Processo n.º 326/2022
(Autos de recurso contencioso)
Relator: Fong Man Chong
Data : 2 de Março de 2023
Assuntos:
- Permanência fora de Macau por parte do marido (residente permanente) devido às medidas de combate à pandemia de SARS-Cov2 e a (ir)relevância dessa ausência no que toca à renovação da autorização da fixação da residência concedida ao cônjuge (mulher) (residente não permanente) em Macau
SUMÁRIO:
Quando a Administração limitou-se a verificar que, objectivamente, durante um período de aproximadamente 16 meses, a Recorrente viveu em Macau e o seu cônjuge permaneceu fora de Macau (em Hong Kong), mas a verdade é que se não demonstra que essa separação física correspondeu, juridicamente, a uma verdadeira separação de facto e, portanto, que tal período tenha representado uma ausência de comunhão de vida, ou de uma coabitação em sentido juridicamente relevante. Com efeito, dos elementos colhidos no decurso do procedimento administrativo nada indicia que de um ou de ambos os cônjuges não houvesse o propósito de, assim que possível, voltarem a viver no mesmo lugar, em especial se ponderarmos que, no período em causa, eram muito significativos os constrangimentos à entrada e à saída da Região mercê das medidas de combate à pandemia de SARS-Cov2 decretadas pelo Governo, destacando-se, em particular, as medidas de observação médica por períodos de 14 dias em hotéis designados para quem viesse da Região Administrativa Especial de Hong Kong. Pode assim dizer-se que na aplicação da «norma» que construiu no exercício dos seus poderes discricionários, segundo a qual a falta de coabitação em Macau por um período superior a meio ano pode levar à não renovação da autorização de residência, a Administração incorreu em manifesto erro quando partiu da consideração de que o Recorrente deixou de coabitar com o seu cônjuge, pelo que ocorre o fundamento para a anulação do acto recorrido.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo n.º 326/2022
(Autos de recurso contencioso)
Data : 02 de Março de 2023
Recorrente : A
Entidade Recorrida : Secretário para a Segurança
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I – RELATÓRIO
A, Recorrente, devidamente identificada nos autos, discordando do despacho do Senhor Secretário para a Segurança, datado de 16/03/2022, veio, em 22/04/2022, interpor o recurso contencioso para este TSI, com os fundamentos constantes de fls. 2 a 8, tendo formulado as seguintes conclusões:
本司法上訴所針對的標的為保安司司長於2022年03月16日作出之決定,該批示之決定為拒絕批准聲請人的居留許可續期申請(見附件一,相關內容在此視為完全轉錄)
1. 司法上訴人認為被上訴的定由於存有事實認定錯誤、違反合法性原則、調查原則及善意原則等瑕疵,而應該被宣告撤銷。
事實前提錯誤
2. 首先,須先針對事實認定方面作出陳述。
3. 司法上訴人自2017年04月10日獲批准在澳居留後(與聲請人配偶潘禧球團聚),一直以澳門作為其唯一家庭生活所屬地區至今。
