Processo nº 1038/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 09 de Fevereiro de 2023
ASSUNTO:
- Princípio da livre apreciação das provas
- Perda da posse
SUMÁRIO:
- Segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto n° 1 do artigo 558.º do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
- A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
- A reapreciação da matéria de facto por parte do TSI tem um campo restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
- A invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião pode admitir-se se a respectiva posse durou o tempo necessário para o efeito, mesmo que, depois, de tenha perdido tal posse.
- A faculdade de invocar a aquisição do direito por usucapião não prescreve. Apenas, se, entretanto, se desenvolveu outra posse prescricional a favor de terceiro, e este invocar a aquisição do direito por usucapião, então, a invocação do primeiro será irrelevante, porque a aquisição originária do direito do último possuidor extingue a do anterior.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 1038/2021
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 09 de Fevereiro de 2023
Recorrentes: A e B (Réus)
Herdeiros do C (D, E, F, G, H e I)
Recorridos: J e Herdeiros do K (Autores)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
Por sentença de 19/02/2016, julgou-se a acção procedente e, em consequência, decidiu-se:
a) declarar-se que os Autores J e K (o seu estatuto legal é substituído pelas J, L, M, N, O, P e Q) adquiriram por usucapião a propriedade do prédio com o número 26 da Praça de Lobo De Ávila descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº 1006, a fls. 275 do Livro B6;
b) ordenar-se o cancelamento das inscrições com os nº 19061, a fls. 417 do livro G60K, nº 18471, a fls. 325 do Livro G59K e nº 17692, a fls. 47 do Livro G58K na Conservatória do Registo Predial de Macau.
c) julga-se improcedente o pedido de litigância de má fé formulado pelos 1º s Réus contra os Autores.
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Dessa decisão vêm recorrer os Herdeiros do C (D, E, F, G, H e I), e os Réus A e B, alegando, em sede de conclusões, os seguintes:
Recurso dos Herdeiros do Chamado
1. Por Sentença, datada de 19 de Fevereiro de 2016, decidiu o Tribunal Judicial de Base “a) Declarar-se que os AA. J e K (o seu estatuto é substituído pelas J, L, M, N, O, P e Q) adquiriram por usucapião a propriedade do prédio com os números 26 da Praça de Lobo de Ávila, descrito da Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 1006, a fls. 275 do Livro B6;
b) Ordenar-se o cancelamento das inscrições com os n.ºs 19061, a fls. 417 do livro G60K, n.º 18471, a fls. 325 do Livro G59k E Nº 17692, a fls. 47 do Livro G58K na Conservatória do Registo Predial de Macau.
c) Julga-se improcedente o pedido de litigância de má fé formulado pelos 1.ºs Réus contra os Autores”.
2. Os Recorrentes não concordando com a doura Sentença da mesma recorreram.
3. Importa, no entanto, salientar que o douto Acordão do Tribunal de Última Instância de Macau em conjugação com o douto Acórdão proferido nos presentes autos pelo Tribunal de Segunda Instância de Macau no que respeita à primeira sentença (em que a acção foi julgada totalmente improcedente), apenas determinou a repetição do julgamento em relação a certos e determinados quesitos.
4. Com efeito, refere o douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de Macau que “Nesta instância, este TSI proferiu acórdão que julgou procedente o recurso, considerando válida a argumentação respeitante ao alargamento da base instrutória e relativamente à admissibilidade dos documentos que os AA. pretendiam juntar, revogando e anulando o julgamento e processado atinente a essa invalidação, não se tendo deixado de pronunciar no sentido de que as questões restantes que vinham colocadas se mostravam prejudicadas pela decisão aqui encontrada. Desta feita recorreram os 1.ºs RR. que entendem, para além de outras questões, que o acórdão do TSI omitiu pronúncia relativamente à não oponobilidade da declaração de nulidade das habilitações de herdeiros e quanto à caducidade do direito de pedir a declaração de nulidade”.
5. Ora, nunca esteve em causa a totalidade dos quesitos constantes da matéria dada como provada. Assim sendo, em todos os quesitos que foram dados como provados e assentes a matéria ficou determinada, ou seja, os mesmos fazem caso julgado.
6. Ora, da análise da Sentença ora recorrida verificamos que os quesitos que não foram objecto de repetição são manifestamente caso julgado e por isso mesmo insusceptíveis de qualquer apreciação ou alteração.
7. No entanto, a douta Sentença ora recorrida apreciou toda a matéria da base instrutória sendo que relativamente a algumas das matérias houve manifestamente total inversão das respostas a quesitos que fizeram caso julgado.
8. Estão abrangidos pelo caso julgado os fundamento factos e questões que se contenham de acordo com a natureza das coisas e a lógica do silogismo judiciário, na resposta dada ao pedido dos autores, ficando excluídos do caso julgando os factos instrumentais e as antecedentes premissas (meros juízos sobre pontos de facto e de direito) consideradas no raciocínio do julgador para concluir por tal resposta.
9. Ora, se foi determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições.
10. Paralelamente, temos de observar também o regime que o legislador estatuiu em matéria de repetição do julgamento, o qual está previsto no artigo 629.º, n.º 4 (Modificabilidade da decisão de facto) do Código de Processo Civil de Macau
11. Repare-se, o n.º 4 do normativo acima citado tem por destinatário também o Tribunal que vai repetir o julgamento, como tal ele deve ser observado e cumprido.
12. Ou seja o Tribunal fica legalmente impedido de alterar factos dados por assentes e que não foram objecto sequer de apreciação judicial em sede de recurso.
13. Nos termos do artigo 629.º, n.º 4 do Código de Processo Civil de Macau acima citado, o Tribunal a quo, ao repetir o julgamento, tem de manter a coerência e lógica das coisas, nomeadamente fará tudo para evitar contradições entre os factos já assentes e os novos.
14. No entanto, nos presentes autos aquando da repetição do julgamento factos assentes e não viciados foram alterados quando tal era legalmente proibido. Ou seja, não foi devidamente acautelado este ponto.
15. Salvo o devido respeito, estão os ora Recorrentes em crer que, contrariamente ao que terá sido concluído pelo Tribunal a quo, a “repetição do julgamento” ordenada pelo Tribunal de Recurso impunha não só que fosse aditado à douta Base Instrutória o(s) quesito(s) necessário(s) mas também que se mantivessem inalterados os que constituiam manifestamente caso julgado.
16. Pelo que ao Tribunal a quo devia ter cumprido o ordenado mediante o aditamento de factos necessários, pertinentes e aptos a solucionar as questões pendentes, seleccionando os factos segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
17. No entanto, o Tribunal a quo, em sede de repetição do julgamento, formulou novos quesitos mas simultaneamente alterou quesitos não viciados e como tal insusceptíveis de serem apreciados ou alterados dada a natureza de caso julgado.
18. Foi determinada a repetição do julgamento com a advertência que “Esta nulidade não implica qualquer revogação do acórdão recorrido, que manterá a sua eficácia à ampliação da base instrutória, no caso de o recurso quanto à caducidade proceder, e mesmo que improceda, quanto ao aditamento dos artigos 4.º, 7.º, 17.º e 19.º da petição inicial” - cfr. Acórdão do Tribunal de Última Instância proferido a 25 de Julho de 2012.
