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Processo nº 493/2022
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)

Data do Acórdão: 9 de Fevereiro de 2023

ASSUNTO:
- Legitimidade passiva dos sujeitos processuais

SUMÁRIO:
- Configurando o Autor a acção com base numa relação material controvertida na qual os Réus são titulares de determinados direitos reais inscritos no registo predial e cuja titularidade não negam, são estes partes legítima para a acção;
- A legitimidade adjectiva dos Réus não se confunde com a responsabilidade substantiva de que depende o sucesso da procedência do pedido.


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Rui Pereira Ribeiro




Processo nº 493/2022
(Autos de Recurso Jurisdicional em Matéria Administrativa)

Data: 9 de Fevereiro de 2023
Recorrente: A
Recorridos: Região Administrativa Especial de Macau e
Instituto para os Assuntos Municipais
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO

A, com os demais sinais dos autos,
veio instaurar acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual contra,
Região Administrativa Especial de Macau e
Instituto para os Assuntos Municipais, ambos, também, com os demais sinais dos autos,
Pedindo que sejam os Réus condenados a pagar solidariamente ao Autor os seguintes:
   a) A pagarem ao Autor uma indemnização no valor de MOP1.500.000,00 (um milhão e quinhentas mil patacas) por violação dos direitos do Autor e a título de danos morais, conforme acima devidamente explicitado;
   b) A pagarem ao Autor a quantia de MOP1.520,00 (mil quinhentas e vinte patacas) em que aquele incorreu para realizar notificação judicial avulsa antes da interposição da presente acção;
   c) A reporem a janela destruída no Edifício do XX, nos termos do projecto aprovado pela 1.a Ré, ou que venham a ser licenciados pela DSSOPT depois de efectuada a consulta prévia ao Autor;
   d) A procederem à identificação do autor da obra de arquitectura em local visível do edifício, nos termos previstos na lei, depois da sua reposição nos termos da alínea anterior;
   e) Tudo com as legais consequências em matéria de custas e procuradoria;
Nas suas contestações vieram ambos os Réus a suscitar a excepção dilatória da sua ilegitimidade.
Proferida sentença, foi julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade dos Réus com a consequente absolvição da instância dos mesmos.
Não se conformando com a decisão proferida veio o Autor recorrer da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
A) A RAEM, l.ª Ré e aqui recorrida, é a entidade que prossegue em exclusivo a actividade de ordenamento urbano, incluindo a regulação da actividade da construção urbana, através da DSSOP, seu órgão funcional que tem as atribuições de “licenciar e fiscalizar todas as edificações urbanas, designadamente particulares, municipais ou de entidades autónomas, nos termos da legislação aplicável”, assim como “promover a realização de obras de construção, conservação e reparação de edifícios públicos, ou parte de edifícios públicos, (...), nos casos em que tal lhe estiver legalmente cometido” (cfr. artigo 2.º, alínea j) do Decreto-Lei n.º 29/97/M de 7 de Julho);
B) A identificação do autor de obra de arquitectura é obrigatória, deve constar por forma bem legível na própria construção, depois de esta concluída, conforme resulta do n.º 2 do artigo 142.º do RDADC, sendo que o cumprimento de tal obrigação jurídica é da responsabilidade da l.ª Ré e do 2.º Réu;
C) A RAEM e o IAM, réus e recorridos, não podem invocar o desconhecimento da lei para se furtarem ao cumprimento das suas obrigações legais;
D) A APIM é um mero comodatário do imóvel, ocupando-o ao abrigo de um Protocolo celebrado com uma entidade integrada na l.ª Ré, não sendo parte na relação material controvertida estabelecida entre o Autor, arquitecto, e os titulares do domínio útil e proprietários do imóvel que com aquele contrataram o projecto e a realização das obras aprovadas pela DSSOPT;
E) É o proprietário do imóvel, constante do registo predial, que responde perante terceiros pelos actos cometidos pelo comodatário e seus agentes, à revelia das leis e regulamentos e do contrato (Protocolo) que rege a ocupação desse mesmo imóvel, sem prejuízo do direito de denúncia ou de rescisão unilateral pelos actos ilegais cometidos pelo comodatário e seus agentes e do direito regresso que contra estes possa vir a exercer;
F) As intervenções ocorridas no edifício onde funciona o XX só foram concretizadas pela APIM, à revelia das leis e regulamentos, devido à falta de fiscalização, má gestão, ignorância, incompetência e imperícia dos órgãos funcionais da l.ª Ré e do 2.º Réu, que tinham a obrigação de prestando a atenção necessária garantir o cumprimento da lei, a protecção da obra arquitectónica e o respeito pelos direitos de autor de natureza patrimonial e pessoal;
G) A RAEM e as pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante os lesados pelos actos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes no exercício dessas funções e por causa desse exercício, podendo a ilicitude resultar da prática de um acto positivo ou por omissão da prática do acto devido;
H) A APIM, enquanto comodatária do XX, responde perante a RAEM pelos danos que causar a pessoas e bens no exercício da sua actividade;
I) O dono da obra é, nos termos do art.º 144.º, n.º 2, do DL 43/99/M, aquele que a construiu e executou de acordo com o projecto e que nela pode introduzir as alterações que desejar;
J) O comodatário que ocupa e usa um edifício que não lhe pertence, em terreno da RAEM, ao abrigo de um Protocolo celebrado com a DSEJ, e sujeito a um conjunto rigoroso de obrigações, por si livremente assumidas no âmbito desse acordo assinado com a entidade pública que o gere, incluindo a de estar impedido de proceder à realização de quaisquer obras nas instalações cedidas sem conhecimento e prévio acordo da DSEJ, para além das previstas de simples manutenção do que existe, não é pelo facto de resolver fazer obras ilegais, à revelia do titular do edifício, que esse comodatário deixa de o ser e passa a estar investido na qualidade jurídica de dono da obra;
K) Nos termos da cláusula 4.a do Protocolo que assinou com o Território de Macau, ao qual a RAEM sucedeu em matéria de direitos e obrigações, a APIM responde perante o primeiro pelos actos e omissões daqueles que, por seu mandato, construírem obras ou fornecerem e montarem materiais no edifício destinado ao funcionamento da instituição educativa;
L) Ao comodatário, ainda que com o domínio de facto sobre o imóvel, está vedada a livre introdução na obra arquitectónica de quaisquer alterações, as quais estão por lei reservadas ao comodante proprietário, desde que preenchidos os pressupostos legais;
M) O simples facto da APIM ser uma comodatária do imóvel não faz sobre ela recair as obrigações do proprietário, nem a investe numa posição perante terceiros que é incompatível com as obrigações que assumiu nos termos do Protocolo assinado com a RAEM quanto à sua utilização;
N) O titular do domínio útil do prédio urbano onde foi construído o edifício actual do XX é parte legítima numa acção em que se discute a natureza ilegal das obras introduzidas pelo comodatário desse mesmo edifício e a responsabilidade civil extracontratual do dono da obra;
O) Se Administração Tributária reconhece como titular do domínio útil de um imóvel e seu proprietário uma pessoa colectiva de direito público (IAM) e esta se sente na obrigação de justificar as acções ilegais do comodatário, chegando a propor a recuperação para a sua posse desse mesmo imóvel e a sua permuta por um outro também da sua pertença (IAM), já depois de se ter queixado da realização de obras para as quais não lhe foi dado conhecimento, nem sequer informal, é porque se reconhece com legitimidade para responder pelos actos ilegais do comodatário que fazendo obras no imóvel viola os direitos de terceiro;
P) Incorre em excesso de pronúncia, sendo por isso mesmo nula, a decisão judicial que apreciando o preenchimento do pressuposto processual da legitimidade antecipa um juízo sobre o fundo da questão, isto é, sobre a obrigação de indemnização;
Q) A decisão recorrida violou o disposto no art.º 117.º do CPAC e, ex vi art.º 1.º do CPAC, e nos artigos 58.º e 571.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

