打印全文
Processo nº 251/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 14 de Dezembro de 2022

ASSUNTO:
- Partilha
- Inventário
- Relação de bens

SUMÁRIO :
- A partilha, mesmo depois de transitar em julgado a sentença homologatória, pode ser emendada por acordo de todos os interessados se tiver havido erro de facto na relação ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes (nº 1 do artº 1024º do CPCM).
- No caso da falta de acordo para emenda, a mesma pode ser pedida em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença (nº 1 do artº 1025º do CPCM).
- Assim, a relação de bens apresentada para efeitos de partilha, ainda que não houver reclamação prevista no artº 985º do CPCM, não é definitiva e inalterável, já que os interessados podem, ao abrigo da al. b) do nº 5 do artº 990º do CPCM, discutir e deliberar quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha e que não foram objecto de decisão judicial em momento anterior.
- Em caso de divergência, compete ao Tribunal a respectiva decisão (cfr. artº 971º e 993º do CPCM).
- A simples data da abertura da conta bancária em 15/02/1988 nunca é suficiente para comprovar que o saldo existente à data do óbito do inventariado em 20/06/2015 é um bem próprio deste último.
- Tendo em conta a al. d) do nº 1 do artº 1558º do CCM prevê expressamente que “são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens ou da participação nos adquiridos”, o Tribunal a quo não pode considerar de forma prematura e sem qualquer fundamento de facto, que uma dívida resultante do exercício do comércio era própria do inventariado e consequentemente como liquidada pela cabeça de casal, esta tem o direito de ser reembolsada na sua totalidade.
O Relator,
Ho Wai Neng







Processo nº 251/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 14 de Dezembro de 2022
Recorrente: A (Requerente)
Objecto do recurso: Despacho que resolveu a impugnação da relação de bens

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por despacho de 02/07/2021, determinou-se a exclusão do activo das verbas nºs 10, 16 e 17 da relação de bens e o aditamento ao passivo das verbas nºs 12, 13, 14 e 15.
Dessa decisão vem recorrer a Requerente A, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
A. Apresentada pela cabeça-de-casal a relação de bens, da qual consta activo e passivo, sendo esta objecto de acordo entre as partes e aceite pelo juiz do processo, a mesma fica estabilizada e, salvo motivo excepcional devidamente comprovado, não deverá ser objecto de alteração;
B. Se o juiz titular do processo de inventário ordena à cabeça-de-casal, por despacho que não foi objecto de reclamação ou recurso, e que por isso mesmo transitou, que “venha aos autos actualizar a relação de bens conforme o já acordado entre os interessados e decidido por este Tribunal durante a fase de reclamação de bens”, acrescentando que a nova relação de bens submetida pela cabeça de casal a fls. 227 a 233 não acatou o já acordado” e decidido, e que “fase de reclamação de bens serve para consolidar estabelecer a relação de bens bem como os seus valores”, ficando os “bens relacionados e não reclamados” consolidados “por não haver oposição das partes”, ordenando à cabeça-de-casal que proceda a nova correcção, não pode depois dar o dito por não dito, contrariar os seus despachos anteriores e ordenar que esse mesmos bens sejam retirados;
C. No regime da comunhão de adquiridos, os bens adquiridos na constância do matrimónio por ambos os cônjuges, com recurso a mútuo bancário que responsabiliza ambos os cônjuges, o qual foi pago ainda em vida do marido com o produto dos seus rendimentos e enquanto o casamento ainda não havia sido dissolvido, constituem bens comuns;
D. Um papel branco, sem qualquer assinatura, apenas com um carimbo com a indicação de que uma conta bancária foi aberta em 15/02/1988, e do qual também não consta o saldo à data da abertura, não poder servir de prova de que o saldo existente nessa conta em 20/06/2015, à data do óbito do inventariado, constituía bem próprio da cabeça-de-casal;
