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Processo nº 861/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data do Acórdão: 16 de Março de 2023

ASSUNTO:
- Marcas
- Concorrência desleal

SUMÁRIO:
- Havendo o titular do registo da marca renunciado expressamente a esta, a marca fica livre no mercado;
- Vindo essa marca a ser registada posteriormente por um terceiro, não pode outrem que havia usado a marca anteriormente por concessão do seu titular e que já há vários anos não comercializava os respectivos produtos vir invocar a concorrência desleal contra aquele que goza do registo da marca a seu favor.


______________________
Rui Pereira Ribeiro



Processo nº 861/2022
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 16 de Março de 2023
Recorrente: A
Recorrida: B Pharmaceutical Company Limited
*
ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:

I. RELATÓRIO
  
  B Pharmaceutical Company Limited, com os demais sinais dos autos,
  vem instaurar acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra
  A, também com os demais sinais dos autos.
  Pedindo a Autora que:
a) seja anulado o registo concedido da marca mista, com o elemento nominativo 鼻特清 (PEI TAK CHENG), efectuado em nome da Ré na Direcção dos Serviços de Economia, sob o nº N/147173, para a classe 5 (produtos farmacêuticos), por reprodução e imitação da marcas notórias da Autora, nos termos conjugados, entre outros, dos artigos 230º, nº 1, alínea b) e 214º, nº 1, alínea b), todos do RJPI, ou, caso assim não se entenda, anulada a mesma marca registada da Ré nos termos gerais previstos no artigo 48º ex vi do artigo 230º, nº 1, do RJPI, por evidente e clara má-fé da Ré no registo dessa marca;
b) Consequentemente, seja, também, anulado o respectivo título de registo da marca N/147173 da Ré;
c) Em consequência dos pedidos constantes das alíneas a) e b) supra, seja, ainda, a Ré impedida e/ou proibida de utilizar em Macau, na sua actividade comercial, a referida marca.
Subsidariamente, para o caso de não procederem os pedidos supra,
d) Deve o registo e utilização da marca da Ré com o nº N/147173 num produto igual ao da Autora serem considerados ilegais;
e) Deve a Ré ser condenada a abster-se de utilizar tal marca com o nº N/147173 no medicamento que lançou no mercado;
f) Deve a Ré ser condenada a abster-se de usar no seu medicamento o nome em chines 鼻特清 (PEI TAK CHENG);
g) Deve a Ré ser ainda condenada a abster-se de conferir ao seu medicamento a mesma apresentação do medicamento da Autora, por tais actos consubstanciarem actos de concorrência desleal, proibidos por lei, nos termos dos artigos 156º, 158º, 160º e 163º, nº 2, todos do Código Comercial.
Ainda e em qualquer caso,
h) Seja a Ré condenada em custas e procuradoria condigna.
  Proferida sentença, foi a acção julgada procedente e, em consequência, anula-se o registo e o respectivo título da marca registada pela Ré A sob o número N/147173 e proíbe-se a Ré de usar o sinal registado na sua actividade comercial na RAEM.
  Não se conformando com a decisão proferida vem a Ré interpor recurso da mesma, formulando as seguintes conclusões:
  Das conclusões da matéria de facto
1. O recurso incide sobre a sentença de 28/04/2022 e decisão sobre a matéria de facto de 11/03/2020.
2. A recorrente considera que, com base nos seguintes testemunhos, os referidos quesitos 22.º a 24.º devem-se considerados não provados:
a) 1.ª gravação, minutos 00:00 a 20:50 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Trans1ator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 10.12.27 (3QAS9JHW03520319);
b) 2.ª gravação, minutos 00:00 a20:57 - Translator2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 10.33.34 (3QAT$$1 W03520319);
c) 3.ª gravação, minutos 00:00 a 24:30 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 10.54.38 (3QATM-9W03520319);
d) 4.ª gravação, minutos 00:00 a 23:35 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 11.19.15 (3QAUHNL 103520319);
e) 5.ª gravação, minutos 00:00 a 01:05 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 11.43.19 (3QA V8%BG03520319);
f) 6.ª gravação, minutos 00:00 a 17:17 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 11.44.30 (3QAV9M8103520319);
g) 7.ª gravação, minutos 00:00 a 02:25 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 12.01.51 (3QAW$BOW03520319);
h) 8.ª gravação, minutos 00:00 a 13:11 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 12.04.21 (3QA W)TOW03520319);
i) 9.ª gravação, minutos 00:00 a 04:57 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 12.17.37 (3QA WFDJW03520319);
j) 10.ª gravação, minutos 00:00 a 14:06 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20- 0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 12.22.58 (3QA WMIFG03520319);
k) 11.ª gravação, minutos 00:00 a 12:03 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20- 0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 12.37.10 (3QAX­Y7W03520319);
l) 12.ª gravação, minutos 00:00 a 07:16 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 12.49.21 (3QAXF)LW03520319);
m) 13.ª gravação, minutos 00:00 a 03:16 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.00.22 (3QB!!E1W03520319);
n) 14.ª gravação, minutos 00:00 a 02:35 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.03.44 (3QB!(I^@W03520319);
o) 15.ª gravação, minutos 00:00 a 03:01 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.06.25 (3QB!1H4G03520319);
p) 16.ª gravação, minutos 00:00 a 01:50 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.09.41 (3QB!5XFW03520319);
q) 17.ª gravação, minutos 00:00 a 03:59 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2Recorded on 14-Feb-2022 at 16.11.42 (3QB!8II103520319);
r) 18.ª gravação, minutos 00:00 a 01:25 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.15.47 (3QB!C}3G03520319);
s) 19.ª gravação, minutos 00:00 a 05:03 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV2-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.17.22 (3QB!F­G103520319);
t) 20.ª gravação, minutos 00:00 a 01:17 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.22.30 (3QB!L{P103520319);
u) 21.ª gravação, minutos 00:00 a 28:09 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.23.53 (3QB!NTCG03520319);
v) 22.ª gravação, minutos 00:00 a 09:44 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 16.52.13 (3QB#I_AG03520319);
w) 23.ª gravação, minutos 00:00 a 04:47 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 17.02.03 (3QB$$RJG03520319);
x) 24.ª gravação, minutos 00:00 a 00:39 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 17.06.56 (3QB$21DW03520319);
y) 25.ª gravação, minutos 00:00 a 00:08 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 17.07.40 (3QB$316103520319);
z) 26.ª gravação, minutos 00:00 a 00:08 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 17.07.56 (3QB$3GP103520319);
aa) 27.ª gravação, minutos 00:00 a 43:03 - Translator 2 (file: 22.2.l4 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 17.08.15 (3QB$3}@G03520319);
bb) 28.ª gravação, minutos 00:00 a 11 :04 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 17.51.48 (3QB%I9MW03520319);
cc) 29.ª gravação, minutos 00:00 a 01:25 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 18.02.57 (3QB(%X8G03520319);
dd) 30.ª gravação, minutos 00:00 a 36:56 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 18.04.31 (3QBO()}2W03520319);
ee) 31.ª gravação, minutos 00:00 a 03:22 - Translator 2 (file: 22.2.14 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 14-Feb-2022 at 18.41.33 (3QB)5P1G03520319);
ff) 32.ª gravação, minutos 00:00 a 12:39 - Translator 2 (file: 22.3.3 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 03-Mar-2022 at 15.32.32 (3R(8!O1103520319);
gg) 33.ª gravação, minutos 00:00 a 16:37 - Translator 2 (file: 22.3.3 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 03-Mar-2022 at 15.45.17 (3R(8@PL103520319);
34.ª gravação, minutos 00:00 a 00:37 - Translator 2 (file: 22.3.3 CV1-20-0035-CAO#18\Translator 2\Recorded on 03-Mar-2022 at 16.02.08 (3R(9$W$103520319).
3. Além da prova produzida que vai contra os factos em causa serem dados como provados, considera ainda a Ré que os mesmos deviam ser considerados torpes nos termos do art. 479.º n.º 2 do CPC, pelo que não poderiam ser objecto de depoimento de parte.
Das conclusões da matéria de direito
4. A Autora faz basicamente 3 pedidos distintos, subsidiários, visando o mesmo resultado, ou seja, que a Ré fique de qualquer modo impedida de utilizar determinado sinal distintivo que a Autora considera pertencer à mesma, o que nos faz questionar se a Autora tinha perfeita noção do suporte jurídico da sua pretensão.
5. Ainda que uma sociedade doutra jurisdição possa ser titular de direitos de propriedade intelectual em Macau, questão diferente é referir que actua em concorrência desleal no mercado da RAEM e relativamente a uma entidade local.
6. O art. 157.º n.º 1 do Cód, Com. refere que as normas se aplicam a quem participa no “mercado”, o que entendemos refere-se a Macau pois que esta jurisdição não tem pretensões de aplicação extra-territorial.
7. A Autora, como vem provado, “exporta” diversos produtos para Macau, mas não procede à sua comercialização directa (perante o cliente final) na região.
8. Nos factos w) e y) consta que a Autora em Macau vendeu os seus produtos perante apenas dois distribuidores, que por sua vez comercializam directamente com terceiros em Macau.
9. Quanto muito, a firma C é a (única cliente) da Autora e esta permanece leal relativamente a esta última, pelo que não houve um desvio de clientela (ou sequer potencial) para se possa concluir pela concorrência desleal.
10. A Autora é uma sociedade com sede em Hong Kong, não tendo administração principal em Macau.
11. Nos termos do art. 178 n.º 1 do Cód. Comercial, as entidades que exerçam actividade permanente em Macau ficam sujeitas à lei do registo, nomeadamente o art. 38.º do Cód. Reg. Comercial.
12. Esse registo tem relevância por diversos motivos além do relevante pagamento de impostos, mas também a tutela da confiança de terceiros, a nível de se poder contactar ou mesmo reclamar deveres em decorrência dos actos practicados em Macau.
13. Ademais, no n.º 4 desse art. 178.º do Cód. Com, costa que o MP pode a requerimento do Ministério Público ou qualquer interessado ordenar a cessação da actividade e a liquidação do património na RAEM das sociedades que não cumpram o referido.
14. Seria injusto para os operadores de Macau, devidamente em conformidade com as disposições aplicáveis, estarem a competir com terceiros que não tinha de observar todas as regras que aqueles estão sujeitos - desde logo, a nível de impostos, os quais parece que a Autora, pelo menos a nível de imposto complementar, nunca pagou em Macau.
15. Para tal, não cremos suficiente apenas que a Autora tenha registado os seus medicamentos junto dos Serviços de Saúde de Macau.
16. Finalmente, estando em causa a indústria a concorrência em produtos farmacêuticos, parece-nos que ambos os envolvidos teriam de ter uma licença para exercício de actividade farmacêutica, sob pena de estarem a actuar ilegalmente.
17. É certo que a Autora não tem a referida licença decorrente do Decreto-Lei n.º 58/90/M, factualidade extensível à Ré, pelo que se têm por deveriam infelizes as conclusões referidas na al. z) dos factos.
18. Face ao exposto, cremos ter sido violado o art. 157.º do Cód. Comercial, razão pela qual deve ser a decisão anulada e substituída por outra que opte pela improcedência dos pedidos da Ré.
19. Deu-se por provado que entre finais de 2015 e Maio de 2019, a Autora não exportou qualquer produto para Macau e que a Ré procedeu ao registo da marca em 2018, tendo desde então começado a usar essa mesma marca em produtos comerciais.
20. Essa dissonância temporal demonstra que quando a Ré iniciou a referida actividade não estava em concorrência com a Autora porque esta nem sequer tinha actividade, quanto mais poder concluir-se pela existência de uma situação de concorrência desleal!
21. Para ultrapassar essa contradição, o Tribunal a quo refere que a Ré teria um, admite-se, dever de consultar a Autora, o que se tem por uma extrapolação das obrigações que um operador comercial teria, e especialmente perante um terceiro que nunca teve presença directa em Macau, nem os respectivos produtos aqui circulavam há 3 anos.
22. E se a Autora tinha a intenção de regressar ao mercado, não deveria a mesma proceder ao registo da sua marca para proteger o suposto “mercado” que havia supostamente desenvolvido quando os seus produtos circulavam em Macau.
23. Da conduta ética da Ré não se podem tirar consequências jurídica e certamente não se deve tutelar a negligência da Autora em não registar o seu suposto sinal.
24. Pelo que, considera-se ter sido violado o art. 156.º n.º 1 Cód. Comercial no sentido em que não existe uma actividade concorrencial entre as partes para que se pudesse extrair a conclusão que a Ré actua em concorrência desleal.
25. Para prova da concorrência desleal é indispensável a prova da subtracção de clientela, efectiva ou potencial, que resultaria num prejuízo para a parte contra quem o infractor realiza a dita concorrência desleal.
26. No proc. 927/2017, este TSI concluiu que é necessário provar a existência de conexão entre o comportamento do concorrente e o desvio de clientela - cremos que não há factos que permitam chegar a essa conclusão.
27. Nada a nível factual vem referido supra a suposta clientela da Autora e que a mesma tenha sido ou podia ter sido desviado pela Ré.
28. Mesmo quanto à Ré, apenas consta que começou a comercializar determinado produto, nada se referindo se os consumidores finais eram os mesmos.