Contra-alegando veio a 1ª Ré (RAEM) apresentar as seguintes conclusões:
1. Quanto à questão do excesso de pronúncia apresentado pelo recorrente
1.1 Nos termos do art.º 414.º do CPC, em conjugação com as jurisprudência e teoria académica do texto, o Tribunal apreciava a excepção dilatória, absolutamente não foi limitada à pretensão da ré, apenas no caso descobriu-se as circunstâncias suficientes, nomeadamente com base na descrição da petição inicial do Autor e fundamentos dos factos e de direito pretendidos, o Tribunal pode completamente e também necessita de apreciar, por sua iniciativa, excepção dilatória das questões materiais do caso, pelo que garante eventual utilidade da decisão final.
1.2 De acordo com as alegações do recurso recorrente, o recorrente, de facto, apenas discordou do entendimento da decisão recorrida sobre a falta de legitimidade passiva do recurso e a compreensão das circunstâncias factuais relevantes, não foi uma acusação de que a decisão recorrida se baseasse em factos não descritos em qualquer alegação para concluir que o recorrente não tinha a legitimidade passiva do recurso, o julgamento da legitimidade do processo é da competência oficiosa do Tribunal, a decisão recorrida indeferiu a acção intentada pelo recorrente com o motivo de que o recorrente não tinha a legitimidade passiva, pois não constituíam um vício de nulidade do excesso de pronúncia ao abrigo do art.º 571.º, n.º 1, al. d) do CPC.
2. Quanto à questão da legitimidade passiva da recorrida
2.1 De acordo com o art.º 58.º do CPC, em conjugação com a jurisprudência e teoria académica indicadas no texto, é necessário observar o objecto da acção tal como delineado na petição inicial do autor, a fim de discutir a legitimidade da acção entre o autor e a ré, isto é, uma ligação entre a causa da acção descrita e os pedidos formulados pelo autor (objecto da acção) e ambas as partes desta acção; ou, mais especificamente, o fundamento jurídico em que os pedidos formulados pelo requerente se baseia e a relação jurídica de direitos e obrigações entre os sujeitos descritos nesse fundamento jurídico, examinando assim se o recorrente e a recorrida, tal como alegado na petição inicial, correspondem ao autor e à ré que têm direito a ser sujeitos activos e passivos na relação jurídica relevante.
2.2 O recorrente requereu o pedido de indemnização por danos com base na disposição do art.º 144.º, n.º 2 do D.L. n.º 43/99/M, e os factos descritos e acusados pelo recorrente, principalmente, em torno da qualidade do dono da obra do novo edifício do XX onde se encontrava a janela em questão, e que o recorrente era obrigado a pagar uma indemnização pelo facto de a APIM não ter consultado previamente o recorrente antes de realizar os trabalhos de reparação que alteraram o design exterior da janela em questão, e que se considera que o departamento do recorrente não tinha cumprido as suas funções de fiscalização nos termos do art.º 7.º do D.L. n.º 79/85/M e do art.º 2.º do D.L. n.º 29/97/M ao tomar medidas para impedir a alteração do design exterior da janela em questão e para realizar obras de restauro.
2.3 Conforme com o conteúdo do art.º 144.º, n.º e do D.L. n.º 43/99/M, a mera autoria não é suficiente para se qualificar como sujeito de responsabilidade, o que importante é a realização efectiva do facto ilícito disposto nos artigos, isto é, a pessoa que realiza efectivamente o trabalho das obras de modificação do edifício sem consulta prévia ao autor.
2.4 O recorrente sabia claramente que, a realização da obra de modificação da janela em causa era decidida pela APIM, a recorrida, além de fornecer à APIM os apoios de obras, não participou a obra relevante, nem exigiu ao APIM para realizar a respectiva obra. Ainda mais, o facto é que antes de solicitar o apoio financeiro, a APIM indicou claramente que iria solicitar à DSSOPT uma autorização de licença de obra e a manutenção o design original da janela em causa, mas após a aprovação do apoio financeiro, a APIM não só não solicitou a autorização de licença de obra, mas ainda alterou o aspecto do exterior da janela em questão sem obter qualquer autorização, e a recorrida não sabia nada sobre a obra de alterações realizada pela APIM.
2.5 Que existe apenas uma relação contratual de empréstimo gratuito do XX entre a recorrida e a APIM, e a APIM não é a representação legal ou voluntária da recorrida em relação ao projecto, nem contratou ou delegou à APIM a utilização do XX para actividades educativas privadas, não existe fundamento legal para imputar a recorrida por quaisquer factos ilícitos ou responsabilidades riscos no que respeita a factos prejudiciais feitos pela APIM a terceiros.
