Processo nº 112/2022
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 7 de Dezembro de 2022
ASSUNTO:
- Responsabilidade administrativa
- Sanção contratual
SUMÁRIO:
- Em Direito Administrativo, dentro da responsabilidade contratual é possível distinguir entre a responsabilidade civil e a responsabilidade administrativa. Aquela implica um dever de indemnizar um dano; esta pressupondo também um incumprimento contratual, consubstancia-se na aplicação de sanções contratuais com fundamento no cumprimento defeituoso de determinadas obrigações emergentes do «Contrato»;
- No caso em apreço está em causa a chamada responsabilidade administrativa contratual pois do que aqui se cuida é da impugnação de um acto administrativo de aplicação de multa contratual à Recorrente com fundamento no seu cumprimento defeituoso de determinadas obrigações emergentes do «Contrato»;
A Recorrente, no cumprimento da sua obrigação, utiliza auxiliares, no caso, trabalhadores seus, respondendo pelas suas falhas como se elas fossem suas. Daí que, ainda que, sem conceder, se possa admitir que o trabalhador da Recorrente não observou as suas instruções quanto ao modo de execução do contrato, nem por isso, a mesma deverá ser isentada da responsabilidade perante a Região, não se podendo dizer, por isso, que a infracção do contrato se ficou a dever a razões que lhe não são imputáveis. Vale aqui, reitera-se, a regra segundo a qual se projecta no devedor o comportamento da pessoa que ele utilize no cumprimento da obrigação como se fosse acto seu.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 112/2022
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 7 de Dezembro de 2022
Recorrente: Companhia de Serviços de X Táxi Macau S.A.
Entidade Recorrida: Secretário para os Transportes e Obras Públicas
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
Companhia de Serviços de X Táxi Macau S.A., com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para os Transportes e Obras Públicas de 29.10.2021 que aplicou à Recorrente a multa de MOP10.000,00 por incumprimento contratual, formulando as seguintes conclusões:
(i) Acto administrativo objecto do recurso
1. O presente recurso contencioso tem como objecto o despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, de 29 de Outubro de 2021, exarado na Proposta n.º 0172/DGT/F.C/2021, que decidiu aplicar à recorrente a multa no montante de MOP 10.000,00. A dita proposta faz parte integrante do acto recorrido.
2. De acordo com a entidade recorrida, ficou suficientemente provado que em 9 de Janeiro de 2019, A, empregado da recorrente, transportou passageiros enquanto o táxi estava livre para chamar sem ter activado o taxímetro. A referida conduta violou o art.º 19.º, n.º 1 do «Contrato», pelo que se decidiu sancionar a recorrente nos termos do art.º 6.º, n.º 1 e do art.º 30.º, n.º 1, alínea 10) do «Contrato».
(ii) Aplicação errónea do fundamento sancionatório – aplicou-se erradamente o art.º 6.º, n.º 1 do «Contrato»
A. O acto do condutor em discussão não foi causado por negligência nem por inaptidão profissional
3. Dispõe o art.º 6.º, n.º 1 do «Contrato»:
“Artigo 6.º
Responsabilidade da Concessionária
1. A Concessionária é responsável por erros ou omissões imputáveis à si própria, aos seus trabalhadores, ou às entidades por ela subcontratadas, por negligência ou inaptidão profissional.
(…)"
(negritos e sublinhados nossos)
4. Uma vez dado por assente que o acto do condutor em causa ofendeu o «Contrato», a entidade recorrida devia ainda ter avaliado se o acto foi o caso previsto pelo art.º 6.º, n.º 1 do Contrato – “erros ou omissões” “por negligência ou inaptidão profissional”; só então é que poderia decidir aplicar a multa com o pressuposto preenchido para a aplicação do art.º 6.º, n.º 1 do Contrato.
5. O trabalhador da recorrente, ou seja, a taxista em questão tinha como atribuições profissionais a prestação da habilidade de condução e do serviço de transporte, garantindo a segurança de condução e a eficiência do serviço de transporte.
6. Entende-se como “aptidão profissional” os conhecimentos e técnicas que um indivíduo tem à sua disposição no âmbito profissional, o que não se pode confundir com a ética ou carácter moral do indivíduo. Um profissional muito qualificado pode cometer actos ilícitos para seu próprio benefício.
