Processo n.º 802/2022
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 16 de Fevereiro de 2023
ASSUNTOS:
- Condenação cível com dedução do valor do “apreendido” dum processo-crime e inaplicabilidade do artigo 774º do CC
SUMÁRIO:
I – Quando a decisão condenatória em matéria cível proclamou: “ o executado é condenado a restituir à exequente o montante que por esta lhe foi pago na compra e venda de imóvel, na valor concreto a ser liquidado na altura da execução da decisão, acrescidos de juros de mora calculados à taxa legal sobre valor de HKD5.800.000,00 e contados a partir da data de trânsito em julgado da decisão do processo nº CV1-12-0001-CAO, mas com a dedução do valor que a exequente recebeu efectivamente na sequência do processo nº CR2-12-0028-PCC”, os termos fixados são claros: para deduzir do capital o valor que o exequente vai receber no processo-crime, ou seja, deduzir do capital das quantias resultantes da venda do apreendido (ou do valor avaliado) no processo-crime, e não calcular os juros.
II – Perante a situação mencionada na parte I, não é de aplicar o artigo 774º do CCM, por não se tratar de uma situação de “indemnizar o credor (Exequente) em consequência da mora do devedor” tal como fala o preceito legal citado. Pois, a mora pressupõe a culpa, no caso não há culpa do devedor, o que se verifica é a mora da liquidação do valor do apreendido no processo-crime resultante das formalidades burocráticas necessárias para o apuramento do respectivo valor.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo nº 802/2022
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 16 de Fevereiro de 2023
Recorrente : A (na qualidade de sucessor do embargante falecido B) (A(作為已故提出異議人B的繼承人)) (Embargante)
Recorrida : C – Fomento Predial Limitada (C物業有限公司) (Embargada)
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
A (na qualidade de sucessor do embargante falecido B) (A(作為已故提出異議人B的繼承人)), Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datado de 19/04/2022, veio, em 23/06/2022, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 188 a 198, tendo formulado as seguintes conclusões:
I - Em sede da acção n.º CV3-14-0032-CAO, ficou demonstrado que a D e a E tinham já providenciado à exequente o valor de 700.000 acções - ou seja, HKD$3.059.000,00 - em 25 JUL 2018.
II - Ao assim terem procedido, a D e a E diminuíram correspondentemente o valor total da quantia exequenda pelo qual o aqui executado e recorrente tem de responder perante a exequente e recorrida, razão essa pela qual o B reduziu o seu pedido nessa acção n.º CV1-16-0005-CAO em HKD$3.059.000,00, equivalente a MOP$3.166.065,00 devendo a execução prosseguir apenas quanto à quantia de HKD$2.741.000,00.
III - As pretensões deduzidas em ambas as acções cíveis têm uma conexão intrínseca e, bem assim, um denominador ou matriz comum: o acórdão penal proferido nos autos criminais n.º CR2-12-0028-PCC, transitado em julgado em 7 JAN 2013, em que o aqui executado, ora recorrente, foi absolvido e as referidas D e E foram condenadas por um crime de burla.
IV - Após a anulação judicial promovida em execução da decisão penal pelo Ministério Público, a C REAL ESTATE LIMITED, anulada que foi a compra que tinha feito do imóvel n.º … da Rua do …, buscou o respectivo ressarcimento intentando a acção cível n.º CV3-14-0032-CAO contra o aqui executado, ora recorrente, e as referidas D e E.
V - A recorrida C REAL ESTATE LIMITED, apenas poderia executar o património do B, processualmente substituído pela ora recorrente, pelo valor de HKD$2.741.000,00.
VI - O título executivo oferecido nos presentes autos pela recorrida e exequente - certidão judicial da sentença do T.J.B. de 25 JUL 2017, do acórdão do T.S.I. de 11 OUT 2018 e do acórdão do T.S.I. de 22 MAI 2019 - é juridicamente imprestável para servir de base à presente execução nos termos e com o alcance excessivo e abusivo que veio peticionado pela mesma.
VII - Na mesma sentença do T.J.B. de 25 JUL 2017, logo se referiu de imediato que a tal quantia de HKD$5.800.000,00 deveria ser deduzido o valor das 700.000 acções do Banco da China em nome das 1ª e 2.ª rés, sendo certo que 'deduzido' tem o significado de abatido, subtraído, diminuído, retirado, decrescido, descontado ou cortado.