E. Só mediante a conferência dos extractos bancários da referida conta e informação idónea prestada pela instituição bancária é que o Mm.º Juiz a quo podia concluir se a totalidade do saldo dessa conta incluída no activo da relação de bens pela cabeça-de-casal constituía bem próprio ou bem comum do dissolvido casal;
F. O Mm.º Juiz a quo não possuía no processo elementos que lhe permitissem concluir que o saldo da referida conta bancária existente no BXX à data do óbito do falecido constituía bem próprio da cabeça-de-casal;
G. Se o mútuo foi contraído e pago com o produto de bens comuns pelo dissolvido casal, o qual era casado no regime da comunhão de adquiridos, ainda em vida do inventariado, isso significa que à data do falecimento deste não existia qualquer dívida, pelo que não podia o Mm.º Juiz a quo mandar aditar ao passivo uma dívida inexistente;
H. O Mm.º Juiz a quo não podia admitir, por manifestamente contraditório, que bens imóveis adquiridos pelo dissolvido casal, casado no regime da comunhão de adquiridos, e registados em nome de ambos os cônjuges, que considerou inicialmente bens comuns, passem depois a constituir bens próprios do cabeça-de-casal e, ao mesmo tempo, mande inscrever no passivo como dívida comum o valor dos mútuos contraídos para a aquisição e obras de decoração/renovação desses mesmos imóveis; mútuos esses que foram reembolsados ao banco credor, por ambos os cônjuges, vários anos antes do óbito do inventariado;
I. O Mm.º Juiz a quo não podia mandar aditar ao passivo uma verdade decorrente de um pretenso contrato de arrendamento, do qual não foi feita prova, que não tinha sido relacionada nas relações de bens anteriormente apresentadas e cujos recibos emitidos ao longo de cinco anos são todos seguidos, com a mesma letra e excedem o montante dos meses de renda a que supostamente dizem respeito;
J. É da experiência comum, constituindo facto público e notório, que na RAEM um arrendamento de um espaço para estacionamento de um motociclo não custa o mesmo preço de um parque destinado a automóvel ligeiro e que as rendas não subiram desde o início da pandemia da COVID-19;
K. Se é invocada existência de um contrato de arrendamento, do qual não se faz prova, e que a existir obrigaria ao pagamento do imposto de selo respectivo, o mínimo que haveria a fazer era apurar quem era o senhorio e oficiar-se à Direcção dos Serviços de Finanças para apurar se o imposto devido foi pago;
L. Não se pode mandar aditar ao passivo de uma relação de bens uma dívida inexistente, como sendo valor devido à cabeça-de-casal porque contraída pelo casal casado em comunhão de adquiridos e paga ao mutuante em vida do inventariado, vários anos antes do seu falecimento e da dissolução do casal;
M. Devem ser de novo incluídas no activo da relação de bens as verbas 10, 16 e 17, sendo eliminadas, ao mesmo tempo, do passivo, as verbas 13, 14 e 15.
N. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 971.º, 569.º, n.º 1 e 3, 571.º, n.º 1, b) e c), 574.º, 575.º, todos do Código de Processo Civil, bem como os artigos 1588.º alínea d), 1603.º e 1606.º, estes do Código Civil.
*
A Requerida B respondeu à motivação do recurso acima em referência nos termos constante a fls. 33 a 36v dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do mesmo.
*
Foram colhidos os vistos legais.
*
II – Factos
Com base nos elementos existentes nos autos, é assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa:
a) Em 30/07/2019 foi requerida pela Requerente, A, a instauração de inventário para partilha da herança deixada por óbito de C, o qual faleceu em 20/06/2015, no estado de casado, no regime da comunhão de adquiridos, com B, cônjuge sobrevivo e cabeça-de-casal.
b) Em 02/12/2019, a cabeça-de-casal, devidamente patrocinada e representada por advogado constituído, apresentou a relação de bens, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 982.º e seguintes do Código de Processo Civil.
c) A relação de bens constante de fls. 36 a 182 do Proc. nº CV1-19-0057-CIV era composta por activo e passivo, respectivamente, com 22 verbas no activo e 12 no passivo.
