打印全文
Processo nº 94/2022
(Autos de recurso jurisdicional relativo a uniformização de jurisprudência em processo penal)




ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. O Exmo. Magistrado do Ministério Público traz o presente “recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência” alegando que a solução jurídica adoptada no Acórdão (recorrido) do Tribunal de Segunda Instância de 02.06.2022, proferido nos Autos de Recurso Penal n.° 288/2022, está em oposição à por este mesmo Tribunal assumida no Acórdão de 15.10.2021, Proc. n.° 663/2021, (doravante designado Acórdão fundamento); (cfr., fls. 2 a 31-v, onde juntou também as invocadas “decisões em oposição”, e cujo teor se dá aqui como reproduzido para todos os efeitos legais).

*

Adequadamente processados, e com os vistos dos Mmos Juízes-Adjuntos, vieram os autos à conferência a que alude o art. 423° do C.P.P.M..

Cumpre decidir.

Fundamentação

2. Em causa estando um “recurso – extraordinário – para a fixação de jurisprudência”, mostra-se-nos desde já adequado recordar a seguinte consideração de Gama Lobo, no sentido de que:

“A legitimidade do Direito assegura-se também pela sua capacidade de julgar casos iguais ou semelhantes de forma igual ou semelhante. Por tal razão o ordenamento jurídico prevê este mecanismo de fixação de jurisprudência, que mais não visa do que uniformizar as interpretações jurídicas e a sua aplicação, garantindo a coerência e a estabilidade da jurisprudência. E se alguma critica há a fazer a este sistema é a de que devia haver mais decisões uniformizantes, para gerar mais tranquilidade dos operadores judiciários e credibilidade da Justiça. (…)”; (in “C.P.P. Anotado”, Almedina, pág. 878).

Isto dito, importa ter presente que – no Título II, dedicado aos “Recursos extraordinários”, Capítulo I, quanto à “Fixação de jurisprudência”, e sob a epígrafe “Fundamento do recurso” – prescreve o art. 419° do C.P.P.M. que:

“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado”.

Resulta assim do teor do dispositivo em questão que no que toca ao presente “recurso para fixação de jurisprudência” acolhe o legislador quatro “matérias” distintas, ou seja, relativamente a:
- decisões de que cabe recurso;
- legitimidade para recorrer;
- tribunal competente; e seus,
- requisitos de admissibilidade.

Em causa estando agora aferir da verificação dos ditos “requisitos de admissibilidade”, sem mais demoras, vejamos o que nesta sede se mostra de decidir; (sobre a matéria, pode-se ver os Acs. deste T.U.I. de 11.03.2009 e de 31.03.2009, Proc. n.° 6/2009; de 25.04.2012, Proc. n.° 17/2012; de 23.09.2015, Proc. n.° 59/2015; 13.01.2016, Proc. n.° 78/2015; de 22.01.2016, Proc. n.° 81/2015; de 17.01.2017, Proc. n.° 65/2016; de 22.03.2017, Proc. n.° 15/2017; de 26.04.2017, Proc. n.° 13/2017; 24.01.2018 e de 25.04.2018, Proc. n.° 84/2017; de 31.07.2018, Proc. n.° 53/2018; de 03.04.2020, Proc. n.° 130/2019; de 17.12.2021, Proc. n.° 156/2021; de 12.01.2022, Proc. n.° 160/2021; de 23.02.2022, Proc. n.° 9/2022; de 11.03.2022, Proc. n.° 19/2022; de 08.04.2022, Proc. n.° 36/2022 e, mais recentemente, de 28.09.2022, Proc. n.° 90/2022).

Pois bem, estes ditos “requisitos” podem apresentar-se como sendo os seguintes:
- a “existência de uma oposição de acórdãos”;
- “sobre a mesma (ou idêntica) questão de direito”; e
- a “permanência do mesmo quadro legislativo”.

Pronunciando-se sobre o “primeiro” considera Manuel Leal-Henriques que o mesmo “repousa na exigência de que dois acórdãos proferidos por Tribunais Superiores tenham dado soluções diversas e opostas a uma concreta questão, (…)”.

Por sua vez, considera que se está perante uma (mesma ou idêntica) “questão de direito” quando se trata de “interpretar e aplicar normas jurídicas a uma qualquer situação concreta. (…)”.

E, finalmente, em relação ao último requisito, é de opinião que o mesmo exige que “entre a prolação do 1.° acórdão (o acórdão-fundamento) e o 2.° (o acórdão-recorrido) não tenha havido alteração essencial na legislação aplicável à concreta questão decidida”, acrescentando que, “aqui, o legislador teve necessidade de adiantar um elemento de ajuda ao aplicador da lei, indicando no n.° 3 que se consideram acórdãos proferidos no domínio da mesma legislação "quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida". (…)”; (in “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, Vol. III, C.F.J.J., 2014, pág. 373 e 378).

Cabendo-nos reflectir e ponderar sobre a aludida “oposição de acórdãos”, vejamos.

Pois bem, cremos que adequado se mostra de ter que a “oposição de julgados” exige que as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar “soluções” – “decisões” – diferentes para a mesma questão fundamental de direito e que as decisões em oposição sejam “expressas”.