29. Tal é a indefinição que até se poderia equacionar que, sendo o trade dress confundível (como refere o Tribunal a quo), a suposta comercialização de produtos pela Ré teria gerado mais clientela na verdade para ambas as partes.
30. Por exemplo, devia-se ter provado que os consumidores finais numa farmácia admitiam comprar um ou outro produto conforme a disponibilidade (embora como se verá, não pudessem adquirir livremente os produtos em causa).
31. Ainda que os consumidores finais pudessem adquirir o produto na farmácia, sempre se diria que a ausência da Autora do mercado pelo período de 3 anos, no sector farmacêutico, leva a um desmoronar da clientela gerada, pois que aqueles teriam de procurar uma alternativa. Não havendo clientela, não pode haver desvio da mesma.
32. Nesse âmbito, é absolutamente fulcral ter em consideração que ambos os medicamentos referidos nos autos estão sujeitos a receita médica (PMO, ou seja, Prescription Medicine Only), cfr. referido no registo de medicamentos junto dos Serviços de Saúde de Macau.
33. Ainda que houvesse então confusão, como conclui o Tribunal a quo, a nível do trade dress, o consumidor final nunca teria a possibilidade de optar entre os medicamentos porquanto os mesmos estão sujeitos a prescrição.
34. Os profissionais de saúde, com formação na área, certamente que não se iriam iludir pela aparência dos produtos - é até ofensivo à capacidade dos mesmos fazer qualquer sugestão nesse sentido (não é o caso na decisão, pois que não se pronuncia a mesma sobre este facto fucral),
35. Em produtos farmacêuticos sujeitos a prescrição médica, sendo a mesma feita por profissionais especializados, a confundibilidade a nível de aspecto e características técnicas não é certamente a mesma que seria relativamente a um comum cidadão.
36. Nesse âmbito, tem desde logo bastante relevância o fabricante do medicamento, sendo distinto em ambos os produtos referenciados nos autos.
37. Ademais, se embora haja um princípio activo comum, a restante composição do medicamento é diversa, pois que num caso existem ainda 2mg de clorfeniramina e noutro 2mg de dexclorfeniramina, contra apenas 0.25mg apenas de betametasona em ambos.
38. Para concluir sobre o potencial desvio de clientela, sempre teriam de haver factos relativos à eventual irrelevância dos demais princípios activos dos medicamentos em causa que nos permitisse concluir que são ambos análogos.
39. Cremos que não há factos que permitam minimamente concluir pelo desvio de clientela, requisito que este Tribunal determina como necessário para concluir pela existência de concorrência desleal.
40. Inclusivamente este Tribunal já referiu que até perante uma intenção manifesta de cópia, ainda assim é necessário demonstrar que há um desvio efectivo ou potencial de clientela.
41. De facto, o Tribunal a quo concluiu pela suposta intenção imprópria da Ré em pretender praticar actos de confusão, mas nada, salvo melhor opinião, se refere sobre o potencial ou efectivo desvio de clientela.
42. O Tribunal não refere norma específica, referindo-se, cremos, em equívoco ao art. 134.º do Cód. Comercial, porquanto crê-se pretender aludir-se ao art. 156.º. Dito isto, seguindo a alegação da Autora de que seriam aplicáveis os arts. 158.º e 159.º, uma vez que entendemos que não o são, temos estas normas por violadas na decisão recorrida.
43. É a própria Autora que considera que nos termos da legislação de Macau a concorrência desleal não serve de fundamento para a anulação do registo da marca - tem aquela toda a razão neste ponto!
44. Dito isto, o Tribunal a quo considerou em contrário, ou seja, que a concorrência desleal servia para anular o registo da marca.
45. Desde logo, o Reg. Jurídico da Prop. Industrial é um diploma especial em relação ao Cód. Comercial, pelo que se o RJPI não o prevê, não pode o registo de uma marca ser anulada com base no Cód. Comercial.
46. O próprio RJPI faz menção à concorrência desleal, nomeadamente no art. 9.º n.º 1 al. c) no sentido que é fundamento para a recusa de concessão de direitos de propriedade industrial.
47. O ponto é que o art. 230.º do RJPI que refere as situações em que se pode pedir a anulação do registo de marca faz remissão para o art. 214.º n.º 1 b) e c) e n.º 2, apenas, não incluindo, portanto, o art. 214.º n.º 1 al. a), que por sua vez alude ao dito art. 9.º.
48. Ou seja, a anulação do registo de marca com fundamento na concorrência desleal parece-nos ter sido expressamente excluído.
49. Isto ao contrário do que sucede em Portugal, como aliás referiu a Autora, desde a aprovação do Código de Prop. Industrial de 2003.
50. Não parece que no âmbito do Decreto-lei 16/95 de Portugal se admitisse a anulação do registo de marca com base na concorrência desleal, diploma este que estava em vigor quando é aprovado o RJPI de Macau.
51. Assim, consideramos também ilegal a aplicação do art. 171.º do Cód. Comercial para anular o registo da marca da Ré.
  Contra-alegando veio a Autora/Recorrida pugnar para que fosse negado provimento ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
I. Vem o presente Recurso contra a sentença proferida em 28 de Abril de 2022, a fls. 595 a 608 dos presentes autos, que julgou procedente a acção movida pela Autora e ora Recorrida e, consequentemente, decretou a anulação do registo e respectivo título da marca registada pela Ré A sob o n.º N/147173, proibindo a respectiva utilização na actividade comercial da Recorrente na RAEM.
II. O tribunal a quo entendeu que o registo e utilização da referida marca da Ré num produto igual ao da Autora eram ilegais por consubstanciarem actos de concorrência desleal, proibidos por lei, nos termos dos artigos 156º, 158º, 160º e 163º, nº2, 164.º todos do CCom, tendo decretado a respectiva anulação ao abrigo do artigo 171.º do mesmo código.
III. A Recorrente discorda da decisão do tribunal a quo, impugnando quer a decisão sobre a matéria de facto como a decisão de direito.
IV. No seu recurso quanto à matéria de facto, a Recorrida entende que os quesitos 22º a 24º da Base Instrutória não deveriam ter sido considerados provados, como foram, mas antes não provados, sustentando-se, para tanto, na totalidade a prova produzida em audiência de discussão julgamento, para o que indica todos os registos das respectivas gravações, cada um deles na íntegra.
V. A Recorrente não só não aponta qualquer erro manifesto à decisão de facto, como nem sequer lhe aponta qualquer erro concreto, limitando-se a alegar a sua discordância da mesma, por razões que também não indica pois também omite qualquer indicação de conteúdo e ou análise crítica de algum dos depoimentos produzidos, sem demonstrar minimamente porque é que, no seu entender, tais depoimentos deveriam conduzir a uma decisão diversa da que foi tomada.
VI. Cumpria à Recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa, como fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam um resultado diverso, mecanismo cuja utilização séria não se compadece com a remissão genérica para toda a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, bem como extractar, nas suas alegações, os meios probatórios em que se funda para afirmar que se impunha uma decisão diversa da impugnada, o que não fez, tal como, salvo melhor entendimento, decorre da Nota Explicativa da Comissão de Revisão do Código de Processo Civil e, bem assim, da jurisprudência de macau supra citada.
VII. A Recorrente não cumpre o ónus de quem impugna a decisão de facto que resulta do disposto nos artigos 599º do CPC, conjugado com o também já referido artigo 629º, e ainda, também do 598º, que impõe o ónus de alegar e formular conclusões quanto às razões pelas quais entende que a decisão da matéria de facto foi mal julgada, em termos que permita a este Venerando Tribunal alterar a matéria de facto ao abrigo da alínea a) do nº1, e nº2, do artigo 629º do mesmo Código, devendo o recurso da Recorrente ser rejeitado ou declarado improcedente nesta parte, mantendo-se integralmente a decisão de facto proferida pelo Tribunal a quo.
VIII. Caso assim não se entenda, sempre terá que levar-se em conta que está em causa a livre convicção do tribunal a quo, formada nos termos previstos no nº 2 do artigo 556º e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova preceituado no artigo 558º, ambos do CPC.
IX. Perante a fundamentação do Tribunal a quo quanto à decisão sobre a matéria de facto supra transcrita, facilmente se percebe que foram observados os princípios e os parâmetros legais quanto à valoração das provas e à força probatória das provas e que a decisão de facto se apresenta coerente em si e não se mostra manifestamente contrária às regras da experiência de vida e à logica das coisas, pelo que a convicção do Tribunal a quo, colocado numa posição privilegiada por força do princípio da imediação, não é síndicável, sendo ainda difícil vislumbrar por que razão ou em que medida deveriam os mesmos factos ter sido julgados de modo diverso do que foram - razões que a Recorrente também não explica
X. A Recorrente entende ainda que os referidos quesitos 22.º a 24.º são factos torpes para efeitos do art. 479.º, n.º 2 do CPC, pelo que não seriam sequer admissíveis como depoimento de parte, visto levantarem insinuações sobre a Ré, nomeadamente sobre a sua reputação e bom nome, enquanto empresária, sugerindo que a mesma não actua de boa fé por actuar em suposta concorrência desleal”
XI. Os factos em causa não podem ser qualificados como infames, imorais ou obscenos, ou “ofensivos dos bons costumes”, nem objectivamente nem levando em causa que o objecto dos presentes autos é precisamente apreciar-se se se verificou má fé ou concorrência desleal com os actos de registo e utilização da com o nº N/147173 num produto igual ao da Autora, pelo que os factos em causa constituírem realidades cuja verificação teria que ser demonstrada nos presentes autos para que pudessem ser apreciados os pedidos subsidiários feitos pela Autora.
XII. Nada há a apontar à decisão que julgou provados os quesitos 22º a 24º da Base Instrutória, estando mais uma vez apenas em causa, a sindicância da livre convicção do Tribunal a quo, pondo em causa a convicção do tribunal formada nos termos previstos no nº 2 do artigo 556º e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova preceituado no artigo 558º, ambos do CPC.
XIII. Quanto à decisão de direito, entende a Recorrente que a decisão recorrida violou as normas aplicáveis, em razão de quatro argumentos principais: 1) inexistência de actividades concorrentes entre a Autora e a Ré, visto entender que, por ser a Autora uma sociedade constituída no exterior da RAEM, não opera neste mercado, 2) a inexistência de actividade na RAEM pela Autora, 3) a inexistência de desvio de clientela e a 4) insusceptibilidade de a concorrência desleal conduzir à anulação da marca.
XIV. A Recorrente entende que a Recorrida, sociedade constituída na RAEK, por não ter na RAEM a sua sede, administração principal ou representação permanente, e “cá não pagar impostos” não opera directamente no mercado de Macau e nem pode beneficiar das normas do Código Comercial que regulam a actividade de empresários que operam em Macau.
XV. O que o artigo 157.º do CCom. dispõe é que as regras da concorrência desleal se aplicam aos empresários e a todos aqueles que “participam no mercado”, independentemente da sua origem, proveniência, permanência e/ou relações de distribuição, agência ou quaisquer outras, e, assim, quer o sujeito se encontre do lado activo ou passivo das relações de mercado e independentemente da profundidade do vínculo e conexão jurídica que têm com a RAEM, ou seja, independentemente de se tratar de consumidor ou comerciante não residente de Macau ou de pessoa colectiva que não exerça nesta região a sua actividade principal.
XVI. Tendo ficado provado que a Autora é produtora/fabricante de um medicamento em Hong Kong, mas que, através parceiros comerciais de Macau, vende para o mercado local há vários anos e em grandes quantidades (cfr. alíneas b), n), o) a v), w), e y) dos factos provados) dúvidas não podem subsistir de que a Autora a Autora participa activamente no mercado local de venda de medicamentos e produtos farmacêuticos, e, como tal, beneficia da protecção do regime relativo à concorrência desleal.
XVII. A Recorrente também entende não existirem actividades concorrentes entre si e a Autora atendendo à circunstância de esta ter suspendido a exportação dos seus produtos para Macau entre finais de 2015 e Maio de 2019.
XVIII. Sucede que o facto da suspensão da produção dos seus medicamentos ou não equivale à cessação, ainda que temporária, da sua actividade, uma vez que foi justamente para melhorar, qualitativa e quantitativamente, a sua produção que se viu forçada a suspender a produção, o que em si, representa o contínuo exercício da sua actividade, não estando sequer em causa apenas o acto de registo da marca da Ré sub judice mas também a sua utilização num produto medicamentoso com a mesma finalidade, com composição substancialmente idêntica (cfr. alíneas h) e z) dos factos provados) e com aparência insuceptível de distinção do medicamento criado, produzido e há muito registado para ser comercializado em Macau pela Recorrente (cfr. alíneas c), k), l) e n) dos factos provados), e, assim, em total apropriação da substância e imagem deste.
XIX. Em circunstâncias que revelam evidente que aquela bem sabia que a Autora comercializava em Macau o medicamento identificado pelo sinal que veio a registar (cfr. alíneas aa) e bb) da lista de factos provados), bem sabendo também que a Autora apenas não tinha efectuado o registo dessa sua marca em Macau pois quem a tinha registado era a Sra. D (cfr. alínea cc) dos factos provados), proprietária da firma C que havia sido a representante comercial da Autora em Macau até 2015 (cfr. alínea w) da lista dos factos provados).
