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 ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, que também usa A1 ou A2 (Autor, melhor identificado nos autos) intentou uma acção declarativa com processo comum ordinário contra B (1.º Réu), C (2.ª Ré) e D (3.ª Ré), pedindo que se decretasse:
(a) a nulidade, por simulação, do negócio oneroso que serviu de base à procuração que o 1.º Réu outorgou a favor da 2.ª Ré em 11 de Maio de 2011, quer esse negócio fosse um mútuo ou similar, quer fosse a venda das quotas ideiais do 1.º Réu nos imóveis referidos na petição inicial;
(b) a nulidade da venda dissimulada sob esse negócio, por falta de forma, se viesse a ser decidida que o dito negócio oneroso consistiu num mútuo ou similar;
(c) a nulidade da procuração por aplicação analógica da norma do artigo 258.º do CC ou por simulação;
(d) a nulidade, por simulação, do mútuo e hipoteca celebrados entre a 2.ª Ré e a 3.ª Ré por escritura de 21 de Novembro de 2001 e, no caso da hipoteca, também em resultado da nulidade da obrigação garantida e da nulidade da procuração a que a 2.ª Ré foi buscar os poderes para hipotecar;
(e) o cancelamento da inscrição n.º XXXXXC junto da Conservatória do Registo Predial de Macau, sob a qual foi registada esta hipoteca;
(f) a nulidade, por simulação, do mútuo e hipoteca celebrados entre a 2.ª Ré e a 3.ª Ré por escritura de 30 de Dezembro de 2010 e, no caso da hipoteca, também em resultado da nulidade da obrigação garantida e da nulidade da procuração a que a 2.ª Ré foi buscar os poderes para hipotecar;
(g) o cancelamento da inscrição n.º XXXXXXC junto da Conservatória do Registo Predial de Macau, sob a qual foi registada essa hipoteca.

Por sentença proferida a fls. 959 a 976v dos autos, o Tribunal Judicial de Base julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente, decidiu:
1. Declarar nula a compra e venda celebrada entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré das quotas ideais dos imóveis indicados na procuração outorgada pelo 1.º Réu em 11 de Maio de 2001;
2. Declarar nula essa mesma procuração na qual a 2.ª Ré foi constituída procuradora do 1.º Réu;
3. Declarar nulos os contratos de mútuos e hipoteca celebrados entre a 2.ª Ré e 3.ª Ré, por escritura pública de 7 de Novembro de 2001 e de 30 de Dezembro de 2010;
4. Ordenar o cancelamento das inscrições n.ºs XXXXXC e XXXXXXC junto da Conservatória do Registo Predial de Macau, sob as quais foram registadas as hipotecas constantes das escrituras públicas indicadas no ponto 3;
5. Absolver os Réus dos restantes pedidos formulados pelo Autor.

Dessa decisão foi interposto recurso pelas 2.ª e 3.ª Rés para o Tribunal de Segunda Instância.
E do despacho proferido a fls. 872 e 873 dos autos, que indeferiu a pretensão formulada pelo Autor, de condenar a 2.ª e a 3.ª Rés como litigantes de má fé, foi interporto o recurso interlocutório pelo Autor.

Apreciados os recursos, o Tribunal de Segunda Instância decidiu:
- conceder provimento ao recurso interlocutório interposto pelo Autor, condenando a 2.ª e a 3.ª Rés no pagamento de multa de 5 U.C. cada, por litigância de má fé, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 385.º do CPC e no n.º 2 do art.º 101.º do Regulamento das Custas dos Tribunais; e
- conceder parcial provimento ao recurso interposto pelas 2.ª e 3.ª Rés, revogando a sentença do TJB na parte em que declarou nula a procuração outorgada pelo 1.º Réu a favor da 2.ª Ré, bem assim a decisão que declarou a nulidade da pretensa compra e venda celebrada entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré, confirmando em tudo o mais a sentença recorrida.

Inconformados com o acórdão, vieram as 2.ª e 3.ª Rés e o Autor a recorrer para o Tribunal de Última Instâncias, impugnando respectivamente a sua condenação como litigantes de má fé e a decisão que revogou a sentença do TJB, pela nulidade da procuração outorgada pelo 1.º Réu a favor da 2.ª Ré e da compra e venda supostamente executada através da referida procuração.

