do que alegado vem, formar uma “nova convicção” sobre as provas produzidas na 1ª Instância.
Isto é, em vez de se limitar a controlar (tão só) a “legalidade” (formal) da produção da prova realizada na Instância a quo – ou seja, se a decisão foi proferida com a invocação do “princípio da livre apreciação da prova”, (abstractamente) violadas não estando qualquer regra sobre a prova tarifada ou legal – deve ponderar e (acabar por) formar uma “convicção própria”, (sua), fruto de uma efectiva análise do mérito da apreciação efectuada e cujo “controlo” lhe é pedido.
A chamada “2ª Instância em matéria de facto”, para ser efectiva, implica – ou melhor, impõe – uma (também efectiva) “reapreciação das provas”, assente numa “(re)análise crítica” da prova em que se fundamenta a decisão (ou a parte da decisão) de facto impugnada assim como da “prova” pelo recorrente indicada para a contrariar ou alterar, com a formação de uma “convicção (nova e) própria”, não bastando pois uma mera apreciação (abstracta) do julgamento efectuado.
4. Porém, a “reapreciação da prova” e a “nova – ou própria – convicção” em 2ª Instância não constitui, nem significa, um “2° julgamento”.
Com efeito, tem tão só como “objecto” a “matéria de facto impugnada”, e ainda que, por hipótese, seja “toda” a decisão da matéria de facto, a (re)ponderação também tem como ponto de partida os “concretos meios probatórios” indicados pelo recorrente.
5. A não se entender assim, facilmente se faz da “previsão legal” em questão mera “letra morta”, bastando para o efeito avançar-se com considerações abstractas e genéricas, sem qualquer densidade, individualidade, ou concreta referência ao caso em questão, comprometendo-se a verdade (e a justiça) material com um (mero) duplo grau de jurisdição em matéria de facto (meramente) formal.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 189/2020
(Autos de recurso civil e laboral)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (甲), e B (乙), casados entre si e com os restantes sinais dos autos, intentaram acção declarativa de condenação com a forma ordinária contra a “C”, (“丙”), pedindo, a final, que fosse:
“(i) proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Ré faltosa, designadamente os efeitos translativos da propriedade para os Autores das Fracções identificadas”; e que fosse,
“(ii) a Ré condenada na entrega aos Autores do montante do débito garantido correspondente às fracções objecto dos contratos, e dos juros respectivos, vencidos e vincendos até integral pagamento para o efeito de expurgação da hipoteca.
Subsidiariamente, caso assim não entenda, deve:
(iii) ser a Ré condenada por não cumprimento dos Contratos-Promessa a pagar aos Autores o dobro das quantias que este lhe pagou, bem como a indemnização pelo dano excedente – correspondente à diferença entre o preço acordado entre as partes na data da celebração dos Contratos-Promessa e o valor de mercado das fracções prometidas na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (artigo 560/5 do CCivil), i.e., no momento do encerramento da discussão e julgamento (artigo 566/1 do CPC) – mais o valor dos impostos pagos pelas respectivas transmissões intercalares, o que, à data da proposição da presente acção, se cifra já em MOP90.382.618,00 (MOP46.017.349,00 + MOP22.048.398,00 + MOP22.316.871,00), tudo com juros legais desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Subsidiariamente, caso assim não entenda, deve:
(iv) ser a Ré condenada pelo não cumprimento dos Contratos-Promessa a pagar aos Autores o dobro das quantias que este lhe pagou, mais o valor dos impostos pagos pelas transmissões intercalares das Fracções ora em causa (MOP11.712.598,00 = (MOP2.980.820,00 + MOP1.427.580,00 + MOP1.427.580,00) x 2 + MOP40.638,00), tudo com juros legais desde a data da citação até efectivo e integral pagamento”; (cfr., fls. 2 a 10-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Oportunamente, após “contestação” da R., (cfr., fls. 114 a 155), “replica” dos AA., (cfr., fls. 202 a 215), e tréplica daquela, (cfr., fls. 219 a 232), proferiu-se despacho-saneador, (cfr., fls. 303 a 310-v), e, seguidamente, após audiência de discussão e julgamento, por sentença do Mmo Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base, decidiu-se julgar:
“a acção procedente porque provada e em consequência em substituição da Ré C declara-se transmitido para os Autores A e B o direito resultante da concessão por arrendamento incluindo a propriedade de construção sobre as fracções autónomas “E16”, “D16” e “D17” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX a fls. XX do Livro BXK e inscrito na matriz sob o nº XXXXXX, condenando-se a Ré a pagar aos Autores o montante do débito garantido pela hipoteca acrescido dos juros respectivos vencidos e vincendos no valor que se vier a apurar em execução de sentença para expurgação da hipoteca incidente sobre o prédio na parte correspondente às fracções autónomas objectos destes autos”, julgando-se “improcedente o pedido reconvencional da Ré absolvendo os Autores do mesmo”; (cfr., fls. 569 a 579).
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Com o recurso que do assim decidido apresentou a sociedade R. subiram ao Tribunal de Segunda Instância dois (2) outros “recursos interlocutórios” antes interpostos: um, dos AA., e outro, da R.; (cfr., nota de revisão de fls. 692 a 692-v).
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Por Acórdão de 14.05.2020, (Proc. n.° 204/2019), decidiu-se:
- negar provimento ao “recurso (final) da sentença”;
- não conhecer do “recurso interlocutório” dos AA. por força do art. 628°, n.° 2 do C.P.C.M.;
- julgando-se supervenientemente inútil o “recurso interlocutório” da R.; (cfr., fls. 707 a 731).
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Ainda inconformada, traz a referida R. o presente recurso.
Nas suas alegações, produz as conclusões seguintes:
“A. Na alegação do recurso interposto para o douto Tribunal a quo, a Recorrente impugnou as respostas dadas pelo douto Tribunal de Primeira Instância aos artigos 2.°, 6.° a 8.° e 14 a 20.° da Base Instrutória, tendo indicado os meios de prova (maxime, os depoimentos das testemunhas) que, segundo a valoração da Recorrente, impunham decisão diversa; o douto Tribunal a quo entendeu, porém, que só pode reapreciar a decisão do Tribunal de Primeira Instância sobre a matéria de facto quando lhe seja apontado um erro manifesto, o que a Recorrente não fez.
B. A alínea a) do n.° 1 do artigo 629.° do CPC define as condições em que o Tribunal de Segunda Instância pode alterar a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, não prevendo, como requisito desse segundo grau de jurisdição, a existência de erro manifesto na valoração das provas e na fixação da matéria de facto, ou a alegação da existência desse erro.
C. O douto Acórdão em crise, na medida em que nega à Recorrente um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, quando estão reunidos todos os requisitos legais para beneficie do mesmo, viola alínea a) do n.° 1 do artigo 629.° do CPC, devendo portanto ser revogado e, consequentemente, ordenada a remessa dos autos ao douto Tribunal a quo para que conheça da impugnação da matéria de facto.
D. O pedido principal dos Recorridos é a execução específica dos Contratos-Promessa, tendo a Recorrente alegado em sede excepção, na sua contestação, que tal não poderia proceder, desde logo, porque os Contratos-Promessa se encontram resolvidos. Como resulta do teor literal dos Contratos-Promessa dos autos, designadamente a respectiva cláusula 2.2, as partes acordaram expressamente em atribuir à Recorrente o direito de não celebrar o contrato definitivo, fixando-se uma indemnização aos Recorridos, com referência ao dobro do sinal pago.
E. E foi precisamente esse direito, potestativo, que a Recorrente exerceu em 22 de Maio de 2014, quando requereu a notificação judicial avulsa dos Recorridos para, nos termos da aludida cláusula 2.2 e do n.° 1 do artigo 426.° do CC, fazer operar a resolução dos Contratos-Promessa, tendo na mesma notificação disponibilizado aos Recorridos as indemnizações que lhe são devidas pelas aludidas.
F. Face ao teor literal da cláusula 2.2. dos Contratos-Promessa, com a redacção que ficou provada nos autos, os Recorridos não têm o direito de se opor àquela resolução, que é válida, nem o direito de requerer a execução específica dos Contratos-Promessa, na medida em que por um lado, os mesmos foram resolvidos, e, por outro, o direito à execução específica dos Contratos-Promessa foi expressamente afastado pelas partes. A aludida cláusula 2.2 constitui uma convenção que, por conferir direito de arrependimento à promitente-vendedora, a ora Recorrente, afasta o funcionamento da execução específica. Trata-se da "convenção em contrário" a que alude o n.° 1 do artigo 820.° do CC.
G. No seu Acórdão de 29 de Novembro de 2019, proferido no processo n.° 111/2019, este douto Tribunal de Ultima Instância confirmou que a uma cláusula contratual com a mesma redacção que a cláusula 2.2 dos Contratos-Promessa dos autos pode ser interpretada no sentido de que a mesma confere à Recorrida um direito de resolução unilateral e afasta o direito de execução específica dos Recorridos - contrariamente ao que se defende no douto Acórdão ora em crise.