7. No caso vertente, o condutor transportou os passageiros sem que estes tivessem efectuado um pedido de maneira regular e, mantendo o taxímetro inactivado, acordou verbalmente com o cliente o montante de 50 patacas como taxa. Obviamente, a referida conduta não resultou de qualquer omissão, nem teve nada a ver com a aptidão profissional.
8. A recorrente não deu instruções nem autorizou a respectiva acção, nomeadamente porque a mesma não tinha como saber que o motorista fez o transporte dos supramencionados passageiros e recebeu a falada taxa. Também lhe era impossível receber total ou parcialmente a aludida taxa de 50 patacas. Razão pela qual, a recorrente nunca daria instruções ao condutor em causa para praticar a respectiva infracção.
9. A ver da recorrente, o art.º 6.º, n.º 1 do Contrato contém expressões tais como "(negligência) profissional" e "(in)aptidão profissional" porque pretende isentar a concessionária de serviço público da responsabilidade pelos actos que, nada tendo a ver com o próprio serviço, sejam puramente imputáveis aos seus trabalhadores ou às entidades subcontratadas, sobretudo aqueles praticados em desobediência às ordens ou instruções dadas explicitamente pela concessionária. Caso contrário, a concessionária (i.e., a recorrente) arrisca-se a ser sancionada por um acto ou juízo absolutamente fora do seu próprio controlo.
B. Não está preenchido o pressuposto para a aplicação do art.º 6.º, n.º 1 do «Contrato», por o condutor ter praticado a infracção de propósito
10. Nos termos do art.º 6.º, n.º 1 do Contrato, a recorrente só assume responsabilidade quando sejam preenchidos simultaneamente os seguintes requisitos:(1) imputabilidade à recorrente / aos seus trabalhadores / às entidades por ela subcontratadas; (2) negligência ou inaptidão profissional;(3) erros ou omissões.
11. Interpretando a cláusula de maneira literal, a recorrente só é responsável pelos actos negligentes dos seus trabalhadores, mas não pelas infracções realizadas pelos trabalhadores com dolo.
12. É bem claro, porém, que a entidade recorrida não provou suficientemente a verificação dos pressupostos sancionatórios acima referidos.
13. Com base no auto de notícia n.º 120A/2019/CTZSM da DSAT, a entidade recorrida deu por provado que, enquanto o táxi estava livre para chamar, o condutor deixou os passageiros entrar no veículo depois de eles lhe terem dito o destino e a vontade de pagar 50 patacas como taxa; mas o taxista não os avisou de que para poderem utilizar o serviço de rádio táxi deviam primeiro telefonar para o Centro de Serviços. O que demonstra que foi com dolo que o condutor em questão deixou os passageiros usufruir do serviço de transporte contornando o procedimento operacional padrão do Centro de Serviços de X Táxis, e foi igualmente com dolo que lhes cobrou pelo serviço uma taxa acordada entre si.
14. Trata-se duma infracção cometida pelo condutor em questão com dolo directo, que não se encontra dentro do âmbito de responsabilidade da recorrente delimitado pelo art.º 6.º, n.º 1 do «Contrato».
15. A dita conduta do motorista em causa, se ficar provada, viola a norma proibitiva - É especialmente vedado ao condutor cobrar ao passageiro uma importância diferente da legalmente fixada na tabela de tarifas – prevista no art.º 12.º, n.º 3, alínea a) do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer ou Táxis, aprovado pela então vigente Portaria n.º 366/99/M, e constitui uma infracção administrativa cuja responsabilidade é do próprio condutor.
16. Assim sendo, a entidade recorrida obviamente vai contra o espírito da disposição do «Contrato» ao aplicar o seu art.º 6.º, n.º 1 para sancionar a recorrente pela acto(infraccional) pessoal e doloso do motorista em causa.
17. Foi impossível que a recorrente tivesse, de forma alguma, incitado, dado instruções ou autorizado o acto praticado pelo condutor em questão. De facto, a recorrente já recorreu a todos os meios (incluindo explicações durante a formação profissional no início do trabalho, o contrato laboral celebrado com os condutores, o manual de trabalho para o condutor) para informar os condutores de que devem observar as regras da empresa relativamente às ordens de táxi por telefone.