4. 司法上訴人於澳門生活至今接近5年,現時於B任職保安員(卷宗第80頁)。
5. 根據以上司法上訴人之工作及居住狀況可見,澳門已成為司法上訴人的唯一居住地區。
6. 對於司法上訴人配偶近期不在澳門之情況,司法上訴人必須作出說明。
7. 首先,司法上訴人於2017年來澳後一直與其丈夫共同生活;於2019年後一直共同居住於上述獲分配的社屋(社屋租賃合同載於附件2,相關內容在此視為完全轉錄)。
8. 如司法上訴人於卷宗第87頁所解釋,於2020年9月,因兒子在香港有事,司法上訴人之丈夫需要去香港協助處理。
9. 司法上訴人之丈夫於1948年08月02日出生,現年73歲,屬長期病患者及三高人士(高血糖、高血壓及高血脂),過往保持定期身體檢查(附件三)。
10. 在香港協助兒子處理事情後,由於疫情期間的港澳通關政策,回澳門必須獨自隔離14天,假如司法上訴人丈夫回澳則必須接受隔離,司法上訴人丈夫現時年老,司法上訴人及其兒子擔心司法上訴人丈夫不能承受獨自隔離14天所產生的風險,故決定其暫時在香港逗留。
11. 司法上訴人丈夫一直以澳門為真正的生活中心,以及希望能一直與司法上訴人在澳門共同生活,事實上,司法上訴人丈夫已預約了於2022年07月及08月在澳門衛生中心檢查身體(附件四),可以顯示司法上訴人並非一直不打算回澳,而是早已有回澳的計劃。
12. 當然,其丈夫回澳後必然與司法上訴人共同生活,其丈夫喜愛音響,在上述社屋中早已添置了大量自己喜歡的音響器材(附件五之家居照片,照片正本載於貴 院編號303/2022卷宗之中止效力聲請書狀附件五),假如其丈夫不打算回澳與司法上訴人共同生活,理應已將這些音響送到香港,但現時仍保留這些音響在上述社屋,顯示其丈夫將必定回澳與司法上訴人一起生活。
13. 同時,近期香港疫情嚴重,司法上訴人的丈夫由香港回澳時遭受感染的風險極高,根據司法上訴人的丈夫現時年齡,染疫後的死亡率很高,這也是司法上訴人一家非常擔心的事情。
14. 另外,司法上訴人自知現時仍屬非永久居民,在辦理證件時亦被告知必須每年在澳門居住滿至少183天,但是沒有被告知其丈夫也要遵守相同要求(必須每年在澳門居住滿至少183天)。
15. 司法上訴人本是香港居民,假如司法上訴人不打算在澳門與其丈夫團聚及共同生活,那麼司法上訴人不需要支付社屋租金及在澳門工作,可以直接回香港居住,不需要現時在澳門與其丈夫分隔兩地。
16. 以上事實均顯示司法上訴人丈夫受疫情及通關政策影響而暫時未有回澳,並非如行政當局所推論的司法上訴人夫婦已不在澳門團聚。
17. 故此,被訴決定存有事實前提錯誤之瑕疵。
違反調查原則
18. 同樣,行政當局認為司法上訴人與其丈夫沒有在澳共同生活,但是,司法上訴人與其丈夫從沒有這想法。
19. 在認定上述事實時,行政當局理應作出充分調查;行政當局僅以司法上訴人的丈夫近年在澳門逗留作為事實基礎,然而,近年正值疫情時期,且港澳兩地通關政策使人員流動受嚴重阻礙及不便,假使當局認為司法上訴人夫婦已不打算在澳門共同生活,且已知道司法上訴人的丈夫身處香港的情況下,為了更好地查明事實真相、遵守合法性原則及保障當事人利益的前提下,當局應作出更多的調查措施,比如向調查司法上訴人的家人查詢司法上訴人或其丈夫是否已不打算在澳門繼續居住、客觀上司法上訴人與其丈夫的澳門居所是否具有繼續共同居住的跡象等等。
20. 但是,行政當局沒有作出上述調查,而僅僅以司法上訴人丈夫近期在澳時間作為依據,繼而出現事實認定錯誤的瑕疵;而導致此瑕疵的原因,是當局未有適當履行澳門行政程序法典第86條規定的調查原則。
合法性原則
21. 行政當局的主要法律依據是第16/2021號法律第38條第2款所指各方面(尤其第1項)以及第43條第2款第3項。
22. 關於司法上訴人在澳門居留之目的及其可行性(第16/2021號法律第38條第2款第1項規定),當局僅僅依據司法上訴人之丈夫近期不在澳門便認定沒有與司法上訴人共同在澳生活;然而,如前所述,司法上訴人之丈夫沒有回澳是基於疫情所困,而不是已與司法上訴人分開或在其他地區居留,事實上,司法上訴人自獲批准在澳居留後,一直須其丈夫以澳門作為其家庭生活所屬地區至今。
23. 除了上述曾提及的司法上訴人的現時狀況(在澳門工作及租住社屋)及司法上訴人的丈夫已預約在澳門檢查身體等事實外,更重要的是,司法上訴人一直安分守紀,按照澳門法律及移民政策行事,與其丈夫老夫老妻以守法的態度面對生活,從沒有作出任何違法行為。
24. 就像外出工作或留學一樣,司法上訴人的丈夫有離境及做想做的事的自由,法律沒有限制之。
25. 再者,司法上訴人之丈夫已有明確計劃回澳,且回澳後必然與司法上訴人繼續共同在澳生活,這方面當局沒有任何證據能反證之。
26. 根據司法上訴人現時在澳工作以及租住社屋之狀況,明顯反映司法上訴人與其丈夫將在澳門長久生活甚至終老;因此,司法上訴人在澳居留的目的(夫婦團聚)的可行性必然是正面及肯定的,而且是毫無疑問的。
27. 故此,司法上訴人的狀況已符合上述第38條第2款(尤其第1項)之各方面規定,以這方面去考量的話,司法上訴人應獲得居留許可續期。
28. 故此,被訴決定已違反第16/2021號法律第38條第2款規定,從而存在違反合法性原則的瑕疵。
善意原則
29. 司法上訴人還認為行政當局之被訴決定違反善意原則。
30. 如前所述,司法上訴人一直在澳生活(工作及住屋),且在陳述時已向當局清楚解釋了其丈夫的狀況及將會回澳門(卷宗第87頁)。
31. 然而,被訴決定幾乎等同無視了司法上訴人丈夫暫時未能回澳的合理原因(本身暫時離澳也不會構成違反本澳移民政策的行為),其次,不批准司法上訴人的居留續期等同逼使司法上訴人與其丈夫分隔兩地無法繼續一起生活,損害了司法上訴人的家庭利益;再者,司法上訴人一直在澳工作及生活,期盼在澳與丈夫終老,被訴決定等同剝奪了司法上訴人的合理期待。
32. 行政當局在作出行政行為時,理應考慮相關事實及司法上訴人之利益;現司法上訴人未有作出任何違法行為,但行政當局的行為卻無疑損害了司法上訴人之上述利益及合理期待,使之嚴重受損。
33. 因此行政當局的決定違反了澳門行政程序法典第8條規定之善意原則。
34. 綜上所述,被上訴決定存有事實認定錯誤、違反合法性原則、調查原則及善意原則等瑕疵,根據行政程序法典第124條規定,上述被訴決定應被撤銷。