d) De entre as verbas que constituíam o activo havia um conjunto de bens (contas bancárias) que em razão do facto de não serem pertença do dissolvido casal, mas de terceiros, foram excluídos a pedido da Requerente, e que foram as verbas nºs 14, 16, 17, 18 e 19.
e) Por despacho de fls. 78 dos presentes autos do Mm.º Juiz a quo foi ordenado à cabeça-de-casal que procedesse à eliminação das verbas do activo nºs 14, 16, 17, 18 e 19 (contas bancárias), como igualmente, ao mesmo tempo, ordenado à Direcção dos Serviços de Finanças que procedesse à avaliação dos imóveis incluídos por aquela na relação de bens, devendo a mesma cabeça-de-casal proceder à actualização da relação de bens nos termos antes ordenados.
f) Em 02/06/2020, a cabeça-de-casal requereu a junção aos autos das certidões do registo predial comprovativas da titularidade das fracções relacionadas sob as verbas n.ºs 21 e 22 do activo.
g) Em 11/11/2020, a cabeça-de-casal, B, por intermédio do seu mandatário, em cumprimento do referido despacho de fls. 78 dos presentes autos, apresentou nova relação de bens.
h) No entanto, essa segunda relação de bens apresentada pela cabeça-de-casal, a fls. 107 a 115 dos presentes autos, procedeu-se à alteração do valor da verba nº 1 do activo, por um lado, e, por outro lado, à eliminação da verba nº 10, também do activo, inicialmente incluída, ao mesmo tempo que foram aditadas as verbas nºs 9 e 10 ao passivo.
i) Notificada da apresentação dessa segunda relação de bens por parte da cabeça-de-casal, a Requerente opôs-se quer à alteração de valor da verba nº 1 do activo, quer à eliminação da verba nº 10 desse mesmo activo, quer, ainda, ao aditamento ao passivo das verbas nºs 9 e 10.
j) Em consequência, o Mm.º Juiz a quo veio então determinar o seguinte (fls. 129 dos presentes autos):
“…Por despacho de fls. 184 foi ordenado por este Tribunal para que a cabeça de casal venha aos autos actualizar a relação de bens conforme o já acordado entre os interessados e o decidido por este Tribunal durante a fase de reclamação de bens.
Porém, a nova relação de bens submetida pela cabeça de casal a fls. 227 a 233 não acatou o já acordado e o já decido, vindo a apresentar uma nova relação de bens alterando o valor dos bens já anteriormente acordados pelos interessados, a qual não merece aceitação por este Tribunal.
Efectivamente, a fase da reclamação da relação de bens serve para consolidar e estabelecer a relação de bens bem como os seus valores. Pois, os bens relacionados e não reclamados ficam consolidados por não haver oposição das partes. Os reclamados estão sujeitos à apreciação do Tribunal que após a qual e não havendo mais oposições, ficam também estabelecidos.
A cabeça de casal não pode alterar, sem acordo de todos os interessados, o valor dos bens relacionados e não reclamados.
Assim, notifique a cabeça de casal para, no prazo de 10 dias, corrigir devidamente a relação de bens conforme com o já acordado entre os interessados e o decidido por este Tribunal…”.
k) A cabeça-de-casal apresentou então nova de relação de bens (a terceira), a fls. 130 a 137 dos presentes autos, donde retirou a verba nº 3 do passivo, ao mesmo tempo que apresentou recurso do referido despacho de fls. 129 dos presentes autos, do qual viria, entretanto, a desistir já depois de apresentadas as respectivas alegações.
l) Na conferência de interessados de 12/05/2021, veio a cabeça-de-casal, pedir novas alterações à relação de bens, alterando de novo as verbas do activo e aditando novas verbas ao passivo.
m) A recorrente opôs-se a essas alterações.