19. Posteriormente, por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, datado de 24 de Janeiro de 2013, foi decidido quanto à questão da caducidade da acção de nulidade “(…) deve igualmente nessa parte ser revogada, revogação esta que não deixa de ser consumida pelo julgamento do processado em conformidade com o anteriormente decidido. No mais se mantém o decidido (...)”.
20. Ora, o trânsito em julgado ocorre quando uma decisão já não é susceptível de impugnação através de recurso ordinário ou por meio de reclamação. O caso julgado constitui expressão dos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica.
21. O tribunal fica, assim, sujeito tanto a uma “proibição de contradição da decisão transitada”, como a “uma proibição de repetição daquela decisão”.
22. A não observância de qualquer um desses dois efeitos processuais característicos do caso julgado dá origem à existência de casos julgados contraditórios (quer no mesmo processo, quer em processos distintos).
23. Nessa hipótese, o artigo 580.º, n.º 1, do Código Processo Civil de Macau, estabelece que, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. Ou seja, concede-se, assim, prevalência à decisão que transitou em julgado em primeiro lugar, sendo que a segunda decisão será ineficaz.
24. Por sua vez, prevendo sobre o princípio da extinção do poder jurisdicional e suas limitações, diz-nos o n.º 1 do artigo 569.º do Código de Processo Civil de Macau que, “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”.
25. Com efeito, prolatada a sentença, a mesma torna-se imodificável quanto à matéria dada como assente e não revogada pelo recurso judicial.
26. Insurgem-se, assim, os ora recorrentes relativamente à alteração às respostas aos quesitos que não poderiam ter sido alterados, argumentando que se está aqui perante uma alteração de fundo da sentença proferida e que veio influir decisivamente na decisão da causa, na medida em que, com a alteração efetuada o tribunal a quo veio dar provimento à acção contráriamente ao anteriormente decidido. Existe manifestamente excesso de pronúncia.
27. Sendo manifestamente evidente a violação de caso julgado e a consequência que sejam dadas por não escritas as respostas aos quesitos que não poderiam ter sido de qualquer forma alteradas.
28. Isto é, em sede de novo julgamento efectuado na sequência de reenvio e em que se delimitou o âmbito deste, não pode o Tribunal a quo exceder-se na sua decisão, (re)apreciando matéria confirmada com o acórdão que decreta o reenvio, incorrendo em nulidade por violação de caso julgado (formal) se o fizer.
29. Nesta segunda Sentença ora recorrida, suprimiu-se matéria de facto já dada como provada (na anterior Sentença do Tribunal Judicial de Base e pelo Acórdão do Tribunal de Última Instância. de 25 de Julho de 2012 confirmada), introduziu-se, como provada, matéria nova, e alterou-se a matéria de facto dada como não provada (que, igualmente tinha sido confirmada pelo referido veredicto deste T.U.I.).
30. De facto, e como se disse, houve patente “violação do caso julgado” (formal) por parte do Tribunal Judicial de Base ao decidir suprimir “matéria de facto dada como provada” assim como ao alterar a “matéria de facto não provada” que, pelo Acórdão deste Tribunal Segunda Instância de 25 de Julho de 2021 tinha (já) sido confirmada, e, assim, excluída da nova decisão a proferir após o reenvio e novo julgamento.
31. Em face do que se deixou explanado, entendemos que o douto Acórdão recorrido está ferido de nulidade por violação do caso julgado formal, havendo assim necessidade de reenvio dos autos ao Tribunal Judicial de Base para, após os procedimentos entendidos adequados, se proferir nova decisão em conformidade com o decidido no Acórdão do Tribunal de Última Instância.
32. Caso assim não se entenda, deverá ser entendido que a sentença ora recorrida é nula por excesso de pronúncia uma vez que estava vedado ao juiz pronunciar se sobre matéria transitada em julgado, nos termos do disposto no artigo 571.º, n.º 1, alínea d) in fine do Código de Processo Civil de Macau.
33. Por fim, entendemos nada terem os ora Recorridos feito visando a defesa da sua alegada posse pelo que houve efectivamente perda de posse por parte destes.
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Recurso dos Réus
I) Objecto do presente Recurso
1. A presente acção foi alvo de uma repetição de julgamento havendo sido proferida uma segunda sentença, constante de fls. 2146 a 2154, de sinal contrário à douta sentença proferida no primeiro julgamento, mais concretamente, decidindo afinal pela procedência da acção.
2. Constitui esta douta decisão constante de fls. 2146 a 2154 o objecto do presente Recurso, o qual também incidirá sobre o douto Acórdão donde consta a decisão quanto à matéria de facto, constante de fls. 2086 a 2090.
II) Questão prévia
3. No caso vertente, por força do douto acórdão de 25/07/2012 (Autos de Recurso Civil e Laboral nº 46/2012), do Venerando Tribunal de Última Instância (TUI), afigura-se que a repetição do julgamento determinada pelas instâncias apenas deveria ter por objecto a prova dos quesitos 3º, 5º, 6º, 7º e 9º.
4. O Distinto Tribunal a quo repetiu o julgamento relativamente a toda a matéria da primitiva Base Instrutória e aos novos quesitos 21º a 24º, o que deu origem a respostas a certos quesitos para além dos 5 quesitos supra referidos (3º, 5º, 6º, 7º e 9º), de sentido diverso, e até inverso.
5. A confirmar-se tal situação, o douto Acórdão de fls. 2086 a 2090 e a douta sentença recorrida estariam inquinados do vício de ofensa de caso julgado, o qual é de conhecimento oficioso, pelo que se deixa esta questão prévia à consideração desse Venerando TSI, com as legais consequências, independentemente do consenso inicial dos intervenientes na audiência de julgamento na sua repetição integral.
III) Insuficiência da matéria de facto.
6. De acordo com a douta sentença recorrida, para efeitos de usucapião, a posse dos Autores teria que subsistir obrigatoriamente pelo período de 20 anos, por ser não titulada e de má-fé, o que se concede.
7. A douta sentença recorrida refere que os Autores detiveram a posse do imóvel em questão entre pelo menos 1973 e 1993, acrescentando mesmo entender que teria perdurado até 2001.
8. No entanto, a factualidade apurada é insuficiente para estabelecer estes elementos.
9. O quesito 11º é conclusivo ou, se assim se não entender, será, no máximo, um generalismo, um tema geral de prova na acepção do ordenamento positivo português, que pela forma como está redigido sempre teria que derivar de outros quesitos que o dotassem do indispensável suporte factual concreto, como também o admitiram os Autores (cfr. fls. 483).
10. Poder-se-ia, porventura, procurar encontrar esse socorro nos quesitos 5º a 10º, 23º e 24º, todavia, salvo melhor opinião, tal é igualmente insuficiente, mormente tomando em conta também o facto provado constante do quesito 16º.
IV - Contradição da decisão de facto.
11. Há uma colisão entre as respostas dadas aos quesitos 8º e 16º.
12. Na verdade, feita a correcta interpretação do quesito 8º, o facto provado é que “Os Autores após 14 de Junho de 1989 continuaram a viver no prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente”.
13. Ora, este facto está em contradição com o facto que resulta provado pela resposta ao quesito 16º, nomeadamente, que, “os Autores passaram viver em Macau no início da década de setenta do século passado, residindo na XXX”.