18. Resumindo os fundamentos atrás aduzidos, obviamente os factos cá em causa não se encontram no âmbito do art.º 6.º, n.º 1 do «Contrato». Ou seja, o acto recorrido enferma do vício de aplicação errónea do fundamento sancionatório por interpretação errada do art.º 6.º, n.º 1. Logo, nos termos do art.º 124.º do CPA, o acto recorrido deve ser anulado.
Caso assim se não entenda, deve sempre se considerar o seguinte:
(iii) Violação do princípio da proporcionalidade – exercício totalmente irrazoável do poder discricionário
19. O art.º 5.º, n.º 2 do CPA prevê o princípio da proporcionalidade, e o artigo 21.º, n.º 1, alínea d) dispõe que constitui fundamento do recurso o erro manifesto ou a total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
20. O acto recorrido não é um acto vinculativo. A recorrente entende que a decisão da entidade recorrida incorre em vício de total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
21. Nos pontos 4.4 e 4.5 da Proposta n.º 0172/DGT/F.C/2020, a entidade recorrida esclarece que não invoca o artigo 30.º, n.º 1 do «Contrato» para decidir a isenção da sanção porque não se vislumbra motivos que justifiquem a inimputabilidade da concessionária. A recorrente entende que esse juízo não colhe qualquer fundamento.
22. A receita diária do táxi é repartida entre a recorrente e o motorista na proporção acordada. O valor dos lucros devido a cada parte é calculado através da verificação de dois registos – um do sistema de recepção de ordens da empresa e o outro do taxímetro instalado no respectivo veículo, sendo estes os únicos meios que a recorrente tem para aceder às informações relativas à receita do táxi.
23. Por outras palavras, no caso vertente, o motorista em causa pretendeu, sem o conhecimento da recorrente, utilizar o veículo desta para obter para si vantagens pessoais. A recorrente, em vez de obter qualquer vantagem, directa ou indirecta, com a conduta ilícita do condutor, foi lesada pelo acto!
24. Como se sabe das regras da experiência, mesmo que a empregadora, isto é, a recorrente, tenha feito tudo o que estava ao seu alcance para supervisionar os seus trabalhadores, ainda lhe era impossível garantir que nenhum deles quebrava as regras. A entidade recorrida não pode se basear na infracção do motorista para concluir que a recorrente não cumpriu o dever de supervisão e deve por isso ser responsável pelo facto.
25. Compulsado o teor do artigo 30.º do «Contrato», constata-se que todos os pressupostos punitivos nele estipulados se mostram estreitamente relacionados com a exploração, pela recorrente, da actividade de táxis especiais, tendo os mesmos como objectivo prevenir qualquer exploração indevida por parte da recorrente. Ora, a entidade recorrida decidiu punir a recorrente pelo acto ilícito praticado pelo seu motorista, que lesou os interesses da empregadora e que lhe foi intencionalmente ocultado. Isso obviamente vai contra as finalidades das penas previstas no referido contrato.
26. No ponto 5.4 da Proposta n.º 2440/DGT/F.C/2020, em que a entidade recorrida decide abrir o procedimento punitivo, esta esclarece as razões por que não invoca o artigo 30.º, n.º 1 do «Contrato» para decidir a isenção da sanção, nomeadamente (vide documento 3, fls. 18, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido),:
“…a prestação de diversas formações aos motoristas é só um dever contratual da concessionária…”
“…a sanção aplicada pela concessionária ao respectivo motorista pela infracção em causa é muito inferior à prevista na legislação vigente sobre a exploração de táxis e no «Contrato». Ou seja, o custo de infracção não tem um carácter suficientemente dissuasivo, pelo que não se nos afigura que a concessionária envidou todos os esforços para cumprir o dever de supervisão dos trabalhadores...”
27. O recorrente entende que o supra transcrito juízo não só não colhe fundamento mas também, e acima de tudo, não analise atentamente as provas apresentadas pela recorrente na audiência escrita.
28. Primeiro, o facto de se estipular no «Contrato» o dever de formação dos motoristas não significa que as formações não podem ser consideradas esforços da recorrente para os gerir.
29. Além disso, do trecho acima transcrito resulta que a entidade recorrida ao apreciar a adequação da sanção aplicada pela recorrente tem como base de avaliação as sanções previstas na “legislação vigente sobre a exploração de táxis e no «Contrato»”.
30. Segundo a entidade recorrida, as medidas sancionatórias adoptadas pela recorrente são mais leves do que as previstas nas leis e no «Contrato», o que mostra que o custo de infracção não tem um carácter suficientemente dissuasivo. Isso leva a entidade recorrida a concluir que a concessionária não envidou todos os esforços para cumprir o dever de supervisão dos trabalhadores.