n) O Mm.º Juiz a quo, por despacho de fls. 187 a 188v dos presentes autos, determinou o seguinte:
“第410-440頁:
關於剔除載於財產目錄(第260-266頁)第10項財產﹕
待分割財產管理人認為上述第10項財產─XXX銀行的存款─屬其個人財產,並要求將之剔除。
利害關係人A表示反對,認為屬於待分割財產管理人與被繼承人的夫妻共同財產,應保留在財產目錄中。
根據卷宗第424頁的銀行文件,上述載有XXX銀行的印章,並記載了上述帳戶的開戶日期,顯示為1988年2月15日。
根據卷宗資料,被繼承人與待分割財產管理人於1993年5月29日結婚,婚姻財產制度為取得共同財產制。
根據《民法典》第1603條的規定,夫妻各自對結婚前屬其所有之財產保留所有權及受益權。
鑑於帳戶是在待分割財產管理人婚前開立(見第424頁),因此,帳戶內之結餘應推定是屬於待分割財產管理人的個人財產。
儘管利害關係人A主張該帳戶之結餘應屬於婚後財產,但直至目前卻沒有任何佐證能夠推翻上述推定。
  基於此,法院視該財產為待分割財產管理人的個人財產。
由於財產目錄第10項屬於待分割財產管理人的個人財產,因此,將之從財產目錄中剔除。
*
關於財產目錄第16項不動產“H7”及第17項“BM/Z”停車的1/229份額,(見卷宗第410頁背頁)﹕
從附入卷宗第431-432頁文件,顯示涉及上述不動產貸款支付行為均由待分割財產管理人作出。如是者,被繼承人也應承擔該支出之一半,並作為遺產之債務。
但是,考慮到當中所涉及的問題相當複雜,有關問題不宜在財產清冊程序中確定解決,因此法院決定根據《民事訴訟法典》第987條的規定,讓利害關係人遵循一般途徑解決。
基於此,根據《民事訴訟法典》第987條第2款的規定,將之保留在財產目錄中,但不妨礙利害關係人遵循一般途徑解決當中所涉及的債務關係。
考慮到從卷宗第432頁的文件,顯示待分割財產管理人為取得上述不動產曾進行借貸,因此該金額應視為共同債務。
  為此,應在財產目錄當中增加如下﹕
  第15項─共同債務─樓宇貸款及裝修貸款─澳門幣926,190.00。
*
關於財產目錄債務第12項﹕
從載於卷第426-429頁的文件,顯示寵物主人為被繼承人。鑑於有關開支有文件顯示是用於被繼承人寵物上,因此該開支應視為遺產之債務。
基於此,決定將第12項債務予以保留,金額為澳門幣35,078.00。
*
關於要求增加的停車場停泊費用的開支債務﹕
待分割財產管理人要求增加一項債務─停泊被繼承人機動車輛MI-XX-XX而支付的停車費用。
為此,待分割財產管理人附入了相關的車位停泊費用支付收據證明(第392-415頁)。
利害關係人A對有關金額表示反對,主要認為收據所顯示之金額為能符合實際情況,並要求待分割財產管理人提供租約等其他文件。
法院認為,雙方沒有爭議的是,被繼承人留下了一輛機動車輛,而為妥善保管該機動車輛,必須支付泊位開支。
雙方就泊位支出的數額存在爭議,法院認為最重要的是要審查是否存在該開支,而不是是否存在租約,或租約之訂立是否符合法律規定,因本案為財產清冊案,而非審理私人之間的合同關係。
即使沒有租約文本的提供,也不表示待分割財產管理人沒有因保管該機動車輛而沒有支付開支。
事實上,當前需要審理的是該開支是否合理以及是否因管理遺產而引致之開支。
從正常邏輯思維考慮,擁有車輛者應該為車輛尋找合法泊位,而尋找合法泊位是有開支的。
本院認為一個車位於2018年的每月租金為1700以及於2020年的每月租金為2000屬於正常價值。鑑於卷宗內有文件證明開支(第392-415頁),有關文件充分顯示了開支內容,因此在無須再採取其他措施之情況下,足以認定上述開支的存在。
基於此,確認待分割財產管理人為管理該車輛所花費之開支,並批准在財產目錄中增加如下﹕
  第13項債務─MI-XXXX機動車輛的泊位費用─澳門幣116,600.00
*
關於增替代被繼承人償還中小企貸款的債務﹕
待分割財產管理人要求在債務中增加一項債務,金額為澳門幣487,366.00。
根據載於卷宗第430頁的文件,顯示待分割財產管理人為被繼承人的貸款,向財政局支付了澳門幣487,366.00。
由於有文件顯示上述開支的存在,而該開支亦清楚顯示是為被繼承人生前所擁有之公司而進行還款,因此,應將該開支視為債務。
  基於此,批准在財產目錄中增加如下﹕
  第14項債務─支付被繼承人稅務執行之債務─澳門幣487,366.00。
*
  著令於財產目錄原處作出修改。
作出通知及必要措施。
…”.