H. Ao decidir em sentido contrário, indeferindo a excepção de resolução, a douto Tribunal a quo violou no Acórdão em crise os artigos 399.°, 426.°, n.° 1, 430.°, n.° 1 e 820.°, n.° 1, todos do CC, pelo que deve este ser revogado e substituído por outro que, julgando procedente a presente excepção, julgue improcedente a presente acção.
I. Prevendo a improcedência do pedido de execução específica dos Contratos-Promessa, os Recorridos peticionam, a título subsidiário, uma indemnização pelo dano excedente, alegadamente a coberto da norma do n.° 4 do artigo 436.° do CC.
J. Porém, esta norma apenas se aplica perante o "não cumprimento do contrato" e, como ficou demonstrado supra, os Contratos-Promessa foram validamente resolvidos pela ora Recorrente sem que se verificasse qualquer incumprimento da sua parte.
K. Em todo o caso, os Recorridos nunca teriam direito a ser indemnizados pelo dano excedente, por não estarem preenchidos os requisitos de que depende a aplicação do n.° 4 do artigo 436.° do CC, não podendo, caso o presente recurso seja julgado procedente e indeferido o direito dos Recorridos à execução específica dos Contratos-Promessa, ser-lhes reconhecido o direito à alegada indemnização pelo dano excedente.
L. Em 22 de Maio de 2014, a Recorrente requereu a notificação judicial avulsa da Autora para, nos termos da aludida cláusula 2.2 e do n.° 1 do artigo 426.° do CC, fazer operar a resolução dos Contratos-Promessa, pelo que, julgando-se procedente o presente recurso, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado, por violar o artigo 399.° do CC (princípio da autonomia privada e liberdade contratual das partes - pois a Recorrente fez operar uma causa de resolução fundada em convenção, nos termos do n.° 1 do artigo 426.° do CC, mediante declaração à contraparte, nos termos do n.° 1 do artigo 430.° do mesmo diploma) e substituído por outro, que declare que os Contratos-Promessa foram resolvidos através da sobredita notificação judicial avulsa.
M. Ao abrigo do pedido de execução específica dos Contratos-Promessa, os Recorridos peticionaram ainda que a Recorrente fosse "condenada na entrega aos Autores do montante do débito garantido correspondente às fracções objecto dos contratos, e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até integral pagamento para o efeito de expurgação da hipoteca.".
N. Decorre expressamente do n.° 5 do artigo 820.° do CC que o promitente comprador não tem esse direito quando a constituição de hipoteca seja posterior à promessa de venda.
O. In casu, a hipoteca é anterior aos Contratos-Promessa, não existindo nestes sequer o compromisso de vender as Fracções livres de ónus ou encargos.
P. Pelo que, ao deferir tal pretensão dos Recorridos, o douto Acórdão em crise viola o n.° 2 do artigo 752.° e os n.os 4 e 5 do artigo 820.°, ambos do CC, pelo que, ainda que o douto Tribunal ad quem confirme o douto Acórdão recorrido na medida em que defere o pedido de execução específica dos Contratos-Promessa, não pode deixar de revogar a decisão em crise e substituí-la por outra que indefira o pedido de condenação da Recorrente a pagar aos Recorridos o montante do débito garantido pela hipoteca, acrescido dos juros respectivos vencidos e vincendos no valor que se vier a apurar em execução de sentença para expurgação de hipoteca incidente sobre o prédio na parte correspondente às Fracções.
Q. A ora Recorrente interpôs recurso interlocutório peticionando que fosse declarada nula a segunda perícia de fls. 429 a 431 dos autos e ordenada a realização de segunda perícia com intervenção de todos os peritos oportunamente nomeados pelo douto Tribunal de Primeira Instância para o efeito, tendo o douto Tribunal a quo decidido, no Acórdão ora em crise, não o conhecer por inutilidade superveniente, porquanto entende que a decisão do caso dos autos não depende da matéria de facto que possa resultar provada em consequência da eventual procedência do mesmo (valor de mercado das Fracções dos Autos).
R. A Recorrente não pode, salvo o respeito devido, conformar-se com tal entendimento. Não só entende que as partes afastaram o direito à execução específica dos Autores com a redacção das cláusulas 2.2 dos Contratos-Promessa, como entende que a prova dos factos em causa confirma, ou torna mais claro, que foi essa a intenção das partes quando redigiram tais cláusulas, o que consubstancia matéria pertinente para a descoberta da verdade material e para a justa decisão da causa.
S. Pelo exposto, caso o recurso interposto da decisão final sobre o mérito da causa não seja julgado procedente, sempre deverá o douto Acórdão recorrido ser revogado, na parte em que não conhece o recurso interlocutório da Ré, por violar os artigos 491.° e 494.°, aplicáveis ex vi do artigo 511.°, e 147.°, n.° 1, todos do CPC, e substituído por outro que, conhecendo do mesmo, o julgue procedente, nos termos e com os fundamentos constantes da respectiva alegação.
T. Existindo a possibilidade de, nos presentes autos, ter vencimento uma solução jurídica em oposição com a que obteve vencimento no Acórdão deste douto Tribunal de Última Instância de 29 de Novembro de 2019, proferido no processo n.° 111/2019, a Recorrente desde já sugere a V. Exas. que, nos termos do artigo 652.-A do CPC, seja determinado o julgamento ampliado deste recurso, com a intervenção da formação referida no n.° 2 do artigo 46.° da Lei n.° 9/1999, de 20 de Dezembro.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogado o douto Acórdão recorrido, por violar os artigos 491.° e 494.°, aplicáveis ex vi do artigo 511.°, e 147.°, n.° 1, bem como a alínea a) do n.° 1 do artigo 629.°, todos do Código de Processo Civil, e substituído por outro que:
a) conheça do mérito do recurso interlocutório interposto pela Recorrente a fls. 473 dos presentes autos; e
b) ordene a remessa dos autos ao douto Tribunal a quo para que conheça do recurso sobre a matéria de facto;
Subsidiariamente, caso assim não se entenda caso assim não se entenda e seja confirmado o douto Acórdão recorrido na parte em que não conhece da impugnação da matéria de facto, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogado o douto Acórdão recorrido, por violar os artigos 399.°, 426.°, n.° 1, 430.°, n.° 1, todos do Código Civil, e substituído por outro que:
c) julgue procedente, por provada, a excepção peremptória de resolução dos Contratos-Promessa, absolvendo a Recorrente dos pedidos;
d) confirme que os Contratos-Promessa foram validamente resolvidos pela Recorrente, mediante notificação judicial avulsa; e, consequentemente,
e) ordene o cancelamento, junto da Conservatória do Registo Predial, dos registos, a favor dos Recorridos, constituídos por via das Apresentações n.°s 142, 143 e 145 de 21/06/2013, da aquisição dos direitos resultantes da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, das Fracções "D16", "E16" e "D17", respectivamente, do prédio ali descrito sob o n.° XXXXX, a fls. XX do Livro BXK, todos titulados pelos Contratos-Promessa resolvidos, que deram origem às seguintes inscrições:
i) inscrição n.° XXXXXXG, relativa à fracção "D16";
ii) inscrição n.° XXXXXXG, relativa à fracção "E16"; e
iii) inscrição n.° XXXXXXG, relativa à fracção "D17";
Subsidiariamente, caso assim não se entenda e seja confirmado o douto Acórdão recorrido na parte em que defere o pedido de execução específica dos Contratos-Promessa, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogado o douto Acórdão em crise, por violar o n.° 2 do artigo 752.° e os n.os 4 e 5 do artigo 820.°, ambos do Código Civil, e substituído por outro que indefira o pedido de condenação da Recorrente na entrega aos Recorridos do montante do débito garantido correspondente às fracções objecto dos Contratos-Promessa, e dos juros respectivos, vencidos e vincendos, até integral pagamento para o efeito de expurgação da hipoteca, (…)”; (cfr., fls. 739 a 768).
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Em resposta, dizem os AA. recorridos o que segue:
“I. O douto acórdão recorrido não violou o disposto na alínea a) do n.° 1 do art.° 629.° do CPC.
II. Na decisão recorrida, e bem, o TSI considerou que a resposta à matéria de facto dada pela 1.ª instância observou as regras quanto à valoração das provas e à sua força probatória e que a decisão em si não era incoerente nem manifestamente contrária às regras da experiência e à lógica das coisas
III. E a Recorrente não identificou no seu recurso da decisão da 1.ª instância o erro que na sua visão teria sido cometido na decisão sobre a matéria de facto.
IV. É jurisprudência unânime dos Tribunais da RAEM que para abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que a recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica.
V. Além do mais, como decorre do art.° 649.°, n.° 2, do CPC, a decisão do tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada pelo TUI, porquanto a Recorrente não aponta à decisão recorrida ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
VI. O acórdão recorrido também não violou o disposto nos artigos 399.°, 426.°, n.° 1,430.°, n.° 1, e 820.° do Código Civil.
