Processo n.º 75/2021
Recurso jurisdicional em matéria administrativa
Recorrente: Conselho Superior da Advocacia
Recorrido: A
Data da conferência: 9 de Setembro de 2022
Juízes: Song Man Lei (Relatora), José Maria Dias Azedo e Sam Hou Fai
Assuntos: - Processo disciplinar
- Depoimento por escrito
- Requisitos formais
SUMÁRIO
1. Nos termos da al. b) do art.º 65.º do CDA, ao processo disciplinar instaurado contra advogado e advogado estagiário são aplicáveis supletivamente, no âmbito da interpretação e integração das lacunas desse diploma, o Código de Processo Civil.
2. Estão expressamente previstos nos n.ºs 1 a 3 do art.º 541.º do CPC os requisitos formais do depoimento por escrito, devendo o documento escrito da testemunha conter os elementos necessários aí indicados.
3. Se dos elementos constantes dos autos não resulta que a testemunha se encontrava devidamente identificada, não tinha alguma relação especial com o contra-interessado ou com o recorrido, tinha conhecimento da finalidade das suas declarações e estava consciente da consequência jurídica-penal se as declarações não correspondessem à verdade nem que a assinatura aposta no documento foi reconhecida por forma legal, é de afirmar que durante a instrução do processo disciplinar não foram observadas as regras estabelecidas para a produção por escrito da prova testemunhal que a entidade recorrente considerou de “especial relevância” na formação da sua convicção.
4. De acordo com a regra estabelecida no art.º 147.º do CPC, constituem irregularidades susceptíveis de integrar invalidade processual a prática dum acto que a lei não admita e a omissão dum acto ou duma formalidade que a lei prescreva.
5. No caso vertente estamos perante uma situação em que se verifica a omissão de formalidades prescritas por lei, tendo sido o acto praticado com preterição de formalidades legais, dado que na produção de prova testemunhal (prestação de depoimento por escrito) não foram observados os requisitos formais legalmente prescritos.
A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpôs recurso contencioso da deliberação tomada pelo Conselho Superior da Advocacia que lhe aplicou a pena disciplinar de advertência.
Por acórdão proferido a fls. 380 a 407v dos autos, o Tribunal de Segunda Instância decidiu julgar procedente o recurso, anulando o acto impugnado.
Inconformado com o acórdão, vem o Conselho Superior da Advocacia recorrer para o Tribunal de Última Instância, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A douta decisão ora recorrida tem como fundamento não terem sido observados os formalismos prescritos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 541.º do CPC, aqui aplicáveis ex vi do art.º 65.º, al. a), do Código Disciplinar dos Advogados (CDA) quanto à inquirição, por escrito, da testemunha principal nos autos do processo disciplinar em que ao recorrido foi aplicada uma pena disciplinar;
2. A inobservância de tais formalismos (declaração de estar consciente de que a falsidade das suas declarações a fará incorrer em responsabilidade criminal, bem como o reconhecimento da sua assinatura, quando não seja possível a exibição do respectivo documento de identificação), constitui, segundo opinião do meritíssimo tribunal a quo, uma irregularidade que fere tal diligência de nulidade, por aplicação do art.º 36.º do CDA e, em consequência, todo o restante processado;
3. É entendimento doutrinal pacífico de que o procedimento disciplinar é caracterizado pela maleabilidade investigatória e formal conforme doutrina citada supra em sede de alegações;
4. Este entendimento é confirmado pelo disposto no art.º 12.º do CDA, que contém em si mesmo todo os princípios enformadores dos actos instrutórios a realizar no processo disciplinar dos advogados, mormente o do seu n.º 4;
5. O princípio mais relevante, no procedimento disciplinar é o da descoberta da verdade material dos factos;
6. Do procedimento devem ser expurgados todos os “ritualismos e formalidades” que se devem considerar excessivos para este tipo de processo;
7. Sendo o depoimento afectado pela irregularidade que alegadamente viola as normas acima referidas, uma peça fundamental para a descoberta da verdade material dos factos deste processo, tal entendimento ganha ainda maior relevância.
8. Não se suscitam quaisquer dúvidas ao leitor das declarações ora em crise, sobre a veracidade das mesmas e nem da sua autoria uma vez que as mesmas se encontram devidamente orientadas no tempo e no lugar relativamente ao momento dos acontecimentos em causa no respectivo processo disciplinar;
9. Os formalismos referidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 541.º do CPC, pretendem assegurar exactamente estes propósitos;
10. Nem, o instrutor deste processo disciplinar, antigo julgador com décadas de experiência em funções de natureza judicial, teve dúvidas quanto à veracidade das declarações prestadas por escrito pela testemunha em causa, considerando que as mesmas satisfazem os critérios e princípios que se impõem observar em sede do procedimento em causa;
11. Impor o formalismo referido no n.º 2 do art.º 541.º do CPC, às testemunhas deste tipo de processo chega a ser inadequado, por excessivo;
12. Os usos de outras culturas relativamente a este âmbito serão igualmente diferentes quanto à importância dada a este tipo de procedimentos e à responsabilidade decorrente da sua participação nos mesmos.