Apresentaram a 2.ª Ré C e a 3.ª Ré D as seguintes conclusões:
   A) Constitui objecto do presente Recurso a decisão do Tribunal Recorrido de que
“Ao contrário do que tinha dito na Contestação, afinal as duas Rés vieram confessar que o dito empréstimo não tinha sido escriturado.
Dispõe o nº 1 e a alínea b) do nº 2 do artigo 385º do CPC que quem, com dolo ou negligência grave, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a descoberta da verdade, é considerado litigante de má fé, devendo ser condenado em multa.
No caso vertente, o facto de haver ou não escrituração do empréstimo nas contas das duas Rés é um facto pessoal, para além de ser relevante para a boa decisão da causa, e faltando à verdade sobre esse assunto, as mesmas devem ser consideradas como litigantes de má fé. Procedem, assim, as razões do Autor recorrente.
Ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 385º do CPC e nº 2 do artigo 101º do Regulamento de Custas dos Tribunais, condenam-se as duas Rés na multa de 5 U.C. cada.”
B) As Recorrentes não se conformam com a decisão do Tribunal Recorrido por considerarem, com todo o devido respeito, que a sua conduta processual:
i) Não configura litigância de má-fé, nos termos do disposto no artigo 385º, nº 2, alínea a), do CPC, isto é, por ter deduzido dolosamente oposição cuja falta de fundamento não ignoravam, como invoca o Autor;
ii) Nem configura litigância de má-fé, nos termos do disposto no nº 1 e a alínea b) do nº 2 do artigo 385º do CPC, isto é por ter alterado a verdade dos factos, ou omitido factos relevantes para a descoberta da causa, como invocou o Tribunal Recorrido.
C) As Recorrentes não se conformam nem compreendem a decisão Recorrida pois consideram que a sua conduta processual não devia ter sido apreciada tão-somente à luz da impugnação de um artigo da P.I. mas sim tomando por referência o conjunto da sua Defesa, isto é, quer o conjunto e contexto do alegado na P.I. e impugnado na Contestação quer o conjunto e contexto do iter processual que se seguiu àquelas duas peças processuais.
D) O Tribunal Recorrido fundamentou a condenação das Recorrentes como litigantes de má-fé apenas na impugnação feita em sede de Contestação ao artigo 91º da P.I. e na designada “confissão” que, mais tarde, as Recorrentes vieram alegadamente fazer sobre as matérias do dito artigo 91º da P.I.
E) O Autor, no artigo 91º da P.I. formulou uma conclusão que é do seguinte teor: “Também aqui não houve fluxo de dinheiro e as duas Rés não escrituraram o empréstimo nas suas contas”.
F) A esta formulação conclusiva e genérica do artigo 91º da P.I., que não podia ser senão uma suposição do Autor, as RR responderam com uma impugnação genérica, dizendo: “Com efeito, a formulação tecida no artigo 91º não corresponde à verdade, e tanto assim é que logo no artigo 92º, o próprio Autor reconhece que não o consegue provar o que alega nos números anteriores.”
G) Posteriormente, as Recorrentes, responderam a uma ordem do Tribunal, e foi esta resposta que o Tribunal Recorrido considerou ser uma negação da impugnação feita ao artigo 91º da P.I. de que resultava a alteração da verdade dos factos.
H) Nesta resposta ao Tribunal que consta de fls. 834, as Recorrentes não negaram a impugnação feita na Contestação ao artigo 91º da P.I., uma vez que a resposta que deram ao Tribunal tinha a ver com o lançamento nos livros de escrituração mercantil dos factos descritos nas alíneas F) e T) dos Factos Assentes e não com a escrituração do empréstimo nas contas das Recorrentes.
I) Por isso, esta resposta das Recorrentes não tem a ver exactamente com a matéria do artigo 91º da P.I., pois uma coisa é a escrituração dos empréstimos nas contas e outra coisa é a escrituração de mútuos com hipotecas nos livros mercantis.
J) Além da resposta das Recorrentes ao despacho de fls. 824 ser diferente e não ser uma negação da impugnação ao artigo 91º da P.I., o certo é que esta resposta das Recorrentes sempre deveria ter sido analisada à luz dos requerimentos de prova do Autor e das concretas questões que o Autor aqui formulou como objecto das requeridas inspecções judiciais e perícias à escrita mercantil das RR, porque é neste requerimento de prova, que o Autor ao formular as questões que deveriam constituir o objecto das requeridas inspecções e perícias aos livros, correspondência e demais documentos, bem como às contas das RR, que o Autor concretiza e chama o nome às coisas.
K) É com a formulação destas questões que o Autor demonstra, muito claramente, que pretende fazer toda a sua prova à custa das RR ou por via da tentativa da inversão do ónus da prova (cfr. fls. 794/797). Essa a razão por que as Recorrentes se opuseram às requeridas inspecções judiciais e perícias, invocando o artigo 51º e 52º do Código Comercial conjugado com o artigo 461º do CPC, isto é, as Recorrentes invocaram o carácter secreto da escrituração mercantil; alegaram que a exibição ou exame geral dos livros, correspondência e demais documentos dos empresários só podia ser decretada nos casos concretos previstos no artigo 52º do Código Comercial; alegaram que o Autor nem sequer tinha estabelecido qualquer relação comercial com as 2ª e 3ª RR; que a matéria dos empréstimos entre as 2ª e 3ª RR era matéria que só a elas dizia respeito, pelo que pediram ao Tribunal que declarasse inadmissíveis as inspecções judiciais e perícias requeridas pelo Autor (cfr. fls. 808/823)
L) Foi, pois, no contexto da impugnação aos requerimentos de prova do Autor que o Meritíssimo Juiz titular do processo veio a emitir o Despacho de 21.02.2014, de fls. 824, ordenando às RR para, no prazo de 10 dias, “juntar a prova de lançamento nos livros de escrituração mercantil dos factos descritos nas alíneas F) e T) dos Factos Assentes”, sendo que os factos F) e T) são do seguinte teor:
F)
   “Em 7 de Novembro de 2001, por escritura pública lavrada no Cartório do Notário Privado Dr. E, a 2ª R. declarou contrair um empréstimo de dez milhões de patacas junto da 3ª R. e conferir-lhe hipoteca sobre as quotas ideais que o 1º R. detém nos imóveis identificados a fls. 68 a 89, no doc. de fls. 66 a 89, que aqui se dá por integralmente reproduzido.”
T)
   “Por escritura de 30 de Dezembro de 2010, do Cartório do Notário Privado Dr. F, a 2ª R. e a 3ª R. declararam contrair um mútuo com a hipoteca em que de novo a 2ª R. figurou como devedora hipotecante e a 3a R. como credora hipotecária.”
   M) Perante o Despacho do Tribunal de fls. 824, os representantes das RR pediram aos seus serviços de contabilidade os livros onde estavam escriturados os factos levados às alíneas F) e T) dos Factos Assentes, tendo obtido dos serviços de contabilidade duas respostas: i) que já não existiam os livros relativos ao primeiro empréstimo de 2001; ii) que relativamente ao segundo empréstimo de 2010, ele não tinha sido escriturado no livro.
   N) Foram estas duas respostas do serviço de contabilidade que as Recorrentes deram ao Tribunal e da análise comparativa à impugnação genérica ao artigo 91º da P.I. dada no âmbito da Contestação, e à resposta concreta e específica dada a fls. 834, no âmbito da Instrução do Processo, o que pode concluir-se é que as respostas das Recorrentes são diferentes por serem diferentes as matérias, como se especifica:
   O) No artigo 91º da P.I. o Autor fez a seguinte formulação conclusiva: “(…) não escrituraram o empréstimo nas suas contas”, enquanto o Tribunal a fls. 824 ordenou às RR para “juntar a prova de lançamento nos livros de escrituração mercantil dos factos descritos nas alíneas F) e T) dos Factos Assentes”.
   P) Os factos F) e T) referem-se aos mútuos com hipoteca e nos termos do Código Comercial o Livro Mercantil próprio e obrigatório onde deveriam ter sido lançados os factos F) e T) é o designado “Livro de registo de ónus, encargos e garantias”, previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 252º daquele Código.
   Q) O Meritíssimo Juiz titular do processo entendeu bem o preciso sentido das respostas das Recorrentes e isso ficou a dever-se ao facto de o Meritíssimo Juiz ter apreciado as suas respostas no contexto do iter processual. Por isso, relativamente à condenação como litigantes de má-fé requerida pelo Autor, aquele Meritíssimo Juiz tomou a seguinte decisão no Despacho de fls. 872/873:
   “(…) Veja-se que no artigo 91º da p.i. foi dito duas coisas: i) não houve fluxo de dinheiro; 2) as duas RR não escrituraram o empréstimo nas suas contas.
   E nas contestações, as RR defenderam que os empréstimos eram reais e o fluxo de dinheiro. Já quanto à escrituração dos empréstimos, as RR não disseram nas contestações que a mesma tinha sido feita. É verdade que as RR, ao defenderem a existência dos empréstimos, tenham impugnado o art. 91º da p.i., todavia, com a mera impugnação do artigo 91º, sem dizerem mais nada quanto à existência ou não da escrituração, não se pode dizer que as RR tivessem alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa!
   Deste modo, com base no que foi dito nos artsº 96º da Contestação da 3ª Ré e 127º da contestação da 2ª ré, não se constata a litigância de má fé por parte das RR pelo que se indefere a pretensão do A.”
   R) O âmbito do recurso interlocutório tem por objecto o Despacho do Juiz titular do processo a fls. 872/873 que concluiu não terem as Recorrentes alterado a verdade dos factos, nem litigado com má-fé.
   S) A decisão do Meritíssimo Juiz titular do processo é aquela que está mais conforme ao direito e à justiça porque é aquela que apreciou a conduta processual das Recorrentes tendo em conta o contexto e âmbito da Petição e da Contestação no seu todo assim como teve em conta o iter processual e as respostas específicas e concretas que as Recorrentes deram ao Tribunal a uma questão específica e concreta por este colocada.
   T) O Meritíssimo Juiz titular do processo, na sua função de gestão do processo, usou, in casu, de toda a sabedoria e prudência no juízo e na decisão que tomou sobre a condenação como litigante de má-fé das RR, requerida pelo Autor. O Meritíssimo Juiz compreendeu que havia diferenças entre a impugnação do artigo 91º da P.I. e a resposta das RR dada a fls. 834, e que a conduta processual das RR não podia ser tida como dolosa e reconduzida à violação do dever de verdade ou de alteração da verdade dos factos.
   U) Deve ser o Despacho do Meritíssimo Juiz titular do processo a fls. 872/873 a decisão que deve prevalecer, devendo o Tribunal ad quem revogar a Decisão Recorrida que apreciou a conduta processual das Recorrentes e as condenou como litigantes de má-fé, tão-somente com base na impugnação ao artigo 91º da P.I. e na resposta, posterior, de fls. 834 que, segundo a Decisão Recorrida, é uma negação à impugnação feita ao artigo 91º da P.I., o que nem sequer corresponde à realidade como ficou demonstrado.
   V) O Acórdão Recorrido, considerou, também, que o facto de haver ou não escrituração do empréstimo nas contas das duas Rés é um facto pessoal, embora sem dizer da razão ou fundamento de tal entendimento.
   W) Salvo o devido respeito, as Recorrentes entendem que só pode ser considerado como um acto pessoal a deliberação dos administradores de contrair e conceder o empréstimo, respectivamente, pois quanto ao facto de haver ou não escrituração do empréstimo nas contas das duas Rés, é muito duvidoso que tal facto possa ser havido como um facto pessoal.
   X) É das regras da experiência comum que a esmagadora maioria dos administradores das sociedades só sabe se existe ou não escrituração, mas desconhece quais são os livros mercantis de uma sociedade, e ainda menos sabem que existem livros obrigatórios entre os quais o “Livro de registo de ónus, encargos e garantias”.
   Y) A questão da escrituração está entregue a gabinetes de contabilidade externos ou a departamentos de contabilidade internos, dependendo da dimensão da sociedade e da sua organização, e tais serviços estão sob a responsabilidade de técnicos especializados na matéria.
   Z) No caso concreto, os administradores das Recorrentes, em 2010, deliberaram contrair e conceder um novo empréstimo, respectivamente, e, nessa medida, é do seu conhecimento pessoal aquela deliberação, do mesmo modo que era do seu conhecimento pessoal que as Recorrentes tinham escrituração.
   AA) Já quanto ao modo como tinham de ser escriturados os lançamentos dos empréstimos nos livros mercantis e à obrigatoriedade de livros mercantis, isso os administradores só vieram a tomar conhecimento após pedirem aos serviços de contabilidade os livros para cumprirem o Despacho de fls. 824.
   BB) Sendo certo que, no presente caso, tinha ocorrido em 2008/2009 a substituição dos administradores das Recorrentes e que a área administrativa-financeira foi assumida pelos jovens filhos do anterior administrador, ausente de Macau, enquanto os administradores mais experientes, apenas ligados à área da exploração de novos negócios e à execução de obras.
   CC) Os novos administradores das Recorrentes não agiram com qualquer malícia ou má-fé, pese embora todos os esforços feitos pelo Autor no sentido de demonstrar que, sendo eles familiares de G, bem poderiam ter deduzido oposição cuja falta de fundamento não deveriam ignorar.
   DD) Atente-se que o Autor propôs a presente acção em 2013; que o primeiro empréstimo titulado por escritura pública é de 2001; que segundo o artigo 49º do Código Comercial a obrigação de guardar os livros, correspondência e documentos é apenas de 5 anos; que a partir de 2009 se extinguiu a obrigação das RR guardarem os livros, podendo estes ser eliminados desde então, nos termos da lei, então a alegação do Autor, em 2014, de que as Recorrentes eliminaram culposamente os livros para impossibilitar a prova do facto, não passa de uma alegação vazia de conteúdo e de mais uma tentativa de denegrir a imagem e conduta processual dos representantes das Recorrentes.
   EE) O Autor é quem tinha o ónus da prova do alegado no artigo 91º da P.I. já à parte contrária cabia-lhe a impugnação, mas não a prova que os factos alegados pelo Autor não são verdadeiros! É o Autor que tem de provar que os factos por si alegados são verdadeiros.
   FF) As Recorrentes não se conformam com a decisão do Tribunal Recorrido que as condenou como litigantes de má-fé com fundamento na alínea b) do nº 2 do artigo 385º, ou seja, por terem alterado a verdade dos factos.
   GG) E menos se conformam porque, como se demonstrou, a resposta posterior das Recorrentes de que os livros do primeiro empréstimo tinham sido eliminados e que o segundo empréstimo não foi registado no “Livro de registo de ónus, encargos e garantias”, não é uma negação à impugnação feita ao artigo 91º da P.I., não é uma alteração à verdade dos factos.
   HH) As Recorrentes não violaram os deveres de verdade e de boa-fé processual: não há qualquer conduta processual dolosa ou reprovável das Recorrentes ao longo do processo.