VII. Da factualidade especificada nas Alíneas H), I) e J) dos Factos Assentes resulta que o incumprimento dos contratos-promessa é imputável à Recorrente, sendo que no ordenamento jurídico da RAEM, fora das hipóteses de convenção em contrário e/ou alteração superveniente das circunstâncias, o exercício da resolução tem o seu fundamento apenas na ruptura do sinalagma.
VIII. O não cumprimento por arrependimento do promitente-vendedor confere aos promitentes-compradores o direito a requerer, nos termos do disposto nos artigos 436/3 e 820/1 e 2 ambos do Código Civil, a realização coactiva da prestação através de execução específica do contrato-promessa, ou seja, de obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.
IX. Em nenhuma cláusula dos contratos-promessa as partes convencionaram que a promitente vendedora podia resolver o contrato se e quando quisesse, mediante simples declaração unilateral.
X. Das cláusulas 2.2. e 15 dos Contratos-Promessa decorre que, ao invés de convencionarem o direito de retractação ou de desvinculação ad nutum da promitente-vendedora, as partes optaram apenas por dizer o que diz a lei, ou seja, se a Recorrente não pretendesse vender, deveria restituir aos Recorridos o sinal em dobro, sem que tivessem excluído a possibilidade da execução específica dos contratos.
XI. O poder de requerer a execução específica do contrato que assiste à parte que não tenha dado causa ao seu incumprimento está previsto nos n. os 1 e 2 do artigo 820.° do Código Civil.
XII. Sucede que, in casu ficou provado que o preço acordado para cada uma das referidas Fracções foi pago integralmente na data da celebração de cada um dos referidos Contratos-Promessa (Alínea E) dos Factos Assentes), mas não ficou provado qualquer acordo das partes para afastar a execução específica.
XIII. Do regime conjugado dos artigos 436.° e 820.° do Código Civil resulta que a simples existência de sinal prestado no contrato-promessa, ou a fixação de pena para o caso do não cumprimento deste, não pode ser interpretada como afastamento do direito à execução específica, podendo a parte fiel optar pelo recebimento do sinal em dobro (artigo 436.°, n.° 2) ou, em alternativa, pelo recurso à execução específica (artigo 820.°, n.° 1).
XIV. A prevalecer a tese da validade da resolução unilateral por simples declaração unilateral da promitente-compradora, estar-se-ia a derrogar o direito à execução específica que a lei confere ao promitente-comprador, como alternativa ao recebimento do sinal em dobro.
XV. Não tendo as partes afastado a possibilidade de execução específica dos Contratos-Promessa em caso de não cumprimento, tal significa que à Recorrente não foi conferido o direito à desvinculação ad nutum, ou seja, à resolução dos contratos mediante o pagamento do sinal em dobro como preço do arrependimento.
XVI. Num negócio formal, como é o caso, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, como decorre do disposto no art.° 230.°, n.° 1, do Código Civil, sendo, por isso, inatacável a sentença recorrida.
XVII. No Processo n.° 111/2019 o TUI não confirmou ou aceitou que a cláusula 2.2 dos Contrato-Promessa naqueles autos conferia à promitente-vendedora o direito de resolução unilateral, afastando a faculdade de execução específica pelo contratante fiel, pois nem sequer se pronunciou sobre esta questão em concreto, entendendo que não tinha poder de cognição da mesma.
XVIII. Para a possibilidade do recurso ser julgado procedente e do TUI poder conhecer da questão subsidiária da indemnização pelo dano excedente, a Recorrente defende que os Recorridos nunca teriam direito a ser indemnizados pelo dano excedente.
XIX. Ora, a Recorrente não imputa ao Douto acórdão do TSI a violação ou a errada aplicação da lei substantiva ou da lei de processo, nem sequer a nulidade do acórdão recorrido, pelo que o Venerando TUI não poderá pronunciar-se sobre concreta questão, conforme resulta do artigo 639.° do CPC.
XX. Em todo o caso, pese embora o conhecimento desta questão se mostre prejudicada pela solução dada ao litígio, sempre estariam verificados os pressupostos da indemnização pelo dano excedente.
XXI. Isto porque quando o promitente-comprador perde o direito a comprar a coisa, perde-o na totalidade, pelo que a indemnização por essa perda há necessariamente de corresponder, não só ao preço pago pela aquisição do direito em 2011, mas também à valorização do bem a que respeita o negócio prometido até à data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal, nos termos do n.° 5 do artigo 560.° do Código Civil.
XXII. Na hipótese de incumprimento do contrato, o legislador veio facultar ao promitente fiel o direito a indemnização pelo dano excedente quando este for consideravelmente superior (cf. artigo 436.°, n.° 4 do Código Civil).
XXIII. A razão subjacente à resolução dos Contratos-Promessa supra identificados por parte da Recorrente, prende-se unicamente com o facto de ela achar que lhe é mais vantajoso desvincular-se dos contratos do que cumpri-los, devido à forte valorização do preço de mercado das Fracções em causa nos últimos três anos.
XXIV. Perante a vertiginosa subida dos preços do imobiliário desde a data da celebração dos contratos-promessa até à data do encerramento da discussão em 1.ª instância, não restam dúvidas de que, caso não tivesse sido admitida a execução específica dos Contratos-Promessa, o dano dos Recorridos teria largamente ultrapassado a compensação que lhe caberia mediante a mera restituição do sinal em dobro.
XXV. O acórdão recorrido também não violou o disposto no art.° 399.° do CC.
XXVI. Como o Douto acórdão do TSI bem explica, o pedido reconvencional da Recorrente assentava na sua essência nos quesitos 2.°, 6.° a 8.°, e 14.° a 20.° da base instrutória, matéria que aquela não logrou provar, pelo que a pretensão da Recorrente só poderia ser julgada improcedente.
XXVII. E o acórdão recorrido também violou o disposto nos artigos 820.°, n.°s 4 e 5, e 752.°, n.° 2, do Código Civil.
XXVIII. Pretende a Recorrente, sem razão, que seja revogada a condenação no pagamento do montante do débito garantido pela hipoteca.
XXIX. Se não impendesse sobre o promitente-vendedor faltoso o ónus de expurgar, distratar ou cancelar a hipoteca sobre o imóvel para garantia de um débito seu a terceiro, pelo qual o promitente-adquirente não fosse corresponsável, a lei não teria atribuído ao adquirente de bens hipotecados o direito de, em lugar do vendedor, cumprir a obrigação garantida pela hipoteca (artigo 716.°, alínea a) do Código Civil), ficando, nessa medida, sub-rogado contra ele dos direitos do credor hipotecário (artigo 586.° do Código Civil).
XXX. Independentemente de a Recorrente ter alegado que não se obrigou nos contratos-promessa a vender as Fracções livres de ónus ou encargos, tal não significa que tenha ficado exonerada da obrigação de cancelar a hipoteca que sobre elas incide.
XXXI. Desde logo, porque não foi convencionada a transmissão para o promitente-comprador (nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 590.°, n.° 1, alínea a) do Código Civil) da responsabilidade pelo pagamento do débito garantido pela hipoteca, como teria sido se as partes tivessem querido exonerar a Recorrente da obrigação de a cancelar.
XXXII. Depois, porque a exoneração da Recorrente da obrigação de cancelar a hipoteca para garantia de um débito seu a terceiro (pelo qual os Recorridos não são responsáveis) não foi convencionada pelas partes, nem tem um mínimo de correspondência no texto dos contratos-promessa, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 230.°, n.° 1 do Código Civil).
XXXIII. Tão pouco se pode dizer que foi essa a vontade tácita das partes, porque tal hipótese não se deduz de qualquer facto ou factos que, com toda a probabilidade, a revelam (artigo 209.°, n.° 1 do Código Civil).
XXXIV. Em caso de dúvida quanto à vontade real das partes, sempre prevaleceria a interpretação que conduzisse ao maior equilíbrio das prestações (artigo 229.° do Código Civil).
XXXV. Seria absurdo que os Recorridos pagassem à Recorrente não só o preço dos imóveis objecto da promessa de compra e venda, como também o capital (acrescido dos juros) que o "[Banco(1)]" lhe emprestou para financiar a construção desse edifício!
XXXVI. Resulta claramente da lei que, na falta de convenção em contrário, impende sobre a promitente-vendedora o dever de expurgar, distratar ou cancelar quaisquer ónus ou encargos que incidam sobre ela, independentemente de tal ter ou não sido expressamente convencionado no contrato-promessa.
XXXVII. Sucede que no caso dos presentes autos a Recorrente não cancelou a hipoteca nem entregou aos Recorridos o valor correspondente ao expurgo da mesma, como lhe impunha o artigo 752.°, n.° 1 do Código Civil, sendo por isso responsável pelo prejuízo que causou ao credor - artigos 787.°, 477.°, n.° 1 e 558.°, n.° 1 do Código Civil.
XXXVIII. Cabia à Recorrente, face ao disposto no artigo 337.°, n.° 1 do Código Civil ter elidido a presunção legal resultante do artigo 788.°, n.° 1 do mesmo diploma de que a falta de cumprimento da obrigação de cancelar a hipoteca ou de entregar aos Recorridos o valor do débito garantido não procedeu de culpa sua.