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Citada a Entidade Recorrida, o Senhor Secretário para a Segurança veio contestar o recurso com os fundamentos constantes de fls. 28 a 43, tendo formulado as seguintes conclusões:
I. À Recorrente, por despacho de 10 de Abril de 2017 foi concedida autorização de residência, com fundamento em junção familiar ao seu cônjuge;
II. À data em que apresentou o pedido de renovação de autorização de residência a Recorrente estava separada de facto do seu cônjuge desde o dia 17 de Setembro de 2020, facto que é confirmado pela própria Recorrente;
III. Tendo-se verificado o decaimento do pressuposto sobre o qual se havia fundado a autorização de residência da Recorrente, por se provar que esta não vivia conjuntamente com o seu cônjuge desde 17 de Setembro de 2020, foi indeferido o seu pedido de renovação de autorização de residência;
IV. O acto recorrido não enferma de erro nos pressupostos de facto;
V. O indeferimento pedido de renovação de autorização de residência da Recorrente teve como fundamento de facto o decaimento do pressuposto sobre a qual se havia fundado a autorização de residência - a reunião ao seu cônjuge;
VI. A Administração averiguou tudo quanto havia a averiguar, tendo decidido e praticado o acto impugnado face às provas junto ao processo administrativo;
VII. O decaimento de quaisquer pressupostos ou requisitos sobre os quais se tenha fundado a autorização de residência é causa de indeferimento do pedido de renovação, conforme resulta das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 38.° e da alínea 3) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 43.°, ambos da Lei n.º 16/2021;
VIII. Ao decidir determinado caso, a Administração, baseia-se na matéria de facto apurada em cada caso, e na subsunção dos factos à respectiva previsão legal;
IX. A circunstância de o cônjuge da Recorrente se ter ausentado da RAEM em 17 de Setembro de 2020 e não ter regressado pelo menos até 24 de Janeiro de 2022, não vivendo assim eles em comunhão de vida, preenche a causa do decaimento sobre o qual se fundou a autorização de residência;
X. A Administração não faz depender a sua actuação da forma como os particulares planeiam a sua vida privada, e não pode ficar dependente de planos futuros;
XI. A Administração actua em obediência à lei, dentro dos limites dos poderes que lhe são conferidos e em conformidade com os respectivos fins, o que se verifica no presente caso, pelo que o acto impugnado não está inquinado do vício de violação do princípio da legalidade;
XII. A concessão da residência na RAEM, assim como a sua manutenção (até que os interessados sejam considerados residentes permanentes) é revestida de apertados critérios e imbuída de uma muito larga margem de discricionariedade, mas que parte de orientações claras;
