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Processo nº 832/2021
(Autos de Recurso Contencioso)

Data do Acórdão: 23 de Fevereiro de 2023

ASSUNTO:
- Cancelamento de BIRPM
- Nulidade
- Acto que constitua crime
- Efeito putativo do acto

SUMÁRIO:
- A interpretação extensiva de que são nulos os actos administrativos que envolvem na sua preparação ou execução a prática de um crime tem como limite os actos administrativos cujo destinatário é um terceiro de boa-fé alheio a toda a actividade criminosa que lhe possa ter estado subjacente;
- Desconhecer os efeitos do acto nulo é não querer ver que o acto administrativo até à declaração da respectiva nulidade ou à sua desaplicação com esse fundamento beneficia de uma presunção de legalidade, relativa evidentemente, mas que gera efeitos como se válido fosse;
- Subjacente ao aproveitamento dos efeitos putativos do acto nulo por efeito do decurso do tempo estão os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e proporcionalidade com base nos quais se tem vindo a sustentar que em face das circunstâncias do caso se reconheça a produção de efeitos jurídicos às situações de facto decorrentes dos actos nulos;
- O reconhecer ou não efeitos ao acto nulo nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA, implicando o exercício de um poder discricionário, pode ser sindicado pelo tribunal de acordo com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da confiança e imparcialidade;
- Ao não reconhecer ao Recorrente o estatuto de residente não actuou a Administração de acordo com o princípio da proporcionalidade, da confiança e da boa-fé os quais já antes analisados se entendeu que justificavam que fosse reconhecido o respectivo estatuto;
- Ao não se ter optado pela figura da supressão do poder de declarar a nulidade reconhecendo efeitos aos actos (nulos) de acordo com os princípios da boa-fé e da confiança, são os actos impugnados anuláveis impondo-se que se decida em conformidade.