XXXIX. Mas o certo é que o não conseguiu fazer.
XL. Aos Recorridos assiste, portanto, o direito ao montante do débito garantido pela hipoteca correspondente às Fracções objecto dos Contratos-Promessa, e dos juros respectivos, vencidos e vincendos até integral pagamento, devendo manter-se a decisão recorrida.
XLI. Não releva para efeitos da condenação da Recorrente no pagamento do montante do débito garantido pela hipoteca, se a mesma foi constituída anteriormente à celebração dos contratos-promessa, conquanto foi constituída para garantia de um débito pelo qual os Recorridos não foram responsáveis nem assumiram nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 590.° do CC.
XLII. Já releva que não se tenha verificado - como não verificou - nenhuma das hipóteses de transmissão singular de dívida previstas nas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 590.° do Código Civil.
XLIII. De resto, tendo a Recorrente procedido ao pagamento do crédito bancário para cancelamento da correspondente garantia hipotecária quanto a 348 Fracções do mesmo edifício, prometidas adquirir nos termos de contratos-promessa de compra e venda do mesmo tipo (artigo 6.° da Contestação), sendo a garantia hipotecária e a obrigação garantida as mesmas naquelas outras situações e na presente, a pretensão da Recorrente é completamente indefensável e, até, contrária aos princípios da boa-fé.
XLIV. Discorda a Recorrente do facto do TSI não ter conhecido da questão do recurso interlocutório pelo qual pretendia ver declarada nula a perícia de fls. 429 a 431, por alegada violação dos artigos 491.° e 494.° do CPC ex vi dos artigos 511.° e 147.°, n.° 1, do CPC.
XLV. Por mais benevolência que se tenha na compreensão da bizarra linha de raciocínio da Recorrente, é óbvio que uma segunda perícia não tinha o mérito de provar a intenção das partes ou a sua vontade real na redacção da cláusula 2.2 do Contrato-Promessa.
XLVI. E também é incompreensível que a Recorrente, para solução desta mesma matéria, insista em alegar algo que o TUI não decidiu no processo n.° 111/2019 e em forçar nestes autos uma apreciação pelo TUI de matéria de facto, quando este declarou, sem margem para dúvidas, que o apuramento da vontade real das partes, incluindo a sua intenção na redacção de uma cláusula contratual constitui questão de facto, para o qual o TUI não tem poder de cognição.
XLVII. E nesse mesmo acórdão o TUI nem faz qualquer referência à utilidade da averiguação da vontade das partes por detrás da redacção da cláusula 2.2 dos Contratos-Promessa, nem defende que essa averiguação possa ser feita por prova pericial para apuramento do valor das fracções autónomas em determinada data!
XLVIII. De sorte que, também neste segmento o Tribunal a quo, de forma coerente e fundamentada, não violou qualquer norma processual.
XLIX. Finalmente, a Recorrente pretende que o TUI, ao abrigo do disposto no art.° 652.°-A do CPC proceda ao julgamento ampliado do recurso para uniformização de jurisprudência.
L. A pretensão da Recorrente assenta, mais uma vez, na imputação ao TUI de uma pronúncia que o mesmo se recusou a fazer: a averiguação da vontade das partes por detrás da redacção da cláusula 2.2 dos Contratos-Promessa, para determinação do direito da promitente vendedora resolver unilateralmente os contratos-promessa de compra e venda, afastando-se o direito à execução específica.
LI. Ora, como já vimos, o acórdão proferido pelo TUI no processo n." 111/2019 decidiu que o apuramento da vontade real das partes de um negócio, incluindo a sua intenção na redacção de uma cláusula do mesmo, constitui questão de facto, para o qual o TUI não tem poder de cognição.
LII. No referido processo n.° 111/2019 foi esta mesma questão que foi sujeita a pronúncia pelo TUI e não aquela que a Recorrente capciosamente lhe imputa: o reconhecimento pelo TUI da faculdade, ou não, de resolução unilateral do contrato-promessa ao abrigo da cláusula 2.2 e do afastamento da possibilidade de execução específica.
LIII. Em termos de raciocínio lógico-dedutivo esta questão encontrava-se a montante e o TUI não se pronunciou sobre a mesma.
LIV. Não sendo possível que nos presentes autos tenha vencimento uma solução jurídica que esteja em oposição com a de acórdão proferido no Processo n.° 111/2019 do TUI, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, atenta a limitação prevista no art.° 649.°, n.° 2, do CPC, não estão reunidos os requisitos ara o julgamento ampliado do recurso previsto no art.° 652.°-A do CPC”; (cfr., fls. 775 a 790-v).
*
Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Tribunal Judicial de Base foram dados como provados os factos seguintes, (que não foram objecto de alteração pelo Tribunal de Segunda Instância):
“Da instrução e discussão da causa apurou-se que:
a) O prédio urbano sito em Macau, no [Endereço(1)], descrito na Conservatória de Registo Predial (CRP) sob o n° XXXXX, encontra-se construído em terreno concedido por arrendamento, pelo prazo de 25 anos, a contar de 30 de Julho de 1991, conforme inscrição nº XXXX, a fls. XXX do Livro FXK da aludida Conservatória – em conformidade com o teor do Doc. 2 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido; (alínea a) dos factos assentes)
b) As fracções autónomas “E DEZESSEIS”, do décimo sexto andar “E”, “D DEZESSEIS”, do décimo sexto andar “D” e “D DEZESSETE”, do décimo sétimo andar “D”, para escritórios, do prédio supra identificado, encontram-se registadas a favor da Ré na CRP, sob a inscrição n° XXXX, a fls. XX do Livro FXXK, com o título constitutivo da propriedade horizontal inscrito definitivamente sob o n° XXXXXF. - em conformidade com o teor do Doc. 2 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido; (alínea b) dos factos assentes)
c) No dia 30 de Dezembro de 2010, a Ré constituiu uma hipoteca e uma consignação de rendimentos voluntária no valor de HKD250.000.000,00 a favor do “[Banco(1)]” sobre o prédio identificado em a); (alínea c) dos factos assentes)
d) Por documentos escritos, que as partes intitularam de “contrato-promessa de compra e venda de imóvel”, formalizados no dia 19 de Abril de 2011, a Ré prometeu vender, e os Autores prometeram comprar, as seguintes fracções autónomas:
1. fracção “E DEZESSEIS”, do décimo sexto andar “E”, pelo preço de HKD2.894.000,00, equivalente a MOP2.980.820,00;
2. fracção “D DEZESSEIS”, do décimo sexto andar “D”, pelo preço de HKD1.386.000,00, equivalente a MOP1,427,580.00; e
3. fracção “D DEZESSETE”, do décimo sétimo andar “D”, pelo preço de HKD1.386.000,00, equivalente a MOP1,427,580.00,
todas do prédio urbano identificado em a), em conformidade com o teor dos documentos nºs 3, 4 e 5, juntos com a petição inicial que aqui se dão por integralmente reproduzidos; (alínea d) dos factos assentes)
e) O preço acordado para cada uma das referidas Fracções foi pago integralmente na data da celebração de cada um dos acordos aludidos em d); (alínea e) dos factos assentes)
f) Em 25 de Abril de 2011 e 15 de Outubro de 2014 os Autores pagaram o imposto do selo e selo do conhecimento relativo às transmissões intercalares das Fracções no valor MOP40.638,00, em conformidade com o teor dos documentos junto a fls. 67 a 72, que aqui se dão por integralmente reproduzidos; (alínea f) dos factos assentes)
g) Em 21 de Junho de 2013, os Autores requereram e obtiveram, junto da Conservatória do Registo Predial, o registo da inscrição provisória por natureza, a seu favor, das Fracções sob as inscrições n° XXXXXXG, XXXXXXG e XXXXXXG; (alínea g) dos factos assentes)
h) Em 22.05.2014 a Ré requereu a notificação judicial avulsa dos Autores para efeitos de declaração da resolução dos três Contratos-Promessa, em conformidade com o teor do documento nº 7 junto com a petição inicial e cujo teor se dá por integralmente reproduzido; (alínea h) dos factos assentes)
i) Nessa data a Ré disponibilizou aos Autores os seguintes montantes:
1) HKD2.772.000,00, equivalente a MOP2.855.160,00 (dois milhões, oitocentas e cinquenta e cinco mil, cento e sessenta Patacas), relativamente à fracção “D16”;
2) HKD5.788.000,00, equivalente a MOP5.961.640,00 (cinco milhões, novecentas e sessenta e uma mil, seiscentas e quarenta Patacas), relativamente à fracção “E16”; e
3) HKD2.772.000,00, equivalente a MOP2.855.160,00 (dois milhões, oitocentas e cinquenta e cinco mil, cento e sessenta Patacas), relativamente à fracção “D17”;
(alínea i) dos factos assentes)
j) Em 05.06.2014, os Autores responderam à declaração resolutiva nos termos que constam do Documento junto a fls. 101 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos; (alínea j) dos factos assentes)
k) A Ré requereu a rectificação judicial das inscrições nºs XXXXXXG, XXXXXXG e XXXXXXG, correndo termos, nesse sentido, os seguintes processos junto deste Tribunal Judicial de Base: CV2-14-0043-CRJ, do 2º Juízo Cível, quanto à inscrição nº XXXXXXG; CV3-14-0047-CRJ, do 3.º Juízo Cível, quanto à inscrição nº XXXXXXG; e CV1-14-0050-CRJ, deste 1º Juízo Cível, quanto à inscrição nº XXXXXXG; (alínea l) dos factos assentes)
l) Em 1 de Junho de 2012, a Ré solicitou, por carta, aos Autores o pagamento de um valor para correcção do preço de venda das Fracções, tendo em conta o aumento do custo de construção, em conformidade com o teor do documento junto como Doc. nº 4 com a contestação e aqui se dá por integralmente reproduzida, missiva que os AA. não receberam; (alínea m) dos factos
m) O valor da fracção E16 em 2011 era de MOP3.910.000,00 e em 2014 de MOP14.091.000,00, da D16 em 2011 de MOP1.870.000,00 e em 2014 de MOP6.751.000,00 e da D17 em 2011 de MOP1.960.000,00 e em 2014 de MOP6.841.000,00; (reposta ao quesito nº 1 da base instrutória)
n) As fracções autónomas a que se reportam os autos inserem-se num edifício com um processo de construção conturbado que se arrastava desde a primeira metade da década de 90; (reposta ao quesito nº 3 da base instrutória)
o) A construção do edifício iniciou-se na primeira metade dos anos 90; (reposta ao quesito nº 9 da base instrutória)
p) Que parou passado algum tempo; (reposta ao quesito nº 10 da base instrutória)
q) A Ré retomou as obras no princípio de 2011; (reposta ao quesito nº 12 da base instrutória)
r) Alguns materiais tiveram que ser substituídos. (reposta ao quesito nº 13 da base instrutória)”; (cfr., fls. 572 a 575).