XX. A isto acresce que, durante o referido intervalo de tempo, os produtos da Recorrida anteriormente exportados para a RAEM cá continuaram à venda e a ser escoados pelos respectivos distribuidores, produção e exportação que retomou em Maio de 2019, sendo que a marca sub judice só viria a ser concedida à Ré em Dezembro do mesmo ano 2019,
XXI. A Recorrida entende que, em face dos factos provados, o dever de contactar a Recorrida era um mero dever de cortesia cuja violação não origina consequências jurídicas.
XXII. Porém, o dever de desenvolver a sua actividade e actuar no mercado de forma honesta não se confunde com um mero dever de cortesia ou com um mero dever ético ou moral cuja observação não origina consequências jurídicas antes sendo uma obrigação de todos os sujeitos que participam no mercado, como decorre expressamente da cláusula geral prevista no artigo 158.º do CCom., cuja finalidade é a protecção do interesse colectivo dos consumidores e a manutenção da ordem concorrencial do mercado, protegendo também o interesse privado dos empresários e o interesse publico da RAEM, como realça a boa doutrina e jurisprudência supra citadas, da qual se destaca o acórdão deste TSI n.º 657/2017, onde expressamente se afirma que pode haver concorrência desleal mesmo que um dos “concorrentes” não tenha marca registada na RAEM, da mesma maneira que a existência de um conflito entre marcas regista das não envolve necessariamente a ideia de concorrência desleal.
XXIII. Cumpria à Recorrente, enquanto operadora no mercado da RAEM, conhecer os deveres jurídicos que detém nessa qualidade e adaptar as suas práticas comerciais à disciplina vigente na RAEM, onde os actos de usurpação do mérito alheio e o desenvolvimento das actividades de forma desonesta, confundido e enganando o consumidor e beneficiando do esforço e mérito alheios, são reprovados e proibidos.
XXIV. A Recorrente aponta ainda à decisão recorrida houve que não se demonstrou nos presentes autos ter havido um desvio de clientela dos seus clientes, efectivo ou potencial, para tanto alegando que o consumidor não teria sequer possibilidade de adquirir o medicamento na farmácia, pois que se trata de medicamentos sujeitos a prescrição médica.
XXV. Ficou no entanto bem demonstrado nos autos que que os medicamentos são prescritos e vendidos na RAEM. ou pelo nome comercial sob o qual estão registados ou em função da(s) substância(s) que o compõem, tanto que ficou demonstrado que, neste caso, o consumidor adquire, por mote próprio ou a sugestão do farmacêutico, qualquer dos medicamentos à venda na farmácia com a substância prescrita (como se pode confirmar, designadamente, pelos registos de gravação dos depoimentos da 1.ª testemunha da Recorrida e da 1.a testemunha da Recorrente, ambos farmacêuticos, o segundo funcionário dos Serviços de Saúde na audiência de 14 de Fevereiro de 2022 [translator 1] às 10.12,45, concretamente entre os minutos 50:30 e 51:17, de 14 de Fevereiro de 2022 [translator 1] às 10.12,45, concretamente entre os minutos 48:10 e 51:17, e de gravação da audiência de 14 de Fevereiro de 2022 [translator 1] às 16.16.01, concretamente entre 01:12.38 e 01:13.07), tendo ainda ficado demonstrado ser frequente os consumidores dirigem-se às farmácias solicitando medicamentos pelo respectivo nome e exibindo fotografias dos mesmos (como se pode confirmar pelos registos de gravação da audiência de 14 de Fevereiro de 2022 [translator 1] às 10.12,45, concretamente entre os minutos 48:27 e 48:50 e 49: 12 a 49:35)
XXVI. Os medicamentos da Recorrente e da Recorrida são ambos compostos por 0,25mg da substância betametasona, à qual acresce, naquele 2mg de clorfeniramina, e neste 2mg de dexclorfeniramina.
XXVII. As referidas dexclorfeniramina e clorfenirarnina são substâncias (anti­histamínicos) com igual composição química e com igual actuação e finalidade, sendo frequentemente descritos como sinónimos, tendo total identidade no princípio activo betametasona (cfr. alíneas h) e z) dos factos provados) a qual caracteriza ambos os medicamentos aqui em causa e que, sendo o objecto da prescrição deixa ao critério do farmacêutico e do consumidor a opção por um ou outros medicamentos.
XXVIII. A 1.ª testemunha da Ré disse muito claramente que apesar da diferença no nome das substâncias dexclorfeniramina e c1orfeniramina, ambos os medicamentos são iguais e destinados à mesma finalidade (como se pode confirmar pelos registos de gravação da audiência de 14 de Fevereiro de 2022 [translator 1] às 16.16.01, concretamente entre 01:13.51 e 01:14.25),
XXIX. Acresce que, nos termos do artigo 156.º, n.º 1 do CCom., para que os comportamentos em comparação constituam concorrência desleal, não tem que se verificar qualquer desvio da clientela efectivo, bastando que a actividade seja praticada com “fins concorrenciais” (artigo 156.º, n.º 1 do CCom.) finalidade que se presume, o que se alcança quando os dois sujeitos, oferecendo produtos iguais, idênticos ou sucedâneos, visam a mesma clientela.
XXX. afigura-se lógica e evidente a intenção da Ré de se aproveitar do esforço e sucesso da Autora na comercialização do medicamento que lançou no mercado, identificando-o pelos sinais que são nada mais do que cópia integral e flagrante dos que a Autora usa há muitos anos, sinais criados pela Recorrida e com capacidade distintiva do produto que comercializa (cfr. alíneas h), j), k) e z) dos factos provados).
XXXI. a Recorrida, ao lançar no mercado de Macau um medicamento com o mesmo nome comercial, marca e imagem do medicamento da Autora, cria no público consumidor a convicção de que se trata do mesmo medicamento, levando-o a adquiri-lo, convencido de que está a adquirir o mesmo medicamento da Autora, beneficiando assim da reputação que a Autora granjeou e granjeia há vários anos em Macau, no específico mercado de medicamentos,
XXXII. Para além da semelhante evidência e notória confusão entre a apresentação e designação de ambos, ficou provado nos presentes autos que os medicamentos em apreço têm a mesma finalidade, e que a Ré tinha perfeito conhecimento que a Autora utilizava os referidos sinais na comercialização do seu medicamento há muitos anos, pelo que é evidente que outra intenção não tinha senão tentar obter pelo registo da marca direito que sabia ser usado pela Autora para distinguir o seu medicamento, através da sua imitação, evidentemente aproveitando-se da reputação, imagem e clientela que a Autora e o seu medicamento gozam no mesmo grupo de consumidores, através da confusão que a imitação nestes cria,
XXXIII. O que, como bem se referiu na decisão recorrida, o ordenamento da concorrência vigente em Macau não permite, pois que ao direito repugnam as actuações parasitárias e servis em prejuízo dos concorrentes e dos consumidores, como a da ora Recorrida, o que a decisão recorrida bem reconheceu e julgou.
XXXIV. A Recorrida considera incorrecta a aplicação do artigo 171.º do CCom para suportar a decisão de anulação do registo da marca sub judice, com fundamento na circunstância de, sendo o RJPI um diploma especial em matéria de marcas que, no seu artigo 230.º não alude expressamente à concorrência desleal como fundamento de anulação de uma marca, tal não poderia ser declarado pelo tribunal a quo.
XXXV. Sendo certo que como a Recorrente referiu anteriormente, inexiste qualquer disposição no RJPI de Macau - ao contrário do que sucede em Portugal desde a entrada em vigor do Código de Propriedade Industrial de 2003 -, qualquer disposição que expressamente se refira à concorrência desleal como fundamento de anulação de uma marca, tal não significa que a possibilidade de declarar tal invalidade não decorra de outras disposições quer do RJPI, designadamente do conjugadamente disposto nos artigos 230.º, n.º 1, e 48.º, quer do CCom, designadamente do seu artigo 171.º, como se entende na decisão recorrida.
XXXVI. Uma vez que o artigo 171.º do CCom impõe o poder-dever da sentença que declare a existência da prática de actos de concorrência desleal determinar a proibição da continuação da referida prática e indicará os meios oportunos para eliminar os respectivos efeitos, bem se compreende que se admita a destruição dos actos que consubstanciem concorrência desleal deva ser feita através da eliminação do registo de uma marca ilegitimamente feito, sob pena de a norma não ter sentido e aplicação útil, sentido e utilidade de aplicação que vem reforçado no artigo 10.º bis da Convenção de Paris.
XXXVII. A circunstância de o RJPI ser norma especial relativamente às normas do CCom, apenas significa que as causas especiais de anulação previstas de anulação no RJPI são insusceptíveis de aplicação analógica, nos termos do artigo 10.º do Código Civil, e não que as normas gerais de direito da concorrência previstas no CCom não se aplicam aos direitos privativos de propriedade industrial, visto serem estas aplicáveis a todos os actos e empresários comerciais que pratiquem actos de concorrência desleal (cfr. artigo 156.º e 157.º do CCom) independentemente do particular ramo de direito especialmente convocado.
XXXVIII. Se em Portugal só com a entrada em vigor do Código da Propriedade Industrial de 2003 a concorrência desleal passou a ser fundamento expresso de anulação da marca, a verdade é que, salvo melhor entendimento, inexistia no Código da Propriedade Industrial de 1995 e, bem assim, no seu antecessor, ou na legislação comercial portuguesa da época, qualquer norma de previsão semelhante à do artigo 171.º do CCom. de Macau supra citado e que fundamentou a decisão recorrida.
XXXIX. Para além disto, a circunstância de o RJPI de Macau não prever norma que expressamente estatua a anulabilidade de marca com fundamento na concorrência desleal, o certo é que tal não implica que a referida anulação não seja defensável no âmbito do referido regime desde logo como expressão que é da má fé do titular da marca.
XL. Defendia Oliveira Ascensão a propósito do Código da Propriedade Industrial ("CPI") de 1940 (onde não existia a norma posteriormente consagrada no artigo 266.º, 1 do CPI de 2003), que veio esclarecer as dúvidas então existentes entre a doutrina e jurisprudência a propósito da possibilidade de se obter a anulação da marca com fundamento na concorrência desleal, prevendo-a expressamente), referindo que “(...) pode impugnar-se o registo realizado com fundamento na má fé de quem realiza o registo, com conhecimento do uso pré-existente. Poderá para isso invocar-se a exceptio doli, ou o abuso de direito”.
XLI. Acompanhando de perto a argumentária do ilustre citado professor, a aquisição constitutiva do direito à marca supõe a boa fé, nos termos gerais pelo que se o registante está de má fé, a situação não se consolida nunca, o direito à marca continua a pertencer a quem o adquire por o ter adoptado.
XLII. Dispõe o artigo 9.º, n.º 1, alínea c) do RJPI que a concessão do registo dos direitos de propriedade industrial deve ser recusada quando se verifique “o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal, ou que esta é possível independentemente da sua intenção, referindo-se no artigo 230.º, n.º 1 que os registos de marca são anuláveis nos casos previstos no artigo 48.
XLIII. Por seu turno, nos termos do artigo 48.º, n.º 1, os títulos de propriedade industrial são total ou parcialmente anuláveis quando forem violadas as disposições que definem a quem pertence o direito de propriedade industrial e, em geral, quando tiverem sido concedidos com preterição dos direitos de terceiros, fundados em prioridade ou outro titulo legal, e, no n.º 4 deste artigo que o direito de pedir a anulação de título obtido de má fé não prescreve.
XLIV. O registo feito nas circunstâncias provadas nos presentes autos, só pode, de uma perspetiva de experiência comum e de acordo com a lógica das coisas, ter subjacente a intenção de obter benefícios ilegítimos (no que respeita ao prestígio, publicidade, clientela, enfim, todos os benefícios naturalmente da comercialização séria de um produto por, pelo menos, mais de uma dezena de anos), aproveitando a confusão que evidentemente gera com os produtos da A., o que evidentemente, só se pode considerar ter sido feito de má fé e não pode merecer a tutela do direito.
XLV. Repugna ao mais primário sentido de justiça e à luz dos princípios do direito da propriedade industrial, admitir que a lei, embora preveja expressamente (i) ser o reconhecimento de que o requerente pretende fazer concorrência desleal ou que esta é possível independentemente da sua intenção (nos termos do artigo 9.º, n.º 1, como infra melhor se exporá), (ii) que os títulos de propriedade industrial são total ou parcialmente anuláveis quando o titular não tiver direito a eles, nomeadamente: quando o direito lhe não pertencer (art. 48.º, n.º 1) e (iii) que o direito de pedir a anulação da marca registada de má fé não prescreve (art. 48.º, n.º 4), e, a final, se negue esse direito no caso dos autos, apesar de se ter provado que a Ré tendo conhecimento da prévia utilização dos sinais sub judice pela Autora e, assim, de má fé, e em concorrência desleal registou uma marca que sabia ser usada por ela.
XLVI. Pelo exposto, mesmo que fosse de entender que a concorrência desleal não seria fundamento de anulação da marca sub judíce ao abrigo do disposto no artigo 171.º do CCom., no que não se concede, sempre seria de se entender que seria fundamento da anulação decretada, ao abrigo do disposto nos artigos nos artigos 48.º, n.º1, e n.º 4, 201.º, n.º1, 230.º, n.º1 todos do RJPI, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo.