VIII - O valor dessas 700.000 acções foi atribuído, logo nos mencionados autos criminais n.º CR2-12-0028-PCC, à aqui embargada e ora recorrida.
IX - Não obstante essa atribuição, é insofismável que até final de Julho de 2018 a embargada não tornou nem nada fez de imediato para fazer seu o valor das acções e não o tendo feito, sibi imputat, tratando-se de uma decisão que apenas respeita e deve responsabilizar a própria embargada.
X - Em termos que se entende impassíveis de contestação, é inevitável a constatação e conclusão de que, objectivamente, existiu mora, pois que, entre o momento da atribuição e o momento do recebimento efectivo do valor das acções, é inegável e insofismável que mediou um lapso de tempo que apenas beneficiou em termos de juros a embargada.
XI - Lapso de tempo relativamente ao qual, todavia, a embargante e recorrente foi inteiramente alheia e que se a alguém se deve, é-lo necessariamente à aqui recorrida, única interessada em tal delonga pecuniariamente vantajosa para si.
XII - Ou, se houve "mora de devedor", essa mora (e respectivos juros a que tenha dado azo) foi apenas e tão-somente das 1.ª e 2.ª rés, mostrando-se res inter alios relativamente ao embargante e aqui recorrente.
XIII - Mas se, simetricamente, houve afinal "mora de credor", essa mora é indubitavelmente apenas da aqui embargada, sendo igualmente res inter alios em relação ao embargante, ora recorrente.
XIV – Não poderá é a embargada e recorrida vir repercutir sobre o embargante essa sua omissão de cobrança efectiva do valor das 700.00 acções, que objectiva e insofismavelmente não promoveu contra as 1.ª e 2.ª rés em devido tempo, ou seja, de imediato.
XV – Os 1722 dias de juros de mora a que a embargada aludiu no art. 4.° do seu requerimento inicial - e que, ilegítima e abusivamente, pretendeu fazer incluir na execução - não têm qualquer arrimo ou sustentação no conjunto das três decisões judiciais oferecidas à execução, pelo contrário, pois, tal como dispõe o n.º 1 do art. 12.° do C.P.C., a «(...) acção executiva tem como base um título, pelo qual se determinam o seu fim e os seus limites (...)» sendo que para se apreciar da exequibilidade do título, mais não há que fazer do que verificar se a obrigação a executar se contém ou não no título executivo - cfr. ANSELMO DE CASTRO in "A Acção Executiva ... ", 1977, pg. 90, e J. ALBERTO DOS REIS in "Processo de Execução, I", pg. 190 a 196.
XVI - Ao não ter adoptado a ora propugnada interpretação e aplicação das normas jurídicas constantes do art. 697.°, als. a) e e), do C.P.C., o Tribunal a quo procedeu à violação das mesmas normas jurídicas, o que se invoca nos termos e para os efeitos das alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 598.° do C.P.C.
XVII - Pelo exposto, em sede da sentença a quo os embargos de executado deveriam ter sido julgados procedentes e, por conseguinte, a execução não poderia prosseguir quanto à quantia de HKD$2.667.920,55 (juros de mora de 1722 dias), devendo apenas prosseguir quanto à quantia de HKD$2.741.000,00 (id est, HKD$5.800.000,00 deduzidos de HKD$3.059.000,00, ou seja, o valor das 700.000 acções pago em 25 JUL 2018 pelas 1.ª e 2.ª rés).