31. No entanto, como expressamente se refere no «manual de trabalho dos motoristas», infracção praticada pelo trabalhador pode conduzir à rescisão do contrato de trabalho. Eis uma sanção com carácter dissuasivo.
32. Do confronto dos regimes sancionatórios da Portaria n.º 366/99/M, Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer ou Táxis, vigente no momento do facto, da Lei n.º 3/2019, Regime jurídico do transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer, actualmente vigente, e do «Contrato», verifica-se que todos são de natureza administrativa. Ou seja, trata-se dum regime em que o poder público aplica sanções aos particulares.
33. A recorrente não é um órgão de autoridade, mas antes a empregadora do condutor em causa. Os direitos e deveres derivados da sua relação de trabalho com o motorista encontram-se regulados pela Lei das Relações de Trabalho.
34. Por conseguinte, a entidade recorrida errou ao aplicar directamente o regime sancionatório das respectivas leis e contrato à relação estabelecida entre a recorrente e o seu trabalhador com base nas normas laborais.
35. Uma boa cultura empresarial impõe um sistema de prémios e castigos proporcional e imparcial que não só é reconhecido pelos trabalhadores como também executável. Os meios sancionatórios devem ser determinados em função das circunstâncias concretas do caso e do nível de gravidade do facto, não podendo o seu efeito ser avaliado simplesmente com base na severidade da sanção.
36. Fica assim provado que a recorrente já fez tudo o que estava ao seu alcanço para gerir os motoristas. Cumpre reiterar que a recorrente, enquanto vítima da infracção em causa, não tinha qualquer motivo para tolerar ou até encorajar o acto infraccional. Dessarte se verifica a inimputabilidade da mesma.
37. Face ao exposto, o respectivo acto da entidade recorrida viola o princípio da proporcionalidade devido ao erro na apreciação dos factos provados e à total desrazoabilidade no exercício do poder discricionário, pelo que deve ser anulado nos termos dos artigos 20.º e 21.º, n.º 1, alínea d) do CPAC e artigo 124.º do CPA.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas apresentando as seguintes conclusões:
Quanto à aplicação errónea do art.º 6.º, n.º 1 do Contrato pela decisão recorrida referida na petição de recurso
a) Segundo a recorrente, o acto do condutor em discussão não foi causado por negligência nem por inaptidão profissional
I. Nos termos do art.º 6.º (responsabilidade da concessionária), n.º 1 do Contrato, "A Concessionária é responsável por erros ou omissões imputáveis à própria, aos seus trabalhadores, ou às entidades por ela subcontratadas, por negligência ou inaptidão profissional. "
(negritos e sublinhados nossos)
II. É de frisar que para um taxista (não taxista especial empregado pela recorrente), é obrigatório ser dotado de habilidade de condução para poder candidatar-se à licença de taxista, e em seguida é que se torna taxista credenciado para transporte de passageiros, cujo trabalho consiste em atingir contrato de transporte com o passageiro e cumprir as obrigações contratuais, prestando serviço de transporte ao passageiro;
III. Enquanto um taxista profissional (não taxista especial empregado pela recorrente) deve, para além de prestar serviço de transporte ao passageiro, ainda e sobretudo compreender diplomas legais estreitamente relacionados com a sua profissão tais como a Lei n.º 3/2019 – Regime jurídico do transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer e a Lei n.º 3/2007 – Lei do Trânsito Rodoviário;
IV. Enquanto um taxista especial profissional (ou seja, taxista especial empregado pela recorrente) deve, para além de ser dotado do profissionalismo acima referido comum aos taxistas normais, devido ao motivo especial consistente no Contrato assinado pela sua entidade patronal (i.e. a recorrente) com a RAEM, dar concretização ao seu profissionalismo também com a observância e o cumprimento do Contrato, por exemplo: transportar só os passageiros que chamaram o táxi especial através do centro de serviço de táxi, entre outros.
V. Aliás, enquanto taxista especial, o profissionalismo provém dos deveres inerentes ao exercício de funções; tais deveres concretizam-se na relação laboral estabelecida entre a recorrente e o taxista por meio do contrato laboral estipulado entre os dois. Portanto, a recorrente deve responder pelo acto praticado pelo taxista especial conduzindo o táxi especial (cf. os autos administrativos, fls. 12 e 18 a 20v).