2.6 A recorrida e a APIM estabeleceram uma relação contratual de empréstimo e criaram direitos e obrigações mútuas no acordo, o que nunca excluiu a responsabilidade da APIM por danos causados a terceiros, pata tal, foi estabelecido claramente na Cláusula 4.ª, al. b e al. c) do acordo indicado na contestação e no texto.
2.7 Quanto à supervisão mencionada pelo recorrente, resulta claramente das disposições citadas pelo recorrente que os requisitos relevantes estão claramente relacionados com a manutenção e segurança estrutural do edifício pelo recorrente. Mesmo que esteja envolvido qualquer interesse privado, é no máximo o interesse do proprietário do edifício e a segurança pessoal do público social, e não tem absolutamente nada a ver com o projectista do edifício e os direitos de autor conexos, nem com a questão do art.º 144.º, n.º 2 do D.L. n.º 43/99/M.
2.8 Quanto à acusação de não tomar medidas impeditivos, a recorrida não tinha conhecimento prévio dos trabalhos de alteração realizados pela APIM e da violação o conteúdo de pedido, o recorrente descobriu a alteração do exterior da janela em questão em 12 de Dezembro de 2017, e só informou o recorrente em 15 de Dezembro de 2017, e os factos ilícitos relevantes foram completados nessa altura. Mais ainda, se tomou ou não as medidas impeditivos, de facto, nada tem a ver com os factos ilícitos dispostos no art.º 144.º, n.º 2 do D.L. n.º 43/99/M, , nem com o já mencionado estatuto relativo à função de supervisão que o recorrente alegou que a recorrida violou, nem com o conteúdo dos direitos que o recorrente alegou terem sido violados.
2.9 Quanto à alegação de que não foram realizados quaisquer trabalhos de reparação, de acordo com o art.º 144.º, n.º 2 do D.L. n.º 43/99/M, o autor do projecto tinha apenas o direito de ser consultado previamente, não o direito de impedir que o edifício fosse modificado, e portanto o direito de ter o edifício restaurado ao seu estado original.
2.10 O recorrente deve também salientar que a recorrida iniciou efectivamente um processo de reparação e sanção contra a APIM por obras ilegais, mas apenas com o objectivo de analisar se a APIM tinha realizado as obras de manutenção relevantes sem solicitar uma licença de obras. A questão de saber se o exterior da janela em questão foi alterado sem consulta prévia ao recorrente não é de todo relevante, porque mesmo sem essa consulta prévia, não é suficiente para tornar as obras em questão ilegais.
2.11 Para além dos fundamentos manifestamente infundados acima referidos, tal como referido na decisão recorrida, baseou-se unicamente no dono da obra (eventual) da recorrida, APIM, ignorar completamente o facto de que a coisa objectiva que constitui realmente um facto ilegal foi feita pela APIM e não pela recorrida é obviamente desviar o objecto da responsabilidade de indemnização, tal como expressamente previsto no art.º 144.º, n.º 2 do DL 43/99/M, para a recorrida.
2.12 A recorrida não se qualifica como sujeito de uma obrigação de indemnização, ou seja, a recorrida não tinha a legitimidade passiva, e não existe a situação em que havia erro na decisão recorrida a este respeito.
2.13 Simultaneamente, como conteúdo de pedido de reparação de danos, visto que a APIM é também responsável pelos trabalhos de reparação contingente, uma vez que os factos ilícitos relevantes foram cometidos pela APIM, ou seja, apenas a APIM tem legitimidade passiva para este fim (embora o recorrente não tenha direito a fazer tal pedido no direito substantivo), e o pedido da al. c) da petição inicial é rejeitada por falta de legitimidade passiva da recorrida; no pedido da al. d) da petição inicial relativa à identificação do autor, depois de o recorrente ter condicionado o pedido à realização dos trabalhos de reparação solicitados na al. c), é natural que o pedido da al. d) seja igualmente indeferido, uma vez que o pedido da al. c) deve ser indeferido; Finalmente, no que respeita ao pedido da al. b), trata-se apenas de uma questão de custos destes autos, não é necessário tratar noutra decisão.
3. Pelo exposto, a decisão recorrida decidiu legal e razoavelmente sobre o pedido do recorrente na petição inicial e não sofreu quaisquer vícios contrários à lei.
   