Por sua vez, apresentou o Autor A as seguintes Conclusões:
   A. O 1.º R. e a 2.ª R. estipularam entre si um acordo particular, nos termos do qual a 2.a R. poderia fruir definitivamente as quotas ideais do 1.º R. nos imóveis dos autos (v. resposta aos quesitos 1.º e 8.º da base instrutória dos autos do Tribunal Judicial de Base).
   B. Efectivamente, a 2.ª R. utilizou a procuração que recebeu do 1.º R. para fruir definitivamente esses direitos imobiliários (v. resposta aos quesitos 1.º, 8.º, 12.º, 22.º, 28.º, 30.º e 30.º A da base instrutória, conjugada com outros elementos dos autos, a saber, o facto de, ao fim de quase 10 anos, a 2.ª R. não ter transmitido formalmente, por escritura pública, os referidos direitos imobiliários a si própria ou a terceiro, e o facto de nunca haver afirmado que tencionava vir a celebrar essa escritura pública, tendo-se sempre escusado a apresentar a sua versão sobre o que seria o negócio subjacente à procuração e a revelar o que pretendia alcançar com a respectiva utilização).
   C. As procurações não visam nem podem ser usadas pelo procurador para fruir definitivamente os bens do autor da procuração; isso só pode alcançar-se por via duma venda (ou outro negócio translativo da propriedade que não interessa neste contexto explorar).
   D. O 1.º R. e a 2.ª R. quiseram assim, com e pela procuração, titular a venda das quotas ideais dos autos pelo 1.º R. à 2.ª R..
   E. De resto, o uso da procuração era o que bastava à 2.ª R. para reter o controlo jurídico e obter um benefício económico das quotas ideais, o que a mesma tentou simulando duas hipotecas, que a primeira e a segunda instância já declararam nulas, sobre os referidos bens, em conluio com a 3.ª R., D, de modo a tirarem essas rés partido do investimento feito pela 2.ª R. na compra das quotas ideais; o referido benefício económico consistiria nas dezenas de milhões de patacas que o ora Recorrente teria de pagar-lhes para livrar os imóveis dos ónus reais.
   F. A venda das quotas ideais feita pelo 1.º R. à 2.ª R. é nula por falta de forma e por contrariar disposição legal de carácter imperativo (cf. artigo 866.º do Código Civil, artigo 94.º, n.º 1, do Código do Notariado, e artigo 287.º do Código Civil).
   G. A procuração outorgada pelo 1.º R. à 2.ª R. é nula porque ela é o próprio negócio de compra e venda ou por aplicação analógica do comando do artigo 258.º, n.º 1, do Código Civil.

Contra-alegaram ambas as partes recorridas, no sentido de negar provimento ao recurso interposto pela parte contrária.
Foram corridos os vistos.
Cumpre decidir.

2. Factos
Nos autos foi dada como provada a seguinte factualidade:
- O Autor é comproprietário na proporção de 1/15 do prédio sito na [Endereço (1)], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 136v do livro B15, conforme inscrição n.º XXXXXG (alínea A) dos factos assentes).
- O Autor é comproprietário na proporção de 473/22400 do prédio sito na [Endereço (2)], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXX, a fls. 166v do livro B24, conforme inscrição n.º XXXXXG (alínea B) dos factos assentes).
- O 1.º Réu é comproprietário na mesma proporção do A. dos imóveis referidos na alínea A) e B) (alínea C) dos factos assentes).
- O 1.º Réu outorgou em 11 de Maio de 2001, no Cartório do Notário Privado Dr. E, uma procuração a favor da 2.ª Ré relativa às suas quotas ideais num grande número de imóveis, entre os quais figuram os imóveis identificados na alínea C), conferindo, designadamente, à procuradora poderes para (alínea D) dos factos assentes):
a) livremente promete vender, vender, doar, prometer hipotecar, hipotecar, permutar, partilhar, trocar ou por qualquer forma ou título onerar ou dispor da titularidade de algum ou da totalidade desses prédios;
b) praticar quaisquer actos, celerbrar quaisquer contratos e outorgar em escrituras públicas, incluindo de rectificação, ou assinar quaisquer outros documentos públicos ou particulares para a plena eficácia dos aludidos actos e contratos, recebendo preços, dando recibos e dando quitações.
- A mesma procuração permitiu a prática de “negócios consigo mesmo” e foi conferida a favor da procuradora, ora 2.ª Ré (alínea E) dos factos assentes).
- Em 7 de Novembro de 2001, por escritura pública lavrada no Cartório do Notário Privado Dr. E, a 2.ª Ré declarou contrair um empréstimo de dez milhões de patacas junto da 3.ª Ré e conferir-lhe hipoteca sobre as quotas ideais que o 1.º Réu detém nos imóveis identificados a fls. 68 a 89 no doc. de fls. 66 a 89, que aqui se dá por integralmente reproduzido (alínea F) dos factos assentes).
- O empréstimo referido na alínea F) foi concedido pelo prazo de um ano, renovável automaticamente por períodos iguais, se não fosse denunciado por qualquer das partes, por escrito, com a antecedência mínima de quinze dias sobre o termo de qualquer uma das suas renovações, vencia juros de 20% ao ano e era reembolsável num única prestação, no seu vencimento (alínea G) dos factos assentes).
- Sob a inscrição n.º XXXXXC na Conservatória do Registo Predial de Macau, ficou registada a hipoteca a favor da 3.ª Ré sobre as quotas ideias detidas pelo 1.º Réu sobre os imóveis mencionados na alínea F) para garantia o empréstimo aí referido (alínea H) dos factos assentes).
- À data de 7 de Novembro de 2001, eram sócios da 2.ª Ré o G, H, I e J (alínea I) dos factos assentes).
- A 3.ª Ré tem capital social de MOP$100.000,00 (alínea J) dos factos assentes).
- Desde 14 de Outubro de 1995, K e L eram titular, respectivamente, de quota social no valor de MOP$50.000,00 da 3.ª Ré. (alínea K) dos factos assentes).
- Em 16 de Junho de 2008, M e N adquiriram a quota social detidas pelo L na 3.ª Ré (alínea L) dos factos assentes).
- Desde então, M e N passaram a ser administradores da 3.ª Ré (alínea M) dos factos assentes).
- O K votou em 2008, na qualidade de sócio da 3.ª Ré, o consentimento da sociedade na cessão da quota de L aos M e N, e renunciou ao exercício do direito de preferência da sociedade nessa cessão (alínea N) dos factos assentes).
- O N é cunhado do G (alínea O) dos factos assentes).
- Em 30 de Junho de 2009, K foi designado administrador e tornou-se sócio da 2.ª Ré mediante a aquisição das quotas de G e de sua mulher H (alínea P) dos factos assentes).
- Transmitidas as quotas de G e mulher na 2.ª Ré a K, o capital social da 2.ª Ré ficou distribuído entre I, K, O e a P (alínea Q) dos factos assentes).
- A P tem como sócios O e Q (alínea R) dos factos assentes).
- As quotas adquiridas por K na 2.ª Ré totalizam MOP$60.000,00 num capital social de MOP$1.933.200,00 (alínea S) dos factos assentes).
- Por escritura de 30 de Dezembro de 2010, do Cartório do Notário Privado Dr. F, a 2.ª Ré e a 3.ª Ré declararam contrair um mútuo com a hipoteca em que de novo a 2.ª Ré figurou como devedora hipotecante e a 3.ª Ré como credora hipotecária (alínea T) dos factos assentes).
- O empréstimo é no montante de MOP$41.597.803,50 (alínea U) dos factos assentes).
- Vence juros de 20% e é reembolsável num única prestação, na data do seu vencimento (alínea V) dos factos assentes).
- A hipoteca incide sobre os mesmos bens referidos na alínea F) e ficou registada na Conservatória do Registo Predial de Macau pela inscrição n.º XXXXXXC (alínea W) dos factos assentes).
- O 1.º Réu estipulou com a 2.ª Ré um acordo particular nos termos do qual a 2.ª Ré, como contrapartida da entrega definitiva de uma quantia em dinheiro ao 1.º Réu, poderia fruir e dispor definitivamente ou onerar as quotas ideais do 1.º Réu em todos os imóveis identificados na procuração referida em D) dos factos assentes (resposta ao quesito 1.º da base instrutória).
- O pai e o irmão do 1.º Réu não tinham qualquer ocupação profissional à data do acordo referido na resposta ao quesito 1.º (resposta ao quesito 3.º da base instrutória).
- O pai do 1.º Réu fora declarado insolvente por um tribunal de Hong Kong (resposta ao quesito 4.º da base instrutória).
- À data do acordo referido na resposta ao quesito 1.º o 1.º Réu tinha dificuldades financeiras (resposta ao quesito 5.º da base instrutória).
- A 2.ª Ré não estava interessada em ser reembolsada do montante que entregou ao 1.º Réu (resposta ao quesito 6.º da base instrutória).
- Nem o 1.º Réu fazia intenção de proceder a esse reembolso (resposta ao quesito 7.º da base instrutória).
- Através do acordo aludido na resposta ao quesito 1.º, o 1.º Réu e a 2.ª Ré quiseram transferir os direitos imobiliários daquele para esta contra o pagamento de uma quantia em dinheiro por esta àquele (resposta ao quesito 8.º da base instrutória).
- O 1.º Réu outorgou a procuração aludida em D) dos factos assentes para tornar efectivo o negócio referido na resposta ao quesito 1.º (resposta ao quesito 12.º da base instrutória).
- A 2.ª Ré era, à data da escritura de mútuo com hipoteca referida na alínea F) dos Factos Assentes, uma sociedade da família do empresário G (resposta ao quesito 13.º da base instrutória).
- No ano de 2001, os juros para empréstimos comerciais correntes oscilaram entre 3,125% ao ano (correspondente a uma prime rate de 5,125% - 2%) e 7,125% ao ano (correspondente a uma prime rate de 5,125% + 2%), muito inferiores portanto aos 20% que a 2.ª Ré aceitou (resposta ao quesito 14.º da base instrutória).
- Apesar da outorga da escritura pública referenciada na alínea F) dos Factos Assentes, nunca houve efectivo fluxo de dinheiro da 3.º Ré para a 2.ª Ré (resposta ao quesito 15.º da base instrutória).
- O empréstimo nunca foi escriturado como crédito ou débito nos livros da 3.ª Ré e da 2.ª Ré, respectivamente (resposta ao quesito 16.º da base instrutória).
- Prejudicado (resposta ao quesito 17.º da base instrutória).
- Prejudicado (resposta ao quesito 18.º da base instrutória).
- Prejudicado (resposta ao quesito 19.º da base instrutória).
- Ao usar a procuração referida em D) dos factos assentes em 7 de Novembro de 2011 para constituir hipoteca sobre as quotas ideais do 1.º Réu nos referidos imóveis, a 2.ª Ré e a 3.ª Ré pretenderam que quem as quisesse distratar lhes pagasse o valor por elas garantido (resposta ao quesito 22.º da base instrutória).
- Em data não concretamente apurada de 2010, mas entre 14 de Julho de 2010 e 30 de Dezembro de 2010, o Autor procurou a 2.ª Ré para obter o levantamento da hipoteca (resposta ao quesito 24.º da base instrutória).
- Mas não produziu resultados (resposta ao quesito 25.º da base instrutória).
- Apesar de escritura referido em T) dos factos assentes, também não houve fluxo de dinheiro entre as 2.ª e 3.ª Rés e estas Rés não escrituraram o empréstimo nas suas contas (resposta ao quesito 26.º da base instrutória).
- Prejudicado (resposta ao quesito 27.º da base instrutória).
- O mútuo com hipoteca mencionada em T) dos factos assentes foi feito em reacção à tentativa do Autor de libertar a hipoteca referida em F) dos factos assentes, para tornar mais onerosa a satisfação deste objectivo, valorizando ainda mais o investimento que a 2.ª Ré fizera na aquisição das quotas ideais do 1.ª Réu nos referidos imóveis (resposta ao quesito 28.º da base instrutória).
- A 2.ª Ré não tinha vontade de pedir dinheiro emprestado e garantir o empréstimo nem a 3.ª Ré tinha vontade de emprestar dinheiro e obter garantia do empréstimo (resposta ao quesito 29.º da base instrutória).
- Quando foi usada a procuração conferida à 2.ª Ré, a vontade real da 2.ª e da 3.ª Rés era a de valorizar o investimento feito pela 2.ª Ré na compra das quotas ideais do 1.º Réu (resposta ao quesito 30.º da base instrutória).
- Ao usar a procuração referida em D) dos factos assentes em 30 de Dezembro de 2010 para constituir hipoteca sobre as quotas ideais do 1.º Réu nos referidos imóveis, a 2.ª Ré e a 3.ª Ré pretenderam que quem as quisesse distratar lhes pagasse o valor por elas garantido (resposta ao quesito 30.ºA da base instrutória).
- I, H e J é pai, mulher e irmã do G (resposta ao quesito 31.º da base instrutória).
- O e Q são filhos do G (resposta ao quesito 32.º da base instrutória).
- L foi, em 20 de Abril de 2007, nomeado administrador de uma sociedade cotada na Bolsa de Hong Kong, denominada R, juntamente com O, filho de G (resposta ao quesito 34.º da base instrutória).
- Nessa mesma data, G renunciou ao cargo de administrador da sociedade referida na resposta ao quesito 34.º (resposta ao quesito 35.º da base instrutória).