VI. Sinteticamente, o incumprimento de quanto prescrito pelo Contrato por parte do taxista especial ocasionado por qualquer motivo que seja deve ser indubitavelmente atribuído à negligência ou inaptidão profissional, o que já está demonstrado no ponto 4.4 da proposta n.º 0172/DGT/F.C/2021 subjacente à decisão recorrida.
b) Segundo a recorrente, não está preenchido o pressuposto para a aplicação do art.º 6.º, n.º 1 do Contrato, pois o condutor praticou a infracção de propósito
VII. Verbalmente, o art.º 6.º, n.º 1 do Contrato não se exclui de maneira alguma o acto de incumprimento do contrato praticado com dolo seja pela recorrente seja pelos seus empregados.
VIII. Dar razão à recorrente nela sua pretensão equivaleria a consentir que tanto a recorrente como os seus empregados tenham luz verde para praticar qualquer transgressão do Contrato sem restrições, sem porém dever ser sancionados. Então vemos que a pretensão da recorrente é deveras irrealista e desligada da interpretação verbal bem como do espírito das cláusulas do Contrato.
IX. De resto, o Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer ou Táxis distingue-se nitidamente do Contrato tanto em termos de natureza das disposições como de finalidade que se pretende atingir. O primeiro é um diploma legal promulgado pelas autoridades para supervisionar a qualidade do serviço prestado pelos taxistas, enquanto o segundo é um contrato assinado pela Administração com a recorrente no intento de atribuir a responsabilidade de operação e de gestão à recorrente, entre cujas responsabilidades está a de supervisionar os seus empregados (taxistas especiais).
X. Além disso, mesmo admitindo que o acto do condutor em causa violou a norma proibitiva então vigente fixada pelo art.º 12.º, n.º 3, alínea a) do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer ou Táxis, aprovado pela Portaria n.º 366/99/M, nada altera o facto de que a dois sujeitos diferentes (um é o taxista, o outro é a recorrente) se aplicam dois fundamentos sancionatórios diversos (no primeiro caso, o prescrito pelo Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer ou Táxis, no segundo, as cláusulas do Contrato), então instauram-se dois procedimentos sancionatórios diferentes. Não há nada de essencialmente conflituoso.
XI. Portanto, basta a violação do art.º 19.º, n.º 1 do Contrato por parte de A, empregado da recorrente para demonstrar a negligência ou inaptidão profissional do seu empregado. À luz do art.º 6.º, n.º 1 do Contrato, a recorrente deve responder pelo acto do seu empregado. Então não há nada de inapropriado na decisão recorrida que fundamenta a sanção a aplicar à recorrente no artigo supramencionado conjugado com o art.º 30.º, n.º 1, alínea 10) do Contrato. Então são insustentáveis as justificações aduzidas nos artigos 16.º – 47.º da petição de recurso (i.e. nos pontos 3 – 18 da parte (ii) das conclusões).
Quanto ao exercício absolutamente irrazoável do poder discricionário na decisão recorrida referida na petição de recurso
XII. Na realidade, nos termos do art.º 30.º, n.º 1 do Contrato, a possibilidade de isenção de sanção poderia ser ponderada pela entidade recorrida apenas se a recorrente tivesse provado de maneira suficiente e durante o procedimento administrativo de sanção perante a entidade recorrida a existência de circunstâncias conducentes à sua inimputabilidade. Quanto invocado pela recorrente, i. e. que foi o empregado que violou dolosamente o prescrito pelo manual de trabalho do taxista, não justifica a sua inimputabilidade.
XIII. Pelo contrário, conforme indica o ponto 5.4 da proposta n.º 2440/DGT/F.C/2020 com a qual a entidade recorrida decidiu instaurar o procedimento de sanção, a entidade recorrida chegou à convicção de que completada a instrução, estavam assentes os seguintes dois factos (cf. os autos administrativos, fls. 22 a 24, dados por integralmente reproduzidos aqui):
i. Que a recorrente faltou a fornecer formação anual e regular ao seu empregado A, e
ii. É duvidosa a efectividade das consequências de infracções cometidas pelos seus empregados pré-definidas pela recorrente.