13. Relativamente à necessidade de apresentação de documento de identificação, como seria julgado o presente processo, caso estivéssemos perante testemunha nacional de um país em que tal tipo de documento é inexistente ou não é obrigatório;
14. É ainda de salientar a dificuldade sentida durante a instrução do mesmo, mormente pela impossibilidade de obter todos os depoimentos pretendidos, fruto da distância a que se encontravam algumas das testemunhas no mesmo, ou do desprezo das mesmas relativamente aos termos deste;
15. Entendemos, pois, que ao procedimento disciplinar não terão que ser aplicados os formalismos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 541.º do CPC, por não haver razão para que o sejam;
16. É manifesto que em todo o processo foi observado o devido contraditório, inclusivamente na procura de satisfazer todas as diligências requeridas pelo recorrido, julgadas pertinentes observar por parte do instrutor, e que todas as diligências foram realizadas sempre com o fito de alcançar a descoberta da verdade material dos factos, princípio mais relevante para o processo;
17. Face ao exposto, entendemos que o douto Acórdão recorrido violou o disposto no art.º 12.º, n.º 4 do CDA, devendo o mesmo ser revogado e confirmado o acto posto em causa pelo recorrido.
Não contra-alegou o recorrido.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o douto parecer, no sentido de negar provimento ao recurso jurisdicional, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
2. Factos
Fica provada a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
- O recorrente é advogado inscrito na Associação de Advogados de Macau.
- Foi instaurado processo disciplinar contra o recorrente, registado sob o n.º 08/2016/CSA.
- Na reunião realizada em 8.3.2018, foi deliberado pelo Conselho Superior de Advocacia o seguinte:
“Acórdão
Acordam os Membros do Conselho Superior da Advocacia no Processo Disciplinar Comum n.º 08/2016/CSA, no qual é participado o Dr. A, advogado melhor identificado nos autos acima referidos.
I. Instrução
O processo disciplinar foi inicialmente mandado instaurar pelo CSA como processo disciplinar de inquérito, por deliberação unânime tomada em reunião de 23 de Setembro de 2016, na sequência de uma participação apresentada pelo advogado Dr. B. Por deliberação de 20 de Abril de 2017, o C.S.A. determinou que o inicial processo disciplinar de inquérito deveria prosseguir como processo disciplinar comum.
*
Foi feita a instrução do processo onde, para além de outras diligências, foram inquiridas testemunhas.
Subsequentemente foi deduzida a acusação de fls 78 e ss que aqui se dá por reproduzida na íntegra.
Com base nos factos nela descritos, foi indiciariamente imputada ao Sr. Advogado participado a violação consciente das normas constantes dos artºs 10º nº 1 e 24º, com referência ao artº 1º nº 3 todos do Código Deontológico dos Advogados.
*
O Sr. Advogado arguido deduziu a sua defesa nos termos que fls 91 e ss revelam e aqui se dá como reproduzida.
No essencial alegou não corresponder à verdade ter proferido a frase que lhe é imputada no artigo 4º da acusação.
Afirmou que o [Escritório de advogados], de que faz parte, já trabalhava para a [Companhia] desde Setembro de 2015 e, por isso, não havia razão alguma para proferir tal frase, que prestou assistência jurídica à empresa em mais de uma ocasião e relativamente a mais do que uma matéria, pelo não teria motivos para promover que acontecesse algo que já tinha acontecido.
Afirmou ainda que as palavras que proferiu foram as constantes do artigo 5º da acusação e só uma deficiente compreensão das palavras pode ter levado a Sra C a prestar as declarações que prestou.
Terminou pedindo a improcedência da acusação e consequente absolvição das infracções que lhe foram imputadas.
*
Foram de seguida inquiridas as testemunhas arroladas na defesa.
*
II. Factos provados e não provados
Cotejando criticamente todos os elementos probatórios contidos nos autos, podem dar-se como provados os seguintes factos:
1. O Sr. Advogado participado esteve presente no evento realizado no dia 12 de Abril de 2016, onde teve lugar uma apresentação feita pela General Manager da [Companhia] de Macau, Sra C, perante os membros da British Business Association of Macao e terceiros.
2. Durante a apresentação, em resposta à questão colocada pela audiência, a Sra C referiu que a [Companhia] estava a tratar das questões legais relativas à sua presença em Macau com o advogado da empresa, identificando em seguida como tal e perante todos, o Sr. Advogado participante Dr. B.
3. Finalizada a apresentação, vários participantes dirigiram-se à Sra C para apresentar cumprimentos ou trocar cartões de visita, incluindo o Sr. Advogado participado.
4. Ao apresentar o seu cartão de visita à Sra C, o Sr. Advogado participado algumas palavras, designadamente aludindo ao seu nome, à sociedade de advogados onde trabalha e, para além de outras expressões, referiu “we would like very much to work with [Companhia]”, que poderá traduzir-se, “nós gostaríamos muito de trabalhar para a [Companhia]”.
5. Também referiu, na mesma ocasião, que “I know it is kind of strange to tell you this in the presence of your very capable attorney”, sendo que desconhecia tais capacidades como reconhece no ponto 53 da sua resposta.
6. Ao proferir a expressão acima mencionada, (“we would like very much to work with [Companhia]”) o Sr. Advogado participado visou insinuar-se perante a Sra C, tendo em vista angariar a [Companhia] como cliente para o escritório onde trabalha.