Do direito
3. O presente recurso pela R. trazido a esta Instância tem como “objecto” o decidido no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 14.05.2020, (Proc. n.° 204/2019), que manteve as (duas) decisões “interlocutórias” e “a final” então recorridas e pelo Tribunal Judicial de Base proferidas, (definitivamente “arrumada” ficando assim a “questão” e decisão relativamente ao anterior recurso dos AA.).
E como das conclusões no presente recurso apresentadas se retira, impugna a R. ora recorrente:
(1) a decisão que negou provimento ao seu “recurso da sentença” do Tribunal Judicial de Base, (cfr., concl. A a P); assim como,
(2) a decisão que não conheceu do seu “recurso interlocutório” por o ter considerado supervenientemente inútil; (cfr., concl. Q a S).
Em face do “âmbito do presente recurso” que nestes termos se deixou retratado e identificado, e certo sendo que a decisão de inutilidade superveniente do recurso interlocutório foi consequência da (sua prejudicialidade em face da) solução pelo Tribunal de Segunda Instância encontrada para o recurso da decisão final, nesta mesma lógica se nos apresenta de passar a apreciar os motivos de insatisfação da ora recorrente.
–– Comecemos, assim, pelo recurso do segmento decisório que confirmou a sentença do Tribunal Judicial de Base.
Pois bem, aqui, e em síntese que se nos apresenta adequada, é a recorrente de opinião que a decisão em crise violou:
- a alínea a) do n.° 1 do art. 629° do C.P.C.M., (negando-lhe um segundo grau de jurisdição em matéria de facto);
- os art°s 399°, 426°, n.° 1 e 430°, n.° 1, todos do C.C.M.; e ainda,
- o n.° 2 do art. 752° e n°s 4 e 5 do art. 820°, também do C.C.M..
Dúvidas não havendo que sem uma “boa decisão da matéria de facto”, (totalmente) inviável é uma “justa decisão de direito”, e, verificando-se que o “primeiro” dos agora pela recorrente invocados “vícios” diz (exactamente) respeito à decisão do Tribunal de Segunda Instância que rejeitou a sua (anterior) impugnação da “decisão da matéria de facto” julgada pelo Tribunal Judicial de Base, evidente (e lógico) se apresenta que este terá de ser o “ponto de partida” para tarefa que ora nos ocupa.
Importa, porém, antes de mais, (e para uma boa compreensão do “tema” a tratar), identificar e aqui consignar os “termos” em que a questão vem colocada.
Nesta conformidade, eis o que sobre a mesma “questão” se nos apresenta relevante ponderar.
Pois bem, em sede do seu (anterior) recurso para o Tribunal de Segunda Instância, e impugnando a decisão da matéria de facto pelo Tribunal Judicial de Base julgada, assim (alegou e) concluiu a ora recorrente:
“A. O douto Tribunal a quo julgou não provado o facto vertido no artigo 2.º da base instrutória;
B. No entanto, a Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal e documental nos autos, designadamente os depoimentos de D (丁), E e F, maxíme, nos excertos transcritos nesta alegação, cuja reapreciação ora se requer;
C. Considerando os aludidos meis de prova, ficou demonstrado que “A Ré decidiu estipular um preço de favor nos acordos aludidos em D) porque conhecia os Autores, e como atenção aos mesmos”. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, ser julgado provado o facto vertido no artigo 2.º da base instrutória.
D. O douto Tribunal a quo julgou não provado o artigo 6.º da base instrutória;
E. No entanto, a Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal e documental nos autos, designadamente os depoimentos de D (丁), maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, cuja reapreciação ora se requer;
F. Considerando os aludidos meis de prova, ficou demonstrado que “A Ré decidiu estipular os preços aludidos em D) porque ficou expressamente acordado entre as partes que a mesma teria o direito de não celebrar o contrato definitivo”. Consequentemente, a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada e, nessa sequência, ser julgado provado o facto vertido no artigo 6.º da base instrutória.
G. O douto Tribunal a quo julgou não provados os factos vertidos nos artigos 7.º, 8.º e 14.º a 17.º da base instrutória;
H. No entanto, a Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer;
I. Considerando o depoimento das testemunhas D (丁), E e G, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, bem como os Docs. juntos aos autos pela Recorrente, ficaram demonstrados os factos vertidos nos artigos 7.º, 8.º e 14.º a 17.º da base instrutória. Consequentemente, deve a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada, quanto a estes artigos da base instrutória, sendo os facos aí vertidos julgados provados.
J. O douto Tribunal a quo julgou não provado o facto vertido no artigo 20.° da base instrutória;
K. No entanto, a Recorrente entende, salvo o respeito devido, que o douto Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova documental e testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento quanto à matéria de facto em causa, cuja reapreciação ora se requer;
L. Considerando o depoimento da testemunha F, maxime, nos excertos transcritos nesta alegação, bem como os Docs. juntos aos autos pela Recorrente, ficou demonstrado que os Autores se recusaram pagar o aumento dos custos de construção solicitado pela Ré. Consequentemente, deve a decisão do douto Tribunal a quo sobre a matéria de facto deve ser alterada, quanto ao citado artigo da base instrutória, devendo, em resposta ao artigo 20.º da base instrutória, julgar-se “provado apenas que os Autores se recusaram pagar o aumento dos custos de construção solicitado pela Ré”.
(…)”; (cfr., fls. 600 a 652).
Apreciando o recurso, (e na parte que agora releva), consignou-se no Acórdão do Tribunal de Segunda Instância o que segue:
“1. Da impugnação da matéria de facto
Constatando-se nas conclusões tecidas na minuta do recurso interposto pela Ré, que esta pretende, com a impugnação da resposta negativa dada aos quesitos 2º, 6º, 7º, 8º, 14º a 17º, 18º, 19º e 20º da base instrutória, ver provada a matéria neles vertida.
A matéria neles quesitada tem o seguinte teor:
……
2.º
A Ré decidiu estipular um preço de favor nos acordos aludidos em D) porque conhecia os Autores, e como atenção aos mesmos?
……
6.º
A Ré decidiu estipular os preços aludidos em D) porque ficou expressamente acordado entre as partes que a mesma teria o direito de não celebrar o contrato definitivo?
7.º
No momento da celebração dos acordos aludidos em D), a Ré sabia que iria ter de solicitar aos Autores um ajuste do preço de compra das Fracções, tendo em conta um aumento dos custos de construção?
8.º
E desde logo avisou os Autores de que iria entrar em contacto com os mesmos, oportunamente, quanto a esse ajuste do preço de compra?
……
14.º
E os custos dessa substituição foram sendo apurados durante o ano de 2011?
15.º
Quando os Autores assinaram os acordos aludidos em D) sabiam que os preços de compra eram de favor?
16.º
E que seriam corrigidos em função do aumento dos custos da respectiva construção?
17.º
Durante o ano de 2011, a Ré apurou que o aumento do custo de construção de fracções para escritórios (em relação aos custos de 1995) aumentou em HKD649,00 por pé quadrado?
18.º
Depois da data aludida em M) os Autores foram contactados telefonicamente e reuniram com a Ré para que esta lhes comunicasse e explicasse tais montantes adicionais que deveriam ser pagos?
