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Processo nº 25/2020
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. “A”, (“甲”), A., propôs no Tribunal Judicial de Base acção declarativa de condenação em processo comum ordinário contra:
- (1°) “B”, (“乙”);
- (2ª) “C”;
- (3ª) “D”, (“丁”);
- (4°) E (戊);
- (5°) F (己);
- (6°) G (庚); e,
- (7ª) “H”, (“辛”), RR., todos devidamente identificados nos autos, deduzindo, a final, o seguinte pedido:

“1) Procedendo a pretensão formulada nos artigos 129.° a 141.° da presente petição inicial, condenar os 1.° a 7.ª Réus a pagar solidariamente à Autora a quantia total de dezanove milhões e seiscentos e noventa e três mil e setecentas e noventa e nove patacas (MOP19.693.799,00), acrescida de juros à taxa legal; caso não for julgada procedente esta pretensão,
2) Procedendo a pretensão formulada nos artigos 142.° a 147.° da presente petição inicial, condenar os 1.° a 3.ª Réus a pagar solidariamente à Autora a quantia total de seis milhões e quinhentos e vinte e um mil e quatrocentas e dez patacas (MOP6.521.410,00), acrescida de juros à taxa legal; caso não for julgada procedente esta pretensão,
3) Procedendo a pretensão formulada nos artigos 148.° a 153.° da presente petição inicial, condenar o 1.° Réu a pagar à Autora a quantia total de seis milhões e seiscentos e sete mil e quatrocentas e trinta patacas (MOP6.607.430,00), acrescida de juros à taxa legal; caso não for julgada procedente esta pretensão,
4) Procedendo a pretensão formulada nos artigos 154.° a 162.° da presente petição inicial, condenar o 1.° Réu a pagar à Autora a quantia total de seis milhões e quinhentos e vinte e um mil e quatrocentas e dez patacas (MOP6.521.410,00), acrescida de juros à taxa legal.
(…)”; (cfr., fls. 2 a 19 e 342 a 342-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, após contestação, com pedido reconvencional do 1°, 4° e 5° RR., (cfr., fls. 430 a 455), réplica da A., onde se requereu a “ampliação do pedido”, (cfr., fls. 479 a 501-v), e tréplica dos aludidos RR., (cfr., fls. 676 a 688), proferiu-se “despacho-saneador-sentença” onde – na parte que agora interessa – declarou-se que ao 1° R., “B”, tão só assistia legitimidade em relação ao pedido deduzido que dizia respeito a um alegado “enriquecimento sem causa”, e, assim, em face da sua constatada ilegitimidade quantos aos restantes pedidos, dos mesmos foi absolvido da instância; (cfr., fls. 713 a 753).

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Tempestivamente, do assim decidido foi pela A. interposto recurso, (cfr., fls. 759), e, admitido para subir com o primeiro que tivesse subida imediata, (cfr., fls. 767), seguiu o processo os seus normais termos.

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Oportunamente, por sentença da Mma Juiz Presidente do Colectivo do Tribunal Judicial de Base de 11.04.2018, foi a acção julgada improcedente; (cfr., fls. 1235 a 1246).

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Com o recurso que a A. interpôs da dita sentença, ao Tribunal de Segunda Instância subiu o anterior recurso pela mesma interposto da referida decisão que tão só em parte reconheceu legitimidade ao 1° R., “B”.

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Por Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 17.10.2019, (Proc. n.° 731/2018) – e na parte em questão – decidiu-se “revogar o despacho que julgou o 1º Réu B parte ilegítima, devendo a acção prosseguir os seus termos até final, nomeadamente proceder-se à nova selecção da matéria de facto relativa ao 1º Réu e, posteriormente, a novo julgamento de toda a matéria”, “deste modo ficando prejudicada a apreciação do recurso da decisão final. (…)”; (cfr., fls. 1596 a 1614).