Contra-alegando veio o 2º Réu (IAM) apresentar as seguintes conclusões:
I. Inconformado com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, através da qual foi o ora Recorrido, bem assim como a Ré R.A.E.M., absolvido da instância por ter aquele douto Tribunal julgado procedente a excepção dilatória de ilegitimidade, veio o Recorrente dela interpor o presente Recurso.
II. O Recorrente não alegou na p.i. factos que consubstanciam a prática pelo Recorrido de condutas violadoras do direito vigente da RAEM.
III. O alegado pelo Recorrente nos artigos 93.º, 98.º, 122.º, 123.º, 132.º, 135.º, 137.º e 139º da p.i. são meras conclusões, matéria de direito e falsas alegações, facilmente contrariadas pelos documentos juntos aos autos, e
IV. Tendo em conta a norma onde o Recorrente faz assentar o direito que reclama nos presentes autos, ou seja o artigo 144.º, n.º 2 do DL 43/99/M, forçoso se torna concluir nos exactos termos que concluiu o douto Tribunal a quo, ou seja, o Recorrente apenas imputa à ora Recorrida obrigações decorrentes da posição jurídica que considera que a mesma ocupa em relação ao terreno e ao edifício nele instalado.
V. A concreta descrição e narração dos factos que possam constituir a conduta violadora do direito do Recorrente por parte do ora Recorrido, como seja do direito a ser previamente consultado antes da introdução de alteração em obra da sua autoria, deveria obedecer ao Princípio Dispositivo, nos termos do disposto no art.º 5.º, do CPC, ex.vi. art.º 1.º do CPAC.
Por outro lado
VI. A invocação pelo Recorrente das normas e obrigações gerais alegadamente violadas pelo ora Recorrido, foi feita de forma manifestamente genérica e indeterminada, tal como “que os moldes de actuação do 2.º Réu vão ao arrepia de normas de interesse público no que se prende com a aptidão dos trabalhos de manutenção das edificação em geral, e em particular da que se inscrevem no domínio da RAEM” (Ponto VII do Recurso, e art.º 132.º da p.i.); e “que, com tal actuação omissiva, foi violado de forma grosseira o direito fundamental de salvaguarda da propriedade intelectual (...)” (Ponto VII do Recurso, e art.º 133.º da p.i.) (destacados nossos), não se invocando, em concreto, as normas e estipulações violadas, nem discutindo o pressuposto da intenção normativa de protecção do interesse particular de tais normas e estipulações.
VII. O Recorrente, fundado no referido art.º 144.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 43/99/M, de 16 de Agosto de 1999, descreveu uma relação material controvertida em assenta no facto de a APIM ter introduzido alterações no imóvel em causa, após a conclusão da obra, sem que o Recorrente fosse anteriormente consultado.
VIII. Para além de não descrever e referir os factos da conduta violadora de direito do ora Recorrido, o Recorrente nem logrou alegar a ilicitude do acto do ora Recorrido, uma vez que, para fundar a presente acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual, em termos verdadeiramente genéricos, é necessário que a norma violada (?) revele a intenção normativa de protecção do interesse material do particular, não bastando uma protecção meramente reflexa ou ocasional.
IX. Como é sabido, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, nos termos do disposto no art.º 58.º do CPC.
X. Perante isto, o Recorrente procura desvirtuar, de forma elaborada e extensa, o referido art.º 144.º, n.º 2, no sentido de que o “dono de obra” devesse ser quem, com autonomia e livre vontade, pode aplicar as alterações que deseje na obra, e, consequentemente, no entendimento do Recorrente, por o ora Recorrido ser o titular do domínio útil do imóvel, é quem tem a autonomia para a decisão da alteração ou modificação da obra, daí ser o dono de obra.
XI. O Dono da obra a que alude do artigo 144.º, n.º 2 do citado diploma legal terá necessariamente que ser quem está na disposição do imóvel e depois da obra concluída, quem ordena e introduz as obras de alteração, e o ora Recorrido nunca esteve nessa posição, nem sequer aquando da construção do Edifício ora em causa, nunca tendo entrado em nenhuma relação contratual, legal ou de qualquer outra natureza com o ora Recorrente.
XII. Não foi o ora Recorrido quem celebrou, nem de forma alguma participou, na empreitada da obra de ampliação do Edifício em causa, não tendo em relação à mesma assumido qualquer papel.
XIII. O facto de constar nos registos como titular do domínio útil do terreno não lhe confere a posição de dona da obra, como incompreensivelmente o Recorrente insiste!
XIV. No que se toca ao documento n.º 12 junto à contestação do ora Recorrido, a situação já foi bem esclarecida no art.º 26.º da mesma peça e o teor do documento é também claro: Em 1997 o então Leal Senado, tendo-se apercebido da realização das obras de ampliação em causa, e tendo em conta que há muito não exercia, de facto, qualquer poder sobre o terreno e imóvel onde se encontra instalado o XX, requereu junto da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes a reversão do terreno concessionado.
XV. Quanto ao documento n.º 29 junto à petição inicial, tal como também devidamente esclarecido em sede de Contestação, o ora Recorrido, em cumprimento dos seus deveres de colaboração para com os particulares, procurou saber junto do XX que obras haviam sido levadas a cabo recentemente, e a Direcção do XX, ou seja, a APIM, prestou ao ora Réu as exactas informações que se fez constar do ofício junto como documento n.º 29 da petição inicial, e que diziam respeito a obras de manutenção e melhoramento realizadas no XX antes do início do ano lectivo de 2020/2021, (Setembro de 2020), ou seja, muito depois das intervenções de que alegadamente nascem os direitos que o Autor vem reclamar nos presentes autos.
XVI. É assim manifestamente abusivo que o Recorrente pretenda retirar destes documentos o reconhecimento por parte do ora Recorrido de que é dono da obra em causa nos presentes autos e parte legítima para a presente acção,
XVII. O Recorrente identifica de forma directa, clara e indubitável o agente que terá cometido o acto violador do seu alegado direito, mas insiste em querer eximi-lo das responsabilidades que tal alegada violação o faz incorrer, insistindo em querer responsabilizar o ora Recorrido, utilizando argumentos manifestamente incompreensíveis.
XVIII. A hipótese de o Dono da obra não coincidir com o titular do solo ou da superfície resulta claramente do disposto no artigo 1138.º, n.º 3 do Código Civil, se interpretado a contrário.
XIX. A expressão “dono da obra” tem de ser entendida “na interpretação das disposições legais […] no seu significado técnico e não vulgar […] pois, como resulta expressamente do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 1212.º, é simplesmente um dos sujeitos da relação jurídica” (Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4ª edição, pág. 867 em anotação ao artigo 1207.º do Código Civil).
XX. Assim sendo, bem andou o douto Tribunal a quo ao julgar o ora Recorrido parte ilegítima na presente acção e ao absolvê-la da instância, decisão que o Recorrente, ainda que à cautela, até aceita, conforme deixou patente no ponto LV das suas Alegações.