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Rui Pereira Ribeiro



















Processo nº 832/2021
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 23 de Fevereiro de 2023
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Administração e Justiça
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  A, com os demais sinais dos autos,
  vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Administração e Justiça de 01.09.2021 que negou provimento ao recurso hierárquico e manteve a decisão da DSI que declarou a nulidade dos actos administrativos de emissão do referido Bilhete de Identidade de Residente nº ... e do passaporte da Região Administrativa Especial de Macau nº ... do Recorrente, formulando as seguintes conclusões:
1. A entidade recorrida sustenta, no que respeita à fundamentação da declaração de nulidade do actos de emissão do BIR e do passaporte da RAEM, que existe uma falta de veracidade no registo de nascimento do recorrente, no caso, a condição de residente de um dos seus progenitores, registo esse que conduziu à emissão daqueles documentos, certo é que que a veracidade daquele registo de nascimento não constitui um elemento essencial do acto administrativo de emissão do BIR, na medida em que não se encontra legalmente definido como um pressuposto legal da sua emissão, razão pela qual não enferma o mesmo da falta de qualquer elemento essencial de natureza estrutural, o que impede a declaração de nulidade ao abrigo do disposto no artigo 122º, nº 1 do CPA nos termos em que foi levada a cabo pela DSI.
2. No caso não se verifica qualquer outra-falta de elementos que permita concluir pela nulidade desses actos, ao abrigo do disposto na alínea i) do nº 2 do artigo 122º do mesmo Código, i.e. enquanto actos consequentes da nulidade do registo de nascimento, caso se defenda a nulidade deste mesmo.
3. À data da emissão do BIR do recorrente, o registo de nascimento não padecia de qualquer invalidade e encontrava-se conforme os requisitos legalmente exigidos. De acordo com o artigo 5º, nº 1 do DL nº 19/99/M, de 10 de Maio, consideravam-se residentes em Macau os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento.
4. A lei previa, assim, dois pressupostos para a aquisição do direito de residência em Macau:
- (i) o nascimento do menor em Macau e
- (ii) a residência legal em Macau ao tempo do nascimento do menor de, pelo menos, um dos progenitores.
5. Estes dois pressupostos mantêm-se na legislação que sucedeu ao mencionado decreto-lei, ou seja, a lei nº 8/2002 (artigo 4º).
6. Nesta sequência, à data do nascimento do recorrente, ou seja, em 28 de Setembro de 1999, verificavam-se estes dois requisitos legais:
(iii) o recorrente nasceu em Macau e
(iv) um dos progenitores que constava no registo de nascimento (o seu pai B detinha o estatuto de residente de Macau.
7. Considerando que a legalidade do acto administrativo se afere pela situação de facto e de direito existente à data da sua prolação, conclui-se que o acto de emissão do BIR do recorrente não padeceu de qualquer vício, encontrando-se em conformidade com a lei. A mesma conformidade legal se verifica.com a emissão do passaporte do recorrente, considerando que a lei determina que podem ser titulares de passaporte da Região as pessoas que (i) sejam cidadãos chineses e (ii) que sejam titulares do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM.
8. Em suma, nem o acto de emissão do BIR nem o acto de emissão do passaporte padecem da falta de qualquer elemento essencial, como já se referiu.
9. No entanto, a entidade recorrida sustenta a sua decisão num pressuposto errado quando diz que, como o registo de nascimento do recorrente é falso, nulo e cancelado, não produzindo quaisquer efeitos como título do facto registado, os subsequentes actos de emissão, de substituição e renovação do BIR, que tiveram por base aquele registo de nascimento, são também nulos, estendendo os seus efeitos à data do respectivo registo de nascimento.
10. Na verdade, como já se referiu, os actos ora impugnados foram praticados quando a filiação paterna se encontrava estabelecida, produzindo os devidos efeitos jurídicos no que respeita à aquisição da residência pelo recorrente, efeitos que não são legalmente passiveis de ver a sua eficácia destruída retroactivamente à data do seu nascimento pelo facto de, em 2015, ter deixado de se encontrar registada aquela filiação paterna, na medida em que este requisito não assume a natureza de um qualquer elemento essencial do acto administrativo de emissão do BIR que foi agora declarado nulo.
11. Considerando que, como se referiu, a legalidade do acta administrativo se afere pela situação de facto e de direito existente à data da sua prolação (princípio “tempus regit actum”) e nessa data o acto de emissão do BIR foi praticado de acordo com a factualidade necessária para o efeito, que correspondia ao que constava do seu registo de nascimento, conclui-se que o mesmo (acto de emissão do BIR do recorrente) não padeceu de qualquer vício no que respeita à falta de elementos essenciais, encontrando-se em conformidade com a lei. A mesma conformidade legal se verifica com a emissão do passaporte do recorrente.
12. Do que se referiu resulta que os actos administrativos de emissão do BIR e do passaporte do recorrente não são nulos por não lhes faltar qualquer elemento-essencial do acto, ao abrigo do nº 1 do artigo 122º do CPA, el por essa razão, não são actos consequentes da nulidade do registo de nascimento do recorrente, não se enquadrando no disposto na alínea i) do nº 2 da mesma norma e Código,
13. Pelo que, a declaração de nulidade desses actos é ilegal, por erro nos pressupostos de direito e por violação do disposto nos artigos 122º, nºs 1 e 2, alínea i), todos do CPA, devendo ser anulados.
14. Importa fazer uma distinção entre o caso reportado no acórdão do TSI (Proc. nº 1191/2019), acima citado e o caso destes autos, já que, neste processo, a pessoa que declarou ser pai biológico do ora recorrente nunca foi acusado e julgado, portanto não existe condenação penal que serve de base à decisão por parte do órgão administrativo competente.
15. Se é própria lei criminal se “desinteressa” pela prática dos crimes pelo agente, decorrido que se encontre um determinado período de tempo sobre o seu cometimento, é manifestamente desproporcional e injusto que o recorrente seja profundamente prejudicado por uma conduta eventualmente criminosa praticada por um terceiro, sem que esse mesmo período de tempo seja também considerado pelo Governo da Região na ponderação dos efeitos daquele acto sobre a manutenção do seu direito de residência na RAEM.
16. Tal como se refere na decisão recorrida, o recorrente não teve participação na conduta em que se sustenta a nulidade do seu registo de nascimento.
17. Donde, fazer repercutir os efeitos dessa conduta na esfera jurídica do recorrente viola, manifestamente, os princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança, previstos nos artigos 5º e 8º do CPA, considerando que este não contribuiu para a ilegalidade detectada no registo de-nascimento nem nunca procurou obter, nem obteve, durante mais de 21 anos, qualquer benefício ilegítimo decorrente dessa situação, sempre pautando a sua vida em estrito respeito pelas normas e princípios a que está vinculado enquanto residente permanente da Região Administrativa Especial de Macau.
18. Com efeito, é consabido que, EM REGRA, a violação do princípio da boa-fé não invalida a decisão de declaração de nulidade do registo de nascimento do recorrente, PORÉM, no caso, a violação do princípio da boa fé invalida a decisão sob impugnação, por impor uma sanção de carácter perpétuo, privando ao recorrente o direito de fixação da residência em Macau, sem que este tenha praticado algum facto ilícito e culposo.
19. É de defende que a declaração da nulidade desse registo não obsta a que, com base no princípio da tutela da confiança, sejam atribuídos efeitos putativos às situações decorrentes de actos nulos e, por força do decurso do tempo, os princípios gerais impuserem a sua consolidação, nos termos consentidos no nº 3 do artigo 123º do CPA.
20. A lei permite, assim, que sejam mantidos, apenas, os efeitos jurídicos do acto nulo (e não o próprio acto em si) e, deste modo, com fundamento em critérios de justiça material concretizada por decisão desse Tribunal, no sentido de manter o direito à residência permanente do recorrente na Região, à titularidade do BIR e, bem assim, ao documento de viagem (passaporte).
21. Efeitos jurídicos que perduram há mais de 21 anos a esta parte, período durante o qual a conduta do recorrente, que sempre manteve um comportamento correcto, digno e íntegro, nunca ofendeu-qualquer conteúdo essencial do Direito da Região.
22. Por essa razão, atento o largo período de tempo que decorreu desde a emissão do registo de nascimento, que permitiu a concessão do estatuto de residente de Macau ao recorrente (21 anos), é manifesto que o interesse em, apenas agora, revogar esse direito provocará ao recorrente uma lesão substancialmente superior àquela que produzirá no interesse público a sua manutenção, numa clara ofensa ao princípio da proporcionalidade.
23. Caso seja mantida a decisão recorrida, o recorrente transformar-se-á, assim, num apátrida, definitivamente impossibilitado de adquirir a residência noutro país ou -região, por não deter qualquer documento de identificação. Mais uma injustiça para o recorrente e uma segunda sanção de carácter perpétuo para o mesmo.
24. Fica o mesmo igualmente impossibilitado de viver legalmente em Macau e de aqui usufruir do apoio e do convívio dos seus familiares e amigos.
25. Não podendo, sequer, procurar um emprego permanente na Região nem, por essa via, auferir rendimentos que lhe permitam sobreviver autonomamente sem o auxílio da sua mãe.
26. São, por isso, de fácil percepção os elevados prejuízos e a injustiça que o recorrente sofrerá face à manutenção da decisão ora recorrida.
27. É patente, por isso, o desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, consagrado- no artigo 5º, nº 2 do CPA, na medida em que este proíbe o sacrifício desadequado, inexigível ou excessivo dos direitos e interesses dos particulares, devendo as medidas restritivas ser necessárias, adequadas e proporcionadas ao bem público que se pretende alcançar ou ao mal público que se pretende evitar.
28. E, bem assim, também do princípio da justiça, consagrado no artigo 7º do CPA, que determina que o acto administrativo praticado com base em manifesta injustiça é ilegal, compreendendo-se nesta- noção os casos em que a administração impõe ao particular um sacrifício desnecessário, como é o caso da situação do recorrente, mas também aqueles em que usar, para com o particular, de dolo ou má-fé.
  Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Administração e Justiça contestar, apresentando as seguintes conclusões:
1. O recorrente A nasceu em Macau em 6 de Setembro de 1999, com registo de nascimento em que figura como pai residente de Macau B. Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 1 e artigo 26.º, n.º 1, alínea a) do DL n.º 19/99/M de 10 de Maio, o recorrente tem estatuto de residente de Macau por o seu pai ser residente de Macau ao tempo do seu nascimento. Portanto, em 28 de Setembro de 1999, a DSI emitiu-lhe, pela primeira vez, o BIR de Macau n.º ....
2. Posteriormente, a DSI, ao abrigo do disposto no artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/1999, artigo 2.º, n.º 2, alínea 1) da Lei n.º 8/2002 e artigo 23.º do RA n.º 23/2002, substituiu o BIR do recorrente pelo BIRPM n.º ... em 6 de Dezembro de 2006, e renovou tal BIRPM respectivamente em 16 de Dezembro de 2011 e 5 de Agosto de 2016.
3. No entanto, em 30 de Julho de 2015, o Juízo de Família e de Menores do TJB proferiu sentença que, baseando-se no facto provado de que o recorrente não é filho biológico de B, declarou nulo o registo de B como pai biológico constante da certidão de registo de nascimento do recorrente, e ordenou o cancelamento do mesmo. A Conservatória do Registo Civil já rectificou o registo de nascimento do recorrente.
4. Dada a falta de prova de o pai ou mãe do recorrente ser residente de Macau ou residir legalmente em Macau ao tempo do seu nascimento, o recorrente não preenchia as disposições acima aludidas, pelo que não possuía o estatuto de residente permanente da RAEM, e não lhe devia ter sido emitido BIRPM.
5. Além disso, segundo os dados da DSI, o recorrente é portador do passaporte da RAEM n.º .... Por ele não dispor do estatuto de residente permanente da RAEM, não satisfazia o disposto no artigo 5.º da Lei n.º 8/2009, logo não lhe devia ter sido emitido o passaporte da RAEM.
6. De acordo com o artigo 66.º, alínea a), artigo 67.º, alínea b) e artigos 70.º e 71.º, todos do Código do Registo Civil, o registo de nascimento do recorrente é nulo por falsidade; foi consequentemente cancelado, e o registo cancelado não produz quaisquer efeitos como título do facto registado. Logo, ao abrigo do disposto no artigo 122.º, n.º 2, alínea i) do CPA, os actos da DSI de, confirmando o estatuto de residente de Macau do recorrente com base no seu registo de nascimento, emitir-lhe documentos de identificação, passaram a ser nulos devido à nulidade e cancelamento do registo de nascimento, sem produzir efeitos desde o início.
7. Além disso, dada a falsidade da identidade do pai declarada no registo de nascimento, não ficou provado que o pai ou mãe do recorrente era residente de Macau ou residia legalmente em Macau ao tempo do seu nascimento, pelo que não estavam reunidos os requisitos legais. Portanto, os actos administrativos de emissão de documentos de identificação careceram totalmente de fundamentos jurídicos, assim incorrendo, por violação do interesse público e pela gravidade do dano, no vício de nulidade por falta de elemento essencial. Por conseguinte, nos termos do artigo 122.º, n.º 1 do CPA, tais actos da DSI de emissão de documentos de identificação eram nulos, sem produzir efeitos desde o início.
8. Nestas circunstâncias, a DSI declarou, ao abrigo do artigo 123.º, n.º 2 do CPA, a nulidade dos seus actos de emissão de documentos de identificação ao recorrente, cancelando, de acordo com a lei, o BIRPM e o passaporte da RAEM do recorrente.
9. A entidade recorrida concorda e reconhece os supra aludidos actos legalmente praticados pela DSI.
10. O advogado do recorrente, no entanto, argumenta que as autoridades ao invocar a nulidade dos actos administrativos em causa com base na falta de elementos essenciais e na nulidade do registo de nascimento, incorreu em erro nos pressupostos de direito e aplicou erradamente o disposto no artigo 122.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i) do CPA, pelo que tal acto deve ser anulado.
11. A entidade recorrida discorda do supramencionado entendimento do advogado do recorrente. Tanto a doutrina como a jurisprudência são unânimes no sentido em que os elementos essenciais dos actos administrativos devam ser analisados e determinados em função de cada caso concreto. Se se tratar dum elemento essencial imprescindível para a prática do acto administrativo, da sua falta resultará a nulidade do acto. (Cfr. José Eduardo Figueiredo Dias, Manual de Formação de Direito Administrativo de Macau, pág. 279; Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, Coimbra: Almedina, 2ª Edição, 1997, p. 642; Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro e José Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, pág. 705 a 706; e Acórdão do TUI, processo n.º 82/2014)
12. Resulta do disposto no artigo 5.º, n.º 1 do DL n.º 19/99/M de 10 de Maio que o legislador permite aos menores adquirir o estatuto de residente com base no estatuto de residente dos seus pais biológicos. O mesmo espírito legislativo vê-se estendido aos pertinentes regimes jurídicos referentes ao bilhete de identidade de residente, e concretizado no artigo 24.º, n.º 2 da Lei Básica da RAEM da RPC, no artigo 2.º do Parecer da Comissão Preparatória da Região Administrativa Especial de Macau da Assembleia Popular Nacional quanto à aplicação do parágrafo segundo do artigo 24.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, e no artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 8/1999.
13. Logo, a relação de filiação é elemento essencial no contexto do artigo 5.º, n.º 1 do DL n.º 19/99/M de 10 de Maio.
14. Acresce que, a relação filial não é sanável pelo tempo. Uma relação sanguínea/filial falsa não mudará independentemente de quantos anos terem passado, nem pode ou deve ser considerada como verdadeira pelo decurso do tempo, sob pena de contrariar o pensamento legislativo.