  Foram colhidos os vistos.
  
  Cumpre, assim, apreciar e decidir.
  
II. FUNDAMENTAÇÃO
  
  Ataca a Recorrente a decisão sobre a matéria de facto quanto aos quesitos 22º a 24º alegando erro na resposta e que os mesmos são torpes face ao disposto no artº 479º nº 2 do CPC pelo que não devia ser admitido o depoimento de parte aos mesmos.
  Ora, caso se conclua que se tratam de factos torpes não é admitido o depoimento de parte, pelo que, deve começar por conhecer-se desta matéria e após, caso improceda, pela impugnação da decisão da matéria de facto quanto a estes.
  Para facilidade de análise aqui se reproduzem os quesitos em causa e suas respostas:
  22.º
  A ré sabia que a autora há muitos anos comercializava o medicamento de marca 鼻特清 (Pei Tak Cheng) em Macau?
  Provado que a ré sabia que a autora comercializava em Macau o medicamento identificado pelo sinal 鼻特清 (que romaniza Pei Tak Cheng).
  23.º
  Sabia também a ré que a autora usava na comercialização desse medicamento uma marca igual à que veio posteriormente a registar?
  Provado que a ré sabia também que a autora usava na comercialização desse medicamento um sinal que, além de outros elementos, incluía o sinal que constitui a marca que a própria ré veio posteriormente a registar e que se encontra identificada na alínea C) dos factos assentes.
  24.º
  Sabia a ré também que a autora não tinha efectuado o registo dessa sua marca em Macau, pois quem a tinha registado em seu nome era a Sra. D?
  Provado.
  
  Dispõe o artº 479º do CPC o seguinte:
  «1. O depoimento só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento.
  2. Não é, porém, admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida.».
  
  Em anotação ao CPC Português, artº 554º com redacção igual ao do CPC de Macau supra citado podemos ler CPC Anotado de José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Vol. 2º, pág. 472/473 o seguinte:
  «3. O n.º 2 é uma excrescência histórica do direito comum, não constante do CC de 1867, reintroduzida pelos CPC de 1876 (factos criminosos) e de 1939 (factos criminosos e torpes) e sem paralelo em outras legislações.
  Propunham-se suprimi-la o Anteprojecto (art. 434-2) e o Projecto (art. 437-2) da comissão Varela, mas foi mantida quando da revisão do Código.
  A jurisprudência de há muito tem manifestado tendência restritiva ao definir a previsão do preceito. Assim aconteceu nos acs. Do STJ de 17.11.59, BMJ, 91, p. 488 (sonegação de bens pelo cabeça-de-casal), de 23.11.73, BMJ, 231, p. 131 (casamento por interesse e tentativas de obter testamento a favor do depoente), e, incidentalmente, de 29.11.74, BMJ, 241, p. 257 (actuação orientada para o prejuízo de credores), e no do TRP de 10.12.75, BMJ, 255, p. 210 (contrato verbal de arrendamento sem emissão de recibos de renda, o que à data constituía crime de especulação).
  A norma tem sido justificada com a finalidade de não expor o depoente à necessidade de se pronunciar sobre certos factos ilícitos pessoais, cuja realidade se sentirá inclinado a negar (Ordenações Filipinas, livro III, título LIII, §11; ALBERTO DOS REIS, CPC anotado cit., IV, ps. 94-95; RODRIGUES BASTOS, Notas cit., III, p. 112). Dado que nenhuma consequência probatória é tirada da alegação (a si) favorável da parte no acto do seu depoimento em juízo e da eventual mentira só podem resultar efeitos a nível da apreciação do comportamento da parte sob o prisma da má fé processual, a solução da proibição da confissão mostra-se desajustada, por impedir, não a mentira, mas a declaração verdadeira do depoente. Resta, ao menos, a via da restrição do preceito aos factos instrumentais que sejam torpes (art. 280-2 CC: “facto ofensivo dos bons costumes”) ou criminosos, não o aplicando aos casos em que o facto nessas condições constitua fundamento da própria acção ou da excepção (LEBRE DE FREITAS, A confissão cit., ps. 155-157).».
  Outros comentários se mostram desnecessários face à leitura do preceito em causa, da anotação supra reproduzida e do texto dos quesitos sendo evidente como se invoca nas contra-alegações que os factos em causa não são infames, imorais, obscenos ofensivos dos bons costumes nem criminosos, pelo que outra sorte não pode ter a invocada alegação que não seja a de improceder.
  
  Da impugnação das respostas dadas a estes quesitos pelo tribunal “a quo”.
  
  O Recorrente limita-se a indicar todas as gravações dos depoimentos testemunhais realizados.
  Sobre esta matéria dispõe a alínea b) do nº 1 e o nº 2 do artº 599º do CPC o seguinte:
  «(…)
  b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
  2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.».
  No intuito de cumprir o desiderato de indicar quais os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, a remessa para o conteúdo global dos depoimentos prestados não cumpre a exigência de indicar os meios probatórios que em concreto impunham decisão diversa da Recorrida.
  Ao Tribunal de recurso não cabe fazer um segundo julgamento apreciando toda a prova produzida, mas apenas debruçar-se sobre os excertos da prova produzida que incidem sobre os pontos da matéria de facto impugnados e que determinavam uma decisão diferente.
  Não se indicando os elementos de prova em concreto que exigiam decisão diversa da Recorrida apenas pode improceder o recurso a impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
  Sobre esta matéria veja-se Acórdão deste Tribunal de 15.10.2021 proferido no processo nº 240/2021:
  «Ora bem, dispõe o artigo 629.º, n.º 1, alínea a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
  Estatui-se nos termos do artigo 558.º do CPC que:
  “1. O tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
  2. Mas quando a lei exija, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada.”
  Como se referiu no Acórdão deste TSI, de 20.9.2012, no Processo n.º 551/2012: “…se o colectivo da 1ª instância, fez a análise de todos os dados e se, perante eventual dúvida, de que aliás se fez eco na explanação dos fundamentos da convicção, atingiu um determinado resultado, só perante uma evidência é que o tribunal superior poderia fazer inflectir o sentido da prova. E mesmo assim, em presença dos requisitos de ordem adjectiva plasmados no art. 599.º, n.º 1 e 2 do CPC.”
  Também se decidiu no Acórdão deste TSI, de 28.5.2015, no Processo n.º 332/2015 que:“A primeira instância formou a sua convicção com base num conjunto de elementos, entre os quais a prova testemunhal produzida, e o tribunal “ad quem”, salvo erro grosseiro e visível que logo detecte na análise da prova, não deve interferir, sob pena de se transformar a instância de recurso, numa nova instância de prova. É por isso, de resto, que a decisão de facto só pode ser modificada nos casos previstos no art. 629.º do CPC. E é por tudo isto que também dizemos que o tribunal de recurso não pode censurar a relevância e a credibilidade que, no quadro da imediação e da livre apreciação das provas, o tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu.”
  A convicção do Tribunal alicerça-se no conjunto de provas produzidas em audiência, sendo mais comuns as provas testemunhal e documental, competindo ao julgador valorar os elementos que melhor entender, nada impedindo que se confira maior relevância ou valor a determinadas provas em detrimento de outras, salvo excepções previstas na lei.
  Não raras vezes, pode acontecer que determinada versão factual seja sustentada pelo depoimento de algumas testemunhas, mas contrariada pelo depoimento de outras. Neste caso, cabe ao Tribunal valorá-las segundo a sua íntima convicção.
  Ademais, não estando em causa prova plena, todos os meios de prova têm idêntico valor, cometendo-se ao julgador a liberdade da sua valoração e decidir segundo a sua prudente convicção acerca dos factos controvertidos, em função das regras da lógica e da experiência comum.
  Assim, estando no âmbito da livre valoração e convicção do julgador, a alteração das respostas dadas pelo tribunal recorrido à matéria de facto só será viável se conseguir lograr de que houve erro grosseiro e manifesto na apreciação da prova.
  Analisada a prova produzida na primeira instância, a saber, a prova documental junta aos autos e o depoimento das testemunhas, entendemos não assistir razão aos autores.».
  Em sentido idêntico veja-se Acórdão deste tribunal de 09.05.2019, proferido no processo nº 240/2019, em cujo sumário se diz:
  «I – Em matéria de impugnação de matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
  II - para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de “anormal”, se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.».
  