Foram colhidos os vistos.

Cumpre, assim, apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Do Direito
  
É do seguinte teor a decisão recorrida:
   «(…)
   Na contestação, suscitou o 2.º Réu a excepção dilatória da ilegitimidade (conforme se alega nos artigos 1.º a 52.º da contestação apresentada pelo mesmo), alegando que o mesmo é um mero titular do domínio útil do terreno em que se situa o edifício do XX, o qual ficou, a partir da década de 50, sob gestão da Administração do Território assumida pela então Repartição de Educação e depois pela então Direcção dos Serviços de Educação e Cultura, e que foi concedido após a obra da ampliação concluída em 1998, à Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (“APIM”), passando assim a funcionar na tutela desta.
   E sendo assim, o 2.º Réu não tinha mínima intervenção nos factos descritos que constituem fonte de obrigação de indemnizar, sendo alheio às realizadas obras de modificação das janelas na parede exterior do edifício donde emerge a presente acção judicial, nem estando encarregado de impedir, por via legal ou contratual, a ocorrência das ditas modificações.
   Por sua vez, a 1.ª Ré alegou também estar alheia à eventual prática do acto ilícito pela APIM na utilização do edifício em causa, a quem competia decidir se e como procederia à execução da obra de modificação desejada, não tendo nem a DSSOPT (ou seja “Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes”) nem a então DSEJ (ou seja “Direcção dos Serviços de Educação e Juventude”) nenhuma viabilidade legal para intervir e a fiscalizar (conforme se alega nos artigos 240.º a 263.º e 275.º da contestação apresentada pela 1.a Ré). O que lhe faltava seria apenas concluir que a 1.ª Ré também não deveria ter sido demandada, por causa da ilegitimidade da sua parte.
   O Autor, através das duas réplicas oferecidas, exerceu o contraditório, opondo-se à dita excepção invocada pelo 2.º Réu (conforme se alega nos artigos 2.º a 45.º), e também por cautela, contra à ilegitimidade suscitada pela 1.ª Ré (conforme se alega nos artigos 42.º a 48.º) (Neste sentido, não tem razão a 1.ª Ré quando na tréplica contestou a dedução da réplica do Autor com base na sua inadmissibilidade, e pelo que fica dito não se vê motivo para desentranhar esta peça apresentada conforme requerido). Assim sendo, deve-se considerar que não obstante o desrespeito da 1.ª Ré pela imposição separada das excepções conforme o disposto no artigo 408.º do CPC, como o Autor replicou e respondeu quanto à matéria da excepção, “nenhum problema se põe, pois foi atingido o fim visado pela norma que impõe a dedução separada (artigo 147.º n.º 1 parte final). A falta não tem relevância”. (cfr. Viriato Manuel Pinheiro de Lima, Manual de Direito Processual Civil, Acção Declarativa Comum, 2018, p. 312).
   Cumpre então apreciar e decidir.
   Como se sabe, a legitimidade é um dos pressupostos processuais estabelecidos pelos artigos 58.º a 67.º do CPCM, sendo uma condição necessária para o juiz se ocupar do mérito da causa, e não condição da sentença de procedência da acção.
   É de sublinhar que a propósito dessa questão, as jurisprudências da RAEM se têm vindo a seguir a posição maioritária defendida pelo Professor Barbosa de Magalhães, para quem, “o autor pediu o reconhecimento de uma relação jurídica com certos elementos, tendo como sujeito passivo o réu. Se esta relação não existia, o pedido é improcedente. Não interessa que ao lado desta relação controvertida haja outra que tem o mesmo facto constitutivo (o contrato) e o mesmo objecto (o que era pedido) da invocada pelo autor, mas outro sujeito passivo. Tomada a (pretensão) relação jurídica, tal como a configura o autor, as partes são ilegítimas quando não são os sujeitos dela” (cfr. Viriato Manuel Pinheiro de Lima, obra dita, p. 218. veja-se, entre os outros, o Acórdão do Tribunal de Última Instância processo n.º 83/2017, de 10/1/2018).
   Aliás, trata-se da tese já assumida pelo CPC de Macau no artigo 58.º onde se dispõe especificamente o seguinte: “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
   Portanto, no caso dos autos em apreço, interessa saber se em função da relação jurídica material configurada pelo Autor na petição inicial, são ou não os sujeitos passivos os Réus demandados aqui.
   Segundo alegou o Autor, de modo assertivo, que:
   - Ele é o autor do “Projecto da Ampliação do XX”, sendo portanto, na qualidade do criador do respectivo projecto, o autor da obra de arquitectura do edifício do referido Jardim, designadamente, o titular do direito pessoal do autor.
   - Foi a APIM, entidade titular do XX, que tinha perpetrado as obras da modificação de que o Autor se apercebeu em 12/12/2017 na fachada norte (na ala nova do XX);
   - Tal modificação introduzida implicou uma destruição parcial da obra arquitectónica por ter eliminado o componente estético do edifício, sendo violadora do direito moral do Autor como autor do projecto da dita obra;