V - Erro na apreciação da prova. Impugnação da matéria de facto.
14. Salvo melhor opinião, não há prova bastante para a matéria constante dos quesitos 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 23º e 24º.
15. Em contrapartida, há prova bastante para que a resposta inicial ao quesito 14º, “Provado”, se mantenha inalterada, o que neste segundo julgamento não sucedeu.
A) Quanto ao Quesito 5º:
16. Prova-se documentalmente, que R e S são os progenitores da Autora J, mas não se prova o que se encontra perguntado no quesito, que aqueles progenitores vivessem, conjuntamente, no prédio referido na alínea A) dos Factos Assentes.
B) Quanto ao Quesito 7.º:
17. Desde logo, não se tendo estabelecido o momento em que a Autora começou a viver com a R no referido imóvel, não se vê como é que se pode dar como verificado que esta “continuou” a viver no prédio referido na alínea a) em companhia da Autora, pelo menos até 1973.
18. Depois, uma outra razão de discordância com a resposta restritiva dada pelo douto Tribunal tem que ver com o facto de da mesma poder resultar que a Autora continuou a viver nesse imóvel, sem a R, depois de 1973, o que contrariaria o que ficou provado em audiência de julgamento.
19. Com efeito, a única testemunha que afirmou conhecer tal facto, T), afirmou que toda a família se mudou junta e em simultâneo, tal como supra se transcreveu na parte da fundamentação do presente recurso, com base na gravação do julgamento, cujos termos aqui se dão por reproduzidos.
20. Razão por que se pugna pela alteração da resposta dada, sugerindo-se a seguinte resposta restritiva: Quesito 7.º - “Provado que R estava a viver no prédio referido na alínea a) em 1973”.
C) Quanto ao Quesito 8.º
21. Conforme referido, existe uma contradição entre os quesitos 8º e 16º e os Recorrentes crêem existirem elementos suficientes nos autos para se manter a resposta “Provado” dada ao quesito 16º e alterar para “Não provada” a resposta ao quesito 8º.
22. Conforme melhor consta da transcrição de prova supra no que a esta matéria importa e que aqui se dá por reproduzido, foi o que resultou dos depoimentos quer da testemunha U, quer da testemunha T.
D) Quanto aos Quesitos 9º, 23º e 24º:
23. Compulsados todos os volumes que constituem os presentes autos, a primeira conclusão a que se chega é a de que de toda a mole de documentos dos autos não há nenhum que se refira a obras efectuadas pelos Recorridos no prédio em discussão.
24. A prova testemunhal produzida em audiência foi vaga, indeterminada e manifestamente insuficiente para permitir a formação da convicção do douto Tribunal no sentido da verificação de tal facto, conforme transcrição atrás efectuada que se aqui se dá por reproduzida.
25. Mas se por remota hipótese se entender que uma tal débil prova é suficiente, então, por força da resposta ao quesito 16º, as ditas “obras” foram decididamente efectuadas pelos Autores antes dos princípios da década de setenta, nunca mais tendo sido feitas quaisquer obras.
26. Também é deveras pouco credível e insuficiente a prova de que os Autores arrendaram o prédio a terceiros.
27. Para prova de tal matéria os Autores juntaram aos autos os documentos de fls. 821 a 919 e foram arroladas as testemunhas U, T, V e W.
28. Desde logo, começando pelos documentos, não se trata de “recibos de renda” mas de uma pública-forma de um livro com os canhotos dos recibos de renda, o qual faz menção à cobrança de rendas relativas, ininterruptamente, aos meses de Janeiro de 1984 a Agosto de 1987 e de Janeiro de 1988 a Dezembro de 1991.
29. O que significa que estamos apenas perante documentos que foram inteiramente produzidos pelos Autores e seus familiares alegando a qualidade de senhorios.
30. Para além de que são múltiplas e patentes as deficiências que os documentos evidenciam, além que em lado algum se encontra uma assinatura de quem quer que seja, recorrendo-se, antes, à aposição de carimbo com os caracteres (R) , mãe da Autora, mesmo depois do falecimento desta, ocorrido em 14/06/1989.
31. Por outro lado, conforme transcrição supra que aqui se dá por reproduzida, nenhuma testemunha confirmou a existência de qualquer arrendamento entre 1984 a 1991, o período coberto pelos supra referidos documentos.
32. Pelo que, na ausência e conjugação de outros meios de prova, não pode deixar de se concluir pela total irrelevância dos documentos de fls. 821 a 918, nunca podendo os mesmos fundamentar uma resposta no sentido da existência do referido arrendamento.
33. E se irrelevados tais documentos, o Tribunal considerar que são suficientes os depoimentos das testemunhas para formar uma convicção segura sobre a existência de um arrendamento, então, com o devido respeito por entendimento contrário, a resposta ao quesito 9.º nunca poderia ter assumido a amplitude que assumiu.
34. Assim, apenas se encontra base suficiente para se responder, quando muito, em termos restritivos a tal ponto do quesito 9.º, nomeadamente, “Provado que os Autores arrendaram o 1.º andar a terceiros em datas indeterminadas, até princípios da década de setenta”.
35. Do mesmo modo e com a ressalva do devido respeito por entendimento contrário também se verifica erre do douto Colectivo ao dar por provado que os Recorridos pagavam os impostos inerentes ao imóvel em causa, dado que, no modesto entendimento dos Recorrentes, não se fez prova de tal facto.
36. Os documentos de fls. 61 a 98, conhecimentos de cobrança relativos à contribuição predial comprovam que tal imposto foi pago por alguém cujo nome está redigido nos seguintes: XXX.
37. Não se provou quem é essa pessoa, nem que tinha qualquer relação com os Autores.
38. Depois, no que respeita ao pagamento de impostos depuseram as testemunhas U, T e W, sendo que a 1.ª e a 3.ª afirmaram não sabiam, que nunca tinham ouvido falar sobre isso e a 2.ª testemunha afirmou “que eu saiba, creio que são todas da responsabilidade deles, eram da responsabilidade da família toda”.
39. Assim, esta testemunha não tem conhecimento deste facto, mas como viu os Autores a viver lá, pensou que pagassem as respectivas despesas.
40. A prova produzida apenas permite uma resposta de sentido negativo, “não provado”, a esta matéria.
41. Relativamente ao contrato de prestação de serviço telefónico, face à prova documental e testemunhal, que supra se transcreveu e se dá por reproduzida, com a ressalva do devido respeito por opinião contrária, deveria o douto Tribunal colectivo responder ao referido ponto nos seguintes termos: “O contrato de provimento de telefone para o prédio referido na alínea a) dos Factos Assentes foi celebrado com o Autor, o qual requereu, em 4/8/1973, a mudança do mesmo para o imóvel da XXX”.
42. Já no que respeita ao fornecimento de energia eléctrica, face ao documento de fls. 717 e aos depoimentos das testemunhas U e X, afigura-se que a resposta a dar deveria ser uma diferente e de natureza esclarecedora, nomeadamente, a seguinte: “o contrato de fornecimento de energia eléctrica ao imóvel mencionado na alínea a) dos Factos Assentes, o qual vigorou até Novembro de 1992, foi celebrado com o Autor marido em data indeterminada, tal como foi celebrado com este, em 17/12/1973, o contrato de fornecimento de energia eléctrica à morada na XXX”.