1. FACTOS

  A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
  – Motivação de facto.
  Estão provados os seguintes factos:
a) A Autora é uma sociedade constituída segundo as leis de Hong Kong.
b) A Autora tem registado nos Serviços de Saúde Macau várias dezenas de medicamentos ou produtos farmacêuticos.
c) A seguinte marca mista, para a classe 5, produtos farmacêuticos, sob o nº N/147173, foi concedida à Ré em 11 de Dezembro de 2019, na sequência de um pedido datado de 28 de Novembro de 2018.
d) A seguinte marca mista, sob o nº N/100916 foi concedida à Sra. D em 11 de Dezembro de 2015, na sequência de um pedido datado de 19 de Junho de 2015.
e) A Sra. D pediu a renúncia da marca sob o nº N/100916 à DSE, que lhe foi concedida por despacho de 27 de Junho de 2019, publicado na 2ª Série do BO de 17 de Julho de 2019.
f) A Autora procedeu ao pedido de registo da marca mista sob o nº N/167018 na DSE em 23 de Março de 2020.
g) A autora é uma sociedade constituída em Abril de 1978, que se dedica ao fabrico e comercialização de medicamentos e produtos farmacêuticos. (Q. 1º)
h) Em data não concretamente apurada, mas anterior a 2010, a autora começou a produzir um medicamento em forma de comprimidos, à base do fármaco betametasona, para alívio dos sintomas de rinite, rinite alérgica ou infecção das vias respiratórias superiores, designadamente, espirros e corrimento nasal, que identificou pelo sinal em inglês BETADEXIN, e em chines, 鼻特清 (que romaniza Pei Tak Cheng). (Q. 2º)
i) O medicamento foi aprovado pelas autoridades de Hong Kong e a autora encontra-se devidamente licenciada para o produzir e comercializar, conforme licença emitida pelas autoridades competentes de Hong Kong, presentemente válida até 7 de Fevereiro de 2021 e renovável por períodos de 5 anos. (Q. 3º)
j) O medicamento da autora que identificou com o sinal BETADEXIN鼻特清 (que romaniza Pei Tak Cheng) é comercializado em embalagens de 30, 60 e 90 comprimidos. (Q. 4º)
k) Nas embalagens de 60 comprimidos, a autora tem vindo usar, desde data não concretamente apurada, mas anterior a 2010, um sinal com a seguinte imagem: (Q. 5º)
l) No outro lado da embalagem, a autora usa o mesmo sinal, com a diferença de, em vez de usar os caracteres chineses, usa o nome comercial do medicamento em inglês, BETADEXIN, conforme resulta da seguinte imagem. (Q. 6º)
m) Nas embalagens de 90 comprimidos, a autora tem vindo a usar um sinal conforme o documento a fls. 377. (Q. 7º)
n) O medicamento da autora, identificado com o sinal BETADEXIN鼻特清, encontra-se registado para ser comercializado em Macau há muitos anos. (Q. 8º)
o) A autora exportou para Macau as quantidades constantes nas alíneas p) a v) do medicamento identificado por BETADEXIN鼻特清, o qual aqui foi colocado à venda. (Q. 9º)
p) A autora exportou para Macau, no ano de 2010, 7582 embalagens de 90 comprimidos, 3571 embalagens de 30 comprimidos e 2970 embalagens de 60 comprimidos. (Q. 11º)
q) No ano de 2011, exportou para Macau 3850 embalagens de 60 comprimidos, 8594 de 90 e 6461 de 30 comprimidos. (Q. 12º)
r) No ano de 2012 exportou para Macau 6050 embalagens de 60 comprimidos, 4878 de 90 e 3588 de 30 comprimidos. (Q. 13º)
s) Em 2013, exportou para Macau 9740 embalagens de 60 comprimidos, 16856 de 90 e 6008 de 30 comprimidos. (Q. 14º)
t) Em 2014 exportou para Macau 4885 embalagens de 90 comprimidos, 9240 embalagens de 60 comprimidos e 4009 embalagens de 30 comprimidos. (Q. 15º)
u) Em 2015 exportou 4456 embalagens de 90 comprimidos e 12650 de 60 comprimidos. (Q. 16)
v) Em Maio de 2019, após o reinício de produção, a autora exportou para Macau 3000 caixas de 60 comprimidos e 5116 caixas de 90 comprimidos. (Q. 17º)
w) Até 2015 a sua representante comercial em Macau era a firma C, localizada na Rua da …, nºs …, …º andar, Edifício …, Macau, pertencente a uma senhora chamada D. (Q. 18º)
x) Entre finais de 2015 a 2018 a autora encerrou os seus laboratórios para efeitos de renovação e modernização de todo o seu equipamento, pelo que deixou de produzir, nesse período, qualquer dos seus medicamentos ou produtos farmacêuticos. (Q. 19º)
y) Em finais de 2018, quando reabriu a sua fábrica, autorizou a sociedade de Macau, “Companhia de Medicamentos E, Limitada”, em chinês “E藥業有限公司” a vender os seus produtos em Macau, podendo, para o efeito usar as suas marcas. (Q. 20º)
z) Após obter o registo da marca N/147173, por volta do início de Fevereiro corrente ano, a ré começou a comercializar em Macau um medicamento com o nome em chinês鼻特清, em inglês Witt Cestasin, nas embalagens de 60 comprimidos e com princípio activo de betametasona. (Q. 21º)
aa) A ré sabia que a autora comercializava em Macau o medicamento identificado pelo sinal 鼻特清 (que romaniza Pei Tak Cheng). (Q. 22º)
bb) A ré sabia também que a autora usava na comercialização desse medicamento um sinal que, além de outros elementos, incluía o sinal que constitui a marca que a própria ré veio posteriormente a registar e que se encontra identificada na anterior alínea c). (Q. 23º)
cc) Sabia a ré também que a autora não tinha efectuado o registo dessa sua marca em Macau, pois quem a tinha registado em seu nome era a Sra. D. (Q. 24º)

