Processo nº 757/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data do Acórdão: 16 de Fevereiro de 2023
ASSUNTO:
- Compensação
- Requisitos
SUMÁRIO:
- São apontados pela Doutrina como requisitos da compensação de créditos a reciprocidade de créditos, validade e exigibilidade, fungibilidade e homogeneidade e a declaração compensatória;
- O crédito com que se pretende operar a compensação pode ser ilíquido mas tem de estar em condições de poder ser exigido judicialmente, não sendo necessário que as dívidas sejam de igual de montante;
- Se o crédito que a executada pretende ver compensado não existe, não é exigível judicialmente, nem tão pouco passível de ser reconhecido judicialmente neste momento, não sabemos a sua origem, nem o valor, nem a espécie, nem a qualidade, mas apenas uma hipótese futura e incerta não pode aceitar-se a compensação.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 757/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 16 de Fevereiro de 2023
Recorrente (Exequente): A Promoção de Jogos – Sociedade Unipessoal Limitada
Recorrida (Executada): B Macau S.A.
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A Promoção de Jogos – Sociedade Unipessoal Limitada, com os demais sinais dos autos,
Exequente nos autos de execução em que é Executada,
B Macau S.A. também, com os demais sinais dos autos.
Veio interpor recurso do despacho cuja cópia consta de fls. 59, traduzidos a fls. 101/104 e que indeferiu liminarmente o requerimento inicial da acção de execução por falta de título executivo apresentando as seguintes conclusões:
A. O presente recurso vem interposto do Despacho de fls. 59, que indeferiu liminarmente a acção.
B. Decisão, essa, que pelas razões que a seguir se explanam. Não colhe a aquiescência da, ora, Recorrente.
C. Exequente e Executada celebraram, em 23 de Junho de 2017, o acordo chamado “FOURTH RENEWAL OF THE GAMING PROMOTION AGREEMENT”.
D. Exequente e Executada acordaram, ainda, em 30 de Outubro de 2020, quanto aos incentivos adicionais ao contrato original assinado em 23 de Junho de 2017.
E. No dia 14 de Dezembro de 2021 a Executada enviou carta à Exequente a liquidar o montante que teria de pagar à Exequente no âmbito destes acordos.
F. Assim, a Exequente é legítima de um documento particular, datado de 14 de Dezembro de 2021, que importa o reconhecimento de obrigações pecuniárias no montante de HKD$10.671.604,00, equivalentes a MOP$10.991.752,12.
G. Mais, tal documento menciona, ainda, que a dívida se venceu no dia 15 de Dezembro de 2021.
H. Neste documento a executada, não, só, reconhece a obrigação pecuniária, “there are fees payable by VML to A”, como liquida a dívida: “in the amount of HKD10.671.604,00” e, ainda, estabelece a data de vencimento dessa dívida: “These fees become due on 15 December 2021.”
I. Dúvidas não restam que a carta enviada pela Executada à Exequente contém todas as características do título executivo vertidas no Art. 977.º al. c) do CPC.
J. A Executada ao mencionar o Art. 838.º, não invoca nenhum facto gerador desse direito a invocar a compensação, nem, menciona qual crédito, nem que montante, nem a sua espécie.
K. Apenas refere que poderá, no futuro, enfrentar acções ou indemnizações pelas actividades da Exequente.
L. Tal como julgou a Relação do Porto em 12-04-1983: “É possível a compensação com um crédito ilíquido, mas não de um crédito meramente hipotético, cuja existência está a ser discutida em acção cível pendente.”
M. Não estão, assim, preenchidos os requisitos cumulativos vertidos no Art. 838.º.
N. Pelo que não há lugar a qualquer compensação.
O. Subsistindo, assim, o reconhecimento, pela Executada da obrigação de pagar à Exequente a quantia de HKD$10.671.604,00.
P. O Tribunal a quo violou os Arts. 677.º al. c) do C.P.C. e 838.º do C.C.
Contra-alegando veio a Executada (Recorrida) pugnar para que fosse negado provimento ao recurso, não apresentando, contudo, conclusões.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DO DIREITO
É do seguinte teor a decisão recorrida na parte em que é objecto deste recurso:
«A Exequente intentou a presente acção de execução com base no documento 4 (como título executivo) que se juntou ao requerimento inicial, em que apontou que a Executada tinha reconhecido, através do documento referido, a dívida no valor de HKD10.671.604,00 (equivalente a MOP10.991.752,12) e tinha reconhecido ainda que tal dívida venceu no dia 15/12/2021.
Nos termos da al. c) do artº 677º do CPC, podem servir de título executivo “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 689.º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto”.