Com efeito, nem a mera “aparência” de decisões opostas, nem decisões “implícitas” ou “tácitas”, são suficientes para fundar o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência.

Aliás, vale aqui a pena recordar o que neste mesmo sentido foi considerado nos Acórdãos de 11.03.2009 e 31.03.2009, Proc. n.° 6/2009, onde, nos respectivos sumários, se deixou consignado que:

“Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que:
- A oposição entre as decisões seja expressa e não meramente implícita;
- A questão decidida pelos dois acórdãos seja idêntica e não apenas análoga. Os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos;
- A questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental. Ou seja, a questão de direito deve ter sido determinante para a decisão do caso concreto”; (cfr., v.g., o Ac. de 11.03.2009); e,
“Para que se possa considerar haver oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito é necessário que haja duas decisões diversas. Se uma referência, de um Acórdão, sobre uma questão jurídica, não se consubstancia numa decisão, nunca pode haver oposição de acórdãos conducente a uma decisão uniformizadora de jurisprudência por parte do Tribunal de Última Instância.
A parte preceptiva da decisão judicial é apenas a ratio decidendi, ou seja, a razão de decidir, a regra de direito considerada necessária pelo juiz para chegar à sua conclusão. Os obiter dicta (regras de direito que não são fundamentais para decidir, aquilo que é dito sem necessidade absoluta para tomar a decisão) não vinculam”; (cfr., v.g., o Ac. de 31.03.2009, podendo-se sobre a matéria ver também os Acs. de 17.12.2021, Proc. n.° 156/2021, de 23.02.2022, Proc. n.° 9/2022 e de 08.04.2022, Proc. n.° 36/2022).

No mesmo sentido, (e fazendo referência a variada jurisprudência do S.T.J. português), nota também P. P. de Albuquerque que:

“A oposição de acórdãos tem de ser expressa e não tácita, não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em ambos os acórdãos (acórdão do STJ, de 18.9.1991, in BMJ, 409, 664). A oposição deve respeitar à decisão e não apenas aos seus fundamentos (acórdão do STJ, de 3.4.2008, in CJ, Acs. do STJ, XVI, 2, 194, e acórdão do STJ, de 3.12.1998, in SASTJ, n.° 26, 74), a soluções de direito expressas e não implícitas, soluções tomadas a título principal e não acessório ou secundário (acórdão do STJ, de 12.11.2008, in CJ, Acs. do STJ, XVI, 3, 221). A concreta questão a decidir deve ser delimitada com precisão, devendo justificar-se a correspondente oposição de acórdãos (acórdão do STJ, de 20.1.2005, in CJ, Acs. do STJ, XIII, 1, 175)”; (in “Comentário do C.P.P.”, 4ª ed., pág. 1192, podendo-se ainda ver o recente Ac. do S.T.J. de 12.01.2023, Proc. n.° 11/20).

Aqui chegados, e clarificado que nos parece estar o sentido e alcance (do requisito) da “oposição de acórdãos”, debrucemo-nos sobre a “situação dos presentes autos”.

Pois bem, em sede da sua motivação de recurso, diz, nomeadamente, o ora recorrente, que no Acórdão (“recorrido”) pelo Tribunal de Segunda Instância proferido nos Autos de Recurso Penal n.° 288/2022, entendeu-se que a conduta do aí arguido integrava a prática, em concurso real de 2 crimes: “o crime de “roubo” (o artigo 204.º n.º 1 em conjugação com o n.º 2 alínea b) e o artigo 198.º n.º 1 alínea a) e o artigo 196.º alínea a) do Código Penal), e crime de “armas proibidas” (artigo 262.º n.º 1 do Código Penal em conjugação com o artigo 6.º artigo 1.º, n.º 1 alínea b) e o artigo 1.º n.º 1 alínea c) do Decreto-Lei n.º 77/99/M)”, estando assim em oposição com o decidido pelo mesmo Tribunal de Segunda Instância no Acórdão proferido nos Autos de Recurso Penal n.° 663/2021, (“Acórdão fundamento”), onde se entendeu que “o “crime de armas proibidas” e o “crime de roubo qualificado” estão numa relação de absorção (…)”, ou seja, enquanto no “Acórdão recorrido” se considerou que o crime de “armas proibidas” e o crime de “roubo” estão numa “relação de concurso efectivo”, no “Acórdão fundamento” entendeu-se que o concurso era (tão só) “aparente”, devendo o arguido ser apenas punido por um único crime, (o mais grave).

E sendo efectivamente este o sentido das referidas decisões em questão, verificada está a invocada “oposição de Acórdãos”.

Nesta conformidade – inegável se nos apresentando igualmente que em causa está a solução dada à “mesma questão de direito”, em sede do “mesmo quadro legislativo” – mais não se julga necessário consignar para se decidir no sentido de que o presente recurso deva prosseguir os seus ulteriores termos; (cfr., art. 423°, n.° 1 do C.P.P.M.).

Decisão

3. Em face do que se deixou exposto, em conferência, acordam determinar o prosseguimento do recurso.

Sem tributação.

Registe e notifique.

Dê-se observância ao estatuído no art. 424°, n°s 1 e 2 do C.P.P.M..

Macau, aos 08 de Fevereiro de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

Proc. 94/2022 Pág. 2

Proc. 94/2022 Pág. 3