15. No caso em apreço, o vínculo de filiação entre o recorrente e o residente de Macau B foi um facto de relevância de uma verificação constitutiva em que se alicerçou o acto administrativo de emissão do BIRM, sendo assim elemento essencial deste acto.
16. Porém, ficou provado mais tarde que a relação de filiação em questão não existe, e o registo de nascimento acabou por ser rectificado pela Conservatória do Registo Civil. Assim sendo, é claro que o acto da DSI de emitir documento de identificação ao recorrente careceu de elemento essencial, o que, nos termos do artigo 122.º, n.º 1 do CPA, implica que tal acto era nulo.
17. Além disso, quanto à falta de fundamento jurídico e ao vício de nulidade por falta de elemento essencial aos quais se refere o ponto n.º 7 desta Conclusão, o TSI sufragou o mesmo entendimento nos acórdãos proferidos em processos similares, argumentando que o requisito legal para a emissão dos documentos de identificação não se encontrava reunido por ter sido inverídica a identidade do pai então reconhecida com base no registo de nascimento, do que resulta a nulidade, por falta de elemento essencial, do acto de emissão de documento de identidade da DSI (cfr. acórdãos do TSI, processos n.º 1191/2019 e 1013/2019).
18. Além disso, apesar do advogado pugnar pela interpretação restritiva do conceito do acto consequente, ele limita-se a citar doutrina acerca do acto consequente, sem todavia se debruçar sobre a sua opinião na petição inicial, pelo que é difícil efectuar qualquer análise neste respeito.
19. Argumenta também o advogado que a exactidão do registo de nascimento não constitui elemento essencial do respectivo acto de emissão de documento. Na verdade, o registo de nascimento é fundamental para todo o procedimento de emissão de documentos de identificação. Visto que de acordo com o artigo 26.º, n.º 1, alínea a) do DL n.º 19/99/M de 10 de Maio e o artigo 1.º, n.º 2 da Lei n.º 8/1999, a Administração confirmou o estatuto de residente permanente da RAEM do recorrente em função da relação de filiação mostrada no seu registo de nascimento. Dada a inexistência do vínculo filial entre o recorrente e B, os actos administrativos de emitir-lhe documentos de identificação tornaram-se nulos por falta de elemento essencial.
20. O advogado ainda defende que in casu deve ser aplicado o princípio tempus regit actum – mesmo que tal vínculo filial tenha acabado por ser ilidido, não deve ter efeito retroactivo. No entender da entidade recorrida, entretanto, embora os actos administrativos da DSI não tenham estado viciados no momento da sua prática, isso não obsta a que os mesmos sejam posteriormente declarados nulos se acabarem por se revelar ilegais (como por exemplo a verificação de crime) ou se os factos em que se alicerçaram não corresponderem à verdade (como no caso em apreço aconteceu), eis, exactamente, a razão porque o legislador estabelece o regime de nulidade de actos administrativos.
21. Acresce que, segundo o artigo 66.º, alínea a), artigo 67.º, alínea b) e artigos 70.º e 71.º, todos do Código do Registo Civil, e a doutrina acerca das consequências da nulidade de registo (J. Robalo Pombo, Código do Registo Civil Anotado e Coentado, pág. 337), o registo cancelado não produz quaisquer efeitos como título do facto registado, e, sendo ineficaz o registo, tudo se passa como se este não houvesse sido lavrado. Por conseguinte, tendo a relação de paternidade entre o recorrente a B sido ilidida e o registo de nascimento deixado de ter força probatória plena, o respectivo registo passou-se como se nunca houvesse sido lavrado.
22. Os actos de emissão dos documentos de identificação em questão foram praticados em função do teor do registo de nascimento, pelo que são actos consequentes do registo de nascimento, os quais devem ser considerados nulos quando o registo de nascimento seja declarado nulo. (cfr. acórdão do TUI, proferido no processo n.º 11/2007, na parte respeitante à interpretação de acto “nulo”, e acórdão do TSI, de 26 de Março de 2020, processo n.º 147/2018, na parte em que se refere à nulidade do acto consequente de emissão de BIR resultante da nulidade do registo de nascimento).
23. Por conseguinte, embora o recorrente tenha reunido, ao tempo do seu nascimento, os requisitos para adquirir o estatuto de residente de Macau, a declaração de nulidade do seu registo de nascimento impõe, ao abrigo do disposto no artigo 122.º, n.º 2, alínea i) do CPA, a consequente nulidade dos actos administrativos (emissão de documentos de identificação) praticados pela DSI.
24. Face ao exposto, a Administração não incorreu em qualquer erro nos pressupostos de direito e na aplicação de direito ao declarar nulos, ao abrigo do disposto no artigo 122.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i) do CPA, os actos administrativos de emitir ao recorrente o BIRPM e o passaporte da RAEM.
25. No entender do advogado do recorrente, a manutenção do acto recorrido faz dele um apátrida, que não consegue obter a residência no interior da China nem consegue trabalhar em Macau, o que tornará impossível se sustentar a si próprio sem a ajuda da mãe, causando-lhe grandes prejuízos. Argumenta, portanto, que o acto recorrido padece do vício de violação de lei por ofensa aos princípios da proporcionalidade e da justiça.
26. Cumpre salientar que, a lei estabelece directamente quem tem o estatuto de residente permanente de Macau; e é só aos residentes permanente de Macau que a lei atribui o direito de obter o BIRPM e o passaporte de Macau, documentos aos quais os não residentes permanentes não têm direito.
27. A DSI só pode, de acordo com a lei, emitir o BIR e o passaporte da RAEM às pessoas qualificadas. Em caso de nulidade do acto de emissão de documento de identificação, a DSI também tem que declarar essa nulidade de acordo com a lei. Trata-se dum acto vinculado, sobre cujo teor a DSI não tem qualquer direito de opção, não havendo margem para discricionariedade. (cfr. Viriato Lima e Álvaro Dantas, Código de Processo Administrativo Contencioso Anotado, pág. 310, e acórdão do TSI, de 15 de Março de 2018, processo n.º 299/2013)
28. No caso sub judice, não tendo o recorrente o estatuto de residente permanente de Macau, a DSI está legalmente obrigada a declarar a nulidade dos actos de emissão de documentos de identificação ao recorrente. Trata-se dum acto vinculado, ao qual não são aplicáveis os princípios gerais do direito administrativo. Ou seja, o acto recorrido não incorre na invocada violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça.
29. Convém ainda realçar que o cancelamento dos documentos de identificação do recorrente não faz dele um apátrida. Nos termos do artigo 4.º da Lei de Nacionalidade da RPC, tem nacionalidade chinesa por ser filho duma cidadã chinesa.
30. Acresce que, por o acto recorrido ser vinculado e o recorrente não residente permanente de Macau, a entidade recorrida não pode, sob pena de violar o princípio da legalidade, continuar a emitir-lhe o BIRPM mesmo que ele não tenha outro lugar para residir legalmente e manter o seu sustento.
31. O advogado defende ser claramente injusto que o crime praticado por terceiro afecte o recorrente, visto que mesmo o próprio agente do facto, i.e., B, foi absolvido da responsabilidade criminal. Quanto à esta argumentação, importa frisar que o direito penal e o direito administrativo são diferentes e não podem ser comparados entre si, muito menos se pode assertar que a prescrição do procedimento penal dos actos administrativos em causa impede as autoridades de os poder declarar nulos.
32. O advogado ainda defende que o recorrente nunca participou nem prestou auxílio ao respectivo acto de prestação de dados falsos e que a sua boa-fé pode obstar à declaração de nulidade, argumentando então que lhe devem ser atribuídos, com base no princípio da tutela da confiança, efeitos jurídicos putativos a que se refere o artigo 123.º, n.º 3 do CPA, sob pena de violação dos princípios da boa-fé e da tutela da confiança.
33. Tal como se referiu atrás, sendo a declaração de nulidade dos actos administrativos em causa uma actividade vinculada, a Administração não pode optar por não declarar essa nulidade por o recorrente ser de boa-fé. Neste respeito, a jurisprudência também é clara ao afirmar que no âmbito da actividade vinculada não se releva a violação dos princípios gerais do direito administrativo, incluindo os da boa fé, da tutela da confiança, da proporcionalidade e da justiça. (cfr. acórdãos do TUI, processos n.ºs 14/2014 e 26/2019, e acórdãos do TSI, processos n.ºs 299/2013 e 1191/2019)
34. Daí se pode ver que o advogado não tem razão ao alegar que a manutenção do acto recorrido viola os princípios da boa fé e da tutela da confiança.
35. O mandatário do recorrente ainda pugna pela atribuição dos efeitos jurídicos putativos de acto administrativo nulo a que alude o artigo 123.º, n.º 3 do CPA. A entidade recorrida discorda.
36. Esta norma exige grande prudência na sua aplicação e só pode ser invocada quando se encontrem reunidos os princípios da boa fé, tutela da confiança, igualdade e prossecução do interesse público. Não pode, nunca, é assacar-se efeitos putativos favoráveis ao particular em cuja conduta se funda a nulidade do acto, como nos casos de coacção ou crime, ou até, simplesmente, de dolo ou má-fé do interessado.
37. In casu, o estatuto de residente de Macau do recorrente foi obtido através de dados falsos. Ficou provado que o recorrente não preenchia os respectivos requisitos e não estava em condições de obter o BIRPM, pelo que a Administração estava legalmente obrigada a declarar a nulidade do acto de lhe emitir o BIRPM.
38. Embora os referidos falsos dados de identidade não tenham sido fornecidos pelo recorrente, e ele não tenha participado no acto de que resultou a nulidade do seu BIR, é de salientar que tal acto foi claramente praticado para os interesses do recorrente, visando permitir-lhe um direito que não lhe devia ter sido atribuído, isto é, o à residência permanente em Macau. Poderia dizer-se que o recorrente é o principal beneficiário do acto em causa, o qual o pai ou mãe cometeu arriscando a ficar criminalmente responsável.
39. Além disso, refere o MP no despacho de arquivamento dos autos de inquérito n.º 4418/2010 que B ao fornecer dados falsos sobre a identidade do pai tornou-se suspeito da prática do crime de falsificação de documento de especial. Apesar de o advogado ter vindo a reiterar que B acabou por não ser penalmente sancionado pela sua conduta por prescrição do procedimento penal, na verdade, ele declarou na DSI não conhecer o recorrente nem a sua mãe, e a primeira emissão do BIRM pela DSI ao recorrente teve por base as declarações falsas sobre a identidade do seu pai, facto que, em princípio, podia constituir crime. Logo, ainda que a pessoa que forneceu dados falsos não tenha sido penalmente sancionado e que o facto não tenha sido praticado pelo recorrente, não é de atribuir efeitos jurídicos putativos a favor dele. (A mesma posição vê-se sufragada no acórdão do TSI, proferido no processo n.º 1191/2019, que é semelhante ao presente processo)
40. Importa ainda salientar que é ilícita a obtenção do estatuto de residente de Macau mediante declarações falsas de identidade. Se, após a descoberta do facto, a Administração continuasse a reconhecer o estatuto de residente permanente de Macau do recorrente e a emitir-lhe BIRPM, o público será induzido a pensar que o BIRPM pode ser obtido através de fornecimento de dados falsos, o que equivale a encorajar outras pessoas a usar esse meio para atingir o mesmo fim. Isso não só encorajará a prática de factos ilícitos e fomentará uma má cultura, como ainda perigará gravemente a confiança pública nos documentos de identificação. Também não está de harmonia com o princípio da prossecução do interesse público previsto no artigo 4.º do CPA, para além de violar claramente o disposto no artigo 24.º da Lei Básica e na Lei n.º 8/1999, e o princípio da igualdade.
41. Nestes termos, a entidade recorrida é da opinião de que não se deve atribuir ao recorrente os respectivos efeitos jurídicos putativos.
42. Importa salientar que, contrariamente ao que defende o mandatário do recorrente, a não atribuição de efeitos putativos não causará ao recorrente dano largamente superior ao interesse público a tutelar e, assim, não violará o princípio da proporcionalidade. Tal como se refere no acórdão do TSI, processo 782/2017, cabe à Administração decidir, dentro do seu poder discricionário, se atribuir ou não efeitos jurídicos putativos, e a decisão de não atribuição, feita pela Administração após ponderação dos factores tais como a prossecução do interesse público, não padece do erro notório ou da total desrazoabilidade, nem violou os princípios orientadores da actividade administrativa.
43. Além disso, a declaração da nulidade do respectivo acto de emissão de documento de identificação ao recorrente não vai causar a invocada ofensa aos direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos do mesmo, por ele nunca ter tido o “direito” a residência em Macau em primeiro lugar. Assim, também não vai ocorrer a situação em que o dano causado ao direito do recorrente exceda largamente o interesse público a tutelar. (Exactamente o entendimento plasmado no acórdão do TSI, processo 782/2017)
44. Face ao exposto, o advogado não tem razão quando afirma que a não atribuição de efeitos putativos viola o princípio da proporcionalidade.
45. O advogado ainda defende que ao abrigo do disposto no artigo 4.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 8/1999, a ausência de Macau por estudar no exterior não pode determinar que o recorrente tenha deixado de residir habitualmente em Macau. De acordo com o disposto no artigo 1.º, n.º 1, al. 2) e artigo 4.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 8/1999, por o acto da DSI de emitir-lhe BIRM ser nulo e não produzir efeitos desde o início, os períodos em que o recorrente esteve em Macau não contam como residência legal, e a sua anterior permanência em Macau não pode ser considerada como “residência habitual”, não podendo o recorrente obter o estatuto de residente permanente de Macau pelo estabelecimento de relações estáveis.
46. Importa salientar que a filiação falsa é um crime oculto, de que é difícil à Administração tomar conhecimento. Se, apesar do meio ilegal empregado para obter ao recorrente o direito à residência em Macau, a Administração continuasse a reconhecer-lhe o estatuto de residente permanente de Macau com fundamento em que ele vive em Macau durante mais de 10 anos, irá então transmitir ao público uma mensagem errada de que se pode obter o estatuto de residente de Macau através de actos ilegais, ou mesmo poderá encorajar os pais da parte a ocultar deliberadamente o facto até o filho se tornar maior.
47. Na verdade, após o nascimento do recorrente, este vivia com a mãe no interior da China, onde frequentava escola; veio a Macau com a mãe muitas vezes, mas só permaneceu vários dias; concluiu em Macau apenas um ano lectivo (2014/2015), e posteriormente foi estudar para a Inglaterra e a Austrália; em 2021, o recorrente, o seu irmão C e a mãe se encontravam em condições de obter a nacionalidade australiana. Daí se vê que o recorrente não residiu efectivamente em Macau por longo tempo durante esses anos.
48. Convém assinalar que, a aplicação do artigo 4.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 8/1999 tem por premissa a residência legal do recorrente em Macau, então é só com a satisfação deste requisito que se pode considerar se a sua ausência ainda pode contar como residência habitual em Macau.
49. Sendo nulo o acto de lhe emitir BIRM, os períodos em que o recorrente permaneceu em Macau não contam como tempo de residência legal em Macau. Logo, ao presente caso não é aplicável o artigo 4.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 8/1999.
50. Mesmo que, como diz o advogado, o recorrente mantenha ligações com Macau, a onde pretende regressar a trabalhar após a conclusão do estudo, e que a mãe já tenha obtido o BIRPM e tenha rendimentos estáveis para suportar o seu sustento em Macau, não se trata de fundamentos legais que possam justificar a continuação da emissão do BIRPM ao mesmo.
51. Por conseguinte, mesmo que o recorrente tivesse vivido em Macau durante muitos anos, não poderia ter obtido o estatuto de residente permanente de Macau em função disso, já para não falar que ele não vivia em Macau por longo tempo.
  
  Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
  
  Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido o seguinte parecer:
  «Na petição inicial, a recorrente solicitou a revogação do despacho em questão, invocando que o qual infringiu o disposto na alínea i) do n.º2 e no n.º1 do art.122.º do CPA e no n.º1 do art.5.º do D.L. n.º19/99/M, bem como os princípios da proporcionalidade, da justiça e da boa fé.
*
  1. Quanto à declaração da nulidade e ao cancelamento
  Ora, o próprio despacho em causa revela que o Exmo. Sr. SAJ manifestou inequívoca concordância com a Proposta n.º37/DAG/DJP/D/2021 e tomou decisão de negar provimento ao recurso hierárquico e de manter a decisão da DSI (cfr. fls.466 do P.A.). O que implica que tal despacho confirmou e absorve o despacho exarado na Proposta n.º23-DAG-DJP-D-2021 pela Directora da DSI (cfr. fls.374 do P.A.).
  Sendo assim, o despacho objecto do presente recurso contencioso consubstancia em declarar a nulidade da emissão do BIR n.º... e da respectiva renovação, bem como a nulidade da emissão do Passaporte n.º..., e ainda em ordenar o cancelamento desses BIR e Passaporte, cujo titular tinha sido o recorrente.
  Bem, estas duas Propostas mostram nitidamente que a Administração tem entendido que na óptica da Administração, o acto administrativo pelo qual foi concedido o estatuto jurídico de residente permanente da RAEM ao recorrente é nulo, em virtude de que lhe falta o elemento essencial e o mesmo é acto consequente do registo civil nulo.
  1.1. Repare-se que o inquérito n.º4418/2010 foi arquivado por se ter verificado a prescrição do procedimento criminal (cfr. fls.34 do P.A.), e a ilustre magistrada do M.ºP.º afirmou “在本案,有跡象顯示嫌犯B(身份資料見第150頁)於1999年9月冒認A和C的生父,並為兩人辦得澳門居民身份證(見第45及52頁),其行為涉嫌觸犯了偽造具特別價值文件罪(據刑法典第245條、第244第1款b)項、243條c)項),該罪可被判處1年至5年徒刑。”
  E é sem sombra de dúvida que a nulidade do registo do nascimento do recorrente na parte quanto à paternidade foi declarada pela sentença que entrou no caso julgado (doc. de fls.65 a 68 do P.A.). Repare-se que desse registo do nascimento constava que o recorrente nasceu em Macau e o seu pai biológico é residente permanente da RAEM (doc. de fls.1 do P.A.).
  1.2. Nos termos das alíneas 1) do n.º1 do art.1º da Lei n.º8/1999 e 1) do n.º2 do art.2º da Lei n.º8/2002, o referido registo do nascimento como prova plena, só por si, determina directa e necessariamente que o recorrente adquiriu, desde o seu nascimento, o estatuto de residente permanente da RAEM e o direito ao BIR. Daí decorre que a Direcção dos Serviços de Identificação ficou obrigada e vinculada a emitir-lhe o BIR.
  Com efeito, esse registo de nascimento foi a única causa, base, raiz e fundamento da emissão do BIR a ele. Nesta linha de raciocínio, temos por certo que a emissão do BIR ao recorrente pela Direcção dos Serviços de Identificação é o acto consequente do registo do nascimento dele.
  Note-se que o despacho atacado nestes autos tem por pressuposto e fundamento a nulidade do registo do nascimento declarada pela sentença tirada no Processo n.ºFM1-14-0044-CAO que entrou no caso julgado (doc. de fls.65 a 68 do P.A.), portanto respeita o efeito desse caso julgado.
  Inculca o Venerando TSI (vide. Acórdão no Processo n.º147/2018): a nulidade do registo de nascimento, tendo sido judicialmente declarada, pode ser o autónomo motivo da nulidade do acto administrativo de autorização da emissão do BIR, a par da condenação criminal transitada em julgado.
  Tudo isto leva-nos a colher que a nulidade do registo do nascimento do recorrente constata que o despacho in quaestio está em conformidade com o disposto na alínea i) do n.º2 do art.122.º do CPA, portanto, falece a arguição da violação deste segmento legal.
  Ora, são paralelos e reciprocamente autónomos o n.º1 e todas as alíneas do n.º2 do art.122.º do CPA, daí que não carecem do preenchimento cumulativo os dois fundamentos invocados pela Administração para abonar a sua declaração da nulidade da emissão do BIR e do Passaporte ao recorrente, bastando a verificação de qualquer um.
  Perfilhamos a brilhante jurisprudência que inculca (a título do direito comparado, cfr. Acórdão do STA de 05/06/2007, no Processo n.º0730/06): Tendo a Administração invocado uma pluralidade de fundamentos para o indeferimento a legalidade de alguns deles assegura a validade substantiva da decisão e torna inoperante, caso existam, os vícios da motivação superabuntante.
  Sendo assim, mesmo que – admita por mera hipótese – à emissão do BIRPM ao recorrente não falte do elemento essencial e não se aplique o n.º1 do art.122.º do CPA, isto é inócuo e inoperante no sentido de não invalidar o despacho sob sindicância, dado que um dos fundamentos invocados pela Administração assegura a validade substantiva do mesmo.
  1.3. Afirma o Venerando TUI (cfr. Acórdão no Processo n.º54/2011): A Administração está vinculada a revogar os actos ilegais anuláveis, sejam desfavoráveis ou favoráveis aos particulares, com ou sem substituição por outros, a menos que decida proceder à sua sanação (reforma, conversão ou ratificação).
  Em esteira e por maioria da razão, colhemos tranquilamente que é também vinculada a declaração (pela Administração) da nulidade dos actos administrativos nulos, e sendo assim, é acto administrativo vinculado o despacho recorrido in casu no que respeite à declaração da nulidade e ao cancelamento do BIR n.º... e do Passaporte n.º....
  Ora bem, no actual ordenamento jurídico de Macau encontram-se solidamente consolidadas a doutrina e jurisprudência, no sentido de que os princípios de igualdade, de proporcionalidade, da justiça e de boa fé se circunscrevem apenas ao exercício de poderes discricionários, sendo inoperante aos actos administrativos vinculados. (a título exemplificativo, cfr. Acórdãos do TUI nos Processos n.º32/2016, n.º79/2015 n.º46/2015, n.º14/2014, n.º54/2011, n.º36/2009, n.º40/2007, n.º7/2007, n.º26/2003 e n.º9/2000, a jurisprudência do TSI vem andar no mesmo sentido).
  Tudo isto torna concludente que o despacho recorrido na sobredita parte não enferma da assacada violação do princípio da proporcionalidade, da justiça e da boa fé.
*
  2. Quanto ao indeferimento do pedido de efeitos putativos
  Nas suas audiências escritas (vide. fls.140 a 150 e 317 a 341 do P.A.), o recorrente pediu reiteradamente que a ele próprio seriam atribuídos os efeitos putativos consignados no n.º3 do art.122.º do CPA. E insistiu no pedido da atribuição destes efeitos no Recurso Hierárquico (vide. fls.396 a 425 do P.A.).
  Ora, o despacho (do Exmo. Sr. SAJ) em causa e o exarado na Proposta n.º23-DAG-DJP-D-2021 pela Directora dos SIM demonstram que a Administração vem indeferindo o supramencionado pedido do recorrente quanto aos efeitos putativos.
  No nosso prisma, a palavra “possibilidade” significa que este n.º3 confere à Administração o poder discricionário ou margem da livre apreciação. De acordo com a prudente doutrina (Lino Ribeiro, José Cândido de Pinho: Código do Procedimento Administrativo de Macau Anotado e Comentado, p.724 a 725), a atribuição de efeitos putativos depende não só o decurso do prazo, mas também a sua harmonia com os princípios gerais do direito, como da protecção da confiança, da boa fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça, do não enriquecimento sem causa e da realização do interesse público.
  Convém ter presente que os Venerandos TUI e TSI consolidam a jurisprudência, segundo a qual o exercício do poder discricionário pela Administração são, em princípio, judicialmente insindicáveis, salvo se padeça de erro manifesto ou total desrazoabilidade. (a título exemplificativo, vide Acórdãos do TUI nos Processos n.º38/2012 e n.º123/2014, do TSI nos n.º766/2011, n.º570/2012 e n.º356/2013)
  No caso sub judice, temos por indubitável que o despacho recorrido se dedica a defender o interesse público, e entendemos ser imaculada a preocupação no sentido de que “必須強調,透過虛假身份資料而取得澳門居民身份是不法行為,倘有關事件獲揭發後,行政當局仍承認司法上訴人具有澳門永久性居民身份而繼續發出澳門特區永久性居民身份證,則會導致社會大眾誤以為永久居民身份證能夠透過提供虛假資料的手段而獲得,這亦等同鼓勵他人利用此手段,以達致相同目的,助長有關不法行為及造就社會不良風氣,嚴重影響身份證明文件的公信力” (art.97.º da contestação). O que nos aconselha a colher que esse despacho e a Administração não infringem o princípio da boa fé.
  É verdade que o recorrente não tem qualquer intervenção no crime de falsificação de documento que lhe permitiu obter o estatuto de residen-te permanente. Porém, não pode perder da vista que “事實上,司法上訴人出生後與母親在內地生活,在內地讀書,隨母多次來澳只停留數天,只在澳門完成一個學年的課程,及後到英國及澳洲升學,其與兄弟C及母親於2021年具條件入籍澳洲,可見,於這些年間,司法上人並未事實在澳門長時間居住” (art.110.º da contestação).
  Sopesando tudo isto e procedendo ao estudo comparado, sufraga-mos a douta jurisprudência que reza (cfr. aresto do TSI no Processo n.º782/2017): Pelas razões expendidas, entendemos que o exercício do poder discricionário por parte da Administração no caso em apreço não padece do erro manifesto, da total desrazoabilidade e do desvio de poder, nem violou os princípios orientadores da actividade administrativa, nomeadamente os da boa fé, da justiça, da adequação e da proporcionalidade.
***
  Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso contencioso.».
  
  Foram colhidos os vistos.
  
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
  
  O Tribunal é o competente.
  O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
  Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
  
  Cumpre assim apreciar e decidir.
  
III. FUNDAMENTAÇÃO

a) Dos factos
  
  A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
1. O recorrente nasceu em Macau, em 6 de Setembro de 1999, tendo sido registado como sendo seu pai B, residente de Macau, portador do BIRPM n.º..., e sua mãe D, residente do Interior da China, actualmente portadora do BIRPM n.º... que foi emitido, pela primeira vez, em 28 de Outubro de 2005 – cf. Registo de nascimento nº 2991 da C.R.Civil de Macau (cfr. fls. 1, 4 e 5 do PA);
2. Em 27 de Setembro de 1999, B, pai do recorrente, pela primeira vez, requereu, a emissão do bilhete de identidade de Macau, a favor do recorrente, conforme os supracitados dados do registo de nascimento, tendo pela primeira vez sido emitido ao recorrente o bilhete de identidade de residente de Macau n.º... (cfr. fls. 3 do PA);
3. Depois, conforme os supracitados dados do registo de nascimento, em 6 de Dezembro de 2006, foi emitido ao recorrente o bilhete de identidade de residente permanente de Macau n.º..., em substituição do supracitado bilhete de identidade (cfr. fls. 6 e 7 do PA);
4. Em 16 de Dezembro de 2011, D, mãe do recorrente, em representação do recorrente, requereu, a renovação do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM, tendo sido autorizado o pedido (cfr. fls. 30 e 31 do PA);
5. Em 1 de Março de 2012, o recorrente apresentou à Direcção dos Serviços de Identificação o despacho de arquivamento do Inquérito do Ministério Público n.º4418/2010, segundo o qual, dado que não se conseguiu recolher prova suficiente para provar que D tivesse praticado o crime de falsificação de documento de especial valor, o Ministério Público determinou arquivar o caso. Por outro lado, embora houvesse indícios que B se tivesse feito passar pelo pai do recorrente e conseguido obter o bilhete de identidade de Macau em nome do recorrente e presumivelmente tivesse cometido o crime de falsificação de documento de especial valor, como desde a ocorrência do facto até à presente data, já se encontrava prescrito o procedimento criminal do crime, o Ministério Público também determinou arquivar o caso quanto a esta parte (cfr. fls. 34 do PA);
6. Foi proferida sentença, pelo Juízo de Família e de Menores do TJB, em 30 de Julho de 2015 decidindo que : uma vez que foi já provado que a Parte não é filho biológico de B, o Tribunal declara nulo o registo de nascimento da Parte donde consta B como pai biológico, ordenando o cancelamento do registo. Tal sentença já transitou em julgado em 11 de Setembro de 2015 (cfr. fls. 65 a 68 do PA);
7. Da certidão narrativa de registo de nascimento do recorrente já alterada n.º2991/1999/CR, consta XXX como pai e, mãe D (cfr. fls. 71 do PA);
8. O recorrente é titular do passaporte da RAEM n.º... (cfr. fls. 84 do PA);
9. Em 11 de Junho de 2021, através da Proposta n.º23/DAG/DJP/D/2021, determinou-se declarar a nulidade dos actos administrativos de emissão ao recorrente do bilhete de identidade de residente de Macau e do passaporte da RAEM, de substituição e de renovação do seu bilhete de identidade de residente permanente de Macau, bem como o cancelamento do seu bilhete de identidade de residente permanente e do passaporte da RAEM a qual foi notificada em 9 de Julho do mesmo ano, através do ofício n.º469/DSI-DAG/OFI/2021 sendo o advogado do recorrente notificado da respectiva decisão em 14 de Julho do mesmo ano, data de assinatura da recepção do ofício (cfr. fls. 345 a 374 e 376 a 394 do PA);
10. Em 13 de Agosto de 2021, foi interposto recurso hierárquico necessário junto do Secretário para a Administração e Justiça contra a supracitada decisão administrativa (cfr. fls. 396 a 425 do PA);
11. Em 01.09.2021 com base na proposta nº 37/DAG/DJP/D/2021 a qual aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais foi indeferido o recurso hierárquico interposto pelo Recorrente, vindo o recorrente a ser notificado deste despacho em 14.09.2021 (cfr. fls. 431 a 466, 467 a 495 e 497 do PA);
12. Em 15.10.2021 o Recorrente apresentou este recurso.

b) Do Direito

  Vem o Recorrente atacar os actos impugnados de declaração de nulidade dos actos de emissão do BIRM e do Passaporte o que representa uma cumulação de impugnações admissível nos termos do nº 1 do artº 44º do CPAC.
  
  Nas suas alegações e conclusões de recurso imputa o Recorrente vários vícios ao acto impugnado:
  - Violação de lei por erro na aplicação de direito ao concluir pela nulidade do acto;
  - Violação de lei por violação do disposto do nº 3 do artº 123º do CPA;
  - Violação dos princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança.
  
  Do vício de violação de lei por erro na aplicação de direito ao concluir pela nulidade do acto;
  
  O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
  «O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
  Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
  (…)
  A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
  A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
a) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
b) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo;
d) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato administrativo:
e) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
f) Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insuscetível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspeto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.
  
  No caso em apreço concluiu a Administração pela nulidade dos actos de emissão e suas sucessivas renovações do BIRM e do Passaporte do Recorrente porquanto, aquando do seu nascimento foi registado como sendo filho de um residente de Macau – o pai – vindo mais tarde essa paternidade a ser impugnada, passando a ser filho de pai incógnito e constactando-se que ao tempo de nascimento o único progenitor conhecido não era residente de Macau.
  