43. Em resumo:
- O quesito 9º deveria ter sido dado por não provado;
- O quesito 23º deveria ter sido alvo de uma resposta nos termos da conclusão anterior;
- O quesito 24 º deveria ter sido dado por não provado.
44. Relativamente ao quesito 9º, se por remota hipótese assim se não entender, afigura-se que a amplitude da resposta “provado” não decorre da prova produzida, extravasando do princípio da livre apreciação da prova, sugerindo-se em alternativa a resposta: “Provado que os Autores arrendaram o 1.º andar a terceiros em datas indeterminadas, até princípios da década de setenta”.
E) Quesito 10º:
45. Para prova deste quesito apenas existem três recibos nos autos a fls. 58-60, preenchidos à mão, os quais se referem unicamente a dois meses não especificados de 1971 e a um mês não especificado de 1972, inexistindo qualquer prova testemunhal.
46. Pelo que, em qualquer caso, deve a resposta a este quesito ser alterada, ou para “Não provado”, como se defendei ou no máximo para “Provado que a Autora pagou os serviços do guarda nocturno dois meses vezes em 1971 e um mês em 1972.”
F) Quesito 11º:
47. Ressalvada diversa opinião é de meridiana clareza que a formulação deste quesito, mais do que traduzir factos da vida real materiais e concretos encerra antes uma asserção conclusiva/valorativa.
48. Ao responder “provado” a tal quesito, ficou a resposta do douto Tribunal a ter a mesma natureza conclusiva valorativa da matéria quesitada.
49. E a formulação é também conclusiva no que respeita à dimensão temporal referida, lá onde se afirma que os Autores “sempre” se comportaram como donos do prédio aí em causa.
50. Isto mesmo também se referiu e desenvolveu anteriormente nos artigos 53 e seguintes do presente, havendo os Recorrentes um precioso aliado no no douto Acórdão de 24/02/2020, Processo nº 200/20 (Recurso em processo civil), proferido pelo Venerando Tribunal de Última Instância, onde se entende que a expressão “frequentemente” é conclusiva, carecendo de datas e outros factos concretos (vd. artigo 56 do presente).
51. Mesmo que se entenda que este quesito 11º é vago, mas é matéria de facto (o que não se concede), não há factos susceptíveis de preencher a vaguidade da sua redacção.
52. Além de que a resposta dada ao referido quesito encerra em si, no fundamental, solução jurídica do pleito, sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência que a formulação que se insira na análise de questões jurídicas a decidir comportando já a resposta àquelas questões, deve ser eliminada com fundamento no artigo 594.º/4 do CPC.
G) Quesito 14º:
53. A fundamentação do Distinto Tribunal a quo no acórdão de fls. 2086 a 2090 foi a de que como tinham ficado provados os quesitos 7º a 11º, 16º, 23 º e 24º, “consequentemente, não se dá como provado o facto constante do quesito 14º”.
54. Ressalvado diverso entendimento, não nos parece correcta esta relação de causalidade directa porque este refere-se a uma realidade (prédio desocupado) conectada com um período de tempo concreto (10 de Março de 1997), e os demais quesitos, quando também se referem a um tempo e a uma realidade, referem-se a um tempo e a uma realidade compatíveis com a prova do quesito 14º.
55. Assim: o quesito 7º prova que a R viveu em companhia da Autora naquele prédio até 1973; o quesito 8º prova que após 14/06/1989 os Autores “continuaram a ocupar” o prédio, mas não estabelece que tal situação perdurou após 10/03/1997; o quesito 9º não especifica quando foram realizadas as obras a que se refere, nem existe nenhum elemento de prova, documental ou testemunhal a situar tais obras após 10/03/1997; o quesito 10º também não especifica datas, mas, como referido, os elementos disponíveis nos autos a este respeito referem-se a 1971 e 1972; O quesito 11º é conclusivo ou, no mínimo, genérico, sendo de rejeitar a expressão “sempre”, por ser vaga e indeterminada, e não aporta qualquer localização temporal; também os quesitos 23º e 24º não colidem com a prova do quesito 14º, posto que a prova produzida não estabeleceu quaisquer momentos no tempo ulterior a 10/03/1997.
56. Tanto bastaria para que esse Venerando TSI revertesse a resposta dada a este quesito pelo Distinto tribunal a quo, todavia, acrescente-se que o prédio em discussão foi alvo de duas transacções em que não intervieram os Autores, uma em 22/05/1996 e outra, pelos Recorrentes, em 10/03/1997, conforme melhor consta das alíneas c) e f) dos Factos Assentes, e são diversos os documentos segundo os quais em 1997 este prédio estava em elevado estado de degradação, em risco de ruír e consistindo num perigo para a segurança pública, sinalizando que estava votado ao abandono há vários anos (vg. relatório da Polícia Judiciária de 11/12/1996, Auto de Ocorrência da polícia de 13/05/1997 a fls. 683, Ofício da Direcção dos Serviços de Finanças, de 25/05/2005, constante de fls. 584, processo tendo por objecto este prédio, aberto em 1996/97 pela DSSOPT sob o nº 29/97/R, intitulado “Ruína”, constante de fls. 606 e seguintes, auto de vistoria de fls. 673, carta de fls. 633 recebida pela DSSOPT em 05/09/2000, donde consta no 3º parágrafo que o prédio em discussão nos autos se encontra desabitado e desde há muito em estado de má conservação, e, fotografias de fls. 630, 634 a fls. 638).
57. Por seu turno, o mesmo resulta da prova testemunhal indicada pelas partes a este quesito 14 o, conforme transcrição supra que aqui se dá por reproduzida.
58. Pelo que, salvo melhor opinião, a resposta ao quesito 14º da douta Base Instrutória, deveria ter sido a de “Provado”, à semelhança da resposta anteriormente dada no douto Acórdão de fls. 1136 a 1138 dos autos.
VI - Erro de Julgamento. Perda da Posse.
59. Salvo melhor opinião, a douta sentença recorrida incorre num erro de julgamento em matéria de direito.
60. No modesto entender dos Recorrentes, se os AA. alguma vez tiveram a posse do prédio em disputa, perderam-na em 22/05/1996, ou, pelo menos, certamente em 10/03/1997, a favor de uma posse nova dos Recorrentes, a qual é uma posse pacífica.
61. Ora, é líquido para todos que a perda da posse por mais de um ano gera a extinção da posse anterior.
62. É líquido que só o possuidor por certo lapso de tempo pode beneficiar da usucapião.
63. Posse essa que se deve provar no momento em que é invocada.
64. E que deve ser uma posse mantida, isto é, uma posse que se adquiriu e a que não sobreveio uma causa de extinção (Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pág. 475).
65. Mas se a primitiva posse se extingue pela sua perda por mais de um ano, ao passo que a nova posse retrotrai até esta data e adquire relevância plena, não é possível aos anteriores possuidores, os Recorridos, provar que a sua posse existe no momento em que é invocada para efeitos de usucapião.
66. É que, caso contrário, poderiam surgir graves situações que por certo não estavam na mente do legislador.