7. Ao actuar do modo descrito e nas referidas circunstâncias, o Sr. Advogado Dr. A agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que, com a sua conduta, violava os deveres deontológicos inerentes à sua condição de advogado, designadamente os deveres impostos pelos artºs 10º nº 1 e 24º, com referência ao artº 1º nº 3, todos do Código Deontológico dos Advogados.
*
8. Não se provou que a frase proferida nas circunstâncias de tempo e lugar acima referidas tenha sido: “We have actually been working with [Companhia] in the past months as well.”
9. Não se provou, ainda, que o Sr. Advogado participado, ou a [Escritório de advogados], tenham prestado quaisquer serviços jurídicos à [Companhia] em Macau.
*
III. Fundamentação
A nossa convicção formou-se essencialmente a partir dos depoimentos das testemunhas ouvidas no decurso do processo.
Como é evidente, o depoimento da Sra C, a General Manager da [Companhia] Macau, teve uma especial relevância na formação da nossa convicção. Com efeito, a frase foi-lhe dirigida directamente, em língua inglesa que domina perfeitamente e o seu depoimento (fls 46, 47) é preciso, quer quando a narra e distingue as frases em confronto, quer ainda quando revela perplexidade com que a frase que ouviu e foi efectivamente pronunciada, ou seja, a impressão que a mesma lhe causou; usando uma noção civilística, a “impressão do destinatário”. Cf. pontos 6 – “My name is A, I work with [Escritório de advogados] and we would like to work with [Companhia]”; 7 – “No, he did not say that…”; 9 – “I did and felt strange and unusual to be approached like that especially in the presence of our attorney B”.
Relativamente ao facto – alegado pelo Sr. Advogado participado – de que a [Escritório de advogados] prestou serviços jurídicos à [Companhia], a nossa convicção, de que tal não ocorreu, baseia-se no depoimento da declarante D, E, Head of Transactions (APACx) da [Companhia] em Hong Kong, Taiwan e Macau. O seu depoimento, dadas as funções que desempenha, é esclarecedor sobre quem presta e quem não presta serviços jurídicos à [Companhia] em Macau.
*
A questão do envio de uma carta à [Companhia] na Holanda:
No despacho de fls. 132, esclareceu-se que o Sr. F não respondeu ao email que lhe foi enviado a solicitação do Sr. Advogado participado, apesar de já haver decorrido cerca de um mês após o seu envio. Satisfazer o pedido de envio de uma carta para Holanda, exactamente porque o referido Sr. F, que reside em Hong Kong, (cf. fls. 101 “in fine”) não respondeu, significaria protelar, de forma intolerável, o processo disciplinar.
De facto, esta questão seria facilmente torneada pelo Sr. Advogado participado, ou seja, a prova da eventual prestação de serviços à [Companhia] poderia ser feita, por exemplo, com a junção aos autos de uma declaração do referido Sr. F, colhida pelo próprio Sr. Advogado participado em Hong Kong.
Se, como alega, o seu escritório prestou já serviços jurídicos à [Companhia], seria fácil contactar as pessoas que são, ou já foram, das suas relações profissionais. De resto, quem melhor do que a [Companhia] de Hong Kong poderá comprovar a alegada prestação de serviços jurídicos? Foi isso que fez o Sr. Advogado participante, para contraditar o alegado, neste particular, pelo Sr. Advogado participado.
Importa aqui e agora enfatizar que este meio de prova que, como referimos, não pode ser posto em dúvida, quer no seu valor intrínseco, quer no seu peso jurídico, foi igualmente requerido pelo Sr. Advogado participado e aceite no âmbito da instrução, embora sem êxito, como vimos, já que o Sr. F nunca respondeu.
*
Dado o conteúdo da defesa e demais elementos já contidos nos autos, entendeu-se dispensar a notificação para alegações complementares – artº 34º do Código Disciplinar dos Advogados.
*
IV. Enquadramento jurídico dos factos:
1. A questão da nulidade da diligência para tomada de declarações à testemunha C.
O artº 18º do Código Disciplinar dos Advogados prescreve o seguinte: “Na instrução do processo deve o instrutor procurar atingir a verdade material, remover os obstáculos ao seu regular e célere andamento, recusar o que for impertinente, inútil ou dilatório, promover as diligências que considere convenientes para a instrução, ainda que sobre matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados.”
Naturalmente que esta margem de liberdade do instrutor para proceder às diligências que considere convenientes (desformalização própria do processo disciplinar) não dispensa a obediência aos princípios gerais do processo penal (v.g. os princípios da presunção de inocência, da audiência, da defesa, do contraditório, do “in dúbio pro reo”) sem que isto signifique, contudo e como já a seguir explicaremos, que o processo penal seja o direito supletivo em caso de lacunas ou omissões.
De facto o processo penal não é subsidiário do processo disciplinar, desde logo porque o artº 65º do Código Disciplinar dos Advogados o não refere, antes elege, no domínio processual, o Código de Processo Civil como tal. De resto, como salienta Leal Henriques, (Ma de Dirtº Disciplinar, pag. 43/44) mesmo no domínio do direito disciplinar da Administração Pública “em parte alguma o legislador escolhe o processo penal como tábua de regras aplicáveis ao processo disciplinar em caso de lacuna ou omissão, o que nos leva a concluir que aquele nunca é subsidiário deste.”