   - O que constitui o direito de indemnização por facto de ter sido omitida a consulta prévia ao autor do projecto da obra, antes de se proceder às modificações desejadas, à luz do n.º 2 do artigo 144.º do DL n.º 43/99/M que aprova o regime do direito de autor e direitos conexos.
   Porém, não obstante ter imputado à APIM a concreta actuação ilícita lesiva do seu direito a que se arroga, salienta-se que o Autor pretendeu, aparentemente, chamar à responsabilização dos Réus, por vários títulos distintos:
   - por exercício do poder de “senhorio” pela 1.ª Ré enquanto dona do imóvel, através da gestão exercida pelo 2.º Réu como titular do domínio útil do terreno (conforme se alega nos artigos 24.º e 28.º da p.i.);
   - por ser a 1.ª Ré que contratou com o Autor, em 9/11/1994, tendo encomendado o dito projecto da ampliação, e que é ela dono da obra de construção (conforme se alega nos artigos 33.º, 34.º e 36.º da p.i.);
   - por ser a 1.ª Ré que tem subsidiado a APIM mediante o protocolo celebrado pela DSEJ (conforme se refere no artigo 84.º da p.i.);
   - por não terem cumprido os Réus o dever de fiscalização no respeito pelos direitos de autor através dos seus órgãos funcionais, na medida em que “nada fizeram para evitar a destruição parcial da obra do Autor, num dos seus elementos estéticos de referência e que mais a valorizavam e distinguiam” (conforme se refere nos artigos 135.º a 139.º da p.i.).
   Não foi alegada nenhuma conduta violadora do direito que concretamente se imputa aos dois Réus, mas estes responderiam somente pela posição jurídica que os mesmos ocupam relativamente ao terreno em causa, e ao edifício que se encontra aí instalado, ou pelas atribuições que lhe foram conferidas nos termos legais. A partir daí decorreria para os Réus a exigência do cumprimento do dever de consulta prévia prevista na referida norma do artigo 144.º, n.º 2, cuja omissão constitui, essencialmente, a obrigação de indemnizar daqueles, conforme o alegado no artigo 185.º da p.i.. Foi isso que entendeu o Autor.
   Ora bem, a dita norma do artigo 144.º, n.º 2 dispõe o seguinte, “…2. O dono de obra construída ou executada segundo projecto da autoria de outrem é livre de, quer durante a construção ou execução, quer após a sua conclusão, introduzir nela as alterações que desejar, mas deve consultar previamente o autor do projecto, sob pena de indemnização por perdas e danos.” (sublinhado nosso). Conforme daí decorre que, a exigibilidade no cumprimento desse dever pressupõe, essencialmente, a qualidade dos Réus demandados enquanto “dono da obra construída ou executada segundo projecto da autoria de outrem”, o que integrou os factos constitutivos da causa de pedir descrita pelo Autor.
   No caso dos autos em apreço, cremos à partida que a qualidade do dono da obra a que se refere na dita norma não possa ser atribuída senão à APIM, em virtude da relação material controvertida configurada.
   Como facilmente se perceberá, a norma em causa importou um regime que se desvia daquela regra geral que se impunha na proteção do direito pessoal de autor, ou seja, a regra de que “qualquer modificação da obra necessita do acordo do seu autor”, conforme se prevê no disposto artigo 46.º, n.º 1 do DL n.º 43/99/M. Ao contrário do que sucede nessa regra geral, em matéria de “obras de artes plásticas, gráficas e aplicadas”, o dono de obra é livre de introduzir nela as alterações desejadas, sendo apenas obrigado à consulta prévia ao autor do projecto. A razão desse desvio reside na necessidade da subordinação da integridade da obra à respectiva funcionalidade, com a consequente diminuição da protecção do autor das obras de arquitectura que se encontre na dependência das exigências técnicas do construtor e do gosto do dono de obra (veja-se Alberto de Sá e Mello, Manual de Direito de Autor e Direitos Conexos, pp. 160 a 161).
   Nesta linha, atenta a dita norma que visava conciliar o conflito entre o direito ao projecto, cuja modificação teria de se realizar e o direito de propriedade sobre o suporte, o edifício que prevalecia, deveria o 2.º Réu ser, em princípio, demandado enquanto dono da obra executada segundo projecto elaborado por Autor – sendo o 2.º Réu titular do domínio útil do terreno e proprietário do imóvel construído – edifício do XX. Por sua vez, em relação à 1.ª Ré, a intervenção justificar-se-ia pelo facto de ter contratado inicialmente com o Autor, na encomenda do projecto para a dita obra da ampliação.
   Contudo, já não teria sido forçosamente essa conclusão perante a afirmação expressa do Autor de que “o exercício dos direitos de uso e fruição do imóvel em causa nos presentes autos, onde se encontra instalado o XX, estão cometidas à ASSOCIAÇÃO PARA A INSTRUÇÃO DOS MACAENSES (doravante “APIM”), com sede na Av. Sindónio Pais, Edifício XX, em Macau”, tendo o mesmo pleno conhecimento de que “Nesse mesmo imóvel tem a referida APIM a sua sede, aí funcionando o “XX” estabelecimento privado de Macau por si administrado… ” e “A APIM foi ainda a entidade que conduziu os trabalhos de alteração/modificação da obra de arquitectura em causa nos presentes autos, de que o A. é autor” (conforme se alega nos artigos 30.º a 32.º da p.i.).