19.º
Apesar de conscientes do baixo preço das fracções, os Autores recusaram-se a colaborar com a Ré?
20.º
Preferindo que fosse apenas esta a suportar o aludido acréscimo de custos?
Tal como vimos na sentença ora recorrida, estes quesitos mereceram in totum resposta negativa.
Ora, se bem entendemos a estratégia da argumentação vertida no petitório do recurso, o que pretende a recorrente com a impugnação da matéria de facto é, no caso de êxito da impugnação, procurar, com base na matéria alterada nos termos pretendidos, convencer este Tribunal de recurso de que o texto do nº 2 da cláusula 2ª (簽立本合約後,如甲方放棄賣出,則以雙倍訂金賠償給乙方。) deve ser interpretado no sentido de que o promitente-vendedor tem sempre o direito potestativo ao arrependimento, resolvendo unilateralmente o contrato promessa ou deixar de o cumprir mediante a simples restituição do sinal em dobro, sem alternativa à execução específica, uma vez que, na sua óptica, aquela matéria, a provar, demonstra que o preço estipulado no contrato promessa é um preço de favor, acordado entre o promitente-vendedor e o promitente-comprador com a condição resolutiva segunda a qual o promitente-vendedor tem sempre o direito de não celebrar o contrato definitivo, se o promitente-comprador não satisfizer a eventual exigência pelo promitente-vendedor para o ajuste dos preços da compra e venda por razões do aumento de custos da construção das fracções em causa.
In casu, estão em causa contratos-promessa de compra e venda de imóveis, que são negócios formais – artº 404º/2 do CC.
Como se sabe, as formalidades exigidas por essa norma são formalidades ad substantiam, por necessárias à própria existência das declarações negociais e imprescindíveis à própria validade do contrato. E a sua inobservância implica a nulidade do negócio – nesse sentido, cf. Acórdãos da Relação de Lisboa, de 07OUT1986, in CJ, 1986, 4º - 143 e s.s., aqui citado a título de doutrina no direito comparado.
Assim sendo, as provas que a Ré pretende ver renovadas por esta instância nunca podem ter a potencialidade de nos levar a aceitar, para além do conteúdo do texto do nº 2 da cláusula 2ª dos contratos-promessa, a existência de uma outra cláusula que estipula uma tal condição resolutiva e/ou confere ao promitente-vendedor, ora Ré e recorrente, a prerrogativa de resolver unilateralmente os contratos-promessa mediante a simples restituição do sinal em dobro.
De qualquer maneira, mesmo inútil para nós a reapreciação da matéria de facto nos termos requeridos, vamos demonstrar também a sem razão da recorrente na impugnação da matéria de facto.
Senão vejamos.
Ora, se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.
Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
A recorrente identificou a matéria que considera incorrectamente julgada não provada.
Os meios probatórios que, na óptica da recorrente, impunham decisão diversa são os documentos juntos aos autos, nomeadamente os contratos-promessa em causa, e os depoimentos de algumas das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento.
No caso dos autos, houve gravação dos depoimentos.
Não obstante a deficiência na identificação dos documentos para ser reapreciados, pela recorrente foram indicadas e transcritas exaustivamente as passagens da gravação dos depoimentos que a recorrente entendeu mal valoradas pelo Tribunal a quo.
De qualquer maneira, por razões que passemos a expor infra, este Tribunal de recurso não é permitido pela lei processual a proceder à reapreciação das tais provas nos termos requeridos.
Como se sabe, na matéria da valoração das provas, documental e testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação da prova, à luz do qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
O Colectivo da 1ª instância fundamentou a sua convicção nos termos seguintes:
A convicção do tribunal quanto ao item 1º resulta da avaliação da DSF a fls. 351 conjugado com o depoimento da testemunha G o qual alicerçou o seu depoimento numa análise feita com base em publicações onde constam os valores de venda para escritório nos anos em causa em Macau, sendo que os valores indicados por esta testemunha de forma fundamentada e os valores constantes da indicada avaliação da DSF são semelhantes e mostram-se adequados com aqueles que resultam das regras da experiência e foram já considerados por este tribunal em processos referentes ao mesmo prédio e anos, tais como o CV1-14-0091-CAO, sendo certo que os valores indicados na avaliação de fls. 430 são bastante dispares destes e por falta de fundamentação não convencem o tribunal da sua credibilidade.
A matéria dos itens 3º, 9º, 10º, 12º e 13º resultou dos depoimentos das testemunhas D e E, para além de ser facto notório e público dada a localização do edifício.
Relativamente aos demais factos, não foi feita prova que com a certeza jurídica necessária permita ao tribunal concluir pela sua veracidade, tal é a situação da matéria dos itens 2º a 6º, versão esta que ainda se torna menos credível quando os valores porque se prometeu vender são muito próximos aos valores de mercado indicados pelas Finanças para aquela data – cf. fls. 351 – não se considerando que se tratava de uma obra que estava parada há mais de 20 anos e cuja conclusão, ou pelo menos data de conclusão se torna incerta aumentando exponencialmente o risco do investimento uma vez que o edifício ainda não havia sido concluído. Quanto aos itens 7º e 8º a testemunha F, o qual também outorgou contrato igual aos dos autos no mesmo tempo e local que estes, vem dizer que aquando da celebração dos contratos de compra e venda nada se falou quanto ao futuro ajuste do preço de venda das fracções em função do custo de construção, o que, aliás, nem se mostra razoável nem de acordo com as regras da experiência, sendo certo que a única testemunha da Ré – D – ouvido a esta matéria também não se recorda se na celebração destes contratos falou ou não. Para além de não ser verossímil que alguém prometesse comprar uma fracção autónoma, pagando integralmente o preço cujo valor foi de milhões e ficar sujeito a uma nova fixação do preço quase aleatória e de acordo com critérios/custos a definir apenas pelo promitente vendedor.
No mais prova alguma se produziu, sendo que, não foram carreados elementos para se concluir que a diferença de preço de construção entre 1995 e 2011 é a que consta do item 17º, pese embora, hajam sido juntos dois contratos de empreitada relativos a este prédio, sendo um de 1995 e outro de 2010 – cf. fls. 443 a 461 -, de onde abstractamente resulta um custo de construção por pé quadrado diferente, mas não o que se pergunta neste item, sendo certo que, os documentos juntos não permitem comparar os custos de trabalho/tarefas num período e noutro, destinando-se dado se reportarem a fases diferentes da construção e trabalhos distintos.
Apesar de a lei exigir sempre a objectivação e motivação da convicção íntima do Tribunal na fundamentação da decisão de facto, ao levar a cabo a sua actividade cognitiva para a descoberta da verdade material, consistente no conhecimento ou na apreensão de um acontecimento supostamente ocorrido no passado, o julgador não pode deixar de ser subjectivamente influenciado por elementos não explicáveis por palavras, nomeadamente quando concedem a credibilidade a uma testemunha e não a outra, pura e simplesmente por impressão recolhida através do contacto vivo e imediato com a atitude e a personalidade demonstrada pela testemunha, ou com a forma como reagiu quando inquirida na audiência de julgamento.
Assim, desde que tenham sido observadas as regras quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si ou se não mostre manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, em princípio, não é sindicável.
Segundo o ensinamento de Amâncio Ferreira, a admissibilidade dos meios de impugnação, incluindo o recurso ordinário, funda-se na falibilidade humana e na possibilidade de erro por parte dos juízes.
O recurso ordinário visa atacar a decisão judicial por ser errada ou injusta.
A decisão é errada ou por padecer de error in procedendo, quando se infringe qualquer norma processual disciplinadora dos diversos actos processuais que integram o procedimento, ou de error in iudicando, quando se viola uma norma de direito substantivo ou um critério de julgamento, nomeadamente quando se escolhe indevidamente a norma aplicável ou se procede à interpretação e à aplicação incorrectas da norma reguladora do caso ajuizado.
A decisão é injusta quando resulta duma inapropriada valoração das provas, da fixação imprecisa dos factos relevantes, da referência inexacta dos factos ao direito e sempre que o julgador, no âmbito do mérito do julgamento, utiliza abusivamente os poderes discricionários, mais ou menos amplos. – in Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª ed. pág. 69 e s.s.
Ou seja, o recurso ordinário existe para corrigir erro e repor a justiça posta em causa pela decisão errada.
Na esteira dessa doutrina autorizada sobre a função do recurso ordinário no processo civil, para impugnar com êxito a matéria fáctica dada por assente na primeira instância, não basta ao recorrente invocar a sua discordância fundada na sua mera convicção pessoal formada no teor de um determinado meio de prova, ou identificar a divergência entre a sua convicção e a do Tribunal de que se recorre, é ainda preciso que o recorrente identifique o erro que, na sua óptica, foi cometido pelo Tribunal de cuja decisão se recorre.
Os julgadores de recurso, não sentados na sala de audiência para obter a percepção imediata das provas ai produzidas, naturalmente não podem estar em melhores condições do que os juízes de primeira instância que lidaram directamente com as provas produzidas na sua frente.