XIII. Em matéria de concessão de residência, e da sua manutenção, a primazia vai para os casos cujas finalidades se revelam mais prementes, à luz do interesse da RAEM e dos seus residentes, de que é exemplo o caso das reuniões familiares, sendo que o decaimento de qualquer pressuposto ou requisito sobre o qual se tenha fundado a autorização de residência, é causa de indeferimento de pedidos de renovação da autorização de residência;
XIV. A Entidade Recorrida não obriga a Recorrente a viver separada do seu marido, como não prejudica a sua família, nem sequer as suas expectativas, não se encontrando violado o princípio da boa fé;
XV. A Entidade Recorrida considera que nenhum dos vícios invocados pelo Recorrente encontra qualquer suporte fáctico ou jurídico que os sustente, pelo que, no seu entender, os mesmos não poderão deixar de improceder.
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O Digno. Magistrado do Ministério Público junto do TSI emitiu o douto parecer de fls. 106 a 110, pugnando pelo provimento do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre analisar e decidir.
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II – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS
São os seguintes elementos, extraídos do processo principal e do processo administrativo com interesse para a decisão da causa:
通知書 編號:200784/SRDARPNT/2022P
茲通知 A [持香港永久性居民身份證第R0XXXX2(3)號],關於 台端在2021年12月29日遞交申請書,要求批准居留許可續期一事,保安司 司長按載於本局居留及逗留事務廳第300017/SRDARPREN/2022P號補充報告書意見所述之理由,於2022年3月16日作出”不予批准”之批示。
現將上述報告書主要內容轉述如下:
“1. 申請人A女士,香港居民,於2017年4月10日獲批居留許可之目的是在澳與配偶潘禧球團聚,有關居留許可有效續期至2022年4月10日。
2. 於2021年12月29日申請人提起居留許可續期程序,根據出入境紀錄顯示,在過去約兩年(2020年4月10日至2022年1月24日)期間,申請人配偶首年居澳161天及次年沒有任何居澳紀錄(其於2020年9月17日離開澳門,至2022年1月24日仍未回澳,期間逾16個月,沒有於澳門生活),顯示出申請人配偶沒有在澳與申請人共同生活,該種情況明顯與當初批准居留之目的(在澳與配偶團聚)不符,故本次居留續期應不獲批准。
3. 按申請人在聽證程序中陳述的主要內容,聲稱其配偶回港照顧兒子,及因疫情沒有回澳與其共同生活。
4. 綜合分析本案,申請人所陳述內容,有關行為為個人選擇,理由並不充份,亦沒有跡象顯示其配會在短期內回澳。鑑於申請人配偶沒有在澳與申請人共同生活,與原獲批居留許可的前提(在澳與配偶團聚)不符。因此,經考慮並根據第16/2021號法律第38條第2款所指各方面,尤其第1項,及第43條第2款第3項之規定,建議拒絕申請人本次的居留許可續期申請。但不妨礙利害關係人倘符合要件、前提或條件時再提出居留許可申請。”
上述行政行為可按照【行政訴訟法典】第廿五條之規定,向中級法院提起司法上訴。
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IV – FUNDAMENTOS
A propósito das questões suscitadas pelo Recorrente, o Digno. Magistrado do MP junto deste TSI teceu as seguintes doutas considerações:
“(…)
1.
A, melhor identificada nos autos, veio instaurar o presente recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança em 16 de Março de 2022 que indeferiu o seu pedido de renovação da autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM), pedindo a respectiva anulação.