  Sobre esta matéria já tivemos oportunidade de nos pronunciar nos Acórdão deste Tribunal de 14.01.2021 proferido no processo que correu termos sob o nº 1013/2019 e de 12.05.2022 proferido no processo que correu termos sob o nº 590/2021, nos quais acompanhámos e aderimos ao Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério ali proferido e que aqui pela sua clareza transcrevemos e reproduzimos:
  «Num e noutro caso, a Administração utilizou o mesmo fundamento para justificar os seus actos, qual seja o de que os actos declarados nulos careciam de elementos essenciais e eram, por isso, enquadráveis no artigo 122.º, n.º 1 do CPA.
  De acordo com a fundamentação dos actos recorridos, a Recorrente beneficiou da emissão do BIR e do passaporte da RAEM porque, quando nasceu, ficou a constar do respectivo assento de nascimento como seu pai um residente de Macau. Entretanto, veio a verificar-se; na sequência da propositura de uma acção judicial de impugnação de paternidade que o pai da Recorrente não é aquele que inicialmente ficou a constar do registo civil, mas um outro individuo que à data do nascimento da Recorrente não era residente de Macau.
  Por isso, a Administração considerou que os actos de emissão de BIR e de emissão de passaporte são nulos porque lhes falta um elemento essencial, qual seja o da residência da Recorrente em Macau.
  Vejamos.
  2.2.1
  Estabelecia-se no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, em vigor à data da primeira emissão do BIR da Recorrente:
  «Consideram-se residentes no Território os menores, naturais de Macau, filhos de indivíduos autorizados, nos termos da lei, a residir em Macau ao tempo do seu nascimento».
  Consagrava-se na norma acabada de transcrever uma forma de aquisição originária do direito de residência em Macau fundada no nascimento e que resultava da conjugação de dois pressupostos: (i) por um lado, o nascimento do menor em Macau e por outro (ii) a residência legal em Macau de pelo menos um dos progenitores, ao tempo do nascimento do menor.
  Ora, está demonstrado e assente que a Recorrente, no dia 23 de Outubro de 1996, nasceu em Macau e que, por outro lado, nessa data, a pessoa que no registo civil figurava como seu pai, é dizer, a pessoa relativamente à qual se achava estabelecida a paternidade da Recorrente tinha o estatuto de residente de Macau. Portanto, no momento em que foi praticado, o acto de emissão do BIR não enfermava de qualquer vício, mostrando, ao invés, em absoluta conformidade com a lei (tempus regit actum).
  Sucede que, mais recentemente, por sentença proferida pelo Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial de Base no processo (…) e transitada em julgado em (…), ficou estabelecido que a paternidade do Recorrente é de outra pessoa que não aquela que antes figurava no registo como seu pai, sendo certo que a mesma, à data do nascimento da Recorrente, não era residente de Macau.
  Não nos parece, no entanto, que esta circunstância implique, por si só, a nulidade do acto de emissão do BIR e do passaporte da RAEM do Recorrente por falta dos seus elementos essenciais como foi entendido pela Administração.
  2.2.3
  Como se sabe, a regra entre nós vigente e que resulta do artigo 124.º do CPA, é a de que os actos administrativos inválidos são meramente anuláveis e não nulos.
  A nulidade só ocorre quando a um acto faltem os elementos essenciais ou quando a lei comine expressamente essa forma de invalidade, tal como decorre do disposto no artigo 122.º do CPA.
  Compreende-se a opção do legislador em erigir a anulabilidade como regime-regra, dado que a mesma se mostra «determinada por considerações de oportunidade, que sobretudo se prendem com a necessidade de dotar as situações que são definidas por ato administrativo de um mínimo de estabilidade que proteja a confiança do amplo círculo de interessados que nelas podem estar envolvidos» (assim, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, 3.ª edição, Coimbra, 2015. P. 270).
  Sobre o que deva entender-se por elementos essenciais do acto cuja falta determina a chamada nulidade por natureza não existe, como se sabe, unanimidade na doutrina, havendo autores que adoptam um critério estrutural, enquanto outros utilizam um critério material de determinação do que sejam tais elementos essenciais (no primeiro sentido, MARCELO REBELO DE SOUSA - ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, pp. 160-161; no segundo sentido, por exemplo, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA - PEDRO COSTA GONÇALVES - J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição, Coimbra, 1998, p. 645).
  Entre nós, o Tribunal de Última Instância, no seu acórdão de 5.11.2014, tirado no processo n.º 82/2014, já teve oportunidade de decidir que se consideram «elementos essenciais do acto aqueles cuja falta não permite a qualificação do acto como administrativo, podendo abranger factores cuja ausência é de tal modo grave que repugna à consciência jurídica a possibilidade da ilegalidade se sanar pelo decurso do tempo».
  Em nosso modesto entendimento, faltará um elemento essencial ao acto administrativo quando o mesmo se encontre desprovido de um elemento indispensável à sua caracterização como acto administrativo, como sejam o seu autor e o seu destinatário, o seu conteúdo, mas também quando lhe falte um requisito de tal modo essencial que o vício, pela sua gravidade, não pode ficar apenas submetido ao regime da anulabilidade. A este último propósito, a doutrina costumava ilustrar com o exemplo das verificações constitutivas, considerando-se que seria um elemento essencial a veracidade dos factos certificados (assim, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, - PEDRO COSTA GONÇALVES - J. PACHECO AMORIM, Código..., p. 642 e JOSÉ CARLOS VIEIRACDE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5.ª edição, Coimbra, 2018, p. 222. De resto, esta situação está hoje expressamente tipificada como causa de nulidade na alínea j) do n.º 2 do artigo 161.º do novo CPA português).
  No caso em apreço, não vemos que os actos administrativos de emissão do BIR e do passaporte da RAEM a favor da Recorrente enfermem da falta de qualquer elemento essencial de natureza estrutural. E também não vemos que lhes falte qualquer outro elemento que, pela gravidade dessa falta, justifique que se considere que tais actos são nulos.
  Repare-se. Para a emissão do BIR aos menores a lei exigia, como vimos, que os mesmos tivessem nascido em Macau e que, no momento do nascimento, fossem filhos de indivíduos autorizados a aqui residir nos termos da lei. Ao tempo da emissão do BIR estavam verificadas estas condições: (i) o Recorrente nasceu em Macau e (ii) nesse momento, o seu pai, de acordo com a paternidade então estabelecida, era também residente de Macau.
  Do mesmo modo com a emissão do passaporte.
  Nos termos do artigo 5.º da Lei n.º 8/2009, podem ser titulares de passaporte da RAEM as pessoas que satisfaçam os seguintes requisitos:
(i) Sejam cidadãos chineses;
(ii) Sejam titulares do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM.
  Ora, na data da emissão do passaporte da Recorrente tais requisitos eram de verificação indiscutível pelo que se não vislumbra a falta de qualquer elemento essencial neste acto.
  A isto contrapõe a Administração que a Recorrente não tem o estatuto de residente de Macau porque à data do seu nascimento o seu pai não era residente de Macau e como tal, os actos que foram declarados nulos padecem, ab initio, da falta de um elemento essencial.
  Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar este entendimento.
  Como referimos, quando os actos foram praticados, a filiação da Recorrente encontrava-se estabelecida, embora, como mais tarde se veio a verificar, não existisse uma coincidência com a respectiva filiação biológica.
  Uma vez que a filiação se encontrava estabelecida, os efeitos jurídicos em matéria de aquisição do direito de residência por parte da Recorrente emergentes dessa filiação estabelecida produziram-se.
  A questão que se coloca é a de saber se tais efeitos produzidos à sobra da filiação anteriormente estabelecida se podem considerar destruídos retroactivamente, desde o nascimento do Recorrente, pelo facto de em 2017 ter sido estabelecida uma outra paternidade.
  Não nos parece.
  Sabemos que, de acordo com a norma do artigo 1650.º, n.º 2 do Código Civil, o estabelecimento da filiação tem eficácia retroactiva, o que significa que, em princípio, todo o conjunto de consequências jurídicas que são previstas por várias normas e que não se produziram antes, produzem-se agora como se a filiação tivesse sido estabelecida desde o nascimento (assim, GUILHERME DE OLIVEIRA, Estabelecimento da Filiação, 2019, p. 21).
  No entanto, essa regra da retroactividade dos efeitos da filiação exige uma aplicação criteriosa. Como a doutrina assinala, «a retroactividade é uma técnica jurídica não uma ficção da realidade» e a realidade é esta: no momento do nascimento da Recorrente, aquele a que lei confere relevância, o vínculo jurídico da sua filiação estava estabelecido em relação a um residente de Macau e o efeito que a lei associa a esse facto produziu-se com a atribuição à Recorrente do estatuto da residência que a mesma manteve, pacificamente, durante mais de 20 anos.
  Por outro lado, aquela regra da eficácia retroactiva que decorre da norma do artigo 1650.º, n.º 2 do Código Civil não é, nem pode ser de aplicação absoluta.
  Tem de se aceitar, como ensina a boa doutrina, que, em certas circunstâncias, daquela regra não resulte a completa destruição de determinados actos ou vínculos jurídicos entretanto criados com base na filiação anteriormente estabelecida, sob pena de se comprometer irremediável e intoleravelmente esse elemento essencial do Estado de Direito que é o da segurança jurídica (neste último mesmo sentido, GUILHERME DE OLIVEIRA, Estabelecimento da Filiação, 2019, p. 22. Ainda que a Lei Básica não consagre expressamente uma referência ao princípio da segurança jurídica, deve entender-se que esse é um princípio essencial integrador do tecido normativo material de natureza constitucional que vigora na Região, porquanto reveste um carácter imprescindível a uma estruturação da vida social em paz jurídica. Neste sentido, JORGE REIS NOVAIS, Princípios Estruturantes de Estado de Direito, Coimbra 2019, p. 149).
  Ora, a situação que os presentes autos documentam parece-nos ser uma daquelas em que o princípio da segurança jurídica reclama uma desaplicação daquela norma do n.º 2 do artigo 1650.º do Código Civil em toda a sua extensão. De contrário estar-se-ia a destruir, de forma irremediável e injustificada, o vínculo pessoal à Região que a Recorrente, desde o seu nascimento, ocorrido há cerca de 24 anos, legitimamente mantém.
  Afastada a aplicação da regra da retroactividade do estabelecimento da filiação à situação presente, ficarão salvaguardados os efeitos produzidos, em matéria de residência, com base na filiação anteriormente estabelecida e como tal terá de concluir-se que, nem o acto de emissão do BIR nem o acto de emissão do passaporte da RAEM carecem do elemento que a Administração reputou de essencial.
  Importa igualmente salientar que a norma do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 6/92/M, de 27 de Janeiro, entretanto revogada, e, a norma do artigo 4.º da Lei n.º 8/2002, em vigor, têm como pressuposto de aplicação o de que em causa estejam menores uma vez que essas normas têm em vista regular a atribuição do estatuto de residente a menores, não a maiores. Queremos com isto dizer que os pressupostos relevantes, de acordo com aquelas normas legais, para a atribuição da residência aos menores são aqueles que se verificam durante a menoridade e, em princípio, só esses, irrelevando, pois, os que vierem a verificar-se uma vez atingida a maioridade. E a verdade é que a Recorrente, quando viu estabelecida a sua filiação relativamente a uma pessoa que, à data do seu nascimento, não era um residente de Macau, já era maior.
  Eis porque somos a concluir que o pressuposto de que partiu a Administração para considerar que aos actos declarados nulos faltava um elemento essencial não está demonstrado.» - cf. proc. 1013/2019 já indicado -.
  Tal como fizemos anteriormente continuamos a entender que o Douto Parecer citado é elucidativo quando conclui que por força da não retroactividade absoluta da norma do nº 2 do artº 1650º do C.Civ. os actos de atribuição e emissão ao Recorrente do BIRPM e do Passaporte da RAEM, não são nulos face ao disposto no nº 1 do artº 122º do CPA uma vez que quando foram praticados não lhes faltava elemento algum.
  Concordamos inteiramente com a posição assumida no referido Parecer.
  Para além da Doutrina já naquele citada mostra-se também adequado citar José Carlos Vieira de Andrade em “A Nulidade Administrativa essa Desconhecida” in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, pág. 772:
  «Sendo a gravidade substantiva definida pela lei por referência aos “elementos essenciais” do acto, deve tal entender-se como uma menção relativa aos momentos estruturais, mas compreendidos numa perspectiva valorativa, funcional e prática – a gravidade dos vícios mede-se relativamente aos aspectos principais do sujeito, do objecto, do fim, do conteúdo, da forma e do procedimento, do modo que o acto, pressuposta a sua existência, será nulo quando os vícios de que sofre impliquem ou se equiparem à falta de algum desses elementos, em função do respectivo tipo legal.».
  Ora, no caso em apreço o apontado vício do acto não contende com nenhum dos elementos essenciais do acto.
  Quando os actos que agora se pretende sejam nulos foram praticados a filiação de um sujeito nascido em Macau encontrava-se estabelecida.
  E ao tempo do nascimento foi estabelecida quanto à paternidade relativamente a um residente de Macau.
  A validade do acto tem de ser aferida em função dos elementos que existem quando foi praticado – tempus regit actum -.
  O que sucedeu é que, posteriormente aquele elemento veio a ser alterado, circunstância que já não é contemporânea da prática dos actos que foram considerados nulos pelos actos aqui impugnados e objecto destes autos.
  O facto do estabelecimento da filiação retroagir ao momento do nascimento não apaga nem inquina todos os actos que hajam sido praticados com base na filiação que se encontrava estabelecida, os quais ao tempo foram praticados de acordo com o que constava do registo.
  Inclusivamente a impugnação da maternidade ou paternidade por não estar conforme com a biológica pode não lograr proceder de acordo com o disposto no nº3 do artº 1665º, aplicável à paternidade por força do disposto no nº 3 do artº 1697º, todos do C.Civ.
  No caso em apreço – e como já é referido no citado Parecer do Ministério Público – é preciso ser cauteloso no que concerne aos efeitos retroactivos da impugnação/fixação da paternidade.
  Decorrência da concepção biológica do ser humano justifica-se a norma do nº 2 do artº 1650º do C.Civ., uma vez que não se pode ter um pai até determinada idade e a partir daí um outro, no entanto os efeitos jurídicos a retirar da norma em causa têm de ser ponderados.
  Por outro lado, e se tal não fosse já bastante, não podemos abstrair do princípio “tempus regit actum” – já antes citado e também referido no citado parecer do Ministério Público -, segundo o qual se diz no Acórdão de 04.07.2002 do Supremo Tribunal Administrativo Português, proferido no processo 0852/02 “É pacífica a jurisprudência deste Tribunal que afirma, no âmbito do contencioso administrativo, a vigência do princípio “tempus regit actum”, segundo o qual, a apreciação da legalidade dos atos administrativos deve ter em conta, apenas, a realidade fáctica existente no momento da sua prática e o quadro normativo então em vigor (Acórdãos STA de 6.2.02, no recurso 37633, Pleno, e de 7.2.02, no recurso 48295)”.
  Ora, à data em que os actos foram praticados a factualidade necessária para o efeito existia e correspondia ao que constava do registo de nascimento, pelo que, se impõe concluir não estar demonstrado que aos actos declarados nulos faltava um elemento essencial.
  Salvo melhor opinião, subjacente à situação dos autos haveria erro por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto que determinam a prática do acto administrativo.
  Ou seja, porque a paternidade atribuída ao agora Recorrente e constante do registo não correspondia à verdade, os actos de emissão do BIRM e do Passaporte seriam anuláveis nos termos do artº 124º do CPA podendo ser revogados nos termos do artº 130º do mesmo diploma, situação que não seria já possível aquando do conhecimento do erro por já estarem ultrapassados todos os prazos para o efeito.
  