A constituição de dívida é a celebração de contrato de empréstimo e o reconhecimento de dívida significa a confirmação duma dívida já constituída (artº 452º do CC)1
A Executada alegou no documento 4 que de acordo com o contrato celebrado entres as duas partes, a Executada deve pagar à Exequente uma quantia no montante de HKD10.671.604,00. Contudo, a Executada tem direito de compensação, pelo que está a guardar a quantia e sobre a qual exerce o direito de compensação, a fim de compensar as obrigações decorrentes do incumprimento por parte da Exequente do acordo celebrado entre as partes.
Do dito documento resultou saber que a Executada exerce o direito de compensação sobre a pretensão da Exequente.
Dispõe o artº 838º, nº 1 do CC que “quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio da compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos cumulativos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.”
Tendo ponderado que a Executada exerce o direito de compensação sobre a pretensão da Exequente, ou seja, a quantia no montante de HKD10.671.604,00, e a mesma não reconheceu a dívida que ainda existe após o exercício do direito de compensação, nem reconheceu o valor da dívida após operada a compensação, no entendimento deste Juízo, a Executada não reconheceu, através do documento 4 juntado ao requerimento inicial, a dívida com o valor de HKD10.671.604,00 e cujo credor é a Exequente.
Por outro lado, aparentemente, a Executada não tinha constituído, através do documento 4 juntado ao requerimento inicial, a dívida com o valor de HKD10.671.604,00.
Deste modo, não pode este Juízo dar como provado que a Executada tinha constituído ou reconhecido, através do documento 4 juntado ao requerimento inicial, uma dívida no valor de HKD10.671.604,00, o que quer dizer que o documento 4 não constitui título executivo.
Face ao exposto, o documento 4, que foi juntado ao requerimento inicial, não constitui título executivo, assim, nos termos do artº 695º do CPC, conjugado com os artºs 677º e 12º do mesmo diploma legal, decide-se indeferir liminarmente o requerimento inicial da acção de execução por falta de título executivo.
Custas pela Exequente.
Notifique.».
Não acompanhamos a decisão recorrida.
Já se citou supra o artº 838º do C.Civ. pelo que nos dispensamos aqui de o fazer novamente.
São apontados pela Doutrina2 como requisitos da compensação os seguintes:
- Reciprocidade de créditos: Reciprocidade de créditos significa que as duas pessoas a que alude o preceito sejam reciprocamente credores e devedores um do outro e não terceiros, isto é, estas duas pessoas são credor e devedor da parte a quem opõem o seu crédito;
- Validade e exigibilidade: Daqui resulta que o devedor-credor que pretende exigir judicialmente a compensação – o compensante – possa nesse momento impor à parte contrária a realização coactiva do seu crédito e que não lhe possa ser oposta por esta (parte contrária) qualquer excepção, peremptória ou dilatória, de direito material, sem prejuízo do que se estabelece para a prescrição no artº 841º do C.Civ.
- Fungibilidade e homogeneidade: Isto significa que as prestações têm de ser do mesmo género, espécie ou qualidade e respeitar a coisas fungíveis3.
- A declaração compensatória: O declarante tem de declarar à outra parte a vontade de compensar.
Por fim consagra-se que o crédito do compensante pode ser ilíquido, mas isto não significa que não tenha de ser exigível, ou seja, como já referiu que o compensante esteja em condições de exigir judicialmente o seu crédito, sem prejuízo da iliquidez.
Também não é necessário que as dívidas sejam de igual montante – cf. nº 2 do artº 838º C.Civ. – dando-se a compensação apenas na parte correspondente.
Ora, no caso dos autos pergunta-se qual é o crédito que a executada tem sobre o exequente?
Qual é a natureza da prestação – vg. monetária, artigos de que espécie -?
Quando é que esse crédito se venceu?
Esse crédito é líquido ou ilíquido e neste último caso como proceder à liquidação?
Ora, o que resulta do documento dado à execução como título executivo é que nenhuma destas questões pode ser respondida.
Em síntese o que a executada ali declara é que reconhece ser devedora da quantia que indica mas admitindo que eventualmente possa vir a ser responsabilizada pelo pagamento de créditos decorrentes da situação da exequente relativamente aos quais possa poder vir a exercer o direito de regresso contra esta, para a eventualidade desse facto – eventual, futuro e incerto – vir a acontecer e a agora exequente não estar em condições de lhe pagar, declara reter este valor para futura e eventual compensação.
Daqui resulta que o crédito que a executada pretende ver compensado não existe, não é exigível judicialmente, nem tão pouco passível de ser reconhecido judicialmente neste momento, não sabemos a sua origem, nem o valor, nem a espécie, nem a qualidade, etc..
Ou seja, não se verificam os requisitos para que pudesse ser invocada a compensação, enfermando o despacho recorrido de erro na aplicação do direito, havendo em consequência que ser revogado e substituído por outro que decida como houver por conveniente desde que não seja a rejeição da execução pelo motivo dele constante.