67. Imaginemos, por exemplo, que os Recorrentes já haviam construído o prédio cujo projecto submeteram à DSSOPT, constituído por diversos andares até uma altura de cerca de 100 metros, havendo vendido as respectivas fracções autónomas que agora já estariam habitadas.
68. A solução defendida na douta sentença recorrida conduziria a uma situação de consequências impensáveis, entre as quais o despejo das fracções autónomas já compradas e habitadas por terceiros e a demolição de um prédio com cerca de 100 metros de altura.
69. Pelo que, deve ser revogada por esse Venerando TSI a douta sentença recorrida e em seu lugar ser proferida nova decisão de sinal contrário, julgando improcedente por não provada a presente acção.
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Os Autores responderam às motivações dos recursos supra referidos, nos termos constantes a fls. 2375 a 2394 e 2399 a 2450, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos, pugnando pela improcedência dos mesmos.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II - FACTOS
Vêm provados os seguintes factos pelo Tribunal a quo:
- Na Conservatória do Registo Predial de Macau, encontra-se descrito com o número 1006, a fls. 275 do Livro B6, desde 25 de Junho de 1882, o prédio com o nº 26 da Praça Lobo de Ávila, constituído por rés-do-chão e andar, e as seguintes confrontações:
N – Praça Lobo de Ávila nº 28-28-A;
S – Praça Lobo de Ávila nºs 20-24;
E – Praça Lobo de Ávila;
W–Travessa do Colégio nºs 1-1A. (alínea a) dos Factos Assentes)
- Em 27 de Junho de 1894, a aquisição do dito prédio foi inscrita definitivamente no Registo Predial de Macau, a favor de AE. (alínea b) dos Factos Assentes)
- Em 22 de Maio de 1996, foi registada a aquisição do prédio referido na alínea a) em comum e sem determinação de parte ou direito e a título de sucessão hereditária, a favor de C, Y, Z. (alínea c) dos Factos Assentes)
- A essa inscrição no registo predial serviram de títulos as escrituras públicas de habilitação de herdeiros cujos teores constam de fls. 100 a 103 e de fls. 105 a 107 e aqui se dão por integralmente reproduzidos. (alínea d) dos Factos Assentes)
- Em 30 de Outubro de 1996, foi inscrita no registo predial de Macau a aquisição por compra do dito prédio, a favor de AA casado com AB no regime da comunhão de adquiridos. (alínea e) dos Factos Assentes)
- Em 10 de Março de 1997, foi inscrita no registo predial de Macau, a aquisição por compra do prédio referido na alínea a), a favor de A e mulher B. (alínea f) dos Factos Assentes)
- Os Autores casaram entre si em 21 de Dezembro de 1964 em Hong Kong. (alínea g) dos Factos Assentes)
- A R também era conhecida por AC. (resposta ao quesito 3º da base instrutória)
- A R chegou a Macau desde meados do século passado ficando como ama em casa de AD. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- A R vivia no prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente juntamente com o seu marido S. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- A R e o S eram os pais da Autora. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- A R continuou a viver no prédio referido na alínea a), em companhia da Autora, pelo menos até 1973. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Os Autores após a morte da R continuaram a ocupar o prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- Os Autores realizaram obras no prédio, arrendaram o mesmo a terceiros e pagaram os impostos a ele respeitantes. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- A Autora também pagou os serviços do guarda nocturno que prestava serviço no local. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- Os Autores sempre se comportaram como donos do prédio referido na alínea a). (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- Não obstante o que consta das escrituras mencionadas na alínea d) da matéria de facto assente, entre a AE e os intervenientes C, Y, Z, não existiu qualquer relação de parentesco. (resposta ao quesito 12º da base instrutória)
- O prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente, foi demolido no período entre 12 de Janeiro e 02 de Fevereiro de 2001. (resposta ao quesito 15º da base instrutória)
- Os Autores passaram a viver em Macau no início da década de setenta do século passado, residindo na XXX. (resposta ao quesito 16º da base instrutória)
- Foram os RR. A e B quem procedeu à demolição referida em 15º. (resposta ao quesito 19º da base instrutória)
- E procederam à vedação do terreno onde se encontrava implantado o edifício o que ainda hoje se ver fica. (resposta ao quesito 20º da base instrutória)
- A AE (e XXX) faleceu em 12 de Junho de 1925. (resposta ao quesito 21º da base instrutória)
- AF também conhecido por AF1 em 1997 era a titular da inscrição matricial do prédio referido em a). (resposta ao quesito 22º da base instrutória)
- Os contratos de provimento de telefone e abastecimento de electricidade foram celebrados com o Autor marido. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)
- Foram sempre os autores a assumir o pagamento da contribuição predial do prédio assim como o fazia a sua mãe e sogra já em 1937. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
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III – FUNDAMENTAÇÃO
(A) Recurso dos Réus
1. Da violação do caso julgado – âmbito da repetição do julgamento:
Por acórdão deste TSI de 09/02/2012 e confirmado pelo acórdão do TUI de 14/06/2013, foi decidido a repetição do julgamento.
No entanto, não se especificou qual o âmbito do julgamento a repetir.
Suscita-se então a dúvida de saber se o julgamento a repetir abrange a totalidade da Base Instrutória ou só parte da mesma.
O Tribunal a quo optou por repetir o julgamento na sua totalidade e o novo julgamento assim realizado deu origem a respostas aos quesitos 4º, 8º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º e 17º de sentido oposto do primeiro julgamento.
Os quesitos supra identificados foram julgados como “provados” no primeiro julgamento e “não provados” no segundo.
Para os ora Recorrentes, a repetição do julgamento na sua totalidade viola o caso julgado da decisão dos Tribunais superiores, já que, no seu entender, a repetição do julgamento ordenado pelo TSI limita-se aos novos quesitos aditados.
Quid iuris?
Adiantamos que os ora Recorrentes parcialmente têm razão.
Concordamos que o novo julgamento não devia abranger a totalidade da Base Instrutória, mas também não é tão limitado como pretendem os ora Recorrentes.
Pela análise dos acórdão do TSI e do TUI acima em referência, entendemos que foi anulado o julgamento da matéria de facto do Tribunal a quo na parte relativa à usucapião, ou seja, os quesitos 1.º a 11.º e 14º da Base Instrutória.
Tal anulação é a consequência directa da necessidade do aditamento dos novos quesitos, já que o julgamento sobre esses novos quesitos pode modificar a resposta inicialmente dada aos quesitos 1º a 11º da Base Instrutória.
O que já não acontece com os quesitos 12º a 20º da Base Instrutória, uma vez que o TUI não admitiu a quesitão dos factos relativos à matéria vertida dos artigos 30º a 38º da petição inicial.
Pois, o acórdão do TUI é claro nesta parte, veja-se:
“…
Não obstante o Acórdão recorrido ter anulado o julgamento, sem especificar qual o âmbito do julgamento viciado, visto que a anulação foi causada pelo indeferimento da junção de documentos que visavam a prova dos quesitos atinentes à usucapião (3.º, 5.º, 6.º, 7.º e 9.º), nada tendo que ver com o quesito 12.º - que respeita aos pedidos das alíneas b), c) e d) da petição inicial – a resposta a este último quesito não foi anulada. E também não foram anuladas as respostas aos quesitos 13.º a 17.º, apenas quesitados com vista ao conhecimento da litigância de má-fé dos autores (cfr. nota 2 da base instrutória). A mesma anulação também não abrange os factos dos quesitos 18.º, 19.º e 20, sem nenhuma relação com os aludidos documentos.