XIV. Quanto ao conteúdo no ponto i acima referido, a recorrente não refutou de modo algum; ou seja, a própria recorrente admitiu e reconheceu não ter fornecido formação anual e regular ao seu empregado A.
XV. Administrando os seus empregados, a recorrente faltou ao dever de prestação de formação prescrito tanto pelo art.º 8.º, n.º 6 como pelo art.º 18.º, n.º 2 do Contrato (um dos deveres mais críticos na administração dos empregados); logo, não há nada de errado na conclusão atingida pela entidade recorrida de a recorrente não ter envidado todos os esforços para administrar os seus empregados. (cf. os autos administrativos, fls. 21 a 24, dados por integralmente reproduzidos aqui)
XVI. Além disso, o artigo "requisitos de serviço" do manual de trabalho do taxista anexado pela recorrente nas alegações escritas prescreve, "O empregado que preencha os requisitos de serviço definidos pela companhia é gratificado com 1500,00; uma vez verificada qualquer inobservância das regras e regulamentos de trabalho, a gratificação será descontada"; (cf. os autos administrativos, fls. 19v)
XVII. Relativamente ao "desconto de gratificações", o mencionado manual de trabalho do taxista prescreve: à confirmação pela companhia da "aceitação de pedidos com o veículo da companhia por própria iniciativa"" por parte do empregado segue-se "uma advertência escrita de considerável gravidade acompanhada pela multa de 500,00, bem como, segundo o caso, a formação com a suspensão de serviço. Nos casos extremos o infractor será imediatamente despedido." (cf. os autos administrativos, fls. 20v)
XVIII. Evidentemente, a recorrente disponha dos meios para fixar consequências mais dissuasórias das infracções por parte dos seus empregados e devia tê-lo feito, para que os seus empregados dessem cumprimento, com toda a seriedade e efectividade, aos requisitos de serviço fixados no Contrato, o que teria evitado a sanção aplicada à recorrente por violação do Contrato.
XIX. Resumindo quanto exposto atrás, no exercício do poder discricionário, a entidade recorrida não incorreu em algum erro notório nem em irrazoabilidade absoluta, enquanto as provas aduzidas pela recorrente não bastam para comprovar a existência de justificações que apontem para a inimputabilidade da recorrente. Portanto, são igualmente insustentáveis as justificações aduzidas nos 48.º – 80.º da petição de recurso (i.e. nos pontos 19 – 37 da parte (iii) das conclusões).
As partes foram notificadas para apresentarem alegações facultativas o apenas a Recorrente fez.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer no sentido do recurso ser julgado improcedente.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legitimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
1. Dos factos
a) Em 22.09.2016 entre a RAEM e a Recorrente foi celebrada a escritura pública de Contrato da Exploração da Indústria de Transportes de Passageiros em Táxis Especiais cujo extracto foi publicado na II série do BO nº 42 de 19.10.2016 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
b) A Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego notificou a ora Recorrente nos termos que constam de fls. 110 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais no sentido de que em «9 de Janeiro de 2019, por volta das 17h11, no sítio ficado na Av. Dr. Mário Soares, perto do Hotel Imperial, interceptou A (cartão de identificação de condutor de táxi n.º …) que conduzia um táxi especial de matrícula n.º MW-XX-XX, a bandeira do taxímetro mostrou o estado de espera sem pendurar o sinal de suspensão de serviço. Após ter sabido o destino dos passageiros e ter cobrado a quantia de $50,00, os passageiros foram autorizados a entrar no táxi sem ser informado de que tinha de chamar o táxi através do centro de serviços de táxis antes de só poder apanhar o táxi.» – cf. traduzido a fls. 381 a 384 -;
c) A ora Recorrente apresentou contestação àquela notificação – cf. 112 a 114 -;
d) Pela Direcção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego foi lavrada a proposta nº 0172/DGT/F.C/2021 a qual consta de fls. 48 a 52 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legai;
e) Com base no conteúdo da proposta referida na alínea anterior pelo Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas foi aplicada à ora Recorrente a multa de MOP10.000,00 – cf. fls. 48 -.
2. Do Direito
É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«(…)
2.
(i)
Começa a Recorrente por alegar que o acto que nos presentes autos impugna enferma de erro nos pressupostos de direito em virtude de a Entidade Recorrida ter aplicado indevidamente o artigo 6.º, n.º 1 do «Contrato da Exploração da Indústria de Transportes de Passageiros em Táxis Especiais» (doravante, Contrato).