A Entidade Recorrida, devidamente citada, apresentou douta contestação na qual pugnou pela improcedência do recurso contencioso.
2.
Breve razão de ordem.
Nas modestas linhas que seguem com vista a fundamentar a posição do Ministério Público nos presentes autos, iremos seguir de muito perto o parecer que emitimos no processo de recurso contencioso n.º 395/2021, o qual aí mereceu a total adesão desse Tribunal de Segunda Instância.
(i)
Está em causa no presente recurso contencioso o acto administrativo praticado pela Entidade Recorrida através do qual esta decidiu indeferir o pedido formulado pelo Recorrente de renovação da autorização de residência na RAEM.
Baseou-se o referido indeferimento nas normas legais conjugadas da alínea 1) do n.º 2 do artigo 38.º e da alínea 3) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 43.º da Lei n.º 16/2021, ou seja, em virtude de a Administração ter considerado que deixou de se verificar o pressuposto subjacente à autorização de residência e que foi o da reunião familiar da Recorrente com o seu cônjuge.
Em concreto, como decorre da fundamentação do acto recorrido, a Administração extraiu aquela conclusão no sentido do decaimento do dito pressuposto impediente da renovação, a partir do apuramento factual que levou a efeito de que o marido da Recorrente saiu da Região em 17 de Setembro de 2020 e em 24 de Fevereiro de 2022 aqui ainda não havia regressado o que, depreende-se, seria revelador de que a Recorrente e o seu cônjuge não teriam coabitado em Macau por um período superior a 16 meses.
Formulando de outro jeito: na base do indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência está o entendimento da Administração segundo o qual a falta de coabitação do Recorrente e do seu cônjuge na RAEM por um período superior a 16 meses constitui obstáculo a essa renovação, uma vez que essa falta consubstancia, implica ou demonstra o decaimento do pressuposto da reunião familiar que justificou a própria autorização.
Trata-se de uma interpretação da lei que, com todo o respeito pela opinião contrária, não podemos acompanhar. Pelo seguinte.
(ii)
(ii.1)
Aceitamos e temo-lo sustentado em diversos processos que, se a autorização de residência na RAEM for concedida a uma pessoa não residente com fundamento no seu casamento com uma pessoa que tenha o estatuto de residente, a manutenção de tal autorização dependerá da existência, não só do vínculo jurídico do casamento, mas também de uma verdadeira comunhão de vida, a qual, por sua vez, pressupõe a existência de coabitação, em sentido jurídico e não puramente fáctico, entre os cônjuges. Isto porque, o que, em primeira linha, justifica a concessão da autorização de residência é a garantia do direito do residente à fruição de uma vida familiar plena e estável a que a Lei Básica, no seu artigo 38.º, defere evidente protecção.
Quer isto dizer, portanto, que a autorização de residência que se tenha fundado no casamento do beneficiário da autorização com um residente, pode não ser renovada se a Administração verificar que, entretanto, ocorreu o divórcio ou a separação de facto, uma vez que, numa e noutra situação, o pressuposto que esteve na base da concessão da autorização terá deixado de se verificar e, consequentemente, a dita autorização deixou de se justificar. Nisto estamos com a Entidade Recorrida.
No caso, é incontroverso que a Recorrente não se divorciou do seu cônjuge, pelo que, aquilo que importa verificar na perspectiva da aferição da legalidade do acto, é se os mesmos se separaram de facto pois que só isso poderia justificar, em princípio, o indeferimento da renovação da autorização de residência aqui impugnado.
(ii.2)
Como já vimos, a Administração, para justificar a sua actuação, bastou-se, essencialmente, com a verificação de que a Recorrente e o seu cônjuge estiveram fisicamente separados por mais de 16 meses. A partir daí concluiu que entre eles não houve coabitação por esse mesmo período e que, por isso, o pressuposto da autorização de residência havia deixado de se verificar, certamente por ter entendido que tal implicava a existência de uma situação de separação de facto. Mas não cremos, com todo o respeito, que assim seja. Procuraremos demonstrar porquê.