Voltando à margem de liberdade do instrutor para proceder às diligências que considere convenientes, diremos que cabe a este socorrer-se de todos os meios de prova em direito permitidos para alcançar a verdade, sem necessidade do rigor do procedimento criminal, mas servindo-se do modelo e respeitando um mínimo de formalismo, de modo a que não possam ser postos em dúvida o seu valor intrínseco e o seu peso jurídico; L. Henriques, ob. cit. pág. 234.
Por outro lado, importa salientar que no processo disciplinar (como no processo penal) o instrutor (ou o Mº Pº) não está vinculado “aos factos alegados na queixa ou participação”, princípio consagrado no processo civil, antes tem, como se demonstrou, uma larga margem de liberdade para proceder às diligências que considere conveniente a partir da apresentação da queixa ou participação. Isto significa que no decorrer da instrução podem surgir factos novos (e mesmo novos arguidos) que não tenham sido mencionados na queixa ou participação, ou factos cujos contornos não sejam rigorosamente os relatados naquelas peças ou noutros requerimentos ou nas respostas dos interessados.
De facto, o que delimita o objecto do processo é a acusação. A acusação é o momento ou fase processual mais solene de todo o procedimento e que lhe marca o destino, pois é com ela que o arguido fica a saber com rigor o que lhe é imputado e é ela que define e delimita o objecto do processo daí em diante, não só no que toca à organização da defesa, mas também quanto à amplitude da decisão final que obrigatoriamente se terá de conter nos limites dessa mesma acusação. É ela (acusação) que vai formatar o expediente, estabelecendo-lhes as balizas para o futuro, na medida em que será dentro do conteúdo dessa mesma acusação que defesa se irá pronunciar e que a decisão final se há-de conter; cf. L. Henriques, ob. cit. pág. 184 e 241.
Por outro lado, importa enfatizar que o princípio/regra no processo disciplinar é que as nulidades nele praticadas têm normalmente carácter relativo. O que significa que, de um modo geral, as nulidades cometidas durante a sua tramitação não têm como consequência a lesão irremediável do acto em que ocorram ou dos actos posteriores.
Só em casos excepcionais as nulidades são insupríveis ou insanáveis, a saber: a) na falta de audição do arguido; b) havendo omissão de quaisquer diligências essenciais à descoberta da verdade ou susceptíveis de pôs em causa as garantias de defesa do arguido – artº 36º do Código Disciplinar dos Advogados.
No caso concreto e porque a testemunha em causa reside agora na Suécia, inviável se tornaria colher o seu depoimento, que consideramos indispensável à descoberta da “verdade material”, caso o mesmo não tivesse sido colhido nos termos em que foi (enfatiza-se que as frases em causa lhe foram directamente dirigidas – cf. as epígrafes “factos provados”, “factos não provados” e “fundamentação”). Ou seja, o testemunha foi obtido para o processo de modo que não pode ser posto em dúvida, quer no seu valor intrínseco, quer no seu peso jurídico.
A omissão dessa diligência, isso sim, teria uma influência decisiva no exame e na decisão da causa, já que significaria não considerar um depoimento essencial à descoberta da verdade.
Sustentamos, por isso, ser manifesto que não ocorre, “in casu”, qualquer nulidade sanável ou insanável ou irregularidade que obste ao conhecimento do mérito.
Tudo o que ficou dito relativamente ao depoimento da Sra C vale, “mutatis mutandis”, para o depoimento da Sra D, E. De resto, como acima referimos, se por um lado este meio de prova não pode ser posto em dúvida, quer no seu valor intrínseco, quer no seu peso jurídico, por outro ele foi também oportunamente requerido pelo Sr. Advogado participado, embora sem êxito uma vez que o Sr. F nunca respondeu.
Finalmente, importa salientar que o Sr. Advogado participado teve todas as oportunidades de contestar matéria da acusação, designadamente requerendo inquirições, prestação de declarações ou juntando depoimentos ou documentos aos autos, como também fez o Sr. Advogado participante.
Por isso, jamais poderá alegar-se que o contraditório não foi aqui plenamente assegurado.
Assim sendo, repete-se, sustentamos que não ocorre no caso em análise qualquer nulidade sanável ou insanável ou irregularidade que obste ao conhecimento do mérito.
*
2. O fundo da questão:
No seu artigo 3º, o Código Deontológico dos Advogados, regulando o dever geral de urbanidade, estipula que “no exercício da profissão deve o advogado proceder com urbanidade no seu relacionamento com terceiros, nomeadamente para com os magistrados, os outros advogados, os funcionários … e outros intervenientes nos processos.”
E regulando o dever de urbanidade de modo especial, o artigo 24º estipula, por sua vez, que “os advogados devem, nas suas relações recíprocas, proceder com a maior correcção e urbanidade, abstendo-se de qualquer ataque pessoal ou alusão deprimente.”
Por sua vez o artigo 24º do mesmo corpo de normas, vedando a angariação de clientes, prescreve que “é proibido ao advogado solicitar ou angariar clientes, por si ou por interposta pessoa.”
Como é evidente, os deveres deontológicos existem para que determinadas profissões realizem o fim a que se propõem.
No caso dos advogados, a realização da justiça e do direito são os objectivos profissionais perseguidos e é neste enquadramento que a correcção, a urbanidade e a lealdade nas relações com os seus pares e a proibição de angariação de clientes assumem a qualificação de deveres deontológicos.