2. DO DIREITO

É o seguinte o teor da decisão recorrida:
  «Considerações gerais
  O núcleo da controvérsia dos presentes autos coloca a seguinte questão: quem merece melhor protecção através do direito de marca, aquele que primeiro usa o sinal para marcar os seus bens de comércio mas não o regista ou aquele que só mais tarde regista o mesmo sinal e passa a usá-lo?
  A resposta há-de procurar-se no Direito da propriedade Industrial, formado por dois grandes sectores: os direitos privativos de propriedade industrial e a concorrência.
  A autora usou nos seus produtos o sinal em litígio muito antes da ré, mas não o registou. A ré começou a usá-lo muito depois da autora, mas logrou registá-lo.
  A autora disse que o sinal que usou já era notoriamente conhecido quando a ré o registou e que esta o registou de má-fé e para se aproveitar do sinal alheio. Conclui que o título de registo da autora deve ser anulado.
  Os diversos regimes jurídicos em matéria de marcas baseiam a protecção dos sinais no primeiro uso ou no primeiro registo, havendo ainda sistemas que se podem designar de mistos.
  O critério de protecção com base no uso apresenta-se como ontologicamente mais nobre por atribuir o direito ao criador e divulgador do sinal. Porém, apresenta-se também como menos seguro em face da dificuldade de apurar o início do primeiro uso relevante. Mais justo, mas menos seguro.
  O critério de protecção assente no registo já se apresenta como mais seguro na determinação de quem primeiro se apresentou a registar, mas menos justo, pois que apenas atende ao “primeiro a requerer” sem se preocupar se o requerente do registo é o criador do sinal.
  O nosso regime jurídico é claramente baseado no registo, embora o uso por vezes tenha alguns efeitos. Com efeito, dispõe o nº 1 do art. 15º que “salvo os casos previstos no presente diploma, o direito de propriedade industrial é concedido àquele que primeiro apresentar regularmente o pedido acompanhado de todos os documentos exigíveis para o efeito”.
  De forma muito genérica e considerando globalmente o regime estabelecido pelos arts. 47º, 48º, 229º e 330º do RJPI1 pode afirmar-se que, tendencialmente, aos motivos absolutos de recusa do registo de marca correspondem causas de nulidade do mesmo registo e que aos motivos relativos de recusa correspondem causas de anulabilidade2.
  Ainda de forma genérica pode afirmar-se que, tendencialmente, a nulidade dos títulos dos direitos de propriedade industrial tem origem em razões que respeitam ao conflito entre o direito de propriedade industrial titulado e o interesse comum ou geral (idoneidade do objecto, ordem pública, bons costumes, procedimento administrativo – art. 47º do RJPI). E pode também afirmar-se que a anulabilidade dos mesmos títulos tem origem em razões que respeitam ao conflito entre o direito de propriedade industrial titulado e interesses particulares, designadamente à disputa sobre a quem deve pertencer o direito titulado (art. 48º do RJPI).
  No caso dos autos estamos em presença de um conflito que redunda em saber a quem deve pertencer o direito a ter um título de marca sobre um determinado sinal. A autora invoca que o direito a ter o título de registo de marca lhe advém de três factos: - do facto de ter utilizado previamente o sinal que a ré registou; - do facto de tal sinal ser notoriamente conhecido em Macau; - do facto de a ré se ter aproveitado de má-fé de um litígio que a autora mantinha com um terceiro que havia registado o mesmo sinal como marca e que acabou por renunciar ao registo.
  A autora invocou, pois, como causas de anulabilidade do registo da marca da ré a imitação ou reprodução de marca notória anteriormente usada pela própria autora e a má-fé da ré na obtenção do registo da sua marca.
  A imitação de marca notória.
  Comecemos, pois, por verificar se ocorre a causa de invalidade reportada à marca notória.
  Dispõe o art. 230º, nº 1, al. b) que “os registos de marca são anuláveis … quando o título for concedido em violação das normas contidas” na alínea b) do nº 1 do art. 214º.
  E na alínea b) do nº 1 do referido art. 214º dispõe-se que “o pedido de registo é recusado quando … a marca constitua, no todo ou em parte essencial, reprodução, imitação ou tradução de outra notoriamente conhecida em Macau, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou afins e com ela possa confundir-se, ou que esses produtos possam estabelecer ligação com o proprietário da marca notória”.
  É anulável o registo concedido a sinais semelhantes a uma marca notória existente, se tal registo tiver sido concedido para assinalar bens também semelhantes aos que são assinalados com aquela marca notória.
  A causa de anulabilidade em apreço depende da verificação dos seguintes requisitos cumulativos:
  1 - Que haja semelhança entre os sinais que constituem as marcas;
  2 - Que uma das marcas seja notoriamente conhecida em Macau antes de ser concedido o registo a outra semelhante;
  3 - Que as marcas de destinem a assinalar produtos ou serviços idênticos ou afins;
  Sendo requisitos cumulativos a semelhança entre as marcas, a notoriedade da marca anterior e a afinidade dos bens a assinalar com ambas, basta a falta de um desses requisitos para que não ocorra anulabilidade.
  Comecemos então por aferir se a marca que a autora invoca é notoriamente conhecida em Macau.
  Não é isenta de divergências a definição do que seja marca notoriamente conhecida ou marca notória3.
  Crê-se que é maioritária a jurisprudência e a doutrina no sentido de a marca notória ser a que é conhecida de muitos e de forma imediata, aquela que é conhecida de uma grande parte do público consumidor como sendo aquela que distingue de uma forma imediata um determinado produto ou serviço 4.
  A divergência adensa-se quanto a saber qual o público relevante onde deve aferir-se se a marca é maioritariamente conhecida de forma imediata. A generalidade do público consumidor ou o público consumidor dos produtos e/ou serviços cuja origem comercial a marca se destina a assinalar? E esta questão releva em casos como o dos autos que se reportam a um medicamento, designadamente se se tratar de um medicamento sujeito a receita médica.
  A querela doutrinal foi resolvida pelo acordo TRIPS5. O seu art. 16º nº 2 é claro. “… A fim de determinar se uma marca é notoriamente conhecida, os Membros terão em conta o conhecimento da marca entre o público directamente interessado, …”.
  Assim delimitado o conceito de marca notória, não parece haver dúvidas que não se provou que a marca invocada pela autora como reproduzida pela marca registada pela ré é marca notoriamente conhecida em Macau. De facto, não se provou a factualidade quesitada no quesito 10º, onde se questionava se “o medicamento da autora de marca BETADEXIN鼻特清, acabou tendo uma grande aceitação junto do público consumidor em Macau, está hoje perfeitamente sedimentado no mercado local, e é vendido pela maior parte das farmácias locais”. Por outro lado, o simples facto de se ter provado que a autora usou a marca para assinalar um medicamento do qual exportou para Macau considerável número de embalagens, embora com um hiato entre 2015 e 2018, não permite concluir que a marca (não o medicamento) é conhecida por muitas ou poucas pessoas e de forma imediata entre o público directamente interessado.
  Dos factos provados não pode, pois, concluir-se que seja notoriamente conhecida na RAEM a marca que a recorrente invoca como marca notória. Falta, assim, um dos pressupostos cumulativos da anulabilidade pretendida pela autora, razão por que não procede a sua pretensão com fundamento nesta causa de pedir relativa à imitação de marca notória anterior.
  A má-fé na obtenção do título de registo de marca.
  Ficou dito que a anulabilidade do registo que titula direitos de propriedade industrial respeita tendencialmente a conflitos entre direitos privados e não a conflitos com o interesse comum. É anulável o registo concedido a uma pessoa com preterição ou ofensa dos direitos de outra (art. 48º, nº 1). Ou seja, em princípio, tem direito a obter um título de registo de um direito de propriedade industrial aquele que primeiro o pedir6, mas o registo é anulável se foi concedido com ofensa de direitos de terceiros. Parece, pois, que o interessado na anulabilidade de um título de registo de um direito de propriedade industrial tem, em primeiro lugar, de demonstrar que é titular de um direito que o registo concedido a terceiro não respeitou e deveria ter respeitado.
  A acção de anulação tem de ser intentada em determinado prazo (art. 48º, nº 3, art. 230º, nº 5, entre outros). Porém, dispõe o nº 4 do art. 48º que “o direito de pedir a anulação de título obtido de má-fé não prescreve”.
  Parece, portanto, que a obtenção do registo de má-fé, só por si, sem ofensa de direito alheiro, não gera anulabilidade do registo. Na verdade, contrariamente ao que se passa noutras jurisdições, nenhuma norma expressa existe no nosso ordenamento jurídico que faça da má-fé usada na obtenção do registo uma causa autónoma de nulidade ou de anulabilidade do mesmo registo ou do título de registo7. E também nenhuma norma expressa há que faça de tal má-fé um motivo de recusa do registo.
  Tudo aponta para que só a ofensa ao direito alheio cause anulabilidade do registo, sendo que, se tal ofensa estiver acompanhada de má-fé do requerente aquando da solicitação do registo, a anulabilidade pode ser pedida a todo o tempo e pode ser determinada oficiosamente pelo tribunal em caso de a ofensa constituir infracção de natureza penal (art. 294º, nºs 1 e 2). A má-fé na obtenção do registo, só por si, não seria causa autónoma de anulabilidade, mas mero extensor do prazo. Para o prazo existir seria necessária uma ofensa de direito alheio e para o prazo alargar seria necessário que a concessão do registo tivesse sido conseguida através de má-fé daquele que requereu e obteve o registo.
  Parece ser também isso que resulta do art. 6º bis (3) da Convenção da União de Paris, quer na redacção de 1925, quer na de 19678. Tal artigo começa por referir que os estados membros da União de Paris devem conceder dois níveis de protecção às marcas notórias de outros estados membros contra a “imitação” por marca posterior a registar ou que venha a ser registada: a recusa do registo e a invalidade do mesmo se for concedido. Acrescenta-se depois que no caso de ter sido obtido de má-fé o registo da marca que imita marca notória estrangeira, então não há prazo para invalidação da marca imitadora. É claro que está na base desta protecção a defesa da marca notória estrangeira9. E não há um desprendimento entre a actuação de má-fé conducente à obtenção do registo e a imitação “ofensiva” da marca alheia. A má-fé na obtenção do registo não configura uma causa autónoma de anulação em relação à concessão do registo com ofensa de direito alheio. É apenas uma razão de extensão do prazo para anulação da marca ofensiva. Portanto, do regime da União de Paris resulta que se alguém, inocentemente, regista num país membro da União uma marca notória apropriada por outra pessoa noutro país da União, há invalidade da marca mais recente, mas há um prazo para requerer a invalidação, a contar do registo. Resulta também que se a marca posterior foi registada de má-fé, então a invalidação pode ser pedida sem limite de tempo. Nunca se prescinde da “ofensa” ao direito anteriormente adquirido no estrangeiro em relação ao país de registo.
  Mais recentemente, a questão da má-fé na obtenção do registo de marca ganhou outra coloração e autonomizou-se em algumas jurisdições como motivo absoluto de recusa do registo de marca e como causa de nulidade dos registos concedidos. Prescinde-se agora da ofensa de direito alheio e coloca-se a questão fora do âmbito da protecção da marca notória estrangeira, ficando também abrangidas as marcas nacionais, as marcas ordinárias e as marcas ainda não existentes que alguém queira registar.
  Esta nova dimensão normativa é também a que determina a melhor solução para as situações mais características de má-fé na obtenção do registo de marca, precisamente os casos em que não são ofendidos direitos de terceiro, mas se solicita o registo da marca sem intenção de uso efectivo do sinal registado no comércio, mas apenas com intenção de impedir que o registo do sinal seja concedido a qualquer pessoa que posteriormente o pretenda obter ou com a intenção de transmitir especulativamente o direito decorrente do registo (“marcas defensivas”, “trademark squatting”)10 11.
  É claro que é a nulidade e não a anulabilidade o instrumento mais apropriado a impedir estes comportamentos de bloqueio de marcas sem intenção de as usar e com intenção de impedir que sejam usadas por outrem ou de obrigar a pagar compensação especulativa pela autorização de uso. Com efeito, está em causa o interesse comum visando impedir que, aproveitando a regra “first to file”, o registo de marcas se transforme num cemitério de marcas que ninguém usa e onde “o primeiro a chegar” conserva registadas para esgrimir como trunfo especulativo contra quem “chegar mais tarde”. Por isso, as legislações que autonomizam a obtenção de má-fé como causa de invalidade do título de registo optam pela nulidade.
  Mas também é certo que uma causa de anulabilidade que pode ser invocada a todo o tempo é, em essência, uma causa de nulidade, especialmente se for ampla a legitimidade para a invocar como acontece no nosso RJPI (art. 49º, nº 2). De facto, o que distingue a nulidade da anulabilidade, além da natureza da causa, é essencialmente o prazo de invocação e a amplitude daqueles que podem invocá-la.
  Conclui-se, pois, que no nosso sistema jurídico a má-fé na obtenção do registo, desligada de qualquer ofensa a direito alheio, não é uma causa autónoma de anulabilidade dos títulos de registo de marca12. Isto, sem prejuízo do recurso à figura geral do abuso de direito que sempre permitirá declarar nulo um título de registo de marca requerido com a intenção de não usar o sinal registado mas de apenas especular ou bloquear terceiros legitimamente interessados em usá-lo, pois que em tal caso se estará em presença de uma situação onde são excedidos os limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico do direito de marca (art. 326º do CC). Diga-se, porém, que se provou que a marca registada pela ré está a ser usada para distinguir bens, razão por que não haverá razões na factualidade provada para considerar excedido o fim económico e social do direito de marca (al. z) dos factos provados).
  Conclui-se, pois que também não ocorre a causa de anulabilidade do título de registo de marca referente à má-fé na obtenção do registo.
  Claro se afigura que a ré se aproveitou sem qualquer pudor de um sinal anteriormente criado e divulgado pela autora. Porém não está demonstrado que a autora tenha adquirido qualquer direito de exclusivo sobre tal sinal, pelo que o mesmo deve ser considerado livre para apropriação por outrem e só deve ver anulado o registo se foi pedido apenas para especular e não para usar no comércio assinalando os bens de determinada proveniência empresarial. De outra forma, o nosso sistema já não seria um sistema de aquisição do direito de marca com base no registo (registration-based system), mas com base no uso (use-based system)13.
  Há agora que referir que a autora também não invocou qualquer direito seu como ofendido pelo registo. De facto, apenas alegou que usava e usa marca idêntica à que foi registada pela ré, mas não disse que adquiriu qualquer direito de marca sobre o sinal em causa. Com efeito, não alegou o registo de tal sinal como marca, não alegou o uso com indicação de qualquer jurisdição onde o uso concreto que fez é facto aquisitivo do direito de marca, nem alegou o depósito do sinal distintivo, nem alegou qualquer outro facto aquisitivo em qualquer jurisdição. Limitou-se a dizer que usou na RAEM e na RAEHK. Certo se afigura que na RAEM só o registo é verdadeiramente aquisitivo do título de registo de marca e do inerente direito de propriedade industrial14.
  O uso invocado pela autora só provocaria anulabilidade do direito da ré em duas situações:
  - Se aquele uso se tivesse iniciado há menos de seis meses em relação ao pedido de registo da ré, pois que, nesse caso, o registo concedido à ré seria concedido com preterição do direito de prioridade da autora (art. 202º, nº 1). Também não foi isso que ocorreu, uma vez que o uso do sinal pela autora se iniciou alguns anos antes de ter sido registado pela ré.
  - Se o uso no exterior da RAEM tivesse levado à aquisição do direito de marca noutra jurisdição e esta marca fosse notoriamente conhecida na RAEM. Também esta situação não está demonstrada nos autos.