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C – Fomento Predial Limitada (C物業有限公司), Recorrida, com os sinais identificativos nos autos, ofereceu a resposta constante de fls. 205 a 207, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. 上訴人提及其與D(第一被告)及E(第二被告)的案件與本案甚至本執行程序無關,因為被上訴人並非該案件的當事人;
2. 被上訴人提出本執行程序的依據是本案中的判決,而有關判決是判處上訴人需向被上訴人支付買賣不動產的價金(港幣$5,800,000);
3. 上訴人企圖以被上訴人未有積極向D及E取得CR2-12-0028-PCC案件中所扣押的股票為依據主張在本具體案件中屬債權人的遲延;
4. 然而在本異議程序中的事實事宜判決中,支持上訴人在上條所指的主張的調查基礎事實並未獲得證實;
5. 基於此,上訴人所主張的理由基於缺乏事實基礎而應被駁回;
6. 實際上,被上訴人向D及E取得被CR2-12-0028-PCC號案件扣押的股票僅是一個惠及上訴人的狀況,被上訴人取得該等股票與上訴人負有向被上訴人支付不動產買賣價金的義務並無衝突;
7. 退一步來說,被上訴人取得有關股票的價值僅涉及有關支付的具體金額,而上訴人仍負有義務向被上訴人支付被判處其所需支付的不動產買賣的價金;
8. 關於被上訴人於執行請求中所請求的金額(包含本金及利息),被上訴人重申,有關金額的結算乃按經中級法院及終審法院確認的原審判決的內容作出,有關金額屬合法及可請求的;
9. 另一方面,上訴人在異議程序及本上訴程序中重複地主張本具體案件的狀況屬「債權人遲延」,被上訴人必須明確反對有關主張;
10. 因為不論從法律上或從法院判決內容作考慮,上訴人返還不動產買賣價金的義務早於CV1-12-0001-CAO案件判決確定之日起已處於遲延狀態;
11. 事實上,上訴人從CV1-12-0001-CAO案件判決確定之日起,從未有向被上訴人支付其被判處的不動產買賣的價金;
12. 綜上所述,被上訴人認為上訴人所提出的所有上訴理由在事實上與法律上均不可能成立,應住部予以駁回。
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
a) Através da decisão do processo acima mencionado, tomada em 25/07/2017 pelo 3º Juízo Cível do TJB das RAEM, o executado foi condenado a restituir à exequente o montante que por esta lhe foi pago na compra e venda de imóvel, na valor concreto a ser liquidado na altura da execução da decisão, acrescidos de juros de mora calculados à taxa legal sobre valor de HKD5.800.000,00 e contados a partir da data de trânsito em julgado da decisão do processo nº CV1-12-0001-CAO, mas com a dedução do valor que a exequente recebeu efectivamente na sequência do processo nº CR2-12-0028-PCC.
b) A supracitada decisão foi confirmada pelo TUI e transitada em julgado no dia 06/06/2019.
c) A decisão do processo nº CV1-12-0001-CAO foi transitada em julgado no dia 07/11/2013.
d) À exequente foram entregues, por transferência para a sua conta, as 700 mil acções do Banco da China apreendidas no processo CR2-12-0028-PCC e correspondentes a uma quantia total de HKD3.059.000,00.
e) O valor das 700.000 acções do Banco da China em nome das 1ª e 2ª rés foi atribuído em 10/03/2017, nos autos criminais nº CR2-12-0028-PCC, à aqui embargada.
f) O facto vertido em D) foi ocorrido em final de Julho de 2018. (Q 2º)
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Nos termos do disposto no artigo 5º/2 e artigo 434º, por despacho do relator, foi pedida uma certidão dos elementos do Processo nº CR2-12-0028-PCC e ordenada a sua junção aos autos, certidão esta que foi notificada às partes para se pronunciar, a Recorrente não se opõe, enquanto a Recorrida se opõe, tendo-se decidido a sua junção nos termos legais acima citados.
Os factos instrumentais constantes da citada certidão serão aproveitadas na análise e m resolução das questões suscitadas pelas Partes.
IV – FUNDAMENTAÇÃO
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
I – RELATÓRIO
C – Fomento Predial Limitada (C物業有限公司), com outros elementos de identificação nos autos, intentou a execução apensa para pagamento de quantia certa na forma ordinária contra B, titular do BIRM n.º …, o qual, por ter falecido na pendência daquela execução, foi substituído em habilitação de sucessores pela sua mãe A, com outros elementos de identificação nos autos.
Como título executivo, socorre-se a exequente de uma sentença condenatória do Tribunal Judicial de base e confirmada por decisão do Venerando Tribunal de Última Instância onde o embargante foi condenado a pagar à exequente a quantia a liquidar em execução de sentença resultante de HKD.5.800.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da sentença proferida nos autos CV1-12-0001-CAO (07/11/2013) até integral pagamento e descontando o valor que o autor viesse a receber no processo CR2-12-0028-PCC.
No requerimento inicial da execução, a exequente apresenta a seguinte liquidação:
- Em 26/7/2018 recebeu do referido processo-crime a quantia de HKD3.059.000,00, a qual deve ser imputada em parte (HKD2.667.920,55) aos juros vencidos desde 07/11/2013 e a parte restante imputada ao capital, sendo a obrigação exequenda de HKD5.408.920,55 acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde 26/7/2018 até integral pagamento1.