*
Tal como resulta do quadro factual descrito, o Sr. Advogado participado, ao apresentar o seu cartão de visita à Sra C pronunciou algumas palavras, designadamente aludindo ao seu nome, à sociedade de advogados onde trabalho e, para além de outras expressões, referiu: “nós gostaríamos muito de trabalhar para a [Companhia]”.
Como também resulta do ponto dois do mesmo acervo factual, a referida frase foi pronunciada na presença do Sr. Advogado participante, o mesmo sucedendo com a apresentação de cartões.
A primeira questão que esta situação criada pelo Sr. Advogado participado suscita, tem a ver com o cumprimento das simples normas de costumes, ou seja, as que respeitam à convivência, ao decoro, à etiqueta. A violação destas normas apenas acarreta a reprovação por parte de quem lhes atribui importância e poderá, quando muito, gerar um sentimento de mal-estar ou desconforto social em relação a quem delas se afastou. Digamos que há aqui uma sanção essencialmente social.
Salvo melhor opinião, referir perante o colega e dirigindo-se à “General Manager da [Companhia] de Macau” – que o havia apresentado como advogado da empresa – dizendo “nós gostaríamos muito de trabalhar com a [Companhia]”, não pode ser considerada uma frase adequada ao momento, nem respeitadora do cidadão ali presente que é, também, profissional do mesmo ofício. Isso mesmo é demonstrado pela referida testemunha Sra C quando refere: “I did and felt strange and unusual to be approached like that especially in the presence of our attorney B.”
Mas, no nosso entendimento, tal frase, pronunciada naquele contexto, merece ainda um outro tipo de censura. Não é ético-profissionalmente correcto oferecer os seus préstimos profissionais perante o colega e no exacto momento em que este acabava de ser apresentado aos presentes como advogado da empresa que, recorde-se, promovia a cerimónia a que todos os presentes haviam assistido.
Está aqui em causa o dever urbanidade a que alude o artigo 24º do citado Código Deontológico. Como diz Arnaut, “a correcção e a urbanidade, a lealdade e a confraternidade, são a essência dos deveres recíprocos dos advogados.” cf. “Iniciação à Advocacia” pág. 69.
A inoportuna referência aos seus préstimos profissionais é um exemplo paradigmático de violação daquele dever deontológico. Dizer que “nós gostaríamos muito de trabalhar para a [Companhia]” no apontado contexto, pode ter sido, deve ter sido, razoavelmente entendido pelo Sr. Advogado participante como uma atitude deselegante, reveladora de falta de correcção, de falta de lealdade e tomada ainda com uma abordagem tendo em vista angariar um cliente.
Ora, se o oferecimento de serviços profissionais de advocacia é vedado em quaisquer circunstâncias, maior censura merecerá se tiver lugar, como teve, na presença do colega cujos serviços jurídicos já haviam sido anteriormente contratados pela empresa visada.
Resta acrescentar que, do nosso ponto de vista, ainda que o escritório do Sr. Advogado participado já tivesse prestado anterior e esporadicamente serviços jurídicos à [Companhia], tal circunstância não retiraria ao relatado comportamento a carga violadora do apontado dever deontológico.
*
O número 1 do artigo 10º do referido Código Deontológico estipula o seguinte: “É proibido ao advogado solicitar ou angariar clientes, por si ou por interposta pessoa.”
Esta norma deontológica visa claramente assegurar o decoro da classe. A advocacia não é uma actividade mercantil e, por isso, não só não pode ser publicitada, como os clientes não podem ser angariados pelo advogado ou por interposta pessoa.
Dizer perante o colega e dirigindo-se à “General Manager da [Companhia]”, “nós gostaríamos muito de trabalhar com a [Companhia]”, só pode ser interpretado como significando que o Sr. Advogado participado estava a oferecer os serviços jurídicos do escritório que integra à representante da aludida empresa. Na nossa perspectiva não pode ser outra a conclusão a retirar e, o contexto em que foi proferida a frase, designadamente na presença do colega do participado, manifestamente acentua a culpa.
A própria destinatária de frase, como vimos, não deixou de referir que “I did and felt strange and unusual to be approached like that especially in the presence of our attorney B.”
*
Pensamos ter demonstrado que a conduta do Sr. Advogado arguido viola, de forma clara, os normativos referidos na causação, concretamente as normas dos artigos 10º e 24º do Código Deontológico, com referência à norma do artº 1º nº 3 do mesmo diploma.
*
V. A medida da pena
O artº 42º do Código Disciplinar dos Advogados determina que “na aplicação das penas deve atender-se aos antecedentes profissionais e disciplinares do arguido, ao grau de culpabilidade, às consequências da infracção e a todas as circunstâncias agravantes ou atenuantes.”
Naturalmente que o normativo citado tem ainda implícito que deverá atender-se ao juízo de desvalor que incide sobre os factos praticados, (ilicitude – juízo negativo sobre quem praticou certo facto proibido ou não adoptou o comportamento que devia ter adoptado) entendendo-se este, aqui, como a desconformidade da conduta do agente com os deveres deontológicos e também ainda à prevenção geral e especial.
Por outro lado, ao invés do que sucede no direito penal, no direito disciplinar a pena representa, por um lado, uma advertência, uma sanção para o infractor mas, por outro, a pena visa reconduzir aquele ao bom, ao correcto e deontológico exercício profissional.