  Esclareça-se neste ponto que se entende que a marca notória não apropriada (marca de facto) na RAEM ou no exterior, ainda que pelo uso nas jurisdições onde o uso é facto aquisitivo, não tem protecção na RAEM advinda do sistema de direitos privativos de propriedade industrial, podendo tê-la no âmbito da concorrência desleal que não está agora aqui em ponderação. Ressalva-se o direito de prioridade nos primeiros seis meses de uso. Faz-se este esclarecimento porque a autora invocou apenas marca notória de facto, nunca tendo dito que adquiriu qualquer direito sobre ela, quer advindo do registo, quer advindo de outro facto aquisitivo em qualquer jurisdição. O art. 214º, nº 1, al. b) não se refere a marca notória registada como faz a al. b) do nº 2 do mesmo artigo, porque este último normativo visa a marca local, seja ordinária, notória ou de prestígio, as quais só têm este nível de protecção se estiverem registadas. Já o nº 1, al. b) visa a marca do exterior que seja notoriamente conhecida em Macau mas aqui não esteja registada. Por isso não pode exigir o registo no exterior onde não é exigido. Mas não lhe pode recusar protecção por imposição da Convenção de Paris. É uma protecção à marca notória estrangeira imposta, como se viu, pela Convenção de Paris. Mas não pode conceder-se aqui protecção a marca estrangeira que não tem protecção no país de origem, como é evidente. Por isso, a autora teria sempre de invocar o facto aquisitivo da sua marca se a pretender defender dentro do sistema dos direitos privativos de propriedade industrial, que é diferente do sistema da concorrência que aqui não está em ponderação. Também é esta a opinião de Oliveira Ascensão15.
  Conclui-se, portanto, que no nosso regime jurídico dos direitos de propriedade industrial o conflito entre o usuário de sinais distintivos ordinários (e até notórios não apropriados, mas de facto) e o titular do respectivo registo, salvo em casos de abuso do direito por parte deste último e em caos de direito de prioridade fundado no uso por tempo inferior a seis meses em relação ao registo, é vencido pelo titular do registo16.
  A opção pelo sistema de registo constitutivo, mais seguro, mas menos justo, tem um preço. E esse preço é pago por aqueles que não registam e que, enquanto criadores de bens de propriedade industrial, designadamente sinais distintivos, seria justo que fossem reconhecidos como seus titulares.
  A concorrência desleal.
  Concluiu-se que a pretensão da autora de anulação da marca da ré não tem acolhimento nem no regime de protecção da marca notória nem no regime da má-fé na obtenção do registo. Por um lado não se provou que a marca invocada pela autora fosse notoriamente conhecida em Macau e por outro, não se demonstrou que a marca tivesse sido adquirida pela autora por qualquer meio e em qualquer jurisdição, pelo que não se pode considerar “ofendida” pelo registo da marca da ré, alegadamente obtido de má-fé.
  Cabe agora apreciar se o regime da concorrência desleal oferece protecção à pretensão da autora. Esta pretensão já não é de anulação da marca, mas de impedimento do uso. É, no entanto, uma pretensão subsidiária, o que significa que a autora “prefere” a anulação.
  A disciplina jurídica da propriedade industrial estrutura-se basicamente em duas vertentes: atribuindo direitos privativos que excluem terceiros de aceder a certos bens imateriais e impondo deveres de conduta no exercício da actividade económica17. Já vimos que os invocados direitos da autora, quer relativos a marca notória, quer relativos a marca ordinária, não impedem a ré de beneficiar do direito de marca que logrou registar a seu favor. Cabe agora saber se algum dever jurídico impede a ré de utilizar a referida marca, em todas as possibilidades de utilização, ou apenas em alguma delas. Estamos já no campo da concorrência desleal.
  A relação entre os direitos de propriedade industrial e a concorrência desleal é complexa. Operam por vezes como círculos secantes, na expressão do Professor Oliveira Ascensão, mas não há contradição entre reconhecer a existência de qualquer daqueles direitos e reconhecer a ocorrência de concorrência desleal aquando do respectivo exercício.
  A concorrência é a disputa de clientela visando aumentar a própria e/ou diminuir a alheia e será leal se tal disputa for exercida com instrumentos adquiridos com respeito pelas normas e usos honestos da actividade económica, de forma a garantir que o vencedor em qualquer acto de disputa de clientela vença por mérito seu e não por favor, aproveitamento do mérito alheio, confusão, engano, atentado à organização empresarial alheia ou ao mérito alheio, etc. (arts. 156º e segs. do C. Comercial18).
  Não há dúvida que autora e ré se encontram em relação de concorrência comercial, pois, no âmbito do mesmo sector da actividade económica, ambas pretendem exercer o seu comércio perante a mesma clientela e através de bens destinados à satisfação das mesmas necessidades, pelo que disputam directamente a mesma clientela. Acresce que se verifica a presunção legal do nº 2 do art. 134º do Código Comercial.
  A autora acusa a ré de concorrência desleal por ter registado como marca um sinal que a própria autora criou e divulgou e por a ré estar a utilizar o sinal para assinalar os produtos do seu comércio que são iguais aos que a autora vinha assinalando com o mesmo sinal. A ré, por sua vez, diz basicamente que o sinal não estava a ser utilizado quando requereu o registo.
  O direito de marca é o direito à exclusividade de utilização de um sinal para assinalar bens (art. 219º). A função jurídica da marca é, pois, distinguir origens comerciais. Mas a marca tem também uma função económica: além de ser um bem económico em si mesmo é um instrumento de criação e de canalização de desejo de consumo (selling-power). É esta actuação psicológica das marcas uma importante função na concorrência pois a marca pode determinar o vencedor ou o quinhão de clientela de cada um dos que a ela concorrem. Com a utilização da marca pode determinar-se o destino da clientela, quer atraindo-a, quer repelindo-a em relação aos bens com ela assinalados, tudo dependendo da imagem que o público consumidor tem da marca e da reputação de quem a utiliza para assinalar.
  A actuação concorrencial da ré consiste em registar e usar no seu comércio um sinal criado e usado pela autora, sendo que esta não o havia registado.
  Esta actuação da autora é susceptível de provocar uma orientação de clientela que não se contenha dentro das normas e usos honestos da actividade económica?
   Os contornos do que sejam tais normas e usos honestos vêm sendo recortados por dois critérios: a consciência ética de um empresário médio e o princípio da prestação.
  A concorrência é incentivada. O sistema jurídico aceita que haja desvios de clientela, só não querendo que ocorram com deslealdade, ferindo as normas e usos honestos, parasitando, denegrindo e perturbando os concorrentes ou confundindo e enganando os consumidores.
  A consciência ética de um empresário médio, por onde se aferem aqueles usos honestos, há-de ditar-lhe que não queira utilizar em seu proveito, os instrumentos criados por outrem, mas não lhe há-de impor que não aproveite eventuais instrumentos abandonados por aquele que os criou. É que a actividade empresarial e a concorrência comercial não são ofícios de abnegação e deferência elegante, mas de luta mercantil.
  O mérito próprio, portanto, como fiel da balança no recorte do que sejam as normas e os usos honestos da actividade económica. Para lá disso está o mérito alheio, o parasitismo e o atentado.
  “A ideia motriz da concorrência é a de que as prestações dos vários operadores económicos se devem defrontar no mercado com o mínimo de constrangimentos, para que vença o melhor. Fala-se da concorrência pelo mérito. Se a vitória for devida a outros factores, a concorrência é falseada. A este critério se chama o princípio da prestação”. A concorrência decide-se pelas prestações em presença do consumidor. Sendo a concorrência que se deseja uma concorrência de prestações, a empresa tem de vencer pela superioridade das suas prestações (Oliveira Ascensão, Concorrência Desleal, pgs. 97, 163 e 446). O mérito próprio outra vez como fiel da balança.
  Dos elementos dos autos resulta que, desde antes de 2010, a autora tem vindo a usar, na embalagem de comprimidos medicinais que exporta de Hong Kong para Macau, o sinal que a ré registou como marca, sem alterações perceptíveis na ausência de exame atento ou confronto. Provou-se também que entre finais de 2015 e Maio de 2019 a autora não exportou aquele produto para Macau. Provou-se ainda que a ré sabia que a autora exportava com embalagem contendo o referido sinal, assim como sabia que a autora não havia registado tal sinal como marca. Está também provado que a ré requereu o registo do referido sinal como marca em 28/11/2018.
  A atribuição à ré do exclusivo da marca que registou, contendo elementos muitíssimo semelhantes à embalagem que a autora vinha usando para acondicionar os seus produtos e que, devido a tal exclusivo, fica impedida de utilizar, não será conceder à ré um instrumento de concorrência atentatório das normas e dos usos honestos da actividade económica por poder ser causa de desvio de clientela a favor da própria ré que, com risco de confundir os consumidores, se aproveitaria da, pouca ou muita, reputação da autora, contra o que dita a consciência ética do empresário médio?
  Como se disse, a concorrência desleal redunda em desvios de clientela em favor de um concorrente por razões diferentes do mérito deste e do normal e regular funcionamento do mercado segundo as normas e usos honestos da actividade económica.
  O juízo que importa fazer aqui é um juízo de perigo19 ou de possibilidade de ocorrência de dano. Dano à concorrência que se quer leal e livre. Uma avaliação do risco de ocorrência de concorrência desleal devido à introdução na ordem jurídica de um novo instrumento jurídico de concorrência, o exclusivo de utilização de um sinal para assinalar a origem comercial de bens – um direito subjectivo. Risco de que a clientela se oriente para um concorrente por razões não ligadas ao mérito deste, mas transferindo-se ou desviando-se do caminho a que a conduziria o esforço lícito ou o mérito alheios ou o regular funcionamento do mercado. Um juízo de prognose, portanto. Mas não basta que o previsível desvio de clientela ocorra por razões do funcionamento espontâneo do mercado, é necessário que o desvio provenha do mérito alheio, seja por aproveitamento deste, por confusão com este, por denegrição deste, ou que provenha de erro ou engano relevante. O normal funcionamento do mercado aceita que o uso exclusivo de sinais distintivos seja garantido àquele que primeiro os ocupou, seja pelo registo, seja, em certos casos, pelo uso, mas já não aceita quando isso puder ser um factor de distorção da concorrência, pois, nesse caso, nas palavras de Oliveira Ascensão (Concorrência Desleal, p. 446) “a lei repudia o … direito do primeiro ocupante”.
  Poderá aceitar-se no caso em apreço o referido critério do primeiro ocupante por não contender com as normas e os usos honestos da actividade económica nem distorcer a concorrência beneficiando ou prejudicando indevidamente, designadamente de forma parasitária ou atentatória? A ré não criou o sinal registado, o qual é bem atreito a ser confundido ou associado à autora e à sua “embalagem” que vem utilizando. A autora não protegeu o sinal que criou, não se deu ao trabalho de desencadear os procedimentos administrativos nem pagou as taxas a que a protecção daria lugar.
  Atribuir à ré o direito de marca sobre o sinal registado, que lhe atribui o exclusivo da sua exploração, afastando os demais concorrentes, será atribuir-lhe, em exclusivo, um instrumento de disputa de clientela que poderá fazer com que quem o usa consiga “vitórias” não devidas ao mérito próprio, mas ao mérito alheio ou da autora?
  Estamos no limite. Em 2018, quando a ré requereu o registo, a autora tinha a actividade de exportação para Macau parada. Os usos honestos e a consciência ética do empresário médio impunham à ré que, para se apropriar do sinal registado, tomasse outras diligências, designadamente que consultasse a autora, ou dispensavam-na de qualquer averiguação?
  Há-de caber nas preocupações do empresário médio não confundir os consumidores20 e não se aproveitar, sem contrapartida, do esforço alheio21.
  A ré não se aproveitou da qualquer direito de propriedade industrial da autora, pois que esta não adquiriu o direito de exclusivo sobre o sinal por não o ter registado como marca. A ré não se aproveitou do principal sinal distintivo, a marca. Já estamos na concorrência. Já não estamos no capítulo dos direitos privativos de propriedade industrial. Mas estaremos no âmbito de “trade dress”, do aspecto com que a autora apresentava o seu produto embalando-o em embalagem que é “a cara” do sinal registado pela ré. A ré aproveitou-se dessa imagem identificativa. No que respeita aos actos de confusão releva o aspecto com que os produtos são apresentados, pois que embora não se trate de os assinalar quanto à origem comercial, função da marca, trata-se da imagem com que muitas vezes são identificados pelo consumidor e que, portanto, pode ser factor de confusão de produtos e até de origens comerciais e, consequentemente, pode ser factor de desvio de clientela através de confusão.
  O sinal registado pela ré e o referido “trade dress” da autora são confundíveis, possibilitando a canalização ou desvio de clientes que os confundam e que, assim, não se orientam pelo mérito das prestações. E a consciência ética do empresário médio rejeitará que a ré registe e use sem qualquer preocupação de evitar a confusão dos consumidores. Com efeito, ao requerer o registo, a ré apropriou-se do “trade dress” alheio e transformou-o em marca própria.
  Conclui-se, pois, que há risco de, com a atribuição do exclusivo de marca à ré, ocorrerem desvios de clientela contra o que dita a consciência ética de um empresário médio e o princípio da prestação, ou seja, há risco de ocorrência de concorrência em violação das normas e usos honestos da actividade económica.
  Conclui-se, em suma, que se verifica situação de concorrência desleal.
  Em última análise, mesmo que a autora não tenha registado o sinal como marca, ao utilizá-lo na constituição da embalagem onde comercializava os seus produtos, elevou-o à categoria de “trade dress” e o aproveitamento deste pela autora, escorado pelo registo do sinal como marca, também não pode deixar de se considerar parasitário.
  Contrariamente ao que entende a autora, considera-se que a concorrência desleal pode em certas situações ser causa de anulação da marca. Não que essa causa esteja expressa no RJPI, mas afigura-se que, em certas situações, pode caber na previsão abrangente do art. 171º do Código Comercial22 enquanto meio para eliminar os efeitos da concorrência desleal. Com efeito, a confirmação da prática de actos de concorrência desleal implica que seja determinada a cessação destes. Ora, no caso em apreço, qualquer utilização da marca da ré implica actos de concorrência desleal, pois que nenhuma se vê que não seja susceptível de causar confusão, pelo que não poderá determinar-se que cesse apenas uma determinada utilização da marca e que se possa continuar a fazer outra utilização. Se, por exemplo, a autora utilizasse a sua embalagem só para embalar frascos de comprimidos de 60 unidades e a ré tivesse pedido o registo para embalar comprimidos e outros medicamentos insusceptíveis de confusão, quer pela forma, quer pela função, tamanho e local de comercialização, então a marca poderia sobreviver para assinalar os outros medicamentos inconfundíveis.
  Aqui chegados, cabe dizer que a única via de eliminar os efeitos da concorrência desleal causada pela marca da ré em actos de confusão e parasitários é a anulação da marca. E cabe também dizer que o tribunal não incorre em excesso de pronúncia se anular a marca com fundamento no facto de ser instrumento de concorrência desleal. Na verdade, apenas conhece dos factos alegados pelas partes e das pretensões por elas formuladas, não podendo haver dúvidas que a autora pretende a anulação e não podendo haver dúvidas que o tribunal apenas aplicou o Direito aos factos e às pretensões que as partes trouxeram aos autos, não configurando a anulação uma condenação em objecto diverso do pedido, mas apenas a aplicação de Direito diverso daquele que as partes entendem ser aplicável (arts. 564º, nº 1, 567º e 571º, nº 1, al. e), todos do CPC).
  Obviamente que dentro do sistema dos direitos privativos de propriedade industrial a anulação da marca não implica, só por si, a impossibilidade de a ré continuar a utilizar o respectivo sinal como marca, excepto se tal sinal vier a ser apropriado por outrem enquanto objecto de direitos de propriedade industrial e não se tratar de sinal livre. Porém, já se concluiu que a utilização implica concorrência desleal por actos de confusão, pelo que, no âmbito da concorrência desleal, a ré não pode continuar a utilizar o sinal registado, não podendo, designadamente utilizá-lo para assinalar os produtos da sua actividade empresarial (art. 171º do Código Comercial). Isto, pelo menos, enquanto se mantiver a possibilidade de confusão e de apropriação.».
  