Assim, o chamamento dos julgadores de recurso para a reapreciação e a revaloração das provas, já produzidas e/ou examinadas na 1ª instância, com vista à eventual alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância só se justifica e se legitima quando a decisão de primeira instância padecer de erros manifestamente detectáveis.
Portanto, para que possa abalar com êxito a convicção formada pelo Tribunal a quo com vista à revogação da decisão de facto e à sua ulterior modificação pelo Tribunal ad quem, é preciso que o recorrente identifique erro manifesto na valoração de provas e na fixação da matéria de facto, e não a simples divergência entre ele e o Tribunal no que diz respeito à valoração de provas ou à fixação da matéria fáctica.
Integram em tais erros manifestos, inter alia, a violação de regras quanto à valoração de provas e à força probatória de provas, v. g. o não respeito à força vinculativa duma prova legal, e a contrariedade da convicção íntima do Tribunal a regras de experiência de vida e à lógica das coisas.
In casu, nada disso foi alegado.
O que fez a recorrente não é mais do que valorar, ela própria as provas em causa, e formar a sua convicção, diversa da formada pelo Colectivo a quo, sem que tenha sido apontado o erro manifesto na apreciação da prova.
Nestas circunstâncias, nada temos para legitimar este Tribunal de recurso para sindicar a decisão de facto de primeira instância.
Improcede in totum a impugnação da matéria de facto.
(…)”; (cfr., fls. 717-v a 722-v).
Chamados que fomos a nos pronunciar sobre o acerto do assim decidido, passa-se a expor o nosso ponto de vista.
Como se viu, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso na parte em questão, invocando duas ordens de razões.
A primeira, por considerar “inútil a reapreciação da matéria de facto nos termos requeridos”; (cfr., pág. 28 deste aresto).
Se bem ajuizamos, o assim considerado deve-se mais concretamente ao facto de se ter entendido que a (própria) “matéria de facto” pelo Tribunal Judicial de Base dada como não provada era irrelevante, (pois que não tinha a potencialidade de alterar o que do contrato celebrado constava).
E, nesta conformidade, somos levados a divergir do assim entendido.
Com efeito, a “matéria em questão”, referente ao “preço acordado”, suas “razões” e “possibilidade do seu posterior ajustamento e correcção em conformidade com os preços de construção”, ainda que “relacionada” com a matéria da existência, ou não, de uma (eventualmente) acordada possibilidade de “resolução do contrato”, apresenta-se-nos útil e relevante para a boa e cabal compreensão do “processo negocial” que levou à “celebração do contrato”, e, assim, necessariamente, com relevância para se saber o que se pretendeu e foi – efectivamente – acordado.
Aliás, doutra forma, evidente seria que a dita “matéria” nem tão pouco devia ter sido levada à “base instrutória”, o que, em face do estatuído no art. 430° do C.P.C.M., (na parte que se refere à “selecção da matéria de facto relevante segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito”), não se nos mostra ser o caso.
Apresentando-se-nos, assim que não se pode acolher o (primeiro) argumento pelo Tribunal de Segunda Instância assumido para a decisão agora em questão, continuemos.
Sobre a “matéria” agora em questão, e com a epígrafe “Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto”, preceitua art. 599° do C.P.C.M. que:
“1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º”.
Sobre este mesmo preceito, em Acórdão deste Tribunal de 19.11.2021, Proc. n.° 134/2021 – e citando J. L. de Freitas no seu “C.P.C. Anotado”, Vol. III, pág. 52 – tivemos oportunidade de consignar que:
“Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos (…) e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta”.
Daí, exigir-se ao recorrente a “indicação precisa, clara e determinada dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do tribunal, devendo fundamentar a sua divergência com expressa referência às provas produzidas, procurando-se, por esta via, tornar praticável uma verdadeira reapreciação dos concretos pontos de facto controvertidos, sem custos desmedidos em termos de morosidade na apreciação dos recursos”; (in ob. cit., pág. 53).
Porém, e como no dito aresto também consignamos, reconhecendo-se que em sede de decisão sobre esta “matéria” intervém sempre algum subjectivismo na apreciação da observância do referido “ónus de impugnação” que ao recorrente cabe, mais adequado se mostra de adoptar uma atitude (mais) “prática”, (ou pragmática), sem “formalismos excessivos”, tentando-se privilegiar a “verdade material”, sob pena de se correr o risco de se bloquear (de todo) a possibilidade de impugnação da decisão da matéria de facto.
Nenhum motivo nos parecendo haver para não se ter como válido o que se deixou consignado, e, ponderando-se sobre o que pela ora recorrente foi alegado e considerado, assim como nas suas transcritas conclusões de recurso, motivos não existem para se ter por inadequada ou defeituosamente observado o “ónus” a que se refere o referido art. 599° do C.P.C.M..
Com efeito, pela recorrente foram especificamente identificados os “pontos” da matéria de facto que entendeu incorrectamente julgados, indicando, (também especificamente), os “meios de prova” que, na sua opinião, deveriam justificar outra decisão, com a clara indicação e transcrição das passagens dos depoimentos gravados para o efeito; (cfr., fls. 604 a 629; sendo aliás de notar que em relação a este “aspecto”, neste mesmo sentido foi o entendimento do Tribunal de Segunda Instância).
E, assim, como é bom de ver, a questão coloca-se noutro plano, ou seja, mais precisamente, em face do (especialmente) preceituado no art. 629° do C.P.C.M., onde se estatui que:
“1. A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 599.º, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, o Tribunal de Segunda Instância reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham servido de fundamento à decisão de facto impugnada.
3. O Tribunal de Segunda Instância pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em primeira instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto objecto da decisão impugnada, aplicando-se às diligências ordenadas, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na primeira instância e podendo o relator determinar a comparência pessoal dos depoentes.
4. Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode o Tribunal de Segunda Instância anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na primeira instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
5. Se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode o Tribunal de Segunda Instância, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de primeira instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou escritos ou repetindo a produção da prova, quando necessário; sendo impossível obter a fundamentação com os mesmos juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limita-se a justificar a razão da impossibilidade”.
Aqui chegados, vejamos.
Em causa está o “âmbito” dos poderes do Tribunal de Segunda Instância em relação à “decisão sobre a matéria de facto” do Tribunal Judicial de Base.
Como sabido é, sob a epígrafe “Poderes de cognição” estatui o art. 39° da Lei n.° 9/1999, (“Lei de Bases da Organização Judiciária”), que:
“Excepto disposição em contrário das leis de processo, o Tribunal de Segunda Instância, quando julgue em recurso, conhece de matéria de facto e de direito”.
Aliás, doutra forma, nenhum sentido fazia o que se referiu a propósito dos atrás transcritos art°s 599° e 629° do C.P.C.M..
Porém, visto estando que tem o Tribunal de Segunda Instância o referido “poder de cognição”, importa definir – com o rigor e clareza possível – qual a concreta e justa “medida para o seu exercício”.
Ora, (adiantando-se desde já que atenta a natureza da referida “questão”, esta não se apresenta isenta de polémica), útil se mostra de ponderar no debate na doutrina e jurisprudência comparada existente sobre a questão.
Pois bem, apresentando-se-nos (especialmente) valiosas e meritórias as considerações que António Abrantes Geraldes teceu sobre o tema – tendo por referência o Código Português na versão resultante da reforma de 1995/96 – plenamente justificada se nos afigura de sobre as mesmas reflectir, destacando-se a seguinte passagem:
“(…)
Foi, pois, no campo da oralidade pura e, complementarmente, no reforço dos poderes da Relação que o legislador interveio em 1995 com o objectivo de permitir uma efectiva sindicância do julgamento da matéria de facto, assegurando o reclamado segundo grau de jurisdição.
Para o efeito foram recusadas soluções maximalistas no sentido da realização de novo julgamento na segunda instância ou da reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos. Ao invés, a competência da Relação é residual, circunscrevendo-se os seus poderes à reapreciação de concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados, sendo recusada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto.
Continua, porém, o legislador a omitir directrizes mais específicas quanto aos objectivos da impugnação da decisão da matéria de facto e quanto às regras que devem ser observadas pela Relação na apreciação das impugnações, designadamente quando fundadas em prova gravada.
Efectivamente, decorrida mais de uma década sobre a aprovação do novo regime de impugnação da decisão da matéria de facto, para além de se desconhecerem com rigor os resultados que foram alcançados, ainda não foi assumido claramente se a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser reservada para a correcção de manifestos erros de apreciação da prova cometidos pelo tribunal de 1.ª instância ou se, ao invés, a Relação que não intermediou a produção da prova oralmente produzida e que não pôde percepcionar todos os aspectos relevantes para a formação da convicção deve, ainda assim, proceder a uma reapreciação autónoma dos meios de prova, corrigindo o erro decisório e reflectindo em nova decisão o resultado da sua convicção, nos termos do art. 655.º. (…)”.