3. Direito
3.1. Do recurso das 2.ª e 3.ª Rés
No acórdão ora recorrido, as 2.ª e 3.ª Rés foram condenadas no pagamento de multa por litigância de má fé.
A decisão ora posta em causa tem o seguinte teor:
   «Alega o Autor nos artigos 85º a 92º da sua petição inicial o seguinte:
   “85º - Por escritura de 30 de Dezembro de 2010, do Cartório do Notário Privado Dr. F, a 2ª Ré e a 3ª Ré voltaram a contrair um mútuo com hipoteca em que de novo a 2ª Ré figurou como devedora hiptecante e a 3ª Ré como credora hipotecária.
   86º - O empréstimo é, desta vez, no montante de MOP$41.597.803,50.
   87º - Um valor estranho que prenuncia um esquema mais sofisticado que o do primeiro mútuo com hipoteca.
   88º - Foi concedido pelo prazo de um ano, renovável automaticamente por iguais períodos se não fosse denunciado por qualquer das partes, por escrito, com a antecedência mínima de quinze dias sobre o seu termo de qualquer uma das suas renovações.
   89º - Vence juros de 20%, não referindo a escritura se o juro é anual ou tem outra periodicidade, e é reembolsável numa única prestação, na data do seu vencimento.
   90º - A hipoteca incide sobre os mesmos bens que a primeira hipoteca e ficou registada na Conservatória do Registo Predial de Macau pela inscrição n.º XXXXXXC.
   91º - Também aqui não houve fluxo de dinheiro e as duas RR. não escrituraram o empréstimo nas suas contas. – sublinhado nosso
   92º - Ainda que não se prove o alegado no artigo anterior, o facto é que este mútuo com hipoteca foi feito em reacção à tentativa do A. de libertar a primeira hipoteca, para tornar mais onerosa a satisfação desse objectivo, valorizando ainda mais o investimento que a 2ª Ré fizera na compra das quotas ideais do 1º Ré nos ditos imóveis.”
   E na contestação, a 2ª Ré respondeu àquela matéria nos seguintes termos:
   “94º - Porém, já não corresponde à verdade, pelo que se impugna, o teor dos art. 91º a 95º da P.I., isto para além de, mais uma vez, o descrito naqueles artigos não passar de meras suposições do Autor e incidir sobre matéria que só respeita às relações entre a 2ª e a 3ª Ré conforme supra já se deixou dito, a propósito do primeiro contrato de mútuo.
    95º - Efectivamente, o Autor, uma vez mais, tece meras suposições e meras considerações, formulando conclusões e lançando suspeitas sem apresentar factos!
    96º - Com efeito, a formulação tecida no art. 91º não corresponde à verdade e tanto assim é que logo no art. 92º, o próprio Autor reconhece que não o consegue provar o que alega nos números anteriores.” – sublinhado nosso
   Por sua vez, também a 3ª Ré contestou a acção, defendendo no mesmo sentido:
   “125º - Porém, já não corresponde à verdade, pelo que se impugna, o teor dos art. 91º a 95º da P.I., isto para além de, mais uma vez, o descrito naqueles artigos não passar de meras suposições do Autor e incidir sobre matéria que só respeita às relações entre a 2ª e a 3ª Ré conforme supra já se deixou dito, a propósito do primeiro contrato de mútuo.
   126º - Efectivamente, o Autor, uma vez mais, tece meras suposições e meras considerações, formulando conclusões e lançando suspeitas sem apresentar factos!
   127º - Com efeito, a formulação tecida no art. 91º não corresponde à verdade e tanto assim é que logo no art. 92º, o próprio Autor reconhece que não o consegue provar o que alega nos números anteriores.” – sublinhado nosso
   De facto, foram alegados no artigo 91º da petição inicial dois aspectos: não houve fluxo de dinheiro e as duas Rés não escrituraram o empréstimo nas suas contas.
   E ao dizer que o afirmado no artigo 91º não correspondia à verdade, as duas Rés estavam a negar directamente a veracidade do seu conteúdo, ou seja, negar a inexistência de fluxo de dinheiro e a falta de escrituração do empréstimo nas suas contas.
   Trata-se, no fundo, de uma defesa por impugnação prevista nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 407.º do CPC, em que consiste na negação de factos articulados pelo Autor na petição inicial.
   E foi, efectivamente, em consequência disso que o Tribunal recorrido levou para a base instrutória aquela matéria controvertida e inserida no quesito 26º.
   Mais tarde, quando foram notificadas pelo Tribunal para apresentarem a prova do lançamento nos livros de escrituração mercantil, as duas Rés vieram dizer o seguinte:
   “1. As ora Rés não têm os livros de escrituração mercantil referentes a 2001, data do primeiro contrato de empréstimo. E não era exigível que os tivessem, em face do Art. 49º do Código Comercial (na redacção da Lei 16/2009, de 10 de Agosto), que estabelece a obrigatoriedade de conservação da escrita comercial por um período de apenas cinco anos, há muito ultrapassado.
   2. As ora Rés não registaram nos seus livros de escrituração mercantil a relação comercial estabelecida em relação ao segundo empréstimo, realizado em 2010. Poderá ser uma irregularidade contabilística, mas não pode ter outro significado concreto! Nem sequer autoriza que daí se conclua qualquer outro facto ou efeito, que não esse.
   Essa relação comercial está titulada pela escritura pública de 30 de Dezembro de 2010 junta aos autos, e manteve-se na esfera particular das partes, atendendo ao longo e excelente relacionamento profissional existente desde sempre entre as duas empresas, e como é, aliás, muito usual nestas circunstâncias em Macau.”
   Ao contrário do que tinham dito na contestação, afinal as duas Rés vieram confessar que o dito empréstimo não tinha sido escriturado.
   Dispõe o n.º 1 e a alínea b) do n.º 2 do artigo 385.º do CPC que quem, com dolo ou negligência grave, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a descoberta da causa, é considerado litigante de má fé, devendo ser condenado em multa.
   No caso vertente, o facto de haver ou não escrituração do empréstimo nas contas das duas Rés é um facto pessoal, para além de ser relevante para a boa decisão da causa, e faltando à verdade sobre esse assunto, as mesmas devem ser consideradas como litigantes de má fé.
   Procedem, assim, as razões do Autor recorrente.
   Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 385.º do CPC e n.º 2 do artigo 101.º do Regulamento das Custas dos Tribunais, condenam-se as duas Rés na multa de 5 U.C. cada.»
Ora, não se nos afigura merecer censura a decisão transcrita.
Nas suas alegações, sustentam as 2.ª e 3.ª Rés ora recorrentes que, aquando da apresentação de resposta à ordem do TJB (cfr. fls. 824 e 834 dos autos), elas não negaram a impugnação feita na Contestação ao artigo 91º da petição inicial do Autor, sendo que a resposta “tinha a ver com o lançamento nos livros de escrituração mercantil dos factos descritos nas alíneas F) e T) dos Factos Assentes e não com a escrituração do empréstimo nas contas das Recorrentes”, não tendo a ver exactamente com a matéria daquele artigo 91.º, pois “uma coisa é a escrituração dos empréstimos nas contas e outra coisa é a escrituração de mútuos com hipotecas nos livros mercantis”.
Para as recorrentes, estão em causa respostas diferentes “por serem diferentes as matérias”, dado que o artigo 91.º da petição inicial se refere à não escrituração do empréstimo nas suas contas, enquanto a ordem dada pelo TJB a fls. 824 dos autos se destina à junção de “prova de lançamento nos livros de escrituração mercantil dos factos descritos nas alíneas F) e T) dos Factos Assentes”, referentes aos mútuos com hipoteca, que devem ser lançados no designado “Livro de registo de ónus, encargos e garantias”, previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 252.º do Código Comercial.
Alegam ainda que não está em causa um facto pessoal, porque o que os administradores sabem, por regra, é se a sua companhia está ou não obrigada a ter escrituração, desconhecendo quais são os livros de escrituração mercantil, menos sabendo ainda que existem livros obrigatórios; e no caso concreto, os administradores em 2010 deliberaram contrair e conceder um novo empréstimo, tendo conhecimento pessoal desse facto, mas quanto ao modo como tinham de ser escriturados os empréstimos nos livros mercantis, os administradores só vieram a tomar conhecimento após pedirem os livros ao serviço de contabilidade para cumprir o Despacho de fls. 824 dos autos. Daí que a resposta posterior dada ao Tribunal não é uma negação à impugnação feita ao artigo 91.º da petição inicial, não havendo qualquer violação dos deveres de verdade e boa fé processual.
Ora, está em causa saber se a negação feita pelas recorrentes do artigo 91.º da petição inicial do Autor configura litigância de má fé.
Como já foi afirmado pelo Tribunal de Última Instância “(…) segundo o art.º 9.º do CPC, as partes devem agir de acordo com os ditames da boa fé, não devendo, designadamente, formular pedidos ilegais, articular factos contrários à verdade, requerer diligências meramente dilatórias e omitir o dever de cooperação.
A condenação por litigância de má fé pressupõe um juízo de censura sobre o comportamento contrário à ideia de um processo justo e leal, adoptado por participante processual, procurando moralizar a lide e uma maior responsabilização das partes na condução do processo.”1
“Efectivamente, a violação da alínea b) refere-se a faltar à verdade nos momentos processuais em que está em causa a alegação constitutiva de factos, como sucede nos articulados, em que as partes têm o dever de não faltar à verdade.”2
E considerou-se ainda que havia litigância de má fé “na alegação da então recorrente …, em que alega que nunca soube que contra si pendia a acção, quando é certo que já o sabia desde 26 de Novembro de 1998, como se disse atrás. Alegou um facto falso, que constitui litigância de má fé, nos termos da alínea b) do n.º 2 do art. 385.º do Código de Processo Civil. ”3
Na doutrina, temos que “Regra geral, a concretização do elemento subjectivo do tipo dilui-se na concretização dos comportamentos da parte, reveladores de má fé. Se do conjunto dos resultados processuais se infere, por exemplo, que ela não podia ignorar (mesmo que ignorasse) que deduzira uma pretensão sem fundamento, está concretizada a sua má fé, fundada em comportamento processual negligente reprovável.
Quanto à concretização do dolo, ele revela-se numa intencionalidade da parte, quer na dedução de pretensão ou oposição infundada, quer na alteração ou omissão de factos, quer na violação do dever de cooperação, quer, por fim, na utilização maliciosa ou abusiva do processo ou dos meios processuais com vista a conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça. Assim e consoante os tipos, age dolosamente a parte que sabe que não tem razão quando deduz determinada pretensão ou oposição, a parte que sabe que procede a uma descrição dos factos essenciais não coincidentes com a realidade, a parte que viola intencionalmente o dever de cooperação bem como a parte que sabe estar a fazer um uso reprovável, porque disfuncional, dos meios processuais ou do processo.”
E “… a lide é dolosa quando (..) nega factos pessoais que vêm a ser dados como provados ou quando faz uma utilização maliciosa dos meios processuais….” 4