A coabitação entre os cônjuges não é um conceito susceptível de apreensão puramente fáctica ou naturalística, ao contrário daquilo que a Administração parece entender. Pelo contrário, aliás. Trata-se de um conceito jurídico que reveste uma «grande plasticidade» e que, por isso, não dispensa uma análise casuística das concretas circunstâncias que em cada situação ocorram, de forma a procurar desvelar, não só a objectividade da falta de vida em comum, em regra em lugares separados, mas, também, o indispensável elemento subjectivo, qual seja, o propósito de ambos ou, ao menos de um dos cônjuges, de não restabelecer a vida em comum. Sem este elemento subjectivo não pode falar-se de quebra do dever de coabitação e, portanto, não pode dizer-se que os cônjuges deixaram de coabitar ou que estejam separados de facto. É isto o que resulta de forma claríssima do disposto no n.º 1 do artigo 1638.º do Código Civil. É por isso que, por exemplo, se um dos cônjuges emigra para um outro país e está fisicamente ausente da casa de morada da família, e separado do outro cônjuge por largos períodos de tempo, como tantas vezes acontece, daí não resulta a quebra da comunhão de vida, nem do dever de coabitação, tanto mais que da norma do artigo 1534.º do Código Civil decorre, inequivocamente, que os cônjuges podem ter residências separadas.
Isto que decorre de disposições legais relevantes do nosso Direito da Família não pode deixar de se projectar na avaliação administrativa da existência e da manutenção dos pressupostos de determinado acto administrativo se, como no caso, o interesse público prosseguido por esse acto consiste, como dissemos, na garantia de uma vida familiar plena e estável aos residentes da RAEM. A unidade do sistema jurídico, neste específico contexto, reclama que a Administração, num primeiro momento e o juiz administrativo em eventual fiscalização da actuação administrativa, não deixem de interpretar e aplicar conceitos e institutos que são próprios do Direito da Família à luz dos respectivos cânones.
Ora, no caso em apreço, a Administração limitou-se a verificar que, objectivamente, durante um período de aproximadamente 16 meses, a Recorrente viveu em Macau e o seu cônjuge permaneceu fora de Macau, concretamente em Hong Kong, mas a verdade é que se não demonstra que essa separação física correspondeu, juridicamente, a uma verdadeira separação de facto e, portanto, que tal período tenha representado uma ausência de comunhão de vida, ou de uma coabitação em sentido juridicamente relevante. Com efeito, dos elementos colhidos no decurso do procedimento administrativo nada indicia que de um ou de ambos os cônjuges não houvesse o propósito de, assim que possível, voltarem a viver no mesmo lugar, em especial se ponderarmos que, no período em causa, eram muito significativos os constrangimentos à entrada e à saída da Região mercê das medidas de combate à pandemia de SARS-Cov2 decretadas pelo Governo, destacando-se, em particular, as medidas de observação médica por períodos de 14 dias em hotéis designados para quem viesse da Região Administrativa Especial de Hong Kong.
Pode assim dizer-se que na aplicação da «norma» que construiu no exercício dos seus poderes discricionários, segundo a qual a falta de coabitação em Macau por um período superior a meio ano pode levar à não renovação da autorização de residência, a Administração incorreu em manifesto erro quando partiu da consideração de que o Recorrente deixou de coabitar com o seu cônjuge, pelo que ocorre fundamento para a anulação do acto recorrido.
(iii)
(iii.1)
Com o devido respeito, não nos parece que se possa contrapor a esta conclusão, o facto de a Recorrente e o seu cônjuge saberem que precisavam de permanecer em Macau pelo menos 183 dias por cada ano a fim de obstar ao decaimento do pressuposto da autorização de residência. Em linhas breves, pelo seguinte.
Não desconhecemos que a Administração pode apor aos actos administrativos que pratica as chamadas cláusulas acessórias. Prevê-se, expressamente, na norma do artigo 111.º do CPA que «os actos administrativos podem ser sujeitos a condição, termo ou modo, desde que estes não sejam contrários à lei ou ao fim a que se destina».