   Poderiam ser-lhe indiferente os concretos termos convencionados quanto ao destino do edifício XX na relação interna entre os dois Réus e entre estes e a APIM. Mas certamente interessa-lhe conhecer aquela entidade que tenha domínio sobre o edifício como suporte material da obra da arquitectura, e que tenha levado a cabo as modificações da obra que lhe pudesse convir, por ser ao mesmo, em fim de contas, é que é exigível o cumprimento do tal dever de consulta prévia previsto nos termos legais. Já que a referida norma do artigo 144.º, n.º 2 não fala apenas de “o dono de obra construída ou executada segundo projecto da autoria de outrem”, mas mais do que isso, daquele dono de obra que “após a sua conclusão, introduzir nela as alterações que desejar”. Nestes termos, a intenção de introduzir as alterações não se deve deixar de relevar na estruturação da causa de pedir e de ser verificada na pessoa a quem se pretende exigir o cumprimento do dever de consulta prévia e imputar os danos reclamados por causa da omissão deste dever.
   Aliás, se, como referido atrás, é a funcionalidade da obra que prevalece aqui sobre a integridade, tem apenas o interesse em contradizer aquele que tenha comandado, por gosto pessoal ou por exigência técnica, as alterações da obra, pois é ele que vai sofrer o prejuízo que advenha da procedência da acção, que se traduz no sacrifício ou na limitação da funcionalidade com que se poderia contar legitimamente.
   Nesta conformidade, se o Autor reconhece ser a APIM que tem o domínio de facto sobre o edifício em causa, seja qual for o respectivo título constitutivo, e ser a mesma que tinha promovido e executado a empreitada daquela obra de modificação que acabou por levar à destruição parcial da obra do autor, deveria ser esta que como tencionava introduzir no projecto da obra as alterações, estivesse vinculada ao dever de consulta prévia ao respectivo autor, nada há de culpar o 2.º Réu pela omissão daquele dever cujo cumprimento sequer lhe é exigível. Pois, trata-se de um mero titular do direito de propriedade sobre o edifício, mas sem nenhum poder de facto sobre o imóvel que daquele direito decorreria.
   Nem, segundo o alegado pelo Autor, parece que devesse assumir a qualidade do dono de obra a 1.ª Ré que detinha apenas a propriedade de raiz sobre o terreno, não sendo a mesma proprietária do edifício do XX. A contratação que esta tinha feito com o Autor em 1994 para o projecto da obra de ampliação não é o motivo de perpetuar o vínculo obrigacional entre uma e outro, se aquela deixou, há muito tempo, de ter domínio de facto, e de exercer direitos de uso e fruição sobre o edifício por um lado, nunca desejou, nem lhe foi possível desejar as modificações ocorridas com o projecto da obra do autor por outro.
   Mais rebuscada parece ser a tese de que a mesma Ré era sempre responsável pela omissão do dever de fiscalização das actividades ilícitas através dos seus órgãos funcionais – DSSOPT e DSEJ, se se estivesse em coerência com a alegada causa essencial em que se funda a pretensão indemnizatória dos danos morais reclamados, que consiste na omissão indevida da consulta prévia ao autor do projecto da obra. Dito por outra forma, o incumprimento do suposto dever de fiscalização, ainda que este tivesse decorrido de uma imposição legal, não geraria a obrigação de indemnizar nos termos alegados pelo Autor.
   Concluindo, face à relação material controvertida tal como configurada pelo Autor, parece-nos inequívoco que não existe senão o único sujeito passivo que é APIM, sendo esta responsável por incumprimento do dever previsto no artigo 144.º, n.º 2 do DL n.º 43/99/M, e por consequente ressarcimento dos danos reclamados, assim como a reposição da ilegalidade alegadamente cometida (inclusivamente a reposição da janela destruída no edifício do XX e a identificação do autor da obra de arquitectura em lugar visível do edifício). Não sendo a APIM uma pessoa colectiva pública, mas instituição de utilidade pública, de raiz do direito privado, o Tribunal Administrativo seria incompetente para conhecer da eventual acção de responsabilidade que se viria a propor contra aquela, nos termos do disposto no artigo 30.º, n.º 2, 3) (4) da Lei de Bases da Organização Judiciária.
   Por sua vez, do lado dos Réus, não é admissível que estes pudessem ser responsabilizados ao lado da APIM, todos na qualidade do dono de obra das modificações, e pelo que fica dito, carecem manifestamente da legitimidade para serem demandados nesta acção, devendo por isso ser os ambos absolvidos da instância, nos termos previstos no artigo 230.º, n.º 1, alínea d) do CPC.
*
   Nestes termos, decide-se
   - julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade dos Réus (Região Administrativa Especial de Macau, e Instituto para os Assuntos Municipais), com a consequente absolvição da instância dos mesmos.».