…”.
Pelo exposto, é de julgar parcialmente procedente o recurso nesta parte, revogando a nova decisão da matéria de facto do Tribunal a quo do segundo julgamento em relação aos quesitos 12º, 13º e 17º da Base Instrutória, mantendo a resposta dada aos mesmos no primeiro julgamento.
2. Da impugnação da decisão da matéria de facto:
Vêm os Réus impugnar a decisão da matéria de facto quanto aos quesitos 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 23º e 24º, a saber:
5º
A R vivia no prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente juntamente com o seu marido S?
7º
A R continuou a viver no prédio referido na alínea a), em companhia da Autora, até à sua morte em 1989?
8º
Os Autores após a morte da R continuaram a ocupar o prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente?
9º
Os Autores realizaram obras no prédio, arrendaram o mesmo a terceiros e pagaram os impostos a ele respeitantes?
10º
A Autora também pagou os serviços do guarda nocturno que prestava serviço no local?
11º
Os Autores sempre se comportaram como donos do prédio referido na alínea a)?
23º
Os contratos de provimento de telefone e abastecimento de electricidade foram celebrados com o Autor marido?
24º
Foram sempre os autores a assumir o pagamento da contribuição predial do prédio assim como o fazia a sua mãe e sogra já em 1937?
O Tribunal a quo respondeu aos quesitos em causa pela forma seguinte:
Quesitos 5º, 8º, 9º, 10º, 11º, 23º e 24º: “Provado”.
Quesito 7º: “Provado que a R continuou a viver no prédio referido na alínea a), em companhia da Autora, pelo menos até 1973”.
Para os Réus, os factos vertidos nos quesitos supra referidos deveriam ser considerados nos seguintes termos:
Quesitos 5º, 8º, 9º, 11º, 23º e 24º: “Não Provado”.
Quesito 7º: “Provado que a R estava a viver no prédio referido na alínea a) em 1973”.
Quesito 10º: “Não Provado” ou “Provado que a Autora pagou os serviços do guarda nocturno dois meses vezes em 1971 e um mês em 1972”.
O Tribunal a quo justificou a sua convicção nos seguintes termos:
“...
A convicção do Tribunal baseou-se nas declarações prestadas pela parte, o depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, nos documentos juntos aos autos, cujo teor se dá reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permite formar uma síntese quanto à veracidade dos apontados factos.
Sobre os factos de R, de acordo com o teor da certidão emitida pelo D.I.S., de fls. 819, dos assentos de nascimentos dos filhos dos Autores, de fls.37 a 39 e do assento de casamento da J e K de fls35, demonstra claramente que os R e S eram pais do J, o qual é complementado com o depoimento das testemunhas AG e AH, quem se lembravam a mãe da Autora, conhecida por avó “XX” que vivia no prédio nº26 juntamente com os Autores, com todas essas provas, levou o Tribunal a confirmar a resposta dada aos quesitos 3º a 6º.
Em particular, sobre os factos de exercício do actos materiais sobre o prédio em discussão como seu dono pelos Autores, a convicção do Tribunal baseou-se no depoimento das testemunhas dos Autores, nomeadamente a U, V, AG, e AH. As últimas duas primeiras disseram presenciar a família dos Autores a morar no rés-do-chão do prédio e que o 1º andar tinha sido arrendado a outra família pela mãe da Autora. Estas testemunhas eram vizinhos dos Autores durante as décadas de 60 e 70, tomando conhecimento desses factos tanto por conhecimento pessoal como através das conversas tidas entre as mães delas e a mãe da Autora. Por outro lado, essas testemunhas depuseram com ar espontâneo e natural, conseguiram esclarecer com razões pelas quais lhes levaram a lembrar sobre a matéria inquirida, mesmo que sejam factos remontados à infância, cujo depoimento merece o acolhimento do Tribunal. Enquanto as outras duas testemunhas chegaram a morar ou usar o prédio, nos tempos diferentes mas após os Autores tinham mudado para outra residência, por autorização do K, tendo a V usado o rés-do-chão do prédio para depósito dos materiais até o prédio foi demolido pelos 1º e 2ª Réus em 2001. Para além disso, os Autores apresentaram imensos documentos para suportar esses factos, tais como os assentos de nascimento dos filhos dos Autores, os registos escolares dos filhos dos Autores, (cfr. fls. 36 a 39, 920 a 937), em que consta a residência dos Autores na altura já era o nº26 da Praça do Lobo Ávila; assim como as facturas de electricidade, de telecomunicações (cfr. fls. 40 a 56, 1564 e 1565, 1581 a 1599), os recibos de pagamento das contribuições prediais durante o período de 1937 a 1996 (fls. 61 a 69), os recibos de rendas (fls. 821 a 918), com que demonstra os Autores e os seus antecessores ter suportado os encargos decorrentes do prédio durante mais de quatro décadas. O depoimento das testemunhas dos Autores, em conjugação com as provas documentais, tudo aponta que os Autores praticaram e praticam actos materiais sobre o prédio mesmo depois de mudar para outra residência. Enquanto as contraprovas apresentadas pelos Réus não têm a tal relevância para abalar a afirmação do Tribunal, na verdade, conforme o teor das duas vistorias realizadas por essa entidade, ninguém atendeu à porta na hora determinada não significa que a casa é desabitada menos que o abandono do mesmo, nem as facturas de fls. 591 a 593, como se sabe, o arrendatário também pode abrir a conta de electricidade e de água, como se considera que o prédio tinha sido arrendado a outrem pelos Autores, essas contas foram registados a outrem não implica que os Autores não tinham domínio sobre o prédio. Bem ao contrário, de acordo com os facto articulados pelos próprios Réus no processo da restituição de posse nº 162/97, instaurado em 13/06/1997, em que intervieram os J e K e foram julgado extinto por desistência do pedido em 25/02/2004 (cf. Fls. 2063 a 2070), aqueles admitiram que o rés-do-chão do prédio foi ocupado pelo K enquanto o 1º andar pelo outro AI, o que é mais que cristalino que os Réus reconheceram a K tinha o domínio sobre o prédio. Outrossim, através da participação junto da PJ pela Autora em 17/01/2001 (fls.1899), logo após a demolição do prédio pelos Réus, assim como dos actos praticados pelos Autores no processo de projecto de construção apresentados ao D.S.S.O.P.T., pelos Réus (fls. 1983 a 2070), mostra que os Autores actuaram positivamente para defender o seu domínio sobre o prédio. Assim, apreciando, no global, todas essas provas referidas, permite o Tribunal formar uma convicção com segura e certeza as respostas dadas aos factos dos quesitos 7º a 11º, 16º, 23º e 24º e, consequentemente, não se dá como provado o facto constante do quesito 14º.