Parece-nos que não tem razão. Procuraremos demonstrar porquê.
De acordo com o estabelecido no artigo 6.º, n.º 1 do Contrato, ao abrigo do qual foi praticado o acto recorrido, «a concessionária é responsável por erros ou omissões imputáveis à própria, aos seus trabalhadores, ou às entidades por ela subcontratadas, por negligência ou inaptidão profissional». Compreende-se. A responsabilidade da concessionária perante a Região não deve ficar circunscrita à que resulta das suas próprias condutas, devendo, além disso, abranger também as dos seus trabalhadores. De resto, tal previsão contratual não é senão a expressão daquilo que, em geral, está previsto no nosso ordenamento jurídico em matéria de responsabilidade contratual das entidades patronais por actos dos seus trabalhadores.
Como se sabe, em geral, a actuação dos trabalhadores do devedor, mesmo quando seja ilícita, constitui um risco da própria empresa, representando algo com que o empregador tem de contar. O devedor utiliza como meio de cumprimento da obrigação os seus trabalhadores e por isso o risco associado a tais meios corre por sua conta, responsabilizando-o (neste sentido, veja-se, por exemplo, CLÁUDIA ALEXANDRE DOS SANTOS MADALENO, A Responsabilidade Obrigacional Objectiva por Facto de Outrem, Dissertação de Doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2014, disponível online, p. 492).
O devedor que se aproveita de auxiliares no cumprimento da obrigação, como são os seus trabalhadores, «fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares, alargam-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização destes» (assim, VAZ SERRA, citado em PIRES DE LIMA – ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª edição, reimpressão, pp. 55-56). Aliás, de acordo com o n.º 1 do artigo 789.º do Código Civil, que, como norma geral, há-de servir de referência também na aferição da responsabilidade pelo incumprimento dos contratos administrativos, «o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize no cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor». Projecta-se, pois, no devedor o comportamento da pessoa que ele utilize no cumprimento da obrigação como se fosse acto seu: «the servant´s act is the master’s act» (neste sentido, apontando o facto de a norma do Código Civil Português correspondente ao artigo 789.º do nosso Código consagrar uma ficção jurídica, uma vez que ficciona que o comportamento dos auxiliares ou dos representantes legais é um comportamento do devedor, ficando este colocado em situação idêntica à que estaria se fosse ele próprio, pessoalmente, a cumprir a obrigação, veja-se MARIA DA GRAÇA TRIGO/RODRIGO MOREIRA, in Comentário ao Código Civil, Lisboa, 2018, p. 1114).
Como resulta da cláusula contratual em referência, a concessionária responderá perante a Região quando os seus trabalhadores incorram em erros ou omissões, abrangendo-se aqui, em primeira linha, as situações de violação das regras de execução do contrato, que lhes sejam imputáveis a título de negligência ou de inaptidão profissional, sem excluir, naturalmente, as actuações dolosas que igualmente se revelem violadoras das ditas regras contratuais.
A este último propósito importa salientar que a boa doutrina aponta no sentido de que a aferição da culpa dos auxiliares do devedor é feita como se fosse a culpa do devedor e, portanto, o seu critério deve assentar na diligência e aptidões exigíveis ao devedor, não podendo este desculpar-se, por isso, com circunstâncias pessoais do auxiliar que a ele não aproveitem (assim, ANTÓNIO PINTO MONTEIRO, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Reimpressão, Coimbra, 2003, p. 261).
No caso em apreço, a Entidade Recorrida aplicou à Recorrente a multa contratual de 10 000,00 patacas em virtude de o condutor do táxi especial de matrícula MW-92-89, A, ter transportado passageiros, sem que os mesmos tivessem solicitado o serviço de transporte por telefone através da Central de táxis especiais. Tratou-se, como é bom de ver, de uma violação, por parte de um trabalhador da Recorrente, das disposições acordadas entre esta e a Região quanto ao modo de execução do Contrato, nomeadamente do estipulado no artigo 19.º, n.º 1 do Contrato, segundo o qual «a Concessionária só pode prestar o serviço de táxis especiais, imediato ou por marcação, por telefone e através da Central (…)», sendo, por isso, de qualificar como um erro para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º desse mesmo Contrato. Acresce que, tal violação se ficou a dever a uma actuação manifestamente culposa do trabalhador da Recorrente, pelo que, face ao que acima referimos, se nos afiguram plenamente verificados os pressupostos indispensáveis à aplicação à Recorrente da multa a que se refere a alínea 10) do n.º 1 do artigo 30.º do Contrato.