O executado apresentou contra a referida execução os presentes embargos pretendendo que a quantia exequenda seja reduzida para HKD2.741.000,00, acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde o trânsito em julgado da decisão condenatória firmada por decisão do Venerando Tribunal de Última Instância em 2019.
Como fundamento da sua pretensão alegou o embargante que a quantia que a decisão condenatória mandou descontar na quantia devida à exequente e proveniente do processo-crime CR2-12-0028-PCC só não foi paga anteriormente à exequente porque esta não tentou recebê-la naquele processo-crime ou porque as ali arguidas que lha deviam entregar não lha entregaram, sendo que, quer as consequências da mora da credora exequente, quer as consequências da mora das devedoras arguidas não podem recair sobre o executado.
Já quanto à pretensão sobre a contagem de juros de mora apenas desde a decisão do Venerando TUI e não desde 26/7/2018 ou desde 07/11/2013 nenhuma razão dá o embargante para a sua pretensão.
Portanto, em resumo, pretende o embargante que se desconte no capital a totalidade da quantia que a exequente recebeu no processo-crime e que, sobre a parte restante do capital apenas incidam juros de mora desde o trânsito em julgado da decisão do Venerando TUI, em 2019, e não desde 2013 como determinou a decisão da primeira instância que o Venerando Tui confirmou.
Note-se que o embargante não alegou a data em que a embargada poderia ter recebido a quantia que, segundo o título executivo, tinha a receber no processo-crime. Apenas disse o embargante que foi por falta de diligência que a embargada recebeu na data em que diz ter recebido (26/07/2018).
Respondeu a embargada/exequente batendo-se pela rejeição liminar dos embargos ou pela respectiva improcedência.
Tendo falecido o embargante em 08/12/2019 foi, por decisão de fls. 80, habilitada a sua mãe A, para, com ela no lugar do falecido, prosseguirem os embargos.
Os embargos foram recebidos e foi proferido despacho saneador e de selecção da matéria de facto a fls. 84 a 85v.
Procedeu-se a julgamento, foi decidida a matéria de facto controvertida tendo, depois, a embargada apresentado alegações de Direito.
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II – SANEAMENTO
A instância mantém-se válida e regular, como decidido no despacho saneador.
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III – QUESTÕES A DECIDIR
Tendo em conta o relatório que antecede, as questões a decidir consistem em saber:
1 - Onde deve ser imputada a quantia que a embargada recebeu no processo-crime, capital e/ou juros;
2 – Desde quando são devidos os juros, 07/11/2013 ou desde o trânsito em julgado da decisão do Tribunal de Última Instância em 2019.
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IV – FUNDAMENTAÇÃO
A) – Motivação de facto
Estão assentes os seguintes factos:
(...)
B) – Motivação de direito
a) A imputação do pagamento parcial.
O embargante foi condenado a pagar à embargada determinada quantia com acréscimo de juros de mora. A embargada já recebeu uma parte dessa quantia. Formulou pedido executivo imputando primeiramente a parte que recebeu nos juros que considerou devidos desde 2013 até ao momento em que se deu o recebimento parcial e imputou depois o restante no capital. O embargante entende que toda a quantia recebida deve ser imputada no capital, uma vez que não lhe é imputável a razão por que foi recebida tardiamente. E entende que os juros de mora só são devidos desde 2019, embora não a razão desse seu entendimento.
A questão principal a decidir é esta: saber onde imputar a quantia que a exequente recebeu nos autos de processo-crime. No capital, como pretende o embargante, ou uma parte nos juros vencidos e outra no capital, como pretende a embargada?
Das alíneas a) e c) da factualidade provada não resultam dúvidas que os juros de mora devem ser contados desde 07/11/2013, a data do trânsito em julgado da sentença proferida no processo nº CV1-12-0001-CAO.
Também não resultam dúvidas que os juros devem ser contados sobre a quantia de HKD5.800.000,00 até que a exequente receba uma parte dessa quantia no processo crime que correu contra terceiros.