Voltando ao nosso caso concreto, vamos ver, em primeiro lugar, se estão ou não em causa factos pessoais de que as recorrentes devem ter conhecimento.
Tal como afirmam Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto5, “Facto pessoal é o facto conhecido pela parte, trate-se de facto por ela própria praticado, ou praticado com a sua intervenção, de acto de terceiro perante ela praticado (incluindo as declarações escritas de que seja destinatária) ou de mero facto ocorrido na sua presença. Facto de que a parte deva ter conhecimento é aquele que é de presumir que ela tenha conhecido, …”.
Estando em causa pessoas colectivas, “os factos pessoais que são tidos como provados, são aqueles que respeitam à própria pessoa colectiva ou sociedade, e não aos titulares dos órgãos a quem, materialmente, sejam atribuídos, sendo irrelevante, para este efeito, qualquer substituição verificada quanto a esses titulares, operada entre o momento da prática dos factos alegados e a audiência de julgamento”.6
Acolhendo as citadas considerações, afigura-se-nos que, estando em causa a escrituração dos livros das recorrentes, é de afirmar que se tratam de factos pessoais de que as recorrentes devem ter conhecimento.
Assim sendo, e tal como alega o Autor nas suas contra-alegações, o carácter pessoal do facto não deve ser afastado pela alegada sucessão de administradores ou a circunstância de a tarefa de escrituração ser efectuada por contabilistas.
Ao impor a obrigatoriedade de escrituração mercantil, dispõe o art.º 38.º do Código Comercial que “O empresário comercial é obrigado a ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei e adequada à sua empresa, que permita o conhecimento de todas as suas operações, bem como informações acerca da sua posição financeira e desempenho”.
Assim, e quanto à escrituração mercantil, é de considerar como facto pessoal que as recorrentes deviam ter conhecimento.

Passamos agora para o outro argumento das recorrentes, respeitante à alegada “realidade diferente” entre o lançamento nos livros de escrituração mercantil dos factos e a escrituração do empréstimo nas contas das recorrentes.
Salvo o devido respeito, parece antes que as recorrentes pretendem valer-se de artifícios linguísticos, pois está claro que quando o Autor alegou que “as duas R.R. não escrituraram o empréstimo nas suas contas”, se referia, manifestamente,à escrituração mercantil prevista nos artigos 38.º e seguintes do Código Comercial, até porque aparenta-se como descabido escriturar tais empréstimos em qualquer outro local.
Também não assiste razão às recorrentes, que alegam que a ordem dada pelo TJB a fls. 824 dos autos se destina à junção de “prova de lançamento nos livros de escrituração mercantil dos factos” referentes aos mútuos com hipoteca, que devem ser lançados no designado “Livro de registo de ónus, encargos e garantias”, previsto na al. d) do n.º 1 do art.º 252.º do Código Comercial, enquanto o que se constata no artigo 91.º da petição inicial é a não escrituração do empréstimo nas contas, argumento este que não tinha sido invocado nas suas contra-alegações apresentadas no recurso interposto pelo Autor para o TSI.
Na verdade, nos termos do n.º 1 do art.º 252.º do Código Comercial, “além dos livros de escrituração e contabilidade que a lei declara obrigatórios”, as sociedades devem ter os livros aí referidos, incluindo o livro de registo de ónus, encargos e garantias, cujos elementos são indicados no n.º 2 do mesmo artigo.
Daí resulta claramente que, independentemente desse livro de registo de ónus, encargos e garantias, o empréstimo deverá sempre ser registado nos livros de escrituração mercantil.
No presente caso, ao dizer na contestação que “a formulação tecida no artigo 91.º não corresponde à verdade”, as recorrentes negaram em primeiro lugar a alegação do Autor sobre a não escrituração do empréstimo de 2010 nas suas contas, fazendo extrair-se que a respectiva escrituração tenha sido efectuada, e depois passaram a responder à ordem do Tribunal que “não registaram nos seus livros de escrituração mercantil a relação comercial estabelecida em relação ao segundo empréstimo, realizado em 2010”.
Ora, manifestamente as recorrentes negaram aquilo que por elas próprias foi afirmado, referente à escrituração do empréstimo de 2010.
Nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º 385.º do CPC, diz-se litigante de má fé aquele que, com dolo ou negligência grave, “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”.
Visto o comportamento das recorrentes, não se nos afigura merecer censura a decisão recorrida, que as condenou como litigantes de má fé.
Improcede o recurso interposto pelas 2.ª e 3.ª Rés.

3.2. Do recurso do Autor
Por acórdão ora recorrido, foi revogada a sentença do TJB na parte em que declarou nula a procuração outorgada pelo 1.º Réu a favor da 2.ª Ré bem assim a compra e venda celebrada entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré, executada através da procuração, com a seguinte fundamentação:
   «E é bom de ver que, não obstante se encontrar provado que o 1º Réu pretendia transferir à 2ª Ré a titularidade das quotas ideais e, para o efeito, outorgou a procuração para tornar efectivo o negócio de compra e venda, a verdade é que as partes não celebraram o contrato de compra e venda, daí que não se deve colocar a questão de nulidade tanto do contrato de compra e venda como da procuração, por falta de forma legal.
   No caso vertente, o 1º Réu conferiu poderes à 2ª Ré para esta praticar negócios consigo mesmo, sendo que, com base nessa procuração, a 2ª Ré pode celebrar escrituras públicas de compra e venda, fazendo negócio consigo mesmo ou celebrar negócios com terceiros, e deste modo, transferir a propriedade das quotas ideais do 1º Réu para a 2ª Ré.
   Em boa verdade, sempre que haja pagamento integral do preço da compra e venda, o alienante e o adquirente do bem podem acordar em transferir para este os direitos daquele através de duas formas: ou as partes celebram directamente a escritura de compra e venda ou acordam em que o alienante outorgue a favor do adquirente uma procuração com poderes especiais para este poder praticar negócios consigo mesmo.
   A nosso ver, a procuração que confira poderes para celebrar negócio consigo mesmo pode funcionar como um instrumento ou como um meio para a realização de finalidades do contrato de compra e venda.
   Melhor dizendo, uma vez outorgada essa procuração e recebido o preço integral do preço, o alienante (outorgante da procuração) pode deixar de ter qualquer interesse nas futuras transmissões do bem. E esse bem pode ser adquirido tanto pelo procurador como por qualquer terceiro.
   No caso vertente, no que respeita à procuração outorgada pelo 1º Réu, não se vislumbra qualquer divergência entre a vontade e a declaração, isto é, o 1º Réu está bem ciente de que foi feita uma procuração a favor da 2ª Ré, e pese embora aquele pretender transferir os seus direitos a favor da 2ª Ré, essa transmissão só será concretizada com a celebração da escritura pública, funcionando a tal procuração apenas como um instrumento para efectivar a compra e venda daqueles direitos.
   Isto posto, na medida em que a procuração sob escrutínio corresponde à vontade real do declarante ora 1º Réu, bem assim foi celebrada em cumprimento do disposto na alínea a) do n.º 1, n.º 2 e 3 do artigo 128.º do Código do Notariado, é razoável concluir que a procuração em apreço é válida.»