  Assim sendo, continuamos a concluir que os actos impugnados que declaram nulos os actos de emissão do BIRM e do Passaporte enfermam do vício de violação de lei por errada aplicação do direito.
  
  Da violação de lei por violação do disposto do nº 3 do artº 123º do CPA;
  E
  Da violação dos princípios da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança.
  Pedia o Recorrente no seu recurso hierárquico que fosse reconhecido o efeito putativo dos actos impugnados, o que também foi negado considerando-se entre outros argumentos que na génese dos actos declarados nulos havia estado a prática de um crime e o ofensa do interesse público.
  
  Sobre a questão do crime que está ou poderá estar na génese destes registos de nascimento, tivemos já oportunidade de nos pronunciarmos no Acórdão proferido no indicado processo nº 590/2021:
  «Os actos administrativos impugnados têm como fundamento a nulidade decorrente da alínea c) do nº 2 do artº 122º do CPA de que o crime de falsas declarações quanto à paternidade do recorrente foi o pressuposto do acto.
  Na parte que releva para estes autos dispõe o artº 122º do CPA:
Artigo 122.º
(Actos nulos)
  1. São nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.
  2. São, designadamente, actos nulos:
  a) …
  b)…
  c) Os actos cujo objecto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;
  d)…
  e)…
  f)…
  g)…
  h)…
  i)…
  Sobre esta questão já se pronunciou o Tribunal de Última Instância no seu Acórdão de 30.05.2018, Processo nº 29/2018:
  «Relativamente à interpretação desta alínea, dissemos o seguinte nos acórdãos de 25 de Abril e 25 de Julho de 2012, respectivamente, nos Processos n. os 11/2012 e 48/2012:
  «O objecto do acto administrativo é a produção de efeitos jurídicos no caso concreto1, é o efeito jurídico criado ou declarado2.
  No caso dos autos, o objecto do despacho de … não constitui qualquer crime, pelo que, em termos literais, poderia parecer não ter aqui aplicação a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.
  Contudo, a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma, que é totalmente justificável.
  MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS3 sustentam que:
  “A expressão «actos administrativos que impliquem a prática de um crime»tem que ser objecto de interpretação extensiva: não estão em causa apenas as situações em que o acto administrativo em si preenche um tipo penal, mas todas aquelas em que o acto administrativo envolva, na sua preparação ou execução, a prática de um crime.
  Exemplos de actos administrativos que implicam a prática de crimes: um acto administrativo de conteúdo difamatório para o seu destinatário; um acto praticado sob extorsão; uma ordem dada por um superior a um subalterno para que exerça violência física injustificada sobre pessoas”.
  E MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM4 escrevem:
  “Consideramos abrangidos na parte final desta alínea c) – mesmo se parece estranho o facto do legislador se referir apenas ao «objecto» do acto administrativo – também aqueles que, não sendo crime por esse lado, o são pela sua motivação ou finalidade, quando esta seja relevante para a respectiva prática. Diríamos, portanto, serem nulos não apenas os actos cujo objecto (cujo conteúdo) constitua um crime, mas também aqueles cuja prática envolva a prática de um crime.
  Estão nessas circunstâncias, por exemplo, os actos que se fundem em documentos administrativamente falsificados (actas ou convocatórias forjadas, etc) ou os actos que sejam praticados mediante suborno ou por corrupção”».
  Pois bem, tendo o despacho do Chefe do Executivo, de 26 de Dezembro de 2000, que autorizou a residência temporária da 2.ª recorrente e os despachos do Secretário para a Economia e Finanças, de 6 de Abril de 2004, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente, por 3 anos e de 16 de Fevereiro de 2007, que renovou a autorização de residência temporária da 2.ª recorrente até 31 de Maio de 2008, sido proferidos com base em documentos de identificação de uma interessada que eram falsos, com nome falso, com data de nascimento e identidade do pai que não coincidiam com os verdadeiros elementos de identificação da 2.ª recorrente, podemos dizer que tais actos administrativos apenas foram produzidos porque tinham na sua base a prática de crimes, por parte da 2.ª recorrente.
  E pergunta-se, se a 2.ª recorrente tivesse exibido a sua verdadeira identidade, tais actos ter-lhe-iam concedido a residência de Macau? Não sabemos. Provavelmente, não, já que tendo a 2.ª recorrente de nacionalidade chinesa, residente no Interior da China, face ao disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º14/95/M, de 27 de Março, vigente ao tempo, teria de entregar documento comprovativo da autorização para requerer a fixação de residência em Macau, emitido pelas autoridades competentes da República Popular da China, o que não seria possível, porque tal documento nunca foi emitido.
  Ou seja, a 2.ª recorrente obteve a residência em Macau usando uma identidade falsa, por razões não inteiramente claras e que em si não são relevantes, mas que provavelmente estão relacionadas com o que se disse atrás. Quando já era residente permanente, veio, então, pretender regressar à sua identidade verdadeira, pedindo a alteração do nome no seu bilhete de identidade de residente. Parece evidente que não pode ser.
  Afigura-se-nos que o acto recorrido interpretou devidamente a alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º do Código do Procedimento Administrativo.»
  Como expressamente se diz no trecho citado o entendimento seguido resulta de que «a doutrina tem feito uma interpretação extensiva da norma».
  Na situação do Acórdão citado a falsificação dos documentos foi cometida pela destinatária do acto, ou seja, a beneficiária da actuação da administração levou a que esta praticasse um acto que lhe era favorável e constitutivo de direitos com base em pressupostos de facto falsos e criminalmente puníveis. Nos dois Acórdãos que ali se citam a situação subjacente à prática do acto administrativo que veio a ser julgado nulo era uma situação de corrupção passiva cometida também com o objectivo de conduzir à prática do acto que veio a ser julgado nulo.
  Dúvidas não assistem de que a solução Doutrinária adoptada é a melhor interpretação para o preceito em causa.
  Contudo, a essa interpretação extensiva não é alheia os princípios fundamentais que enfermam o nosso sistema jurídico o qual assenta no que à responsabilidade concerne no princípio da culpa e na protecção de terceiros de boa-fé, havendo as formas de responsabilidade objectiva que ser expressamente previstas na lei.
  Ora, aquilo que a Doutrina sustenta é que choca à sensibilidade do jurista que um acto praticado com base em pressupostos de facto forjados, numa actuação que é criminalmente punida, pudesse gerar quaisquer efeitos havendo que ser sancionado com a nulidade.
  Porém, no caso que nos ocupa o destinatário do acto é um terceiro totalmente alheio à actividade criminosa que levou a que o pressuposto de facto que eventualmente conduziu à prática do acto administrativo fosse forjado. Concretizando, o sujeito a favor de quem os actos administrativos anulados foram constitutivos de direito era uma criança recém-nascida que sem necessidade de qualquer outra prova é manifestamente alheia às falsas declarações que a mãe haja prestado a seu favor.
  Destarte, se é correcta a interpretação no sentido de a actividade criminal prevista na letra da lei tanto pode ser a que se resulta da prática do acto – como expressamente resulta da disposição legal – como também, aquela que haja estado na sua génese, também porque a expressão usada é “crime” nada autoriza que a interpretação extensiva vá tão longe que possa entender que ainda que os sujeitos envolvidos na prática do acto – administração pública e cidadão sujeito do acto - actuem de boa-fé, a actuação criminosa de terceiros possa vir a inquinar o acto de tal forma que o fira de nulidade.
  O que a lei diz é que são nulos: Os actos cujo objecto seja impossível, os actos cujo objecto seja ininteligível, os actos cujo objecto constitua crime. A interpretação literal do preceito não pode ser outra que não esta, o que se pretende acautelar é que o objecto do acto administrativo possa constituir crime, contudo, alguma doutrina veio a fazer uma “interpretação extensiva” do preceito no sentido de considerar que quando os pressupostos do acto foram forjados de forma que constitua crime, também ai aquele é cominado com a nulidade, mas há que pressupor que essa actuação criminosa tenha uma conexão com os sujeitos a quem o acto se dirige.
  Salvo melhor opinião, em nenhum dos Acórdãos do TUI a questão “sub judice” tem por objecto sujeitos que sejam alheios à actividade criminosa que levou à prática do acto, pelo que, em situações como aquela que ocorre nestes autos haverá que ponderar também o princípio da protecção dos sujeitos de boa-fé não levando a interpretação extensiva a um ponto que nos parece já estar – no caso de desconsiderar os interesses de sujeitos de boa-fé – num nível muito para além daquele que resulta da letra da lei.».
  
  Pelo que, no que concerne à questão do crime que eventualmente pudesse estar na génese do acto, a mesma de forma alguma poderia invalidar os actos referentes ao aqui Recorrente não tendo ele participação alguma nem tão pouco conhecimento do mesmo por ser recém-nascido e alheio a tudo quanto se possa ter passado.
  