O acervo factual dado como provado traduz, no nosso entendimento, uma violação deontológica com assinalável repercussão, por isso o juízo de desvalor sobre a conduta do Sr. Advogado arguido situa-se aqui num grau médio.
Quanto à culpa, também entendemos que o grau se situa num patamar médio. O Sr. Advogado arguido agiu livre e conscientemente, tendo representado que, com a sua conduta, violava normas deontológicas, uma vez que, sendo advogado, não podia ignorar as regras que o exercício da profissão impõe.
Na situação em análise, entendemos que a aplicação de uma pena disciplinar deve também visar a prevenção, quer especial, quer geral. A sanção a aplicar deve servir não só de advertência para o Sr. Advogado arguido como, também, para os restantes causídicos sobretudo os mais jovens. O advogado é um servidor da justiça e do direito e, por isso, no exercício do seu “múnus” deve pautar a sua conduta profissional e pessoal, designadamente no contacto com os colegas de profissão, de acordo com os valores da responsabilidade, da correcção e da urbanidade, tendo sempre em linha de conta que o prestígio da função depende do agir de todos, mas também do agir de cada um em particular.
Aos tipos de penas disciplinares alude o artº 41º do Código Disciplinar dos Advogados que aqui se dá como reproduzido.
É manifesto que os valores acautelados pelas normas contidas nos apontados artigos 10º e 24º do Código Deontológico são distintos. Daí que ocorra, em concreto, um concurso efectivo (ideal heterogéneo) de infracções deontológicas.
Assim ponderando no grau de culpa, nas consequências da infracção, nas necessidades de prevenção, no exercício profissional e disciplinar pregresso do Sr. Advogado arguido, entendeu-se inicialmente como proporcional e ajustada a imposição ao mesmo da pena disciplinar única de Censura, no entendimento de que o relatado comportamento traduz a prática, em autoria material, de infracções disciplinares por ofensa aos deveres previstos nos artºs 10º e 24º do Código Deontológico, aqui em concurso efectivo.
No entanto, uma vez que não existe registo que o Sr. Advogado participado tenha sido condenado por qualquer infracção disciplinar anterior, o CSA entendeu por maioria na sua deliberação tomada em reunião de 18 de Janeiro de 2018 atender à circunstância atenuante da primariedade, e assim deliberado aplicar uma pena disciplinar única de Advertência.
*
VI. Sanção
Nos termos expostos, considerando ter o Sr. Advogado arguido Dr. A violado, em autoria material, os deveres deontológicos previstos nas disposições dos artºs 10º e 24º do Código Deontológico, com referência ao disposto no artº 1º, nº 3 do referido Código, considerando ainda o disposto nos artºs 41º e 42º do Código Disciplinar dos Advogados, é-lhe imposta a pena disciplinar única de Advertência.
Registe e notifique, nos termos do artº 40º do Código Disciplinar dos Advogados.”
- O recorrente foi notificado dessa deliberação em 5.6.2018.
3. Direito
No acórdão ora recorrido, o TSI decidiu anular a deliberação do ora recorrente Conselho Superior da Advocacia por entender que, relativamente à inquirição, por escrito, de uma testemunha principal no processo disciplinar em que foi aplicada ao recorrido a pena disciplinar de advertência, não foram observadas as regras previstas para a produção da prova testemunhal, nomeadamente o disposto nos art.ºs 540.º e 541.º do CPC, aplicável subsidiariamente por força do art.º 65.º do Código Disciplinar dos Advogados (CDA), pelo que aquela diligência essencial levada a cabo pelo recorrente está ferida de nulidade ao abrigo do art.º 36.º do CDA, acarretando em consequência todo o restante processado.
Imputando a violação do disposto no art.º 12.º, n.º 4 do CDA e pretendendo a revogação do acórdão posto em causa, alega o recorrente que “ao procedimento disciplinar não terão que ser aplicados os formalismos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 541.º do CPC, por não haver razão para que o sejam”.
Vejamos.
Desde logo, constata-se no presente caso que, a requerimento do contra-interessado, o Sr. Instrutor do processo disciplinar decidiu ouvir a testemunha Sra. C, tendo esta prestado depoimento por escrito, por na altura não se encontrar em Macau (fls. 37 a 48 do processo administrativo instrutor). E a entidade recorrente considerou tal depoimento “indispensável” à descoberta da verdade material, tendo afirmado expressamente que o mesmo depoimento “teve uma especial relevância na formação da nossa convicção”, tal como se refere no “acórdão” proferido pela entidade recorrente.
Ao abrigo do disposto no art.º 18.º do CDA, “Na instrução do processo deve o instrutor procurar atingir a verdade material, remover os obstáculos ao seu regular e célere andamento, recusar o que for impertinente, inútil ou dilatório, promover as diligências que considere convenientes para a instrução, ainda que sobre matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados”.
Quanto a meios de prova, dispõe o art.º 23.º que são admissíveis todos os meios de prova em direito permitidos, podendo o arguido e os interessados requerer as diligências de prova que considerem necessárias ao apuramento da verdade; e não podem ser admitidas como testemunhas as pessoas inábeis para depor nos termos da lei processual civil e penal, apenas sendo admitidas como declarantes se o desejarem e o instrutor entender conveniente; uma vez admitidas, as testemunhas e os declarantes serão notificados do dia, hora e local em que devem comparecer para serem ouvidos, sendo as respectivas declarações reduzidas a escrito e objecto de acareação sempre que necessário.