Dessa decisão vem o Autor apresentar recurso, defendendo que estão em confronto duas posições divergentes em relação à função da procuração em causa no contexto do negócio celebrado entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré, uma do TSI que considerou que a procuração funcionou apenas como um instrumento para que se efectivasse, em momento posterior, a compra e venda, pela 2.ª Ré, das quotas ideais do 1.º Réu nos imóveis ali descritos e a outra do TJB que concluiu que a procuração não foi um instrumento, antes corporizou a própria transmissão das quotas ideais do 1.º Réu para a 2.ª Ré.
Para o Autor, a perspectiva do TJB adequa-se aos factos dados como provados nos autos, designadamente, as respostas aos quesitos 1.º, 8.º, 12.º , 22.º, 28.º, 30.º e 30.º-A da base instrutória, e também à constatação de que a acção foi instaurada passados quase 10 anos sobre a outorga da procuração sem que a 2.ª Ré tenha celebrado negócio consigo mesmo, de modo a ficar formalmente investida na titularidade das quotas ideais em questão ou transmitido formalmente as quotas ideais a terceiro e que a 2.ª Ré nunca disse nos autos que tencionava vir a celebrar essa escritura pública, o que demonstra o acerto da sentença do TJB, no sentido de que a procuração era o título que conferiu à 2.ª Ré a fruição definitiva dos referidos direitos imobiliários.
E sustenta que a venda das quotas ideais pelo 1.º Réu à 2.ª Ré é nula por falta de forma e por contrariar disposição legal de carácter imperativo (cf. art.º 866.º do Código Civil, art.º 94.º, n.º 1 do Código do Notariado e art.º 287.º do Código Civil) e bem assim a procuração outorgada pelo 1.º R. à 2.ª R. porque ela é o próprio negócio de compra e venda ou por aplicação analógica do comando do art.º 258.º, n.º 1 do Código Civil, já que a procuração deverá ser tida como nula quando nula for a relação jurídica a que pretendem dar forma.
Em termos de enquadramento jurídico do problema suscitado nos autos, e apesar de não o afirmar expressamente, o Autor ora recorrente baseia o seu recurso na “figura controversa”7 da procuração no interesse exclusivo do procurador, considerando tal procuração como forma de execução de uma transmissão de posições jurídicas.
Vejamos.

Conforme a disposição do n.º 1 do art.º 255.º do Código Civil, “Diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.”
Embora o caso típico seja o da procuração outorgada no interesse exclusivo do representado (“dominus”), não é afastadas outras hipóteses, ou seja, no interesses exclusivo do procurador (ou terceiro) a ainda no interesse de ambos.
Já Ferrer Correia configurava “a procuração (o acto de concessão de poderes representativos) como um negócio jurídico autónomo em relação ao mandato – e precisamente como declaração unilateral de vontade procedente do representado e dirigida ao terceiro (ou ao quivis com quem o procurador venha a tratar). (…) Bilateral? Não: negócio unilateral. (…) não se vê que o consentimento do representante venha desempenhar na construção qualquer função útil. (…) Corresponde ao conceito de declaração unilateral de vontade, tendo por destinatário o outro sujeito do acto representativo.”8
E considera-se na doutrina moderna que a procuração “É um negócio jurídico unilateral, …”.9
É de frisar, no entanto, que a tese segundo a qual a procuração seria um negócio abstracto, tal como era defendida por Ferrer Correia na senda da doutrina alemã10, é hoje em dia, em face da lei actualmente em vigor, cabalmente rejeitada.
Na verdade, é geralmente aceite que “A procuração é um negócio incompleto. É só um trecho do negócio global. O seu sentido só se apreende uma vez realizada a integração nesse negócio global. (…)
Tal como a cessão, a procuração não é um negócio abstracto. Se for passada uma procuração sem mais, essa procuração estaria viciada por falta de causa. Assim deveria ser declarado em acção em que eventualmente se discutisse a sua validade. (…)
A lei é afinal expressa ao referir esta dependência da procuração no que respeita à relação fundamental.
O art. 265/111 determina a extinção da procuração quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base. A procuração não é pois um negócio abstracto.
Mais categórico ainda é o art. 264/112, relativo à substituição do procurador, que fala na «relação jurídica que a determina» (a procuração).
Portanto, a procuração tem sempre de se combinar com uma relação subjacente. Mas não perde a sua autonomia. Não deixa nomeadamente de ser um negócio unilateral. Pode é acontecer ser expressa por uma cláusula, contendo um negócio unilateral, compreendida no texto dum negócio mais vasto.”13
No mesmo sentido, afirma Pedro Pais de Vasconcelos que “A procuração, não sendo um negócio abstracto, não é também um negócio completo. O mandato é frequentemente a relação subjacente à outorga de poderes representativos, mas não é necessariamente a única. Outros actos e outras relações jurídicas podem fundar a outorga de poderes de representação e constituir a respectiva relação subjacente.”14
É também geralmente aceite que a figura da representação (onde se inclui a representação voluntária, mediante procuração) tem ainda como pressuposto a “Declaração, em maior ou menor escala de uma vontade própria do representante, e não, pura e simplesmente, de uma vontade do representado. Através deste requisito distingue-se a figura do representante da figura do núncio.”15.
Além disso, é unânime na doutrina que a representação pressupõe a actuação em nome de outrem, sendo tal, aliás, exigido pelo citado art.º 255.º do Código Civil.
Conforme descreve Ferrer Correia, “há-de o agente comportar-se, objectivamente, como representante de outrem: manifestar à outra parte, com quem trata, a intenção de que os efeitos do negócio jurídico o não atinjam a ele, mas a esse outrem, em nome de quem e para quem, por seu lado, o negócio é concluído. É o requisito da contemplatio domini.”16
Neste sentido, também Mota Pinto indica como pressuposto da representação a “(…) «contemplatio domini», isto é, a realização do negócio em nome do representado, para que a contraparte saiba ou possa saber com quem negoceia. Na dúvida, negoceia-se em nome próprio. A ligação ao dono do negócio deve ser reconhecível, mas não é necessário que se diga o nome deste (quem compra numa loja ou deposita num banco sabe que o vendedor ou o caixa são representantes de outrem).”17
Quanto à actuação no interesse de outrem ou por conta de outrem, embora haja quem defenda que só há representação quando alguém age em nome e no interesse de outrem18, certo é que a actuação no interesse de outrem não é considerada, pela doutrina maioritária, como um pressuposto da relação de representação, não obstante o interesse tutelado pela procuração ser relevante para outros fins.
Como diz Carlos Mota Pinto, “Para existir representação basta que o negócio seja concluído em nome do representado, não sendo já necessário, contrariamente ao que por vezes se supõe, que o seja no interesse do representado (…) a representação voluntária pode ter lugar por força da chamada procuração in rem suam, caso em que os poderes representativos são conferidos no interesse do próprio procurador. (…)”19

Por outro lado, e independentemente de se considerar ou não o interesse de outrem como pressuposto essencial da representação voluntária, sempre se convirá que o interesse com base no qual é conferida a procuração acaba por ser relevante enquanto critério de acção e, também, enquanto critério de revogabilidade20.
É que “Tendo o procurador alguma margem de autonomia e liberdade de acção no exercício dos poderes que lhe são conferidos pela procuração, terá necessariamente de existir um critério que permita determinar o modo do exercício desses poderes. É necessário estabelecer a margem de manobra do procurador. A razão da necessidade de balizar a liberdade ou a autonomia da actuação do procurador resulta ainda de não ser prático, nem lhe poder ser exigido, que esteja constantemente a perguntar ao dominus como é que este pretende que os poderes sejam exercidos. Se assim sucedesse, a procuração perderia uma grande parte do seu conteúdo útil.”21
É assim necessário definir o conceito de “interesse” e a sua aplicabilidade no âmbito da representação voluntária para que se possa, desse modo, determinar no interesse de que parte é que foi outorgada uma procuração.
Seguindo a concepção de interesse formulada por Jhering, Menezes Cordeiro defende que “em sentido objectivo, o interesse traduz a virtualidade que determinados bens têm para a satisfação de certas necessidades; em sentido subjectivo, o interesse exprime uma relação de apetência que se estabelece entre o sujeito carente e certas realidades aptas a satisfazê-lo”.22
De forma mais clara, Pedro Pais Vasconcelos sustenta que “o interesse, no agir representativo, tal como no direito subjectivo, interliga a pessoa com os meios que sejam hábeis para a realização dos seus fins e traduz-se na tensão entre a pessoa que quer realizar um fim, ou que tem um fim a realizar, e o meio de que carece ou que é hábil para o alcançar”.
E desenvolvendo esta ideia, refere o mesmo autor que “O interesse que rege o exercício representativo resulta da interpretação e concretização da relação subjacente, também chamada de relação fundamental (…) Do mesmo modo, na representação voluntária, é na relação subjacente que se encontra o critério dos interesses reitores do exercício pelo representante dos poderes que emergem da procuração.”, vindo a concluir que “Os interesses emergentes da relação subjacente não orientam apenas os critérios do agir representativo, mas também os da revogabilidade ou irrevogabilidade da procuração.”23
Ora, tipicamente, a procuração é conferida no interesse exclusivo do representado (“dominus”), pelo que nessa hipótese, “(…) segundo Bianca, “o representante deve exercer o seu poder de representação de acordo com o interesse do representado. A obrigação do representante de exercer o seu poder em conformidade com o interesse do representado é expressão do princípio geral segundo o qual o titular de um poder conferido no interesse de outrem deve usar o poder de acordo com o interesse no qual este é conferido. […] A obrigação de prosseguir o interesse do representado respeita, todavia, ao acto de exercício da representação em si considerado”.
“Embora a procuração típica seja outorgada no interesse exclusivo do dominus, tal não significa que o procurador não tenha na procuração qualquer interesse. Em todos os casos de relações de representação em que o procurador exerce efectivamente os poderes outorgados, existe sempre algum interesse do procurador na outorga, ou no exercício dos poderes de representação.” 24
Aqui chegados, é de dizer que, pala além da procuração no interesse exclusivo do representado, a lei prevê ainda a figura da procuração no interesse comum do representado e do procurador (ou de terceiro).
De facto, dispõe o art.º 258.º, n.º 3 do Código Civil que “…, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.”.
Curiosamente, quanto a esta norma o anteprojecto do Código Civil de Portugal previa “a procuração no interesse do representante”, mas “na versão final do Código Civil foi inserida a palavra “também”, o que deixou formalmente fora da sua letra o caso da procuração no interesse exclusivo do procurador.”25
Entretanto, a procuração no interesse exclusivo do procurador, apesar de ter suscitado dúvidas na doutrina26, não fica cabalmente afastada e é também aceite pela jurisprudência comparada.
Para contrapor aos argumentos baseados na letra da lei, Pedro Leitão Pais de Vasconcelos defende que “não existe no Código Civil qualquer preceito que exclua expressamente a possibilidade de se outorgar uma procuração no interesse exclusivo do procurador.”.