*
III – Fundamentação
Na óptica da Recorrente, o despacho recorrido violou a autoridade do caso julgado, bem como padece do vício do erro de julgamento.
Quid iuris?
Começamos pela questão do caso julgado.
Por despacho de 05/01/2021, entendeu o Juiz a quo que “… a fase da reclamação da relação de bens serve para consolidar e estabelecer a relação de bens bem como os seus valores. Pois, os bens relacionados e não reclamados ficam consolidados por não haver oposição das partes. Os reclamados estão sujeitos à apreciação do Tribunal que após a qual e não havendo mais oposições, ficam também estabelecidos.
   A cabeça de casal não pode alterar, sem acordo de todos os interessados, o valor dos bens relacionados e não reclamados.
   …”.
Em consequência, mandou notificar “a cabeça de casal para, no prazo de 10 dias, corrigir devidamente a relação de bens conforme com o já acordado entre os interessados e o decidido por este Tribunal”.
Uma vez proferido o tal despacho, poderá o Tribunal a quo, a pedido de um dos interessados do inventário e face aos elementos existentes nos autos, alterar a relação de bens, quer sobre os bens nela relacionados, quer sobre o respectivo valor, que não foram objecto de reclamação prevista no artº 985º do CPCM?
Salvo o devido respeito, a resposta para nós, não deixará de ser afirmativa.
Vejamos.
Dispõe os nºs 4 e 5 do artº 990º do CPCM que:
Artigo 990.º
(Assuntos a submeter à conferência de interessados)
1. …
2. …
3. …
4.  À conferência compete ainda deliberar sobre a aprovação do passivo e forma de cumprimento dos legados e demais encargos da herança.
5. Na falta do acordo previsto nos n.os 1 e 2, incumbe ainda à conferência deliberar sobre:
a) As reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados;
b) Quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha.
6. ….
Como se vê, o legislador é claro no sentido de que compete à conferência de interessados do inventário deliberar sobre a aprovação do passivo e a respectiva forma de cumprimento.
Além disso, pode ainda deliberar sobre as reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados, bem como quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha, que não foram objecto de decisão judicial em momento anterior.
Por outro lado, no caso da não aprovação de alguma dívida por parte dos interessados, o artº 993º do mesmo Código confere o poder ao juiz para conhecer a sua existência ou não.
Por fim, salientamos que a partilha, mesmo depois de transitar em julgado a sentença homologatória, pode ser emendada por acordo de todos os interessados se tiver havido erro de facto na relação ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes (nº 1 do artº 1024º do CPCM).
No caso da falta de acordo para emenda, a mesma pode ser pedida em acção proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento seja posterior à sentença (nº 1 do artº 1025º do CPCM).
Tudo isto evidencia que a relação de bens apresentada para efeitos de partilha, ainda que não houver reclamação prevista no artº 985º do CPCM, não é definitiva e inalterável, já que os interessados podem, ao abrigo da al. b) do nº 5 do artº 990º do CPCM, discutir e deliberar quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha e que não foram objecto de decisão judicial em momento anterior.