No caso, parece-nos que a dita imposição à Recorrente de que coabite com o seu cônjuge em Macau durante, pelo menos, 183 dias em cada ano, seria susceptível de consubstanciar um modo, uma vez que, como se sabe, este se define como a cláusula acessória de um acto produtor de vantagens que se traduz na imposição de um dever de fazer, não fazer ou suportar dirigido ao seu destinatário, sendo que, contrariamente ao que acontece com a condição ou o termo, o modo não influi sobre a eficácia do acto pois o seu incumprimento pode levar a uma execução ou a outras possíveis consequências sancionatórias, incluindo a possibilidade de revogação do acto favorável (cfr. ROGÉRIO EHRHARDT SOARES, Direito Administrativo, Coimbra, 1978, p. 290 e JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito administrativo, 5.ª edição, Coimbra, 2018, p. 211).
No entanto, na situação em apreço, nem ao acto de concessão da autorização de residência, nem ao acto da primeira renovação dessa autorização foi aposta qualquer cláusula acessória, nomeadamente aquela que temos vindo a referir. O que aconteceu foi que, na notificação do acto que deferiu o pedido de autorização e do primeiro pedido de renovação e que se encontram a fls. 29 e 69 do processo administrativo instrutor, respectivamente, ficou consignado que a renovação da autorização dependeria, nomeadamente, de o requerente viver ou não em Macau com o seu cônjuge por um período não inferior a 183 dias e que se o requerente não satisfizesse tal condição o próximo pedido de renovação poderia ser indeferido.
Ora, a notificação não faz parte do acto administrativo, é um elemento exterior a ele destinado a desencadear a respectiva eficácia e por isso, a referida cominação que dela se fez constar é juridicamente irrelevante, não vinculando de qualquer forma o seu destinatário.
(iii.2)
Além disso, mesmo que, sem conceder, se entendesse que assim não é, ou seja, que a dita cláusula acessória vincularia o particular, sempre seria de considerar que a mesma, que, aliás, sempre se sublinhe, impõe um dever não só ao beneficiário do acto, mas também ao seu cônjuge, é contrária à lei, no caso, ao artigo 33.º da Lei Básica e por isso dela não poderia resultar qualquer vinculação relevante para o respectivo destinatária nem, consequentemente, com base no respectivo incumprimento se poderia fundar o acto de indeferimento aqui impugnado.
De acordo com o dito artigo 33.º da Lei Básica «aos residentes de Macau são reconhecidas a liberdade de se deslocarem e fixarem em qualquer parte da Região Administrativa Especial de Macau e a liberdade de emigrarem para outros países ou regiões. Os residentes de Macau têm liberdade de viajar, sair da Região e regressar a esta, bem como o direito de obter, nos termos da lei, os diversos documentos de viagem. (…)». Ora, salvo o devido respeito, parece-nos claro que a imposição ao cônjuge do Recorrente, que é residente permanente da RAEM, da obrigação de permanecer na Região pelo menos 183 dias em cada ano durante sete anos (o tempo necessário a que o Recorrente atinja o estatuto de residente permanente), como forma de evitar que o Recorrente perca o seu estatuto de residente não permanente, atinge desproporcionalmente (seja porque a imposição dessa restrição, seguramente, não é necessária, tendo em vista a concreta prossecução do interesse público, nem é proporcional em sentido estrito) o núcleo essencial daquela liberdade fundamental, podendo, por isso, reputar-se de contrária à lei e, portanto, inadmissível face ao disposto no artigo 111.º do CPA.
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que o presente recurso contencioso deve ser julgado procedente, anulando-se, em consequência, o acto recorrido.”
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Quid Juris?