Isto sem prejuízo de, como se deixou dito supra, a procuração no interesse exclusivo do procurador “(…) não implica[r] que o dominus não tenha algum motivo para outorgar a procuração, pois, se assim fosse, ele certamente não a teria outorgado. (…) O dominus pode ter um interesse relevante no acto de outorga da procuração, mas esse interesse esgota-se na outorga, não sendo relevante como critério do agir representativo, nem como fundamento do regime de revogação.”27
Efectivamente, Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (bem como a doutrina que admite a procuração no interesse exclusivo do procurador ou de terceiro) utiliza uma noção de interesse mais restrita, limitada ao interesse quanto ao exercício dos poderes representativos e excluindo o interesse na outorga da procuração.
E “A falta de um interesse do dominus na procuração não implica que este não tenha interesse no acto da outorga da mesma. O acto de outorga da procuração e a procuração em si são realidades diferentes. O dominus pode ter um interesse na outorga da procuração por esta (outorga) ser útil para atingir um fim seu – por exemplo, cumprir uma vinculação decorrente da relação subjacente que consista na obrigação de outorgar uma procuração. Mas o dominus pode não ter qualquer interesse na procuração em si, na sua vigência, conteúdo e efeitos. É necessário distinguir as duas situações do ponto de vista da sua aptidão para prosseguir determinados fins. Os fins que a outorga da procuração é apta para prosseguir não são totalmente coincidentes com os fins que a procuração em si é apta para prosseguir. (…) não é estruturalmente necessário que exista um interesse do dominus na procuração, sendo consequentemente juridicamente admissível a figura da procuração no interesse exclusivo do procurador. A autonomia privada admite-o, e nada na lei, nos bons costumes ou na ordem pública o exclui.”28
Como melhor explica Pedro Pais de Vasconcelos, “Não podem ser postos no mesmo plano, e muito menos confundidos, o interesse como critério de exercício dos poderes representativos e o interesse como fundamento da procuração. Se o fossem, não haveria também, nunca, uma procuração no interesse exclusivo do dominus, pois haveria sempre algum interesse do procurador, sem o qual este não estaria disposto a assumir essa posição jurídica e a exercer os inerentes poderes.
É pois necessário distinguir o interesse primário do interesse secundário.
O interesse primário, que “deverá ser aferido na perspectiva da execução do negócio que constitui a relação subjacente”, “deve ser próprio, específico, objectivo e directo na execução do negócio que constitui a relação subjacente, de tal modo que o procurador tenha uma posição própria no âmbito da relação de representação, uma posição autónoma da posição da pessoa que representa” (…)
O interesse secundário explica a outorga da procuração pelo seu outorgante e o exercício dos poderes representativos pelo procurador. O outorgante da procuração irrevogável, emite-a, na maior parte das vezes, porque ela lhe é exigida muitas vezes em ligação com contratos promessa. Ele tem interesse em fazê-lo e, se não tivesse, não o faria. Também tem interesse em ser informado do exercício que o procurador faz dos poderes que lhe confere e em controlá-lo, porque os actos praticados nesse exercício se repercutem na sua esfera jurídica. Este é o interesse secundário, que não deve ser confundido com o interesse primário. (…)” 29
Em suma, “O legislador, no artigo 256.º, guiou-se por um critério de normalidade. Não há indícios fortes, no entanto, de que a redacção da lei tenha subjacente uma proscrição injuntiva da procuração no exclusivo interesse do procurador ou de terceiro, nem que o desinteresse do outorgante da procuração seja, em princípio e só por si, contrário à Ordem Pública, à Moral ou aos bons costumes, ou incompatível com os valores axiológicos superiores da Ordem Jurídica. Não há nada que, em princípio, exclua a admissibilidade da procuração outorgada no exclusivo interesse do procurador, de terceiro ou de ambos.”30
No entanto, mesmo aceitando a procuração no interesse exclusivo do procurador, a sua outorga não implica a transmissão da posição jurídica do dominus para o procurador, que é a questão discutida no presente caso.
Pedro Leitão Pais de Vasconcelos fez alguma crítica ao entendimento do Autor italiano Massimo Bianca, para o qual “quando a procuração é conferida no exclusivo interesse de outrem isso significa que o representado terá na realidade cedido a posição jurídica de que o representante pode dispor. A procuração torna-se então um instrumento executivo de tal atribuição e presta-se a realizar finalidades múltiplas.”, afirmando que “Na nossa ordem jurídica, a procuração no interesse exclusivo do procurador não deve ser vista como implicando ou resultando de uma transmissão da posição jurídica do dominus.”
Como defende o mesmo Autor, “Entender o contrário implica uma violação do princípio da autonomia privada. Este princípio permite a celebração de quaisquer negócios dentro dos limites do artigo 280.º do Código Civil, isto é, dentro dos limites da lei, dos bons costumes e da ordem pública. Se foi uma procuração que se pretendeu outorgar, não foi um negócio transmissivo da titularidade da posição jurídica.
A vontade do dominus é efectivamente a de outorgar os poderes de representação ao procurador para que este os use no âmbito do negócio que constitui a relação subjacente. E a relação subjacente não pode consistir num negócio transmissivo da posição jurídica do dominus. Se a vontade das partes na relação subjacente fosse no sentido da transmissão da posição jurídica do dominus, teriam celebrado um negócio que a provocasse e não teria havido lugar à outorga da procuração. Não faz sentido que o dominus transmita a posição ao procurador e depois lhe outorgue uma procuração. (…)
Outra hipótese seria a de dominus e procurador acordarem em não deixar que terceiros tomassem conhecimento da transmissão da posição jurídica, socorrendo-se o procurador de uma procuração irrevogável para exercer os direitos correspondentes à sua posição. Mas, neste caso, estar-se-ia perante uma simulação, sendo aplicável o regime jurídico deste instituto. (…)”
Citando também Pessoa Jorge, conclui o Autor que “A procuração no interesse exclusivo do procurador não implica uma transmissão da posição jurídica do dominus, nem resulta da mesma. Juridicamente, o dominus mantém-se sempre como o titular da posição jurídica, agindo o procurador em seu nome. (…)” 31
Pelo exposto, admitindo-se a procuração no interesse exclusivo do procurador, não se pode aceitar que a sua outorga implique a transmissão da posição jurídica do representante para o representado.
É também neste sentido a jurisprudência de Portugal, aqui citada a título do direito comparado.32
No seu acórdão proferido em 2 de Março de 2004 no Processo n.º 4441/03, o Supremo Tribunal de Justiça veio admitir a procuração no interesse exclusivo do procurador, afirmando que “fora de casos pontuais que passam por pactos simulatórios ou fraudulentos, geradores da inerente invalidade do negócio, a procuração no interesse exclusivo do procurador não implica a transmissão da posição jurídica do representado, nem resulta dela, mantendo-se, juridicamente, o dominus como titular daquela posição, gozando da faculdade de a revogar com justa causa, e agindo o procurador em seu nome.”.
Mais recentemente, o mesmo Tribunal proferiu acórdão em 28 de Maio de 2015, no processo n.º 123/06.2TBVS.E1.S1, onde decidiu que:
“Em princípio, a procuração encontra-se sempre integrada num negócio global, não operando de um modo independente. Funciona em conjunto com uma relação jurídica que lhe está subjacente, sendo que se esta não existir, a procuração pouco ou nenhum efeito prático terá. Assim, com a outorga da procuração, o dominus pretende conferir ao procurador poderes para a prática de um acto ou a celebração de um negócio em sua representação.
Conferida a procuração também no interesse do procurador (cf. art. 265.º, n.º 3, do CC), para ser objecto de tutela autónoma, deve ter este um interesse próprio, objectivo, específico, directo (como parte do negócio) na conclusão ou na execução do negócio que constitui a relação subjacente.
Verificado este interesse comum do dominus e do procurador, a procuração é irrevogável, a não ser que ambos concordem na sua revogação.
Nos mesmos termos, é irrevogável a procuração conferida no interesse exclusivo do procurador (embora a lei não preveja expressamente o seu regime jurídico, retira-se da regra do argumento de interpretação “ad minori ad maius”), admissível enquanto negócio jurídico unilateral que não contém uma promessa de prestação, depende apenas da regra geral da autonomia privada e não está limitada pelo art. 457.º. Esta, pese embora falte o interesse do dominus, não implica uma transmissão da sua posição jurídica. Ao procurador são-lhe efectivamente outorgados poderes para representar o dominus.
Quando o procurador age com base numa procuração no seu exclusivo interesse, actua em nome do dominus e sobre a sua esfera jurídica, não agindo em nome próprio nem no âmbito da sua própria esfera jurídica. Se foi uma procuração que se quis outorgar, não foi um negócio transmissivo da titularidade da posição jurídica.”