Em caso de divergência, compete ao Tribunal a respectiva decisão (cfr. artº 971º e 993º do CPCM).
No caso dos autos, em concreto, a decisão recorrida determinou à eliminação da verba do activo nº 10 (conta bancária do BXX), que inicialmente foi relacionado para efeitos de partilha, e ao aditamento ao passivo das verbas nºs 12 (despesas com os animais de estimação do inventariado), 13 (despesas com o estacionamento do veículo motorizado MI-XXXX), 14 (dívida fiscal da Empresa X Trade, da titularidade do inventariado e paga pela cabeça de casal) e 15 (reembolso do empréstimo para aquisição da fracção autónoma “H7” e do parque de estacionamento e despesas relativas à obras da decoração da “H7”).
Esta decisão recorrida, a nosso ver e tendo em conta o supra exposto, não violou o caso julgado do despacho de 05/01/2021 supra transcrito, visto que as questões nela decididas nunca foram objecto da apreciação do despacho de 05/01/2021.
Pois, mesmo que a cabeça de casal, ora Requerida, apresentasse uma relação de bens em conformidade com o ordenado no despacho de 05/01/2021, nada lhe impede suscitar as mesmas questões na conferência de interessado prevista no artº 990º do CPCM, ou antes dela.
Resolvida a questão do caso julgado, vamos analisar se existir erro de julgamento na decisão recorrida.
1. Da eliminação da verba nº 10 do activo (conta bancária do BXX)
Com fundamento simplesmente na data da abertura da conta bancária, a qual era antes da data do casamento, o Tribunal determinou que o saldo existente nesta conta é bem próprio da cabeça de casal.
Trata-se duma decisão precipitada e sem elementos probatórios suficientes para o efeito.
Pois a simples data da abertura da conta bancária em 15/02/1988 nunca é suficiente para comprovar que o saldo existente à data do óbito do inventariado em 20/06/2015 é um bem próprio deste último.
Tem razão a Requerente no sentido de que “Só mediante a conferência dos extractos bancários da referida conta e informação idónea prestada pela instituição bancária é que o Mm.º Juiz a quo podia concluir se a totalidade do saldo dessa conta incluída no activo da relação de bens pela cabeça-de-casal constituía bem próprio ou bem comum do dissolvido casal”.
Assim, é de revogar a decisão recorrida nesta parte.
Uma vez que não temos elementos necessários para efeitos de substituição prevista no artº 630º do CPCM, a questão em causa é decidida de novo pelo Tribunal a quo, após de colher os elementos necessários.
2. Do aditamento ao passivo das verbas nºs 12 a 15.
2.1 Verba nº 13 - despesas com o estacionamento do veículo motorizado MI-XXXX
Com base nos recibos juntos aos autos, considerou o Tribunal a quo verificada a dívida em causa no montante de MOP$116.600,00, por entender que se trata duma despesa indispensável para o estacionamento do veículo MI-XXXX e os valores da renda mensal do parque são razoáveis e normais.
Salvo o devido respeito, achamos que é uma decisão precipitada e sem elementos probatórios suficientes para o efeito.
Em primeiro lugar, o veículo MI-XXXX é um veículo motorizado, serão realmente razoáveis e normais as rendas mensais do parque de estacionamento indicadas pela cabeça de casal (MOP$1.300,00 em 2015, MOP$1.500,00 em 2016 e 2017, MOP$1.700,00 em 2018 e 2019 e MOP$2.000,00 em 2020 e 2021)?
De qualquer forma, sem saber o local concreto do parque de estacionamento, como é que podemos avaliar que as rendas são normais e razoáveis?
Por outro lado, dos recibos juntos aos autos não constam o nome do senhorio e todos datados com o primeiro dia do mês, apresentando todos com o mesmo tipo de letra, com a numeração toda seguida, o que não aparece ter sido emitido separadamente ao longo dos 5 anos.
Face às dúvidas supra referidas, não achamos que os recibos juntos aos autos são suficientes para comprovar a existência da dívida.