Cabia, pois ao embargante demonstrar que a exequente poderia ter recebido parte da quantia sobre que incidem os juros e que só por causa da sua inércia não a recebeu mais cedo. Cabia-lhe também demonstrar que foi por acto de terceiro que aquela parte não foi recebida pela embargada.
Porém, o embargante limitou-se a alegar em abstracto, nunca tendo alegado a data em que estava disponível no processo-crime a referida quantia que o embargante podia ter recebido e veio a receber em finais de Julho de 2018 (al. f) dos factos provados).
E, atenta a resposta negativa dada ao quesito 1º da base instrutória, nem se provou que a embargada não tentou receber a quantia que tinha a receber no processo-crime.
Ora, não se tendo demonstrado factos que permitam decidir como imputar o pagamento parcial da quantia exequenda, designadamente a incúria da embargada, resta o recurso à norma supletiva do art. 774º do CC, devendo ser feita a imputação primeiramente na indemnização moratória e só depois no capital.
Conclui-se assim que a quantia que a embargada recebeu no processo crime deve ser imputada primeiramente nos juros de mora contados à taxa legal sobre a quantia de HKD5.800.000,00, desde 07/11/2013 até finais de Julho de 2018 (31/07/2018). Como a exequente só pede juros sobre a quantia integral de HKD5.800.000,00 até 26/07/2018 á só nessa medida que devem ser contabilizados, por força do princípio do pedido. Improcede, pois, nesta parte a pretensão do embargante, uma vez que não logrou demonstrar qualquer razão para que a quantia recebida pela embargada fosse imputada de forma diferente da imputação que foi feita no requerimento inicial da execução.
b) O início da contagem dos juros de mora.
E quanto ao momento inicial da contagem de juros moratórios?
Nesta parte é o requerimento inicial dos embargos total e evidentemente improcedente. Com efeito, a sentença da primeira instância que é o título executivo da execução embargada fixa claramente a obrigação exequenda como compreendendo os juros de mora desde o trânsito em julgado da sentença proferida no processo nº CV1-12-0001-CAO e provou-se que tal trânsito em julgado ocorreu em 07/11/2013. Além disso a sentença foi nesta parte confirmada em sede de recurso. Não se vê como sustentar a afirmação do embargante. Também ele não a sustentou. Apenas a afirmou. Faltaria até a causa de pedir ou, em mais rigor, faltaria este fundamento dos embargos.
c) Do anatocismo.
A exequente calculou os juros de mora devidos até à instauração da execução e somou-os ao capital em dívida. Depois pediu juros de mora sobre o total obtido. Assim, no pedido executivo, a exequente pede juros de mora sobre o montante dos juros de mora vencidos entre o momento em que recebeu no processo-crime CR2-12-0028-PCC a quantia de HKD3.059.000,00. Desta forma a exequente pretende que o executado lhe pague juros de mora sobre os juros de mora anteriormente vencidos. A obrigação de pagar juros de mora sobre a obrigação moratória devida só se vence com a interpelação. Por isso, enquanto não se vencer por interpelação a obrigação de pagar os juros de mora não se podem vencer outros juros sobre aqueles outros juros, pois que configuraria anatocismo ou capitalização de juros, o que só é possível se convencionado por escrito, como dispõe o art. 554º do CC.
Assim, só após a citação na execução se venceriam juros de mora sobre a indemnização moratória devida. Até à citação só se vencem juros de mora sobre o capital em dívida.
De todo o modo, uma vez que esta questão não foi invocada como fundamento de embargos, não pode aqui ser conhecida.
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V – DECISÃO
Pelo exposto, julgam-se improcedentes os presentes embargos e condena-se o embargante nas custas do processo.
Registe e notifique.
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Quid Juris?
A resolução do litígio passa pela análise e resolução das seguintes questões:
- Quando é que se começa a contar os juros? Nos termos fixados pela sentença do TJB (processo nº CV1-12-0001-CAO) que transitou em julgado em 07/11/2013 (por desistência do recurso anteriormente interposto)? Ou seja, não se atende a outras circunstâncias? Nomeadamente a de “dedução do valor resultante da venda de aprendido no processo-crime?
- As quantias resultantes da venda de 700,000 acções do Banco da China nos termos do processo-crime devem ser imputadas no capital que o Tribunal fixou a título da indemnização, ou nos juros vencidos?
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A) – Comecemos pela 1ª questão.