  Sem prejuízo da Douta argumentação constante da sentença recorrida não a podemos acompanhar na conclusão que retira.
  
  A marca que a Autora usou esteve registada a favor de um terceiro – alíneas d) e e) dos factos assentes – o qual era o legitimo proprietário da mesma.
  Desconhecemos os contornos – por não constarem da matéria de facto – que permitiram à Autora o uso de marca que pertencia a terceiro, nem tal matéria é objecto aqui de decisão.
  Contudo, esse terceiro a quem a marca pertencia e que, supostamente, seja expressa ou tacitamente, terá autorizado ou permitido que a Autora usasse a marca em causa renunciou à marca em 2019.
  Note-se, porque este elemento é importante para o raciocínio aqui em causa que não estamos perante uma marca livre no sentido de que ela não pertence a ninguém.
  A marca que a Autora usou tinha um dono, pertencia a alguém, e esse alguém nunca foi a Autora.
  Em momento algum nestes autos se questiona a legitimidade da pessoa em causa para ser titular da marca.
  Logo, não é correcta a colocação do problema no sentido de que alguém “está a aproveitar a marca da Autora” uma vez que a Autora usava a marca titulada por um terceiro que a ela renuncia posteriormente.
  E esta renúncia não pode deixar de ser apreciada no sentido de que aquele que era efectivamente o titular da marca ao renunciar a ela tem implícita a intenção de a libertar e de a colocar novamente no comércio para livremente ser apropriada por quem o entender, renunciando a qualquer direito à mesma.
  Logo, perante esta renúncia não faz sentido invocar de que era exigível que a Ré de acordo com as boas praticas do mercado contactasse a Autora para saber se a marca estava livre ou não.
  A marca nunca foi da Autora, era uma marca registada, tinha um titular – sem prejuízo de ser a Autora a usa-la provavelmente por tolerância deste – e o titular renuncia expressamente à marca, pelo que, nada mais é exigido a um qualquer sujeito de boa-fé que queira usar a marca face à renúncia do seu titular.
  Por outro lado, o que resulta da factualidade apurada é que a Autora comercializou o seu produto sob a marca em causa em Macau entre 2010 e 2015.
  De 2015 a 2018 encerrou os seus laboratórios e deixou de produzir qualquer produto, nomeadamente este que comercializava sobre esta marca.
  A Autora só volta a exportar para Macau o produto que usava esta marca em 2019, ano que o titular da marca a ela renuncia e em que a Ré pede e consegue o registo da marca.
  Entende-se na decisão recorrida para concluir pela concorrência desleal que houve por parte da Ré um aproveitamento da imagem – trade dress – com que a Autora comercializava o seu produto.
  Este raciocínio parece acertado numa primeira leitura mas depois de abordado os demais contornos da situação sub judice falece.
  Para se poder falar de aproveitamento da imagem usada pela Autora era necessário que a Autora estivesse a usar essa imagem, o que, como resulta da factualidade apurada não acontecia nos últimos 3 anos – 2016, 2017 e 2018 -.
  Por outro lado ao haver a renúncia da marca pelo seu legítimo titular no ano de 2019 a marca é devolvida expressamente à livre apropriação de quem a quiser vir a utilizar.
  Nesse momento a Ré registou a marca a seu favor e passou a usá-la. No mesmo ano a Autora voltou a comercializar os seus produtos sob aquela marca e só mais tarde – após a Ré – veio a registar a marca.
  Ora, como se analisa na decisão recorrida a Autora só teria direito a alguma protecção se usasse a marca – livre e não registada - há menos de seis meses de acordo com o disposto no artº 202º do RJPI, situação que está afastada uma vez que a marca em causa passou a ser livre em 27.06.2019 mas a Autora só pede o registo em Março de 2020.
  Logo, se a Autora já não goza de prioridade de registo porque usou a marca por mais de seis meses sem a registar o que determina que o legislador nestes casos decidiu não atribuir a estas situações protecção alguma, não faz agora sentido que se venha a dar-lhe protecção por via da Ré estar a usar uma marca igual à sua, sendo certo que, como se analisa a Ré tem direito a pedir o registo da marca não gozando a Autora de prioridade alguma.
  Por outro lado, vindo a ser entendimento da jurisprudência que “no quadro da concorrência desleal o acto só terá a natureza de desleal quando possa originar um prejuízo a outra pessoa, através da subtracção da sua clientela, efectiva ou potencial”23 e estando demonstrado nos autos que nos três anos anteriores àquele em que a Ré regista a marca e começa a comercializar o seu produto, a Autora nem sequer comercializava ou produzia o seu produto como resulta da factualidade apurada, não temos fundamento para admitir que pudesse haver uma qualquer possibilidade ainda que potencial de subtacção de clientela.
  Destarte, não acompanhamos a decisão recorrida quando conclui pela existência de concorrência desleal, sendo de dar provimento ao recurso revogando a decisão recorrida, julgando-se a acção improcedente.
  
III. DECISÃO
  
  Nestes termos e pelos fundamentos expostos concedendo-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se a acção improcedente.
  
  Custas a cargo da Recorrida em ambas as instâncias.
  
  Registe e Notifique.
  
  RAEM, 16 de Março de 2023
  Rui Pereira Ribeiro
  (Relator)
  Fong Man Chong
  (Primeiro Juiz Adjunto)
  
  Ho Wai Neng
  (Segundo Juiz Adjunto)
1 Regime Jurídico da Propriedade Industrial, aprovado pelo Dec.-Lei nº 97/99/M de 13 de Dezembro, a que pertencem todos os artigos referidos sem menção de origem.
2 Em sentido semelhante e a propósito de regime com grande afinidade com o da RAEM, o regime português, Código da Propriedade Industrial Anotado, 2015, 2ª edição, obra colectiva com coordenação de António Campinos e Luís Couto Gonçalves, anotação aos artigos 265º e 266º.
3 Cfr. Pinto Coelho, RLJ ano 84°, pgs. 129 e ss. e Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Vol. I, p. 97.
4 Acórdão do TSI de 17 Out. 2002, proferido no Processo nº 116/2002, e Luís M. Couto Gonçalves, Direito de Marcas, pág. 146.
5 O Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio («Acordo TRIPS», no acrónimo em inglês) está contido no Anexo 1C do Acordo OMC, publicado em língua portuguesa no Boletim Oficial de Macau n.º 9, I Série, de 26 de Fevereiro de 1996, através do Despacho n.º 9/GM/96, e em língua chinesa no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau n.º 20, I Série, de 19 de Maio de 2004, através do Aviso do Chefe do Executivo n.º 16/2004.
6 “Salvo os casos previstos no presente diploma, o direito de propriedade industrial é concedido àquele que primeiro apresentar regularmente o pedido acompanhado de todos os documentos exigíveis para o efeito” – art. 15º, nº 1.
7 Tal norma existe noutros ordenamentos jurídicos, designadamente nº art. 51º, nº 1, al. b) da lei espanhola de Marcas, Ley 17/2001, de 1/12, analisado profusamente em Javier Framiñan Santas, La nulidade de la marca solicitada de mala fe, Estudio del artículo 51.1.b) de la Ley 17/2001, de 7 de diciembre, de marcas, Editorial Comares, Granada 2007.
Também o Regulamento de Marca Comunitária da União Europeia dispõe no seu artigo 59º, nº 1, al. b), sob a epígrafe de “causas de nulidade absoluta”, que “a marca da UE é declarada nula
sempre que o titular da marca não tenha agido de boa-fé no acto de depósito do pedido de marca”.
8 “Não será fixado prazo para se reclamar a anulação das marcas registradas de má fé” - Art. 6º bis (3), redacção de 1925. “Não será fixado prazo para requerer o cancelamento ou a proibição de uso de marcas registradas ou utilizadas de má fé” - Art. 6º bis (3), redacção de 1967.
9 “Um dos assuntos constantes do programa de trabalhos da recente Conferência diplomática de Lisboa para a revisão da Convenção da União de Paris (1883) para a protecção internacional da Propriedade Industrial era … o da protecção da “marca notória”, isto é, da marca que num país da União é notoriamente conhecida como pertencente a um nacional de outro país da mesma União, no momento em que naquele é registada ou depositada para registo por um terceiro, que assim pretende usurpá-la ao verdadeiro titular. Essa protecção, …, foi consagrada pela primeira vez no artigo 6 bis da Convenção quando revista em 1925 na Haia” – José Gabriel Pinto Coelho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 92º (1959), p. 3.
10 Bad Faid Case Study, (Final Version), 31/01/2003, Office for Harmonization in the Internal Market (Trade Marks and Designs), Alicante, acessível em: http://euipo.europa.eu/en/enlargement/pdf/badfaithCS3101.pdf.
11 Trademarks And Bad Faith Registration, Simi Oyelude, acessível em: https://www.mondaq.com/nigeria/trademark/753416/trademarks-and-bad-faith-registration.
12 Em sentido contrário, ao que parece, relativamente a sistema jurídico com quadro normativo semelhante ao da RAEM quanto à questão em apreço, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/11/2013, proferido no processo nº 3607/10.4TJVNF.P2, acessível em http://www.dgsi.pt.
No sentido aqui seguido, ao que parece, relativamente ao referido sistema jurídico, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, de 01/02/1994, proferido no processo nº 082929, com o número convencional JSTJ00021968, acessível em www.dgsi.pt.
13 Em sentido semelhante obre o confronto entre os sistemas “registration-based” e “use-based”, embora para o caso de anulação do registo de marca com base em concorrência desleal entre o titular do registo e o anterior usuário não registado, André Sousa Marques, Da Aquisição Originária do Direito sobre a Marca (uso vs. registo), 2014, Edições Almedina.
14 Cfr., no entanto, quanto a regime jurídico semelhante ao da RAEM, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Direito Industrial, Volume II, Lisboa 1988, p. 180, onde se conclui que o registo não é constitutivo, mas a sua falta tem efeitos resolutivos perante terceiros de boa-fé.
15 “A tutela da marca notoriamente conhecida parece, por imposição internacional, representar a prevalência do uso sobre o registo, mas a lei impõe … que tenha sido requerido o registo dessa marca notoriamente conhecida. Por isso se poderá falar ainda nesses casos de um direito de prioridade para registo de marca legitimamente adquirida no estrangeiro…” - Direito Comercial, Direito Industrial, Volume II, Lisboa 1988, ps. 173.
16 A título comparado, refiram-se duas posições doutrinárias opostas, ao que parece, a de Oliveira Ascensão (Direito Comercial, Direito Industrial, Volume II, Lisboa 1988, ps. 174 a 180) e a de André Sousa Marques (Da Aquisição Originária do Direito sobre a Marca (uso vs. registo), 2014, Edições Almedina, p. 91).
17 Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Noções Fundamentais, Colectânea de Jurisprudência, Ano XII (1987), tomo I, p. 16.
18 “Constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência que objectivamente se revele contrário às normas e aos usos honestos da actividade económica” – art. 158º do Código Comercial.
19 Carlos Olavo, Propriedade Industrial, Volume I, 2ª edição, p. 274.
20 Considera-se desleal todo o acto que seja idóneo a criar confusão com a empresa, os produtos, os serviços ou o crédito dos concorrentes – art. 159º, nº 1 do Código Comercial.
21 Considera-se desleal o aproveitamento indevido em benefício próprio ou alheio da reputação empresarial de outrem – art. 165º do Código Comercial.
22 A sentença que declare a existência de prática de actos de concorrência desleal determinará a proibição da continuação da referida prática e indicará os meios oportunos para eliminar os respectivos efeitos.
23 Veja-se o Acórdão do TUI de 31.07.2020 proferido no Processo 9/2018.

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861/2022 CÍVEL 1