  No que concerne à questão dos efeitos putativos do acto tivemos, também, já oportunidade de nos pronunciarmos no indicado Acórdão proferido no processo 1013/2019:
  «Sendo o acto nulo não produz efeitos, pelo que, segundo o purismo dos conceitos nada mais haveria a discutir a não ser retirar da nulidade as consequências devidas.
  É tradicionalmente aceite pela Jurisprudência e Doutrina que o reconhecimento por banda da Administração da nulidade do acto é um acto vinculado.
  Contudo, o nº 3 do artº 123º do CPA, a propósito da não produção de efeitos jurídicos do acto nulo, consagra que não fica prejudicada «a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito».
  Veja-se a este respeito José Carlos Vieira de Andrade em “A Nulidade Administrativa essa Desconhecida” na obra supra indicada a pág. 776:
  «O panorama apocalíptico associado ao regime legal da nulidade compreender-se-á numa perspectiva histórica, na medida em que o regime foi elaborado tendo em mente os actos da “administração agressiva” (e, entre nós, da administração local) e com base numa enumeração, taxativa e concreta, das situações ou dos vícios geradores de nulidade – mas é excessivamente radical e não responde em termos adequados à realidade dos tempos de hoje, em que se impõe a consideração das relações jurídicas estabelecidas pelos actos administrativos.
  Por um lado, o regime puro não funciona bem perante o alargamento do conceito e das espécies de acto administrativo, agora muitas vezes actos constitutivos de direitos e interesses legalmente protegidos, que exigem a produtividade ou merecem a estabilidade da situação de facto originada pelo acto. Por outro lado, não se coaduna com a definição qualitativa das nulidades por natureza e com o consequente carácter problemático da qualificação da invalidade – menos ainda entre nós, quando a definição legal de nulidade substancial se refere à falta de elementos essenciais, em termos que abrangem uma diversidade relevante de situações.
  Como vimos, a questão da invalidade dos actos administrativos e dos respectivos efeitos constitui um problema, a resolver através da ponderação entre os valores da legalidade, de um lado, e os da segurança jurídica e da estabilidade das decisões, por outro lado – sendo especialmente relevante a protecção da boa fé e da confiança dos cidadãos quando estejam em causa decisões que lhes sejam favoráveis.».
  A questão tem normalmente sido abordada a propósito dos agentes putativos e de questões de urbanismo, contudo não se limita a essas situações, podendo a aplicabilidade da norma abranger outras situações de facto que hajam sido geradas por actos que se venha apurar ao fim de determinado espaço de tempo que são nulos.
  Sendo certo que, no caso dos actos putativos não se trata do aproveitamento do acto nulo (o que por força da nulidade é impossível) mas do aproveitamento dos efeitos (do acto) – veja-se Inês Ramalho em “O Princípio do Aproveitamento do Acto Administrativo”, Tese de Mestrado, Faculdade Direito de Lisboa em CJP, CIDP.
  Relativamente ao anterior Código do Procedimento Administrativo de Macau aprovado pelo Decreto-Lei nº 35/94/M de 18 de Julho, Lino Ribeiro e José Cândido de Pinho em anotação ao nº 3 do artº 115º5 escreviam que:
  «O disposto no n.º 3 do artigo 115.º veio consagrar um regime de nulidade que a doutrina e a jurisprudência já admitia, sobretudo a propósito dos agentes putativos. Como acontece em muitas situações jurídicas, reconhece-se que o tempo é um facto natural produtor de efeitos jurídicos. Assim, um acto nulo, que desde a sua emanação não produz quaisquer efeitos jurídicos (mas que os produz de facto) pode, pelo simples decurso do tempo, vir a produzi-los.
  A intenção do legislador é temperar o rigor que constitui a destruição total de situações de facto constituídas à sombra do acto nulo. À transformação de situações de facto em situações de direito pelo decurso do tempo chama-se, sobretudo no direito privado, usucapião. Como se vê, este instituto também desempenha um papel, embora menor, no Direito Administrativo.
  No entanto, o decurso do prazo não é suficiente para que o acto nulo venha a produzir efeitos jurídicos. Como a lei expressamente refere, tal só deve acontecer «de harmonia com os princípios gerais de direito». Faz-se apelo a princípios como os da protecção da confiança, da boa fé, da igualdade, da imparcialidade, da proporcionalidade, da justiça, do não enriquecimento sem causa, da realização do interesse público. Estes princípios, que são vinculativos para a Administração, podem ser chamados a resolver situações de injustiça derivadas da nulidade dum acto administrativo.
  O caso mais tratado pela doutrina e jurisprudência é o dos agentes putativos, que são pessoas que actuando, em circunstância normais, como titulares de um órgão administrativo, não o são de direito, quer porque o seu provimento resulta de um acto inválido, quer porque já cessou o efeito do acto do seu provimento legal. (…).
  Ora, por razões de protecção da boa fé e da estabilidade da função pública, a doutrina e a jurisprudência admitem que os funcionários providos em virtude dum acto nulo possam, pelo decurso do tempo, adquirir o direito ao lugar e que os actos administrativos por si praticados não serão inválidos por esse facto.
  As relações entre o agente putativo (aquele que se faz acreditar) e a pessoa colectiva em que está inserido levam a que ao fim de determinado tempo aquele se torne agente de direito. A lei nada diz quanto ao período de tempo necessário para que ocorra aquela transformação. O professor Marcello Caetano, por analogia com a situação prevista no artigo 1298.º, alínea b) do Código Civil, fazia referência ao prazo de dez anos. Mas os tribunais administrativos portugueses eram mais benevolentes e, em certos casos, admitiam mesmo prazos inferiores, pouco excedentes a três anos. Mas além do decurso dum prazo suficiente, exige-se ainda que o exercício das funções públicas seja pacífico, contínuo e público, e que o facto que originou a situação não tenha sido gerado de forma dolosa ou erro grosseiro do interessado.».
  Em sentido idêntico já sustentava o Prof. Marcello Caetano em Manual de Direito Administrativo, Vol. I, pág. 517.
  Mais recente, Luiz S. Cabral de Moncada6 em anotação ao nº 3 do artº 162º do Código do Procedimento Administrativo Português, diz:
  «2. Os efeitos do acto nulo
  2.1. Segundo a doutrina tradicional, o acto nulo não gera efeitos. Parte-se do princípio segundo o qual o acto nulo não gera efeitos. O princípio é lógico mas não corresponde à realidade. Trata-se um belo exemplo da metodologia hermenêutica da jurisprudência dos conceitos e do «método da inversão» dela própria que consiste em deduzir as consequências dogmáticas apenas das abstracções conceituais desprezando os dados empíricos. Apenas se admite que do acto nulo resultem efeitos «putativos», que a Administração poderá resguardar, se for caso disso, em homenagem a determinados valores, como vimos, valendo o acto como se fosse válido. Ora, se assim é, também os efeitos do acto nulo, mesmo que só envergonhadamente «putativos», poderão ter de ser retroactivamente destruídos para garantir a reconstituição de uma situação hipotética actual favorável a um beneficiário, precisamente porque o prejudicaram, mesmo que só putativamente para não chocar os mais ortodoxos, tal como sucede se o acto for apenas anulável. A final, tendo em conta razões de justiça material, os regimes do acto nulo e do acto anulável, este à frente versado, aproximam-se em vez de se afastarem.
  E há outro argumento, à frente exposto; é que os actos nulos são agora susceptíveis de reforma ou conversão, de acordo com o n.º 2 do art. 164.º. E porquê? Por não terem efeitos? Não certamente.
  Nesta conformidade se entende agora a ampla possibilidade de atribuir efeitos a situações de facto resultantes de actos nulos não apenas pelo decurso de tempo mas em atenção aos princípios gerais de direito administrativo.
  2.2. Desconhecer os efeitos do acto nulo é não querer ver que o acto administrativo até à declaração da respectiva nulidade ou à sua desaplicação com esse fundamento beneficia de uma presunção de legalidade, relativa evidentemente, mas que gera efeitos como se válido fosse, ficando ainda apoiados nos poderes de hierarquia de que o superior faz uso para impor actos nulos quiçá por ele próprio praticados. O direito de resistência a actos nulos, salvo nos casos em que co-envolvem a prática de um crime, é fraco paliativo para tais efeitos tema, contudo, que aqui não pode ser desenvolvido.».
  Como tem vindo a ser desenvolvido pela Doutrina mais recente subjacente ao aproveitamento dos efeitos putativos do acto nulo subjazem os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e proporcionalidade com base nos quais se tem vindo a sustentar que se aceite a produção de efeitos decorrido que seja determinado espaço de tempo.
  Ora, no caso em apreço o que aconteceu é que a Recorrente, quando nasceu em Outubro de 1996 foi registada como sendo filha de um residente de Macau tendo-lhe sido atribuído o estatuto de residente permanente de Macau.
  Passados 21 anos, em Novembro de 2017 veio a ser proferida decisão que manda eliminar aquela menção de paternidade e inscrever uma outra passando a figurar como pai um sujeito que ao tempo do nascimento da Recorrente não era residente de Macau.
  Segundo consta da factualidade apurada o processo crime por falsidade das declarações quanto à identidade do pai foi arquivado pelo Ministério Público.
  Em 2003 os pais biológicos da agora Recorrente obtiveram o estatuto de residentes em Macau.
  Ou seja, em termos práticos o que ocorre é que sendo a Recorrente um recém-nascido, por força da natureza não tem qualquer intervenção nos actos que (eventualmente) indevidamente hajam sido praticados quanto ao registo da filiação e que segundo a Administração levam à nulidade dos actos recorridos.
  (…)
  No entanto o resultado prático é que aqueles que eventualmente foram os autores dos factos – os progenitores – não são objecto de qualquer responsabilidade criminal por força do tempo decorrido e entretanto até passaram a ter o estatuto (de residente) que justificaria que o mesmo houvesse também sido atribuído à Recorrente se não se desse o caso de já o ter.
  E a Recorrente que não tendo qualquer participação activa na prática dos actos que levam à nulidade, depois de cerca de 24 anos a viver e a estudar em Macau perde o estatuto de residente, sem que subjectivamente lhe possa ser assacada alguma responsabilidade.
  Não podemos deixar de ponderar que o legislador ao permitir a prescrição do procedimento criminal relativamente aos factos que estão na génese da situação entendeu que dado o espaço de tempo decorrido os mesmos já não tinham qualquer relevância que justificasse a punição.
  Ora, se o facto enganoso, que por sua vez seria aquele que estaria na génese da nulidade do acto administrativo já não tem para o legislador qualquer relevância que justifique a punição, entendemos que esse argumento é também bastante, para concluir que por força do decurso do mesmo espaço de tempo, deve ser reconhecido efeitos jurídicos às situações de facto decorrentes dos actos nulos que eventualmente hajam sido praticados na sequência daqueles, isto em obediência ao princípio da unidade do sistema jurídico.
  Embora o objecto desta acção seja um acto administrativo isso não nos pode impedir de ver para além disso e ponderar as consequências que dele decorrem que na prática são a perda do estatuto de residente da RAEM a alguém que aqui nasceu, viveu, estudou e onde tem as suas raízes e está culturalmente ligada sem que tenha contribuído em nada, seja para beneficiar desse estatuto, seja para as razões que agora se invocam para o perder.
  Chamando à colação os princípios da boa-fé, da protecção da confiança, da justiça e da proporcionalidade parece-nos que a situação pode e deve ser enquadrada na previsão do nº 3 do artº 123º do CPA.
  Sobre a relevância dos princípios da boa-fé e da confiança, com consagração legal no artº 8º do CPA e a sua relevância para o reconhecimento dos efeitos putativos do acto é abundante a Doutrina e Jurisprudência a respeito, nada havendo a acrescentar, remetendo-se, pela sua clareza, para o trabalho de Ana Gouveia Martins em “Responsabilidade da Administração com Fundamento na Declaração de Nulidade ou Revogação de Actos Inválidos”, in Colecção de Estudos, Nº1, Instituto do Conhecimento AB.
  Reconhecendo-se, com base em tudo antes exposto, a boa-fé da Recorrente, a questão que agora se coloca é como é que se torna efectiva a produção dos efeitos putativos do acto nulo.
  Para o Professor Doutor Marcello Caetano a tutela dos efeitos putativos do acto era feita com recurso às regras da usucapião.
  Vieira de Andrade vem dar mais relevância aos interesses em causa deixando a fixação do período de tempo necessário para a produção de efeitos para o intérprete.
  «O rigor do regime legal da nulidade pode em muitas circunstâncias revelar-se excessivo, designadamente quanto à impossibilidade aparentemente absoluta de ratificação, de reforma e até de conversão (artigo 137º, n.º 1 do CPA) e quanto ao regime de imprescritibilidade do poder de declaração da nulidade por qualquer autoridade administrativa ou judicial (artigo 134.º, n.º 2 do CPA). A moderação desse rigor resulta da possibilidade de reconhecimento jurídico de efeitos de facto produzidos pelo acto nulo, com base no decurso do tempo e com fundamento em princípios jurídicos fundamentais (designadamente, os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança legítima ou o princípio da proporcionalidade) – prevista no n.º 3 do artigo 134.º do CPA.» - Cit. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, pág. 201 -.
  Entre a exigência de instauração de uma acção para o efeito, a possibilidade de serem reconhecidos os efeitos do acto em sede de execução, a necessidade de juridificação do reconhecimento dos efeitos ou a possibilidade de ser a própria a administração a fazê-lo, entre as mais sugeridas soluções, tem a Doutrina e a Jurisprudência procurado soluções para um direito que consagrado na lei cabe encontrar como o reconhecer numa jurisdição que começando a ser de anulação tem vindo a evoluir no sentido da plena jurisdição.
  Segundo Vieira de Andrade na já citada obra “A nulidade Administrativa essa Desconhecida” a pág. 780/781, «Nas situações em que se ponha o problema do reconhecimento jurídico da situação de facto decorrente do acto nulo o juiz não pode alegar que a sua tarefa é meramente hermenêutica, que só visa aplicar uma solução previamente definida na lei – ele não se limita a conhecer, decide a solução do caso concreto e é juridicamente responsável por ela, devendo, para além de evitar injustiças extremas e situações de impraticabilidade (…), respeitar a proibição do excesso, pois só atendendo aos efeitos reais da decisão se alcança a paz social que a justiça almeja.».
  Como vem sendo esclarecido o que está em causa não é a produção de efeitos de um acto nulo, o qual por força da nulidade nunca poderia produzir efeitos.
  O que está em causa é reconhecerem-se efeitos jurídicos às situações de facto geradas pelo acto nulo.
  Ora este efeito tanto pode ser conseguido através da administração e aqui no exercício de um poder discricionário ou pelo tribunal.
  No caso em apreço está em causa o estatuto de residente da RAEM.
  Não colhe qualquer sucesso a argumentação da Autoridade Recorrida na sua conclusão 50ª quando de alguma forma demanda ainda que veladamente o interesse público para a não emissão do BIRPM e do Passaporte, quando face ao sistema jurídico da RAEM a situação de facto subjacente já nem criminalmente é punível pelo decurso do tempo o que demonstra o desinteresse do legislador face a este género de situações (pelo decurso do tempo, como já se havia referido). Menos ainda, será sustentável a imposição de consequências de um acto por outros praticado a quem a ele é alheio (neste caso a Recorrente) em manifesta violação do princípio da culpa, égide de um estado de direito, em prol da defesa do interesse público e da prevenção criminal.
  Para além de que, está apenas em causa o reconhecimento de uma situação pretérita, decorrida há 24 anos, em que as circunstâncias e os meios eram completamente distintos dos que hoje existem, sendo que, actualmente este género de situações podem ser – e na prática são – evitadas com recurso a testes de ADN, bastando para o efeito se necessário legislar-se nesse sentido.
  Logo, o reconhecimento da situação subjacente aos autos em nada belisca o interesse público.
  No que concerne aos princípios fundamentais de direito da proporcionalidade, da boa-fé e da confiança consagrados nos artº 5º e 8º do CPA demandam o reconhecimento da situação – o estatuto de residente – a quem ao longo de toda a vida, actualmente com 24 anos sempre usufruiu do estatuto de residente de Macau e adequou a sua vida a Macau como resulta dos sinais dos autos.
  Entendemos também, que na senda do que tem vindo a ser sustentado pela Doutrina mais hodierna, neste tipo de situação não importa tanto o tempo decorrido desde a prática do acto, mas sim a situação existente no momento em que se conclui pela nulidade, sendo certo que, o comando contido no nº 3 do artº 123º do CPA manda dar relevância ao tempo.
  Porém, se a pessoa a quem foi concedido o estatuto de residente da RAEM quando se vem a apurar que o acto é nulo por não ser descendente de residentes de Macau ainda é menor, por força da dependência dos progenitores, do exercício do poder paternal e a guarda que lhe está associada, antes de atingida a maioridade nada justifica que se reconheçam efeitos ao acto independentemente do tempo que haja decorrido.
  No entanto, se entretanto tiver atingido a maioridade, entendemos que devem ser reconhecidos efeitos ao acto, havendo aqui, por força da exigência feita no nº 3 do artº 123º do CPA de fixar um espaço de tempo que se entenda razoável para o efeito, o qual entendemos poder ser igual aos 7 anos exigidos pela lei para a atribuição do estatuto de residente permanente – Lei nº 8/1999, artº 1º, nº 1, 2) -, contados desde da prática do acto que se tem por nulo.
  Destarte, em face da factualidade apurada e tendo em consideração os princípios supra indicados que no caso em apreço se verificam, haveria de, nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA ter sido reconhecidos efeitos aos actos de atribuição de BIRPM e de Passaporte da RAEM à Recorrente, mantendo-os.
  Não tendo sido feito como concluir?
  Aqui chegados e sem prejuízo do reconhecimento da nulidade ser um acto vinculado o certo é que, o nº 3 do artº 123º do CPA atribui à administração um campo de discricionariedade que lhe permitiria ter actuado de outra forma.
  O reconhecer ou não efeitos ao acto nulo nos termos do nº 3 do artº 123º do CPA implicando um poder discricionário pode ser sindicado pelo tribunal de acordo com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da confiança e imparcialidade.
  Ao não reconhecer à Recorrente o estatuto de residente não actuou a Administração de acordo com o princípio da proporcionalidade, da confiança e da boa-fé os quais já antes analisados se entendeu que justificavam que fosse reconhecido o respectivo estatuto.
  Nada tendo feito a Administração, num contencioso de anulação ficaria o tribunal impossibilitado de corrigir a situação reconhecendo efeitos ao acto.
  A solução encontramo-la no já citado trabalho “Responsabilidade da Administração …” de Ana Gouveia Martins, a pág. 67/68 com a figura da supressão do poder de declarar a nulidade:
  «Todavia, uma vez declarada a nulidade, nada obsta a que, com base no princípio da tutela da confiança, sejam atribuídos efeitos putativos às situações de facto decorrentes de actos nulos, se, por força do decurso de tempo, os princípios gerais impuserem a sua consolidação (art. 134.º, n.º 3 do CPA). Indispensável para tanto é que seja praticado um acto que, reconhecendo e declarando a nulidade, justifique a atribuição desses efeitos putativos e declare quais os efeitos que se devem considerar consolidados pelo decurso de tempo.
  Acresce que, apesar de a boa-fé não ter, em geral, por efeito neutralizar a ilegalidade cometida, convalidando o acto ilegal, tem-se admitido a título excepcional que quando a administração considerou, «durante um longo espaço de tempo, uma dada situação conforme ao direito (apesar de ilegal), mas pretender agora, porque a manutenção dela já não lhe aproveita, invocar a sua nulidade», que a boa-fé obste à declaração dessa nulidade. Com efeito, o princípio da boa-fé proíbe actuações que consubstanciem um «venire contra factum proprium (ou proibição de comportamento contraditório) – de acordo com a qual se veda (ou impõe) o exercício de uma competência ou de um direito, quando tal exercício (ou não exercício) entra em flagrante e injustificada contradição com o comportamento anterior do titular, por este ter suscitado na outra parte uma fundada e legítima expectativa de que já não seriam (ou o seriam irreversivelmente) exercidas – a supressio ou verwirkung (que da anterior se distingue pelo facto de a dimensão temporal ganhar uma relevância autónoma), etc.»
  Com efeito, em determinadas e circunscritas constelações de casos o princípio da boa-fé pode obstar à revogação ou à declaração da nulidade de actos administrativos ilegais por consubstanciar um exercício inadmissível de direitos. Nomeadamente é possível invocar a figura da supressio que determina a paralisação ou redução do conteúdo de certas posições jurídicas em função do seu não exercício durante um amplo lapso temporal, in casu, uma supressão de competências.».
  Ou seja, tudo se reconduziria a que por força do tempo decorrido os efeitos do acto (nulo) se haviam consolidado na esfera jurídica do particular não produzindo a nulidade todos os seus efeitos.
  Ao não se ter optado pela figura da supressão do poder de declarar a nulidade reconhecendo efeitos aos actos (nulos) de acordo com os princípios da boa-fé e da confiança, são os actos impugnados anuláveis impondo-se que se decida em conformidade.
  Não sendo argumentável em sentido contrário que o acto de declaração de nulidade é um acto vinculado e como tal não é susceptível de ser apreciado em função dos indicados princípios, pois o que está em causa não é a declaração de nulidade mas o reconhecimento dos efeitos fácticos do acto os quais demandavam uma abstenção de agir a que não se obedeceu em violação dos referidos princípios, e nesta parte já estamos no domínio da discricionariedade.
  A não se entender assim nunca o acto de reconhecimento de efeitos putativos do acto nulo poderia ser objecto de decisão e apreciação do tribunal uma vez que não pode ser objecto de acção para a prática do acto administrativo devido porque não é um acto vinculado mas discricionário. O que levaria a que só haveria possibilidade de apreciar os efeitos putativos do acto se a administração o reconhecesse e desse acto fosse interposto recurso para o tribunal, mas se nada reconhecer já não haveria acção judicial para o efeito.
  Logo não se aceitando que esta questão possa ser apreciada através do instituto da supressão do poder de declarar a nulidade, seria o mesmo que declarar que ao direito consagrado no nº 3 do artº 123º não corresponde acção judicial alguma o que viola o princípio do acesso à justiça consagrado no artº 14º do CPA.
  Em igual sentido veja-se e-Pública: Revista Electrónica de Direito Público, Vol. 1, nº 2, Lisboa Junho 2014 “Os efeitos putativos da nulidade dos actos urbanísticos: entre a tutela da confiança e o interesse público”: «Todavia, não excluímos que mesmo em sede de acção administrativa especial de impugnação do acto, o juiz possa atribuir efeitos jurídicos à situação de facto, desde que os requisitos que acima elencámos se encontrem cumpridos, em particular o decurso do tempo.».
  Concluindo, entendemos que no caso em apreço não se tendo a administração abstido de declarar a nulidade dos actos reconhecendo implicitamente à Recorrente o direito a beneficiar do estatuto de residente da RAEM e consequentemente, emitindo-lhe o BIRPM e o Passaporte de Macau, enfermam os actos impugnados do vício de violação de lei por violação do princípio da boa-fé e da confiança, sendo anuláveis nos termos do artº 124º do CPA.».
  