São os seguintes factos assentes:
a) Através da decisão do processo acima mencionado, tomada em 25/07/2017 pelo 3º Juízo Cível do TJB das RAEM, o executado foi condenado a restituir à exequente o montante que por esta lhe foi pago na compra e venda de imóvel, na valor concreto a ser liquidado na altura da execução da decisão, acrescidos de juros de mora calculados à taxa legal sobre valor de HKD5.800.000,00 e contados a partir da data de trânsito em julgado da decisão do processo nº CV1-12-0001-CAO, mas com a dedução do valor que a exequente recebeu efectivamente na sequência do processo nº CR2-12-0028-PCC.
b) A supracitada decisão foi confirmada pelo TUI e transitada em julgado no dia 06/06/2019.
c) A decisão do processo nº CV1-12-0001-CAO foi transitada em julgado no dia 07/11/2013.
d) À exequente foram entregues, por transferência para a sua conta, as 700 mil acções do Banco da China apreendidas no processo CR2-12-0028-PCC e correspondentes a uma quantia total de HKD3.059.000,00.
O valor das 700.000 acções do Banco da China em nome das 1ª e 2ª rés foi atribuído em 10/03/2017, nos autos criminais nº CR2-12-0028-PCC, à aqui embargada.
É de verificar que, entre outros assuntos, o Tribunal da 1ª Instância (Proc. nº CV1-12-0001-CAO) decidiu nos seguintes termos:
“(…) contados a partir da data de trânsito em julgado da decisão do processo nº CV1-12-0001-CAO, mas com a dedução do valor que a exequente recebeu efectivamente na sequência do processo nº CR2-12-0028-PCC.
Em situações normias, os juros seriam contados a partir do trânsito em julgado da decisão, o que veio a ocorrer em 07/11/2013 por desistência do recurso anteriormente interposto. Só que a condenação cível contem ainda uma outra parte: “com a dedução do valor que a exequente recebeu efectivamente na sequência do processo nº CR2-12-0028-PCC.”
O Tribunal recorrido alegou que como o 1º quesito não ficou provado, então a quantia resultante da venda das acções imputa nos juros calculados nos termos fixados pela decisão do processo nº CV1-12-0001-CAO, mas não pondera os termos igualmente nela fixados: “ a dedução do valor que a exequente recebeu efectivamente na sequência do processo nº CR2-12-0028-PCC”.
Esta última parte da decisão condenatória cível é muito clara para nós, ela refere-se expressamente à dedução no capital e não aos juros! As partes não chegaram a recorrer da decisão, o que significa que a aceitaram!
Por outro lado, conforme os documentos tirados do processo-crime, mandados juntos aos autos por decisão do relator, é de verificar-se:
a) - Desde 13/10/2011 as 700,000 acções do Banco da China ficaram apreendidas por ordem do juiz do Tribunal Criminal (fls. 213);
b) - Certo é que na altura não se definiu o destino das referidas acções no processo-crime, porque este ainda não terminou. Mas, a Exequente não chegou a formular nenhum pedido cível em momento oportuno no processo-crime, nomeadamente quanto aos juros ou quanto à eventual venda antecipada dessas acções para que as quantias pudessem ficar à ordem do tribunal e cobrassem juros;
c) - Tudo isto para demonstrar que o cumprimento da condenação cível ficava condicionada à dedução do valor resultante da venda das referidas acções, que só veio a ocorrer em 2018. Tal demora não foi da culpa do condenado (devedor). Dito por outras palavras, a impossibilidade de cumprir a decisão cível resulta da circunstância de não se saber o valor da venda das acções apreendidas no processo-crime.
Nestes termos, até a sentença pode ser alterada conforme o que fica estipulado no artigo 574º do CPC:
(Valor da sentença transitada em julgado)
1. Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 416.º e seguintes, sem prejuízo do disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiro.
2. Têm o mesmo valor que a decisão referida no número anterior os despachos que recaiam sobre o mérito da causa.
3. Se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação.
Assim, a impossibilidade atempada de liquidação do valor das acções do Banco da China pode ser entendida como uma circunstância especial, que, condiciona o tempo do cumprimento da condenação cível (dependendo da conclusão do processo-crime), e nestes termos, até lá, o devedor não tem culpa no incumprimento das obrigações condenadas.
Sem prejuízo da argumentação acima tecida, ainda é possível um raciocínio noutros termos.