E constituem nulidades insanáveis a falta de audição do arguido bem como a omissão de quaisquer diligências essenciais à descoberta da verdade ou susceptíveis de pôr em causa as garantias de defesa do arguido, conforme a disposição do art.º 36.º.
No mesmo diploma, nada se refere expressamente ao depoimento por escrito da testemunha.
Nos termos da al. b) do art.º 65.º do CDA, ao processo disciplinar instaurado contra advogado e advogado estagiário são aplicáveis supletivamente, no âmbito da interpretação e integração das lacunas desse diploma, o Código de Processo Civil.
Daí decorre que, no que respeita à inquirição da testemunha por escrito, aplica-se o disposto nos art.ºs 540.º e 541.º do CPC, que têm o seguinte teor:
Artigo 540.º
(Depoimento apresentado por escrito)
1. Quando se verificar impossibilidade ou grave dificuldade de comparência no tribunal, pode o juiz autorizar, ouvidas as partes, que o depoimento da testemunha seja prestado através de documento escrito, datado e assinado pelo seu autor, do qual conste relação discriminada dos factos a que assistiu ou que verificou pessoalmente e das razões de ciência invocadas.
2. Incorre nas penas cominadas para o crime de falsidade de testemunho quem, pela forma constante do número anterior, prestar depoimento falso.
Artigo 541.º
(Requisitos de forma)
1. O documento a que se refere o artigo anterior deve mencionar todos os elementos de identificação do depoente e indicar se existe, com as partes, alguma relação de parentesco, afinidade, amizade ou dependência, ou qualquer interesse na acção.
2. Deve ainda o depoente declarar expressamente que o documento se destina a ser apresentado em juízo e que está consciente de que a falsidade das declarações dele constantes o fará incorrer em responsabilidade criminal.
3. A assinatura do depoente deve ser reconhecida notarialmente, quando não for possível a exibição do respectivo documento oficial de identificação.
4. Quando o entenda necessário e possível, pode o juiz, oficiosamente ou a requerimento das partes, determinar:
a) A renovação do depoimento na sua presença;
b) A prestação, por escrito, de quaisquer esclarecimentos, aplicando-se neste caso o disposto nos números anteriores.
Ora, o depoimento testemunhal pode ser prestado através de documento escrito, cuja admissão deve ter sido precedida de audição das partes (art.º 540.º n.º 1).
E estão expressamente previstos nos n.ºs 1 a 3 do art.º 541.º os requisitos formais do depoimento por escrito, devendo o documento escrito da testemunha conter os seguintes elementos:
- a menção de todos os elementos de identificação do depoente bem como a indicação de alguma relação de parentesco, afinidade, amizade ou dependência com as partes ou de qualquer interesse no caso, se existir, tal como acontece no caso de prestação oral de depoimento, em que o juiz colhe os elementos da testemunha através do interrogatório preliminar (art.º 536.º n.º 1 do CPC);
- a menção expressa da finalidade da sua elaboração, mostrando-se o seu autor consciente de que está produzindo um testemunho destinado a ser apresentado em juízo;
- a menção da consciência do seu autor de que a falsidade do depoimento o fará incorrer em responsabilidade criminal; e
- a assinatura reconhecida notarialmente ou por exibição do documento oficial de identificação.1
No caso vertente, o depoimento por escrito foi admitido pelo Sr. Instrutor, sem que tenha procedido a audição prévia do ora recorrido.
Por outro lado, no documento escrito de fls. 47 a 48 do processo administrativo instrutor detecta-se facilmente a falta dos elementos necessários acima indicados.
Na realidade, não obstante a menção de que a depoente “swear to tell the truth and only the truth in regard to the following questions”, ela limitou-se a responder às perguntas, não se encontrando ela completamente identificada, não tendo declarado se ela tinha alguma relação especial com o contra-interessado ou com o recorrido, se tinha conhecimento da finalidade das suas declarações, se estava consciente da consequência jurídica-penal se as declarações não correspondessem à verdade, nem que a assinatura aposta no documento foi reconhecida por forma legal.
Ora, com a exigência sobre os requisitos formais do depoimento escrito, procura-se “assegurar que o assinante é o verdadeiro depoente e, deste modo, garantir tanto quanto possível a genuinidade do depoimento como meio de prova”.
Como se sabe, no caso de prestação oral de depoimento, o interrogatório preliminar da testemunha visa “uma dupla finalidade: a de identificar a testemunha, por um lado; a de averiguar da sua capacidade testemunhal e a de detectar as circunstâncias mais importantes, capazes de ameaçar a imparcialidade do seu depoimento, por outro.”
“A identificação destina-se a saber se a testemunha é ou não a pessoa mencionada no rol, enquanto a determinação do relacionamento dela com as partes ou o objecto da causa permitirá aos juízes impedir o depoimento de quem não possua capacidade testemunhal necessária … ou graduar no mesmo espírito, com melhor conhecimento da causa, o valor intrínseco do depoimento prestado.”2
O interrogatório preliminar “tem o triplo objectivo de permitir identificar a testemunha como aquela que foi oferecida e identificada no rol …, verificar a sua capacidade para depor … e ajuizar da maior ou menor proximidade que possa haver entre ela e as partes, dado este a ter em conta na avaliação da credibilidade do depoimento.” 3
Daí se vê a relevância da identificação da testemunha e do conhecimento sobre se ela tem alguma relação com as partes ou tem interesse na causa em discussão.