Com efeito, reconhecendo a existência de “limitações” na reapreciação da prova por parte do Tribunal de recurso, (nomeadamente no que à “prova testemunhal” gravada diz respeito), este autor acaba por ser bastante crítico de uma – chamamos – “leitura restritiva” (ou “minimalista”) dos poderes do Tribunal de Recurso em sede de alteração da matéria de facto.
Considera, pois, que:
“A partir de 1995, para além de se assegurar a possibilidade de gravação dos depoimentos com vista à sua futura utilização, atribuiu-se à Relação o poder de proceder à sua reapreciação e conjugação com outros meios de prova. (…)
Conforme o expressámos noutro local, a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) não consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Além disso, sem embargo da possibilidade de a Relação proceder à renovação dos meios de prova, nos termos do n.º 3, a mera audição dos registos gravados impede o confronto dos depoentes com pedidos de esclarecimento sobre determinadas afirmações que seriam proporcionados por uma efectiva mediação. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da primeira instância. Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores. (…)
De facto, o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam com razoável segurança credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização do processo decisório aquando da motivação da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou verbalizar mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos.
Porém, estas circunstâncias e as correspondentes dificuldades não legitimam que se faça tábua rasa das modificações operadas, seguindo um caminho em que, através de juízos meramente abstractos, se esvazie por completo o regime que, depois de sucessivas reivindicações, o legislador acabou por instituir, tendo em vista alcançar uma efectiva reapreciação da decisão da matéria de facto.
Por certo que as circunstâncias anteriormente apontadas e outras que poderiam ser enunciadas terão de ser ponderadas na ocasião em que a Relação proceda à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados. Todavia, a constatação das diferentes circunstâncias em que actua um e outro dos tribunais não autoriza que, com base em puras justificações lógico-formais, que não tenham subjacentes sequer a audição dos depoimentos ou uma efectiva e séria reapreciação e valoração dos depoimentos e demais meios de prova, se recuse pura e simplesmente a modificação da decisão.
Acontece que foi precisamente esta uma das correntes jurisprudenciais que surgiu nas Relações, onde em diversos arestos se assumiu sempre que a posição do julgador se centralize nos elementos que se prendem directamente com a imediação da prova testemunhal o tribunal de recurso não tem possibilidade de sindicar tal convicção, excepto se a mesma se mostrar contrária às regras de experiência, da lógica ou dos conhecimentos científicos. Assevera-se ainda, dentro da mesma linha, que na reapreciação das provas em 2.ª instância não se procura uma convicção diferente da formulada em 1.ª instância, nos termos do art. 655.º, mas tão só verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que consta da gravação com os demais elementos constantes dos autos.
Trata-se de uma tese restritiva relativamente aos poderes conferidos ao tribunal de 2.ª instância que teima em manter-se em alguns acórdãos, apesar da doutrina que em sentido oposto vem sendo assumida pelo STJ, e que não corresponde aos desígnios do legislador.
(…) Na execução desta tarefa de modo algum a Relação pode ser dispensada da reapreciação efectiva dos meios de prova invocados pelo recorrente e pelo recorrido, com o pretexto formal da inexistência das mesmas condições que estiveram presentes na 1.ª instância, sob pena de não se dar seguimento aos objectivos projectados pelo legislador que, ciente da diversidade de circunstâncias, ainda assim admitiu a modificação da decisão da matéria de facto pela Relação. (…)
Assim, desde que não existam motivos para rejeitar o recurso de impugnação oda decisão da matéria de facto, nos termos do art. 685.º-B, a solução que correctamente dá sequência aos objectivos projectados pelo legislador no que concerne ao duplo grau de jurisdição, quando se tenha verificado o registo de meios de prova oralmente produzidos, determina o seguinte:
(…) e) Consequentemente não temos como verdadeira a asserção de que a modificação na decisão da matéria de facto apenas deva operar em casos de erros manifestos de reapreciação. Ao invés, sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação de meios de prova oralmente produzidos, desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados deve reflectir em nova decisão esse resultado”; (in “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 3ª ed., 2010, pág. 309 a 323).
E, se bem ajuizamos, no mesmo sentido, pode-se também atentar na igualmente muito meritória reflexão que Fernando Amâncio Ferreira faz sobre a mesma matéria, sustentando, (nomeadamente), que:
“(…)
Num quadro destes, à Relação deparam-se os mesmos elementos de prova com que se confrontou a 1.ª instância; daí, poder julgar a questão de facto com a mesma liberdade com que aquela o fez e, se entender que ela errou, quando procedeu à valoração dos meios probatórios, deve alterar a decisão de facto proferida.
Verificando-se a segunda situação, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, levando em conta as alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados (art. 712.º, n.º 2). Tal como na situação anterior, e por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1.ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu. Também aqui a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1.ª instância. (…)”; (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª ed., pág. 226 e 227).
Na jurisprudência comparada, (e tanto quanto nos foi possível apurar), afigura-se-nos que, num momento inicial, verificou-se alguma divergência, com o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, defendendo, em certas situações, uma “posição minimalista”, e noutras, pugnando por uma “maior amplitude” dos poderes de reapreciação da matéria de facto por parte das Relações, apresentando-se-nos de concluir que, (posteriormente, e, recentemente, de forma cada vez mais firme), esta última posição terá acabado por prevalecer, passando a ser a “tese predominante”; (cfr., v.g., os Acs. de 19.10.2004, Proc. n.° 2637/04, in C.J.S.T.J., n.° 179, Ano XII, Tomo III, 2004, pág. 72 a 74; de 14.03.2006, Proc. n.° 49/06, in C.J.S.T.J., n.° 189, Ano XIV, Tomo I, 2006, pág. 130 a 131; de 20.09.2007, Proc. n.° 2411/07, in C.J.S.T.J., n.° 203, Ano XV, Tomo III, 2007, pág. 58 a 60; e de 24.09.2013, Proc. n.° 1965/04, Cadernos de Direito Privado, n.° 44, pág. 29 a 33, com muito interessante anotação de M. Teixeira de Sousa a fls. 33 a 36).
Ora, da reflexão que sobre o tema nos foi possível efectuar, temos como acertado este entendimento.
Com efeito, e com o devido respeito por opinião em sentido diverso, somos de opinião que o Tribunal de Segunda Instância não deve limitar-se a verificar se algum erro – “manifesto” – no procedimento probatório inquina a convicção do Juiz da 1ª Instância, devendo, antes, analisar e reflectir sobre (todo) o “processo” que levou àquela “convicção” que vem impugnada, e, em face do que alegado vem, formar uma “nova convicção” sobre as provas produzidas na 1ª Instância.
Isto é, em vez de se limitar a controlar (tão só) a “legalidade” (formal) da produção da prova realizada na Instância a quo – ou seja, se a decisão foi proferida com a invocação do “princípio da livre apreciação da prova”, (abstractamente) violadas não estando qualquer regra sobre a prova tarifada ou legal – deve ponderar e (acabar por) formar uma “convicção própria”, (sua), fruto de uma efectiva análise do mérito da apreciação efectuada e cujo “controlo” lhe é pedido.
Na verdade, a chamada “2ª Instância em matéria de facto”, para ser efectiva, implica – ou melhor, impõe – uma (também efectiva) “reapreciação das provas”, assente numa “(re)análise crítica” da prova em que se fundamenta a decisão (ou a parte da decisão) de facto impugnada assim como da “prova” pelo recorrente indicada para a contrariar ou alterar, com a formação de uma “convicção (nova e) própria”, não bastando pois uma mera apreciação (abstracta) do julgamento efectuado.
Poder-se-á dizer que com o que se deixou considerado se estará a pugnar ou sugerir por um “2° – ou novo – julgamento” da matéria de facto pelo Tribunal de recurso.
Compreende-se – e respeita-se – este ponto de vista.
Porém, a “reapreciação da prova” e a “nova – ou própria – convicção” em 2ª Instância não constitui, nem significa, um “2° julgamento”.
Para já, tem tão só como “objecto” a “matéria de facto impugnada”, e ainda que, por hipótese, seja “toda” a decisão da matéria de facto, a (re)ponderação também tem como ponto de partida os “concretos meios probatórios” indicados pelo recorrente.
A não se entender assim, e como atrás se disse, facilmente se faz da “previsão legal” em questão mera “letra morta”, bastando para o efeito avançar-se com considerações abstractas e genéricas, sem qualquer densidade, individualidade, ou concreta referência ao caso em questão, comprometendo-se a verdade (e a justiça) material com um (mero) duplo grau de jurisdição em matéria de facto (meramente) formal, o que, com todo o respeito por diversa opinião, não se mostra de ter como adequado.
Dest’arte, e em face do que se deixou exposto, impõe-se a revogação da decisão na parte recorrida.
Decisão
4. Em face do que se deixou exposto, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso final, devendo os autos voltar ao Tribunal de Segunda Instância para, nada obstando, se proceder a uma nova apreciação e decisão do recurso aí pelo R. apresentado, prejudicadas ficando a apreciação de outras questões.
Custas pelos AA. com a taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Registe e notifique.
Macau, aos 19 de Outubro de 2022
Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
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