Os argumentos constantes do douto parecer do Digno. Magistrado do MP junto deste TSI são pertinentes (apesar de certos domínios merecerem reflexões mais profundas), com os quais concordamos basicamente, e, entre eles destacamos os seguintes aspectos nesta sede:
a) – Merecem o nosso acolhimento os argumentos invocados pela Recorrente quando esta afirmou:
“22. 關於司法上訴人在澳門居留之目的及其可行性(第16/2021號法律第38條第2款第1項規定),當局僅僅依據司法上訴人之丈夫近期不在澳門便認定沒有與司法上訴人共同在澳生活;然而,如前所述,司法上訴人之丈夫沒有回澳是基於疫情所困,而不是已與司法上訴人分開或在其他地區居留,事實上,司法上訴人自獲批准在澳居留後,一直須其丈夫以澳門作為其家庭生活所屬地區至今。
23. 除了上述曾提及的司法上訴人的現時狀況(在澳門工作及租住社屋)及司法上訴人的丈夫已預約在澳門檢查身體等事實外,更重要的是,司法上訴人一直安分守紀,按照澳門法律及移民政策行事,與其丈夫老夫老妻以守法的態度面對生活,從沒有作出任何違法行為。
24. 就像外出工作或留學一樣,司法上訴人的丈夫有離境及做想做的事的自由,法律沒有限制之。
25. 再者,司法上訴人之丈夫已有明確計劃回澳,且回澳後必然與司法上訴人繼續共同在澳生活,這方面當局沒有任何證據能反證之。
26. 根據司法上訴人現時在澳工作以及租住社屋之狀況,明顯反映司法上訴人與其丈夫將在澳門長久生活甚至終老;因此,司法上訴人在澳居留的目的(夫婦團聚)的可行性必然是正面及肯定的,而且是毫無疑問的。
27. 故此,司法上訴人的狀況已符合上述第38條第2款(尤其第1項)之各方面規定,以這方面去考量的話,司法上訴人應獲得居留許可續期。”
b) - As medidas de combate à pandemia de SARS-Cov2 decretadas pelos Governos de Macau e de Hong Kong (e também das demais regiões vizinhas) restringiam a circulação das pessoas e das mercadorias. Relativamente às pessoas, esta tinham de observar a quarentena nos quartos do hotel (que não eram fácil de reservar tendo em conta a procura elevada das pessoas e a quantidade dos quartos para estes efeitos não eram muita), o que dificultava o regresso a Macau do cônjuge da Recorrente. Isto é do conhecimento público.
c) – Em terceiro lugar, as justificações apresentadas pela Recorrente são razoáveis e a Entidade Recorrida não chegou a apresentar provas bastantes para contrariar os factos alegados pela Recorrente, razão pela qual é de julgar procedente o recurso, anulando-se a decisão recorrida, por esta padecer dos vícios apontados.
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Síntese conclusiva:
Quando a Administração limitou-se a verificar que, objectivamente, durante um período de aproximadamente 16 meses, a Recorrente viveu em Macau e o seu cônjuge permaneceu fora de Macau (em Hong Kong), mas a verdade é que se não demonstra que essa separação física correspondeu, juridicamente, a uma verdadeira separação de facto e, portanto, que tal período tenha representado uma ausência de comunhão de vida, ou de uma coabitação em sentido juridicamente relevante. Com efeito, dos elementos colhidos no decurso do procedimento administrativo nada indicia que de um ou de ambos os cônjuges não houvesse o propósito de, assim que possível, voltarem a viver no mesmo lugar, em especial se ponderarmos que, no período em causa, eram muito significativos os constrangimentos à entrada e à saída da Região mercê das medidas de combate à pandemia de SARS-Cov2 decretadas pelo Governo, destacando-se, em particular, as medidas de observação médica por períodos de 14 dias em hotéis designados para quem viesse da Região Administrativa Especial de Hong Kong. Pode assim dizer-se que na aplicação da «norma» que construiu no exercício dos seus poderes discricionários, segundo a qual a falta de coabitação em Macau por um período superior a meio ano pode levar à não renovação da autorização de residência, a Administração incorreu em manifesto erro quando partiu da consideração de que o Recorrente deixou de coabitar com o seu cônjuge, pelo que ocorre o fundamento para a anulação do acto recorrido.
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Tudo visto, resta decidir.
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V - DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do TSI acordam em julgar procedente o recurso, anulando-se a decisão recorrida.
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Sem custas por isenção subjectiva.
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Notifique e Registe.
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RAEM, 02 de Março de 2023.
Fong Man Chong
(Relator)
Ho Wai Neng
(1o Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
(2o Juiz-Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto)
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2022-326-autorização-residência-mulher