  Por fim sempre cabe dizer que no caso em apreço, caso o Recorrente não tivesse já o estatuto de residente da RAEM por força da paternidade que lhe foi atribuída à nascença, nada obstaria que a viesse a ter quando a sua mãe adquiriu esse estatuto quando ainda era menor, o que não sendo fundamento para esta decisão haveria de o ter sido para o reconhecimento dos efeitos putativos do acto.
  
  Mantendo a posição já ali afirmada, com base nos mesmos fundamentos entendemos que os actos impugnados ao não reconhecerem ao Recorrente o direito a beneficiar do estatuto de residente da RAEM e consequentemente, emitindo-lhe o BIRPM e o Passaporte de Macau, enfermam - os actos impugnados - do vício de violação de lei por violação do princípio da boa-fé e da confiança, sendo anuláveis nos termos do artº 124º do CPA.
  
c) DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso anulam-se os actos recorridos.
  
  Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 23 de Fevereiro de 2023
  Rui Pereira Ribeiro
  (Relator)
  Fong Man Chong
  (Primeiro Juiz-Adjunto)
  Ho Wai Neng
  (Segundo Juiz-Adjunto)
  (Vencido nos termos e fundamentos constantes do parecer do MºPº emitido nos autos, cujo teor se encontra devidamente transcrito a fls. 23 a 30 do presente aresto.)
  
   Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto do Ministério Público)
1 MARCELLO CAETANO, Manual..., I vol., p. 481
2 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Lisboa, Almedina, 1980, p. 441.
3 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito..., Tomo III, p. 162.
4 MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES e JOÃO PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, Almedina, 2.ª edição, 1997, p. 645.

5 A redacção daquele preceito corresponde hoje ao nº 3 do artº 123º do CPA.

6 Em Código de Procedimento Administrativo Anotado, 2ª edição, pág. 512.
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832/2021 REC CONT 66