São também esses elementos básico e relevantes no caso de a testemunha prestar depoimento por escrito, sendo certo que tanto o depoimento oral como escrito servem como meios de prova.
No caso vertente, não se constata no processo administrativo instrutor elementos necessários para a identificação completa da testemunha em causa nem elementos que revelem se ela tem alguma relação especial com o contra-interessado e o ora recorrido, de forma a permitir ajuizar da capacidade para depor da testemunha e avaliar a credibilidade do seu depoimento.
Do documento escrito assinado com o nome da testemunha consta apenas o nome, estado civil e domicílio profissional (fls. 47 a 48 do processo administrativo instrutor), faltando qualquer referência à existência, ou não, de relação com as partes.
Não se sabe se a testemunha tem conhecimento da finalidade do seu depoimento nem da consequência jurídica-penal das eventuais falsas declarações.
E a assinatura aposta no documento não se encontra notarialmente reconhecida nem se mostra junta aos autos qualquer documento oficial de identificação.
Neste contexto, torna-se duvidoso se a assinatura aposta no documento escrito é a da testemunha cuja inquirição foi requerida e se ela tem capacidade para depor.
Assim sendo, é de afirmar que durante a instrução do processo disciplinar não foram observadas as regras estabelecidas para a produção por escrito da prova testemunhal que a entidade recorrente considerou de “especial relevância” na formação da sua convicção, que determina uma nulidade procedimental, oportunamente arguida pelo recorrido na sua defesa apresentada nos termos do art.º 29.º do CDA.
Estão previstas no art.º 147.º do CPC as “regras gerais sobre a nulidade dos actos”, com o seguinte teor:
“1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
2. Quando um acto tenha de ser anulado, anulam-se também os actos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
3. Se o vício do acto obstar à produção de determinado efeito, não se têm como prejudicados os efeitos para cuja produção o acto seja idóneo.”
De acordo com tal regra, “constituem irregularidades susceptíveis de integrar invalidade processual a prática dum acto que a lei não admita e a omissão dum acto ou duma formalidade que a lei prescreva. Não se trata de vícios que respeitem ao conteúdo do acto, mas tão só de vícios atinentes à sua existência ou formalidades.”
“Verificado o vício, se a lei não prescrever expressamente que ele tem como consequência a invalidade do acto, segue-se verificar a influência que a prática ou omissão concreta pode ter no exame ou na decisão da causa, isto é, na sua instrução, discussão e julgamento ….”
“Constatada essa influência, os efeitos da validade do acto repercutem-se nos actos subsequentes da sequência processual que dele forrem absolutamente dependentes. Sempre, por isso, que um acto da sequência pressuponha a prática dum acto anterior, a invalidade deste tem como efeito, indirecto mas necessário, a invalidade do acto subsequente que porventura entretanto tenha sido praticado (e, por sua vez, dos que, segundo a mesma linha lógica, se lhe sigam).”4
E as nulidades do processo “são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder, embora não de modo expresso, uma invalidade mais ou menos extensa de actos processuais”.5
O que há de característico e frisante naquela norma citada “é a distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes. Praticando-se um acto que a lei não admite, omitindo-se um acto ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infracção, mas nem sempre esta infracção é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos: a) quando a lei expressamente a decreta; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, nesta segundo caso, “é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entende a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou decisão da causa”.6
A norma em causa “não só indica por que modos pode infringir-se a lei reguladora dos actos e os casos em que essa infracção produz nulidade, como também fixa a extensão desta. Quando um acto tenha de se anulado, diz-se, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependerem absolutamente”.7
Postas tais considerações, é de voltar ao nosso caso concreto.
Estamos perante uma situação em que se verifica a omissão de formalidades prescritas por lei, tendo sido o acto praticado com preterição de formalidades legais, dado que na produção de prova testemunhal (prestação de depoimento por escrito) não foram observados os requisitos formais legalmente prescritos.
Apesar de não se encontrar nenhuma norma que declare expressamente a nulidade do acto por preterição de formalidades legais em causa, afigura-se-nos que se deve concluir pela sua influência na decisão da causa, o que determina a nulidade do respectivo acto (e a anulabilidade de actos subsequentes, dada a “especial relevância” do depoimento escrito da testemunha na formação da convicção da entidade recorrente).
Concluindo, não merece censura o acórdão recorrido.
E não se vê como foi violado o disposto no n.º 4 do art.º 12.º do CDA, imputado pela entidade recorrente.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao presente recurso jurisdicional.
Sem custas.
Macau, 9 de Setembro de 2022
Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai
A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Ma Iek
1 Cfr. José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 2.a edição, pag. 617; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 3.a edição, pag. 402.
2 Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2 edição. pag. 623 e 624.
3 Cfr. José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 2.a edição, pag. 603; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 3.a edição, pag. 388.
4 José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 2.a edição, pag. 17 a 20.
5 Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag. 165.
6 Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, pag. 484 e 485.
7 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, pag. 317.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
31
Processo n.º 75/2021