Relativamente ao facto sobre AE, tomando em conta o teor da sentença criminal proferida pela 1ª Vara Criminal de Lisboa, de fls. 383 a 402 em que se considerou parte dos factos exarados nas duas escrituras de habitações de 30/04/1996 e de 16/07/1996, atestados por vários “certidões” pretensamente emitidos por um padre de Macau, monsenhor AJ, serem inverídicos, em conjugação ainda com o teor do assento de óbito da AE de fls. 1898, onde consta esta morreu em 12 de Junho de 1925 e não em 1920, tal como assim exarado na referida habilitação, com todos vícios apontados, cria-se séries dúvidas irremovíveis sobre a veracidade de todo o conteúdo constante de tais escrituras de habilitações, assim é que levou o Tribunal considerar como provados o facto constante do quesito 12º e a resposta dada ao quesito 21º.
Sobre o facto da demolição do prédio, com base no teor dos documentos de fls. 605 a 642, da factura das despesas de fls. 583 e 1929, conjugado com o depoimento da testemunha X, é que se permite a dar como provados esses factos.
De acordo com o teor dos recibos de contribuições prediais fls.41 a 98, consta que, desde 1937 até 1996, o AF ou AF1 era titular da inscrição matricial do prédio, assim, é que dá como provado o facto do quesito 22º.
Não se consideraram provados os factos constantes dos quesitos 1º, 2º, 13º, 17º e 18º por não ter sido produzida prova com relevância que permite o Tribunal formar convicção segura sobre a veracidade desses factos.
....”.
Quid iuris?
Como é sabido, segundo o princípio da livre apreciação das provas previsto nº 1 do artigo 558.º do CPC, “O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
A justificar tal princípio e aquilo que permite a existência do mesmo, temos que o Tribunal a quo beneficia não só do seu prudente juízo e experiência, como da mais-valia de um contacto directo com a prova, nomeadamente, a prova testemunhal, o qual se traduz no princípio da imediação e da oralidade.
Sobre o princípio da imediação ensina o Ilustre Professor Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil, I, 175), que “é consequencial dos princípios da verdade material e da livre apreciação da prova, na medida em que uma e outra necessariamente requerem a imediação, ou seja, o contacto directo do tribunal com os intervenientes no processo, a fim de assegurar ao julgador de modo mais perfeito o juízo sobre a veracidade ou falsidade de uma alegação”.
Já Eurico Lopes Cardoso escreve que “os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe.” (in BMJ n.º 80, a fls. 220 e 221)
Por sua vez Alberto dos Reis dizia, que “Prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador seguindo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei. Daí até à afirmação de que o juiz pode decidir como lhe apetecer, passando arbitrariamente por cima das provas produzidas, vai uma distância infinita. (...) A interpretação correcta do texto é, portanto, esta: para resolver a questão posta em cada questão, para proferir decisão sobre cada facto, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, forma sua convicção como resultado de tal apreciação e exprime-a na resposta. Em face deste entendimento, é evidente que, se nenhuma prova se produziu sobre determinado facto, cumpre ao tribunal responder que não está provado, pouco importando que esse facto seja essencial para a procedência da acção” (in Código de Processo Civil anotado, Coimbra Editora IV, pago 570-571.)
A jurisprudência local tem entendido que “(...) nem mesmo as amarras processuais concernentes à prova são constritoras de um campo de acção que é característico de todo o acto de julgar o comportamento alheio: a livre convicção. A convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Nesse sentido, princípios como os da imediação, da aquisição processual (artº 436º do CPC), do ónus da prova (artº 335º do CC), da dúvida sobre a realidade de um facto (artº 437º do CPC), da plenitude da assistência dos juízes (artº 557º do CPC), da livre apreciação das provas (artº 558º do CPC), conferem lógica e legitimação à convicção. Isto é, se a prova só é "livre" até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao seu trabalho no tocante à matéria de facto só nos casos restritos no âmbito do artºs. 599º e 629º do CPC pode ser levada a cabo. Só assim se compreende a tarefa do julgador, que, se não pode soltar os demónios da prova livre na acepção estudada, também não pode hipotecar o santuário da sua consciência perante os dados que desfilam à sua frente. Trata-se de fazer um tratamento de dados segundo a sua experiência, o seu sentido de justiça, a sua sensatez, a sua ideia de lógica, etc. É por isso que dois cidadãos que vestem a beca, necessariamente diferentes no seu percurso de vida, perante o mesmo quadro de facto, podem alcançar diferentes convicções acerca do modo como se passaram as coisas. Não há muito afazer quanto a isso.” (Ac. do TSI, de 20/09/2012, Proc. nº 551/2012).
Pois, “A livre convicção do julgador da 1ª instância é soberana e só em caso de erro, que facilmente seja detectável, pode o tribunal do recurso censurar o modo como a apreciação dos factos foi feita. Quando a primeira instância forma a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir nela, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova.
A decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629º do CPC e o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.” (Ac. do TSI, de 17/01/2018, Proc. nº 60/2018).
Ao nível do direito comparado, o STJ de Portugal sustenta que “A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação” (Ac. do STJ, de 21/01/2003, in www.dgsi.pt).
Com efeito, “não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, nas respectivas instâncias, não bastando que não se concorde com a decisão dada, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos.(...).” (Ac. do RL de 10/08/2009, in www.dgsi.pt.).
Ou seja,
Uma coisa é não agradar o resultado da avaliação que se faz da prova, e outra bem diferente é se detectarem no processo de formação da convicção erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.
Ora,
Analisados todos os elementos probatórios existentes nos autos, bem como a fundamentação da formação da convicção, não se detecta algum erro manifesto de julgamento, nem violação de regras e/ou princípios de direito probatório por parte do Tribunal a quo.
Na verdade, a análise dos elementos probatórios feita pelos ora Recorrentes, especialmente dos depoimentos das testemunhas transcritos na motivação do recurso traduz-se simplesmente numa convicção pessoal, que per si não é suficiente demonstrar que existe erro notório na apreciação da prova por parte do Tribunal a quo.
Ou seja, não temos meios probatórios concretos constantes dos autos ou de registo nele realizado, que impunham, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, decisão diversa da recorrida.
Uma nota particular para a resposta do quesito 11º.
No entender dos ora Recorrentes, o quesito em causa deve ser considerado como não escrito, por ser um facto conclusivo.
Para nós, uma vez que ficaram provados outros factos concretos que demonstram o exercício do poder de facto por parte dos Autores sobre o prédio em causa como proprietário fossem, a resposta do mesmo deixa de ser genérica ou vaga, passando a ter substância concreta.
Por outro lado, comportar como proprietário prende-se com o elemento subjectivo da posse (o animus), que é susceptível de quesitação.
Face ao expendido, é de negar provimento o recurso nesta parte.
3. Da contradição entre as respostas dadas aos quesitos 8º e 16º:
Os quesitos 8º e 16º têm os seguintes teores:
8º
Os Autores após a morte da AK continuaram a ocupar o prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente?
16º
Os Autores passaram a viver em Macau no início da década de setenta do século passado, residindo na XXX?
Ambos foram considerados como provados.
Na óptica dos ora Recorrentes, existe contradição entre os factos em causa, já que os Autores não podem residir simultaneamente em dois prédios diferentes.
Adiantamos desde já que não lhes assiste razão, visto que a ocupação referida no quesito 8º não deve ser entendida no sentido de residir, mas sim o sentido de praticar actos materiais como fosse verdadeiro proprietário, nomeadamente o dar de arrendamento, pagar os impostos inerentes, etc..