Postas tais considerações doutrinais e jurisprudenciais, é de voltar ao nosso caso concreto.
Compete frisar, desde logo, que é pacífico, na doutrina e jurisprudência de origem portuguesa, que a procuração no interesse exclusivo do procurador não configura a transmissão de uma posição jurídica do representante para o representado, repetindo.
Poderia colocar-se a questão de saber se, na verdade, houve um pacto simulatório entre o 1.º Réu e a 2.ª Ré, no sentido de ocultar dos demais comproprietários a transmissão da posição jurídica, para evitar, por exemplo, o exercício dos correspondentes direitos de preferência.
No entanto, tal como se constata na sentença do TJB, “No que respeito à intenção de enganar terceiros, o autor não logrou demonstrar a matéria constante dos quesitos 9.º a 11.º da base instrutória: o 1.º Réu e a 2.ª Ré praticaram os actos acima referidos com o propósito de ocultar a verdadeira transacção (a compra e venda) a fim de enganar o Autor e os restantes comproprietários e de os impedir o exercício do seu direito legal de preferência: pelo que “é deveras difícil concluir que houve tal intenção”. (cfr. fls. 969v e 970 dos autos)
É de dizer que o TJB considerou “afastado o regime da simulação”, por não terem sido provados os elementos fácticos essenciais à verificação de simulação, no que respeita designadamente ao requisito do “intuito de enganar terceiros” previsto no art.º 232.º do Código Civil, decisão esta que não foi alterada pelo acórdão ora recorrido.
Assim sendo, uma vez excluída a situação de pactos simulatórios, é de considerar que a procuração ora em causa, mesmo outorgada no interesse exclusivo do procurador, não foi um negócio transmissivo da titularidade da posição jurídica.
Repetindo e salientando, a procuração é um negócio incompleto, causal e depende de uma relação subjacente, como já foi referido.
Nos autos ficou provado que “O 1.º Réu estipulou com a 2.ª Ré um acordo particular nos termos do qual a 2.ª Ré, como contrapartida da entrega definitiva de quantia em dinheiro ao 1.º Réu, poderia fruir e dispor definitivamente ou onerar as quotas ideais do 1.º Réu em todos os imóveis identificados na procuração…” (resposta ao quesito 1.º da base instrutória).
É essa a relação subjacente à procuração.
E não obstante o que consta nas respostas aos quesitos 8.º e 12.º da base instrutória, não se nos afigura que tais factos dados como provados, no sentido de, através do acordo aludido na resposta ao quesito 1.º, “o 1.º Réu e a 2.ª Ré quiseram transferir os direitos imobiliários daquele para esta contra o pagamento de uma quantia em dinheiro por esta àquele” e “o 1.º Réu outorgou a procuração … para tornar efectivo o negócio referido na resposta ao quesito 1.º”, possam afectar a conclusão de que a procuração não é destituída de causa ou que a procuração configurou uma transmissão da posição jurídica de titular “dos direitos imobiliários” do 1.º Réu para a 2.ª Ré.
A verdade é que, não obstante os referidos factos, respeitantes à intenção das partes na outorga da procuração, “as partes não celebraram o contrato de compra e venda, daí que não se deve colocar a questão de nulidade tanto do contrato de compra e venda como da procuração, por falta de forma legal”, tal como considera o Tribunal recorrido.
Face ao exposto, não merece censura o acórdão posto em causa.

Invoca ainda o Autor ora recorrente a nulidade da procuração outorgada pelo 1.º R. à 2.ª R. “por aplicação analógica do comando do artigo 258.º, n.º 1, do Código Civil”.
Ora, salvo o muito respeito, não se compreende a alegação feita pelo recorrente com apelo à aplicação analógica da norma indicada, segundo a qual “A procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for, neste caso, a vontade do representado.”
De facto, da leitura das alegações apresentadas não se percebe como é que se pode concluir, em abstracto, pela nulidade da relação jurídica subjacente.

Concluindo, é do nosso entendimento que carecem de fundamento as alegações apresentadas pelo Autor.
E não se justifica, por conseguinte e ao abrigo do art.º 630.º, n.º 2, ex vi art.º 652.º do Código de Processo Civil, o conhecimento da questão relativa à falta de interesse processual do Autor suscitada pelas 2.ª e 3.ª Rés no seu recurso interposto para o TSI, que também não a apreciou por considerou prejudicada (fls. 1238v dos autos)

4. Decisão
Face ao exposto, acordam em negar provimento aos recursos interpostos pelo Autor e pelas 2.ª e 3.ª Rés, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo Autor e pelas 2.ª e 3.ª Rés, respectivamente.

Macau, 13 de Janeiro de 2023
                Juízes: Song Man Lei (Relatora)
José Maria Dias Azedo
Sam Hou Fai

1 Cfr. Ac. do TUI, de 13 de Janeiro de 2010, Proc. n.º 42/2009.
2 Cfr. Ac. do TUI, de 4 de Outubro de 2011, Proc. n.º 39/2011.
3 Cfr. Ac. do TUI, de 23 de Maio de 2008, Proc. n.º 9/2008.
4 Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, págs. 346 e 347.
5 Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 505.
6 Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2 de Abril de 2008, Proc. n.º 286/2008-4 e do Tribunal da Relação de Porto, de 24 de Novembro de 1997, Proc. n.º 9710762, aqui citados a título de direito comparado.
7 Para utilizar a expressão empregue por Pedro Leitão Pais de Vasconcelos em A Procuração Irrevogável, 2017, 2.ª Edição, pág. 115.
8 Ferrer Correia, A procuração na teoria de representação voluntária, Boletim da Faculdade de Direito, XXIV, págs. 275, 290 e 293.
9 Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Volume II, Acções e Factos Jurídicos, pág. 236.
10 “(…) a natureza abstracta do acto procuratório já se exprime com segurança na possibilidade de a procuração não coincidir, pelo seu alcance, com o âmbito dos poderes do mandatário, e em não ser ela necessariamente afectada pela dissolução da relação causal (…) A abstracção integral pressupõe também – ou implica – que a nulidade da relação interna se não comunique à procuração, que a procuração se mantenha válida, como o necessário sustentáculo dos actos jurídicos realizados com terceiros ao seu abrigo, sem embargo de ser nulo o mandato fundamental, a locação de serviços, a sociedade. (…)” (Ferrer Correia, ob. cit., pág. 288).
11 Corresponde ao art.º 258.º, n.º 1 do Código Civil de Macau.
12 Corresponde ao art.º 257.º, n.º 1 do Código Civil de Macau.
13 Oliveira Ascensão, ob. cit., págs. 237 e 238.
14 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs.302 e 303.
15 Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição Actualizada, pág. 544. Na mesma linha de raciocínio, Luís Carvalho Fernandes “(…) a figura da representação exige a atribuição, ao representante, de um mínimo de poder de decisão, ainda que este coexista com instruções do representado a que ele tenha de obedecer escrupulosamente. Quando esse poder mínimo de decisão não exista, estamos fora do campo da representação e quem se limita a transmitir a vontade de outrem actua como núncio.” (Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 171).
Castro Mendes também reconhece a necessidade de uma margem de decisão por parte do representante ao referir que “Tem-se entendido que para haver representação é necessário que o representante decida, não se limite a transmitir uma decisão alheia. A pessoa encarregada apenas de transmitir uma decisão alheia diz-se núncio.
Pode suceder que uma pessoa actue apenas como representante (na representação legal, designadamente) ou apenas como núncio (no caso de ser um mero transmissor da declaração de vontade, cfr. art. 250.º). Mais comum é, porém, pelo menos na representação voluntária, que a pessoa actue em certa medida como representante (na medida em que lhe caibam poderes de decisão) e em certa medida como núncio (na medida em que cumpre instruções do representante e se limita a ser – como o seria, por exemplo, um gravador de som – veículo da vontade deste).” (Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, Revisto e Actualizado, pág. 414).
16 Ferrer Correia, ob. cit., pág. 254.
17 Carlos Mota Pinto, ob. cit., págs. 543 e 544. Cfr. ainda Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 242 e Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 169.
18 João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, pág. 412.
19 Carlos Mota Pinto, ob. cit., pág. 537. Posição que é acompanhada por José de Oliveira Ascensão na sua obra citada, pág. 244.
20 Seguindo a posição de Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª Edição, pág. 280.
21 Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., pág. 54.
22 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. I, 4.ª Edição, págs. 876 e 877.
23 Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª Edição, pág. 280.
24 Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., págs. 54 a 56.
25 Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., pág. 115.
26 Cfr. Luís Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 170; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, pág. 490;Pedro de Albuquerque, A Representação Voluntária em Direito Civil (Ensaio de Reconstrução Dogmática), págs. 984, 985 e 989.
27 Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., págs. 115 e 116.
28 Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., págs. 121 e 122.
29 Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª Edição, pág. 302.
30 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 304.
31 Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ob. cit., págs. 127 a 132.
32 Cfr. Ac.s do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Junho de 2003, Proc. n.º 03A1284, de 2 de Março de 2004, Proc. n.º 4441/03 e de 28 de Maio de 2015, Proc. n.º 123/06.2TBVS.E1.S1, entre outros.
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Processo n.º 7/2020 37