Vejamos então.

A fls. 168 a 172 dos autos consta uma certidão do registo predial da qual resulta estar inscrito a favor da RAEM o domínio directo e a favor do IAM o domínio útil do prédio onde foi construído o edifício a que respeitam os autos.
Segundo alega no artº 12º da sua contestação o IAM terá requerido em 1997 a reversão do terreno, supõe-se que para a RAEM, uma vez que não exercia sobre o mesmo qualquer poder de facto. Contudo não invoca que a reversão haja sido autorizada sendo certo que o domínio do útil do prédio continua registado a seu favor.
Nas suas alegações e conclusões de recurso a RAEM vem invocar que o edifício construído no prédio em causa foi emprestado à APIM e que terá sido esta quem fez as obras.
O Autor por sua vez alega que quem contratou e realizou a obra de construção do edifício aqui em causa foi a RAEM (ao tempo Território de Macau).
Ora, o que importa é saber quem é o dono da obra, do edifício construído no prédio a que se reportam os autos. Das contestações e documentos juntos aos autos não resulta minimamente evidente que não sejam os Réus, sendo certo que o que resulta da certidão do registo predial é presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos termos do artº 7º do CRP.
A RAEM nem sequer invoca não ser a dona da obra mas apenas que a emprestou à APIM sendo esta quem a usa.

Entendeu-se na decisão recorrida que como quem está a usar o edifício em causa é a APIM e terá sido esta quem realizou as obras em causa, seria contra a APIM e não contra as Rés que o Autor deveria ter instaurado a acção.

Não acompanhamos a decisão recorrida.

O Autor é alheio se o dono da obra cedeu o edifício a outrem e a que título, conquanto continue a ser o dono da obra.
Outra solução seria se o dono da obra tivesse cedido o direito que tinha sobre a mesma a terceiras, o que nem sequer se invocou.

Destarte, tendo sido com a RAEM que foi contratada a construção do edifício do qual o Autor alega ter sido o Arquitecto e sendo o IAM o titular do domínio útil do prédio sobre o qual o mesmo foi construído, bem se andou em instaurar a acção contra estes.

Saber se e como ocorreu a alegada alteração da arquitectura do edifício, quem a realizou, autorizada ou não pelo dono do edifício, se daí resulta a violação do direito que o Autor invoca e a quem será imputável a responsabilidade, já é matéria de mérito podendo estar em causa a legitimidade substantiva mas não a adjectiva.

Poderá até equacionar-se a intervenção de terceiros quiçá para precaver o eventual exercício de direito de regresso dos Réus ou de um deles contra outrem se vieram a ser condenados.

Mas o que de modo algum não resulta da p.i. e das contestações é que os Réus não sejam parte legítima na acção uma vez que a seu favor beneficiam da presunção do registo predial e nem tão pouco alegam não ser o titular do direito.
Direito esse que o Autor invocou serem eles titulares para configurar a relação material controvertida nos termos em que a acção foi apresentada ao tribunal.

Sendo certo que nos parece que a acção só possa proceder contra o verdadeiro dono da obra, isto é, do edifício construído, não nos parece também que em face do que consta do registo predial essa questão esteja já resolvida.

Nada mais havendo a acrescentar por já estar sobejamente desenvolvida no despacho recorrido quanto ao que se entende por legitimidade processual ou adjectiva face ao disposto no artº 58º do CPC, em face dos elementos existentes nos autos nesta fase, não se mostra evidente que a relação material não seja tal como é configurada pelo Autor face a tudo quanto se disse.

Sem prejuízo, reitera-se, do que se vier a apurar em fase de instrução e discussão do processo, pois o que se invoca é que foi o titular do domínio directo que será o dono da obra e não o do domínio útil como resulta do registo, mas isso será matéria a esgrimir e esclarecer em fase de julgamento.
Da mesma sorte quanto a quem ou quais serão responsáveis caso a acção seja procedente.
Mas todas estas questões estão relacionadas com o mérito da acção e não com os pressupostos processuais, que é o que cabe analisar por agora.

Assim sendo, deve ser concedido provimento ao recurso e revogando o despacho recorrido, concluindo-se pela legitimidade das partes devem os autos baixar ao tribunal “a quo” para que se decida nos termos que houver por convenientes.

III. DECISÃO
  
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, revoga-se o despacho recorrido julgando os Réus parte legítima, ordenando a remessa dos autos ao tribunal “a quo” para que se decida nos termos que houver por convenientes.

Sem custas por delas estarem isentas os Recorridos.

Registe e Notifique.

RAEM, 9 de Fevereiro de 2023

Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)

Fong Man Chong
(1o Juiz-Adjunto)

Ho Wai Neng
(2o Juiz-Adjunto)

493/2022 ADM 1