Improcede, assim, o recurso nesta parte.
4. Da insuficiência da matéria de facto:
Defendem os ora Recorrentes que a factualidade apurada não é suficiente para decretar a usucapião dos Autores, mas sem razão.
No caso em apreço, ficaram provados os seguintes factos:
- A R chegou a Macau desde meados do século passado ficando como ama em casa de AD. (resposta ao quesito 4º da base instrutória)
- A R vivia no prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente juntamente com o seu marido S. (resposta ao quesito 5º da base instrutória)
- A R e o S eram os pais da Autora. (resposta ao quesito 6º da base instrutória)
- A R continuou a viver no prédio referido na alínea a), em companhia da Autora, pelo menos até 1973. (resposta ao quesito 7º da base instrutória)
- Os Autores após a morte da R continuaram a ocupar o prédio referido na alínea a) da matéria de facto assente. (resposta ao quesito 8º da base instrutória)
- Os Autores realizaram obras no prédio, arrendaram o mesmo a terceiros e pagaram os impostos a ele respeitantes. (resposta ao quesito 9º da base instrutória)
- A Autora também pagou os serviços do guarda nocturno que prestava serviço no local. (resposta ao quesito 10º da base instrutória)
- Os Autores sempre se comportaram como donos do prédio referido na alínea a). (resposta ao quesito 11º da base instrutória)
- Os contratos de provimento de telefone e abastecimento de electricidade foram celebrados com o Autor marido. (resposta ao quesito 23º da base instrutória)
- Foram sempre os Autores a assumir o pagamento da contribuição predial do prédio assim como o fazia a sua mãe e sogra já em 1937. (resposta ao quesito 24º da base instrutória)
Ora, a factualidade acima elencada é suficiente para comprovar a existência e a sucessão da posse sobre o prédio em causa por parte dos Autores mais de 20 anos, pelo que não se verifica a alegada insuficiência matéria de facto para efeitos de usucapião.
O recurso não deixará de se julgar improvido nesta parte.
5. Da perda da posse:
A decisão nesta parte tem o seguinte teor:
“…
Pugnam os 1ºs Réus com a perda da posse a favor a eles, a pretensão de aquisição do direito de propriedade mediante a usucapião teria que fracassar.
Os 1ºRéus terão entendido que uma vez perdida a posse, jamais puderam os Autores invocar a usucapião.
Será assim?
Ensina Fernando Pereira Rodrigues, a propósito à invocação da usucapião, que “A usucapião, uma vez verificados todos os seus pressuposto, não operando “ipso jure”, nem podendo ser conhecida “ex offico” pelo julgador, necessita, pois, de ser invocada por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público.
Como já se viu, a invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião pode admitir-se se a respectiva posse durou o tempo necessário para o efeito, mesmo que, depois, de tenha perdido tal posse.
Acresce que a perda da posse, por um lado, apenas faz perder o senhorio de facto e, por outro, não é acto interruptivo, para efeito do artº326º.
Além disso, a faculdade de invocar a aquisição do direito não prescreve. Apenas, se, entretanto, se desenvolveu outra posse prescricional a favor de terceiro, e este invocar a aquisição do direito por usucapião, então, a invocação do primeiro será irrelevante, porque a aquisição originária do direito do último possuidor extingue a do anterior(artº1313º). (cfr. in Usucapião, Almedina, pg.47)
Segundo esse entendimento, a perda da posse não obsta à aquisição originária por usucapião.
É, igualmente, esse entendimento na jurisprudência:
“A circunstância de os AA. já não serem possuidores do imóvel em litígio na data da propositura da acção não lhes retira a legitimidade para invocarem a usucapião, desde a perda da posse a favor de outrem não tiver decorrido um lapso de tempo suficiente para ter repercussões sobre o direito de propriedade. (Acórdão de 28/09/2010, Proc.239/08/.0TBALB.C1, do Tribunal da Relação de Coimbra)
Afirma ainda, noutro acórdão em que se discute um caso semelhante ao presente, “Revertendo à situação dos autos, é patente não estar minimamente demonstrado ter o A. praticado qualquer acto material com a intenção de rejeito o seu direito. Mas, para além da inexistência de actos configuradores da figura do “abandono”, o direito de propriedade sobre imóvel não pode ser abandonado. E que é preciso não esquecer que, em 2000, o A. já era proprietário. E também a invocação da alínea d) daquele normativo (artº1267º do CC) é descabido, porque os RR. não lograram provar que tenham a posse sobre o terreno pelo período de tempo necessário à sua aquisição por usucapião. É que aqui é despiciendo saber quem, em 08-07-2002, podou os bardos no sentido de que, pelo menos, em 2000 se verificou a usucapião, pelo que o A. já era proprietário. Pode-se até dizer o prédio já se encontrava na esfera patrimonial do A. aquando da escritura de compra e venda, sendo a mesmo inócua juridicamente para poder alterar tal situação.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/03/2010, Proc. 28/05.4TBVLS.L1-1)
Sufragado por esse entendimento, a perda da posse a favor de terceiro só tem relevância para obstar a invocação da usucapião pelo possuidor anterior se a nova posse tiver decorrido o prazo necessário para a aquisição por usucapião pelo possuidor actual.
Regressamos ao caso em apreço, mesmo que os 1ºs Réus lograram mostrar que entraram posse do prédio em 02/02/2001, a posse, só per em si, não ter a virtualidade para impedir aquisição originária do direito de propriedade invocada pelos Autores, se estes já tiveram reunidos os pressupostos de usucapião no momento da perda da posse, a não ser a posse dos Réus já durou o tempo suficiente para conduzir a aquisição originária, nesse caso, extinguirá o direito dos Autores.
Assim, para a resolução do caso, urge aquilatar se a posse dos Autores tinha completado o prazo necessário que lhe faculta a aquisição do direito da propriedade por usucapião, à data da perda da posse a favor dos 1ºs Réus.
…”.
Trata-se duma decisão que aponta para a boa solução do caso, com a qual concordamos na sua íntegra, pelo que ao abrigo do nº 5 do artº 631º do CPCM, é de negar o recurso nesta parte com os fundamentos invocados na decisão recorrida.
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(B) Recurso dos Herdeiros do Chamados
As questões suscitadas no âmbito deste recurso já foram supra apreciadas, pelo que em nome da economia processual, vale aqui o acima exposto sobre as mesmas questões.
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IV – DECISÃO
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- conceder provimento parcial aos recursos interpostos, revogando a nova decisão da matéria de facto do Tribunal a quo do segundo julgamento em relação aos quesitos 12º, 13º e 17º da Base Instrutória, mantendo a resposta dada aos mesmos no primeiro julgamento; e
- confirmar a sentença recorrida nos demais decididos.
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Custas dos recursos pelos Autores e pelos Chamados e Réus na proporção de 1/10 (Autores) e 9/10 (Chamados e Réus).
Notifique e registe.
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RAEM, aos 09 de Fevereiro de 2023.
Ho Wai Neng
(Relator)
Tong Hio Fong
(1º Juiz-Adjunto)
Choi Mou Pan
(2º Juiz-Adjunto)
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1038/2021