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B) – 2ª questão:
Concretamente dito, o que está em causa são os juros moratóris vencidos e vencendos reclamados pela Exequente.
Por juros de mora entende-se o juro a pagar pelo não cumprimento pontual e culposo de uma obrigação, funcionando como indemnização do prejuízo respectivo (Correia das Neves, Manual dos Juros, 2ª edição, pág. 27).
Ou seja, os juros moratórios pressupõem sempre o incumprimento culposo por parte do devedor, circunstâncias estas que verificamos nos caso? Não nos parece, visto que:
a) - Conforme o teor documentos juntos aos autos em 09/02/2023, a exequente está a par de todo o processado das formalidades junto das instituições bancárias e financeiras com vista a transferir tais 700,000 acções do Banco da China para ela (fls. da certidão referida);
b) – Conforme o teor do documento de fls. 245, em 26/07/2018 para a conta da Exequente já foram transferidas as acções do Banco da China em causa;
c) - O que demonstra que os executados não têm culpa neste procedimento, aliás, foi por força de formalidades burocráticas que tal assunto demorou. Tal demora em caso algum tal pode ser imputado aos Executados.
d) - Pelo que, estas quantias, que durante longo tempo ficavam à ordem do processo-crime, são (devem ser assim) imputadas no capital da indemnização e não nos juros tal como o Tribunal recorrido fixou e incorrectamente, pois não se verificam os pressupostos do artigo 774º do CCM que prevê:
(Dívidas de juros, despesas e indemnização)
1. Quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, a prestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital.
2. A imputação no capital só pode fazer-se em último lugar, salvo se o credor concordar em que se faça antes.
É bom que se diga, no caso dos autos, não estamos perante uma situação de indemnizar a Exequente em consequência da mora do devedor!
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Pelo expendido, concedendo-se provimento ao recurso interposto pelos Recorrentes/Executados, passa a sentenciar-se da seguinte forma:
“Julgam-se procedentes os embargos deduzidos pelos Executados, prosseguindo a execução apenas no que toca à quantia de HK$2,667,920.55 (id. est, HK$5,800,000.00 deduzidos de HK$3,059,000.00, ou seja, o valor das 700,000 acções do Banco da China pago em 25/07/2018 pela 1ª Ré e pela 2ª Ré), nos termos requeridos.”
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Síntese conclusiva:
I – Quando a decisão condenatória em matéria cível proclamou: “ o executado é condenado a restituir à exequente o montante que por esta lhe foi pago na compra e venda de imóvel, na valor concreto a ser liquidado na altura da execução da decisão, acrescidos de juros de mora calculados à taxa legal sobre valor de HKD5.800.000,00 e contados a partir da data de trânsito em julgado da decisão do processo nº CV1-12-0001-CAO, mas com a dedução do valor que a exequente recebeu efectivamente na sequência do processo nº CR2-12-0028-PCC”, os termos fixados são claros: para deduzir do capital o valor que o exequente vai receber no processo-crime, ou seja, deduzir do capital das quantias resultantes da venda do apreendido (ou do valor avaliado) no processo-crime, e não calcular os juros.
II – Perante a situação mencionada na parte I, não é de aplicar o artigo 774º do CCM, por não se tratar de uma situação de “indemnizar o credor (Exequente) em consequência da mora do devedor” tal como fala o preceito legal citado. Pois, a mora pressupõe a culpa, no caso não há culpa do devedor, o que se verifica é a mora da liquidação do valor do apreendido no processo-crime resultante das formalidades burocráticas necessárias para o apuramento do respectivo valor.
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Tudo visto e analisado, resta decidir.
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V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e passando a sentenciar-se nos termos acima consignados.
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Custas pela Recorrida em ambas instâncias.
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Registe e Notifique.
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RAEM, 16 de Fevereiro de 2023.
Fong Man Chong
(Relator)
Ho Wai Neng
(1° Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
(2° Juiz-Adjunto)
1 O pedido executivo não é exactamente o que se acaba de identificar porquanto a exequente calculou o capital, somou-lhe os juros de mora e pediu que sobre o total acrescessem juros de mora. Desta forma, além do capital e dos respectivos juros de mora vencidos, pediu também juros de mora sobre os referidos juros de mora anteriormente vencidos.
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2022-802-artigo 774º do CC-juros-capital 43