Assim, é de revogar a decisão recorrida nesta parte, e determinar que a questão em causa seja decidida de novo pelo Tribunal a quo, após de colher os elementos necessários.
2.2 Verba nº 14 - dívida fiscal da Empresa X Trade, da titularidade do inventariado e paga pela cabeça de casal
Resulta dos autos (documento de fls. 178) de forma inequívoca que a dívida fiscal em causa no montante total de MOP$487.366,00 foi liquidada pela cabeça de casal em 24/08/2020.
Assim, a sua inclusão no passivo da relação de bens não suscita grandes dúvidas.
No entanto e para o efeito, o Tribunal a quo tem de apurar e decidir a natureza desta dívida em conformidade com os factos apurados, uma vez que existe divergência entre a ora Requerente e a ora Requerida.
Não pode considerar de forma prematura e sem qualquer fundamento de facto, que a dívida em causa era própria do inventariado e consequentemente como liquidada pela cabeça de casal, esta tem o direito de ser reembolsada na sua totalidade.
Pois, não podemos esquecer que a al. d) do nº 1 do artº 1558º do CCM prevê expressamente que “são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens ou da participação nos adquiridos”.
Só depois de decidir a natureza da dívida em referência é que pode determinar o montante concreto da dívida, pois se for uma dívida comum dos cônjuges, a cabeça de casal só tem direito a ser reembolsada a metade da quantia paga.
Nesta conformidade, é de revogar a decisão recorrida que considerou a dívida fiscal liquidada pela cabeça de casal no montante de MOP$487.366,00 como dívida da responsabilidade própria do inventariado.
2.3 Verba nº 15 - reembolso do empréstimo para aquisição da fracção autónoma “H7” e do parque de estacionamento e despesas relativas às obras da decoração da “H7”
Não podemos deixar de reconhecer razão à Requerente no sentido de que “não se percebendo de todo como é que em relação à natureza de bens comuns das verbas 16 e 17 do activo, as partes tenham de ser remetidas para os meios comuns, porque se entendeu ser muito complexa a matéria para ser discutida no âmbito do processo de inventário, mas ao mesmo tempo ao Mmº Juiz a quo seja fácil concluir que a dívida resultante da aquisição desses imóveis e da decoração/renovação da habitação seja comum, de tal forma que a mande de imediato aditar ao passivo”.
Por outro lado, também tem razão a Requerente ao afirmar que a própria cabeça de casal, ora Requerida, nunca pediu que fosse aditada essa dívida ao passivo.
Pois, o que ela pediu foi de considerar os imóveis em causa como bens próprios dela e a alegação da referida dívida (que já se encontra integralmente paga) serve simplesmente para comprovar a natureza própria dos bens imóveis em causa.
Pelo exposto, não deixará de revogar a decisão recorrida que determinou o aditamento em causa.
Um nota particular para o pedido da ora Requerente formulado em sede do presente recurso no sentido da inclusão na relação de bens as verbas nºs 16 e 17 do activo, as quais, no seu entender, foram eliminadas pelo despacho recorrido.
Ora, o despacho recorrido não determinou a eliminação das referidas verbas no activo, bem pelo contrário, mandou, ao abrigo do nº 2 do artº 987º do CPC, as mesmas permanecem relacionados na relação de bens, não obstante ter determinado remeter os interessados para os meios comuns quanto à natureza dos bens imóveis em causa.
Aliás, trata-se duma decisão repetida, uma vez que já decidiu no mesmo sentido na conferência de 12/05/2021 (fls. 165 dos autos).
Tudo visto e ponderado, resta decidir.
*
IV– Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conceder provimento parcial ao recurso interposto, revogando o despacho recorrido nos termos acima consignados.
*
Custas do recurso pelas Requerente e Requerida, na proporção de 1/8 e 7/8, respectivamente.
Notifique e registe.
*
RAEM, aos 14 de Dezembro de 2022.
Ho Wai Neng
Tong Hio Fong
Rui Pereira Ribeiro



1
251/2022