Deste modo, parece-nos ficar demonstrado o equívoco em que a Recorrente fez assentar a sua construção argumentativa, no que concerne ao campo de aplicação do artigo 6.º, n.º 1 do Contrato e, mais concretamente, quanto ao âmbito e pressupostos da sua responsabilização por actos dos seus trabalhadores.
(ii)
Subsidiariamente, alegou a Recorrente que o acto recorrido enferma do vício de violação do princípio da proporcionalidade, consubstanciando, segundo diz, total irrazoabilidade no exercício de um poder discricionário.
Em nosso modesto entendimento é evidente, também neste ponto, a falta de razão da Recorrente.
Decorre do n.º 1 do artigo 30.º do Contrato que as violações contratuais aí elencadas darão lugar à aplicação de multas salvo casos resultantes de força maior ou por motivos que não sejam imputáveis à concessionária.
No essencial, a Recorrente considera que, no caso, os motivos da infracção não lhe são imputáveis uma vez que ela instruiu expressamente o seu trabalhador no sentido da observância por parte desta das regras de execução do contrato.
Não é, porém, assim.
Está em causa o incumprimento de um contrato administrativo por parte do contratante particular uma vez que foi em consequência desse incumprimento que a Entidade Recorrida aplicou a multa contratual contenciosamente impugnada.
Como se sabe, o não cumprimento das obrigações emergentes de um contrato, incluindo, naturalmente, de um contrato administrativo, faz incorrer o incumpridor em responsabilidade contratual, é dizer, «[n]o dever jurídico que recai sobre alguém que outorgou um contrato e que consiste em ter de responder pelo incumprimento definitivo, pelo cumprimento defeituoso ou tardio das obrigações contratuais» (nestes termos, PEDRO COSTA GONÇALVES, Direito dos Contratos Públicos, Coimbra, 2015, pp. 585-586).
Em Direito Administrativo, dentro da responsabilidade contratual é possível distinguir entre a responsabilidade civil e a responsabilidade administrativa. Aquela implica um dever de indemnizar um dano; esta pressupondo também um incumprimento contratual, consubstancia-se na aplica-se de sanções contratuais (cfr. PEDRO COSTA GONÇALVES, Direito …, p. 586).
No caso em apreço está em causa a chamada responsabilidade administrativa contratual pois do que aqui se cuida é da impugnação de um acto administrativo de aplicação de multa contratual à Recorrente com fundamento no seu cumprimento defeituoso de determinadas obrigações emergentes do «Contrato».
Como vimos no ponto (i) deste parecer, a Recorrente, no cumprimento da sua obrigação, utiliza auxiliares, no caso, trabalhadores seus, respondendo pelas suas falhas como se elas fossem suas. Daí que, ainda que, sem conceder, se possa admitir que o trabalhador da Recorrente não observou as suas instruções quanto ao modo de execução do contrato, nem por isso, a mesma deverá ser isentada da responsabilidade perante a Região, não se podendo dizer, por isso, que a infracção do contrato se ficou a dever a razões que lhe não são imputáveis. Vale aqui, reitera-se, a regra segundo a qual se projecta no devedor o comportamento da pessoa que ele utilize no cumprimento da obrigação como se fosse acto seu.
Portanto, também neste nos parece que a pretensão impugnatória deduzida não poderá deixar de soçobrar.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, parece ao Ministério Público que o presente recurso contencioso deve ser julgado improcedente.».
Concordando com a fundamentação constante do Douto Parecer supra reproduzido à qual integralmente aderimos sem reservas, sufragando a solução nele proposta, entendemos que improcedem os fundamentos de recurso quanto aos vícios imputados ao acto impugnado, impondo-se decidir em conformidade.
No que concerne à adesão do Tribunal aos fundamentos constantes do Parecer do Magistrado do Ministério Público veja-se Acórdão do TUI de 14.07.2004 proferido no processo nº 21/2004.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Registe e Notifique.
RAEM, 7 de Dezembro de 2022
Rui Pereira Ribeiro
Fong Man Chong
Ho Wai Neng
Álvaro António Mangas Abreu Dantas
112/2022 REC CONT 1