Para melhor esclarecer a situação, recorrendo a jurisprudência comparada, reproduz-se o sumário de três Acórdãos do STJ de Portugal reproduzidos e citados em Código Civil de Macau Anotado e Comentado Jurisprudência, Livro II Direito das Obrigações, Volume X, anotações ao artº 838º:
1. A compensação é o meio que o devedor dispõe de se livrar da obrigação por extinção simultânea do crédito equivalente de que dispõe sobre o seu credor, podendo a mesma ser legal ou voluntária, sendo que esta última pode operar, ao abrigo do princípio da autonomia privada, independentemente da verificação de algum dos requisitos exigidos para a primeira. II - A compensação legal constitui um verdadeiro direito potestativo, dependendo da declaração de uma da partes à outra para se tomar efectiva (art. 848.º do CC). III - São pressupostos da compensação: (i) a reciprocidade dos créditos (isto é, que o devedor seja credor do seu credor); (ii) a validade, exigibilidade e exequibilidade do crédito do compensante (isto é, que o devedor possa impor ao notificado a realização coactiva do crédito que se arroga contra este); e (iii) a fungibilidade do objecto das obrigações (art. 847.º do CC). IV - Quando a compensação é invocada pelo réu numa acção judicial, seja por reconvenção ou por excepção, recai sobre o mesmo o ónus de alegação e prova do seu suposto crédito contra o crédito do autor (arts. 847º, n.º 1, e 342.º, n.º 1, do CC). V - Resultando da matéria fáctica assente que a autora, alegando dificuldades financeiras, solicitou à ré que esta lhe fosse fazendo entregas por conta do remanescente do preço estipulado como contrapartida de um contrato de permuta, que a ré acedeu a tal pedido e que ficou acordado que, posteriormente, seria feito um encontro de contas, não pode dizer-se que se esteja perante a figura da compensação, já que não existe qualquer contra crédito da ré sobre a autora, mas antes tão só e apenas uma imputação que consiste em abater ao montante de um crédito quantias já previamente pagas para, assim, o reduzir à sua justa expressão numérica.” - Ac. do STJ, de 29/10/2015, Proc. nº 173052/11.
2. A “compensação” é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como subrogado dela, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor; quando o devedor é também credor do seu credor opera-se a circunstância jurídico-substantiva da “compensação”, através deste fenómeno jurídico se consentindo que o devedor se desonere do seu débito a expensas deste seu consubstanciado crédito. 2. A iliquidez não impede a compensação (artigo 847º, n.º 3, do C.Civil); e a compensação torna-se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra (art.º 848, n.º 1, do Civil). 3. Todavia, a compensação só pode operar-se no caso de o autor da compensação comprovar a exigibilidade do seu crédito; e um crédito só se torna exigível quando está judicialmente reconhecido, desiderato este que pode ocorrer na fase declarativa do litígio.” - Ac. do STJ, de 12/09/2013, Proc. nº 5478/06.
3. A compensação é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como subrogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor (art. 847.º do CC). II - A compensação legal ali prevista não é automática mas sempre potestativa, por depender de uma declaração de vontade, ou pedido, do titular do crédito secundário. III - Para que a extinção da dívida por compensação possa ser oposta ao credor, exigem-se a verificação dos seguintes requisitos: a) a existência de dois créditos recíprocos; b) a exigibilidade (forte) do crédito do autor da compensação; c) a fungibilidade e a homogeneidade das prestações; d) a não exclusão da compensação pela lei; e, e) a declaração de vontade de compensar. IV - A referida exigibilidade pressupõe que se configure um direito de crédito, decorrente de uma obrigação civil, vencida, incumprida e ainda não extinta. V - Isso não ocorre quando, como no caso vertente, o crédito invocado depende de uma condenação, a proferir em processo penal, de pessoas singulares e decorrente atribuição de uma indemnização à ré, a pagar solidariamente pelos seus autores materiais, pela autora e outra pessoa colectiva, pelo deve o mesmo ser tido como incerto, hipotético, não dando direito ainda a acção de cumprimento ou à execução do património do devedor, nem habilitando, quem o invoca, a obter a respectiva compensação.” - Ac. do STJ, de 1/07/2014, Proc. nº 11148/12.
III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se o despacho recorrido o qual deve ser substituído por outro que decida como houver por conveniente sem que seja o indeferimento liminar pelo motivo invocado.
Custas pela Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 16 de Fevereiro de 2023
Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(1º Juiz Adjunto)
Ho Wai Neng
(2º Juiz Adjunto)
1 José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 2º ed., páginas 93 e 94
2 Veja-se Código Civil de Macau Anotado e Comentado Jurisprudência, Livro II Direito das Obrigações, Volume X, anotações ao artº 838º, sendo que o elenco de requisitos que se segue é um resumo da nossa responsabilidade do que ali melhor se desenvolve.
3 Cf. artº 197º do C.Civ.
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757/2022 CÍVEL 33