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Inconformado, traz agora o dito (1°) R. o presente recurso para esta Instância, pedindo, em síntese, a revogação do Acórdão pelo Tribunal de Segunda Instância prolatado, com a consequente integral manutenção do que decidido foi pelo Tribunal Judicial de Base; (cfr., fls. 1625 a 1637).

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Após contra-alegações da A., (cfr., fls. 1640 a 1643), vieram os autos a esta Instância.

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Adequadamente processados, e nada parecendo obstar, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

2. Como cremos que resulta do que atrás se deixou relatado, tem o presente recurso como objecto o “segmento decisório” do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância que, revogando a decisão pelo Mmo Juiz do Tribunal Judicial de Base proferida em sede de despacho-saneador, declarou o 1° R., ora recorrente, “parte legítima”, (ordenando a devolução dos autos ao dito Tribunal para nova selecção da matéria de facto relativa ao dito R. e novo julgamento; cfr., dispositivo do Ac. do T.S.I.).

Para uma boa compreensão – dos contornos – da “questão” agora em causa, vale a pena atentar que, para a supra referida decisão, assim ponderou o Tribunal de Segunda Instância:

“No saneador, o 1º, 4º, 5º, 6º e 7ª Réus foram julgados partes ilegítimas e, em consequência, absolvidos da instância.
Em relação ao 1º Réu, entendeu a decisão recorrida que a causa de pedir se baseava num contrato de empreitada celebrado entre a Autora e a 2ª Ré, na qualidade de promotora de uma obra a executar a suas expensas e no quadro de um contrato de cooperação celebrado com a 1ª Ré.
Por outro lado, entendeu que a causa de pedir era ainda integrada por factos relacionados com o incumprimento do programa previsto no aludido contrato de empreitada, por desistência prevista no artigo 1155.º do Código Civil.
Nessa perspectiva, entendeu o Tribunal a quo não ser o 1º Réu parte legítima na medida em que este não celebrou nenhum contrato com a Autora, não obstante um conjunto de factos acessórios mas nada permitiam comprometer a relação material controvertida.
Razão pela qual considerou a decisão recorrida ser o 1º Réu apenas parte legítima em relação à parte do pedido relacionado com o enriquecimento sem causa.
Salvo o devido e muito respeito, não acompanhamos a posição assumida na decisão recorrida quanto ao 1º Réu.
Conforme se dispõe o artigo 58.º do CPC: “Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
De facto, o sentido da norma segue a tese propugnada pelo Professor Barbosa de Magalhães, em que a legitimidade das partes é aferida de acordo com a configuração dada pelos autores.
Melhor dizendo, a parte é legítima quando, admitindo-se a existência de determinada relação jurídica controvertida, ela for efectivamente seu titular.1
No caso dos autos, independentemente da qualificação jurídica dos factos, a verdade é que a Autora intentou a acção contra o 1º Réu não por este ser concessionário do terreno, mas sim (conforme alegado pela Autora) por ser um dos contraentes do contrato de empreitada.
Pese embora admitir-se alguma imperfeição na elaboração da petição inicial, mas segundo a configuração apresentada pela Autora, apesar de o contrato de empreitada ter sido celebrado formalmente por ela e pela 2ª Ré, vem aquela afirmar que os 1º, 2ª e 3ª Réus agiram em parceria, nomeadamente quando refere que os termos do contrato foram acordados entre a Autora e o 1º Réu, o preço foi pago pelo 1º Réu, a caução da obra foi prestada a favor do 1º Réu (cfr. resulta, por exemplo, do teor dos artigos 20º, 40º, 42º, 60º, 61º, 65º, 66º, 68º, 77º, 78º, 79º, 82º da petição inicial).
No fundo, segundo o alegado pela Autora, o 1º Réu não agiu como mero concessionário do terreno, antes como verdadeiro contraente do contrato de empreitada. E para saber se isso é verdade, não cabe apreciar a questão ainda na fase dos articulados, por ser questões controvertidas (salvo havendo confissão da parte contrária).
Melhor dizendo, segundo a configuração dada pela Autora, o 1º Réu não deixa de ser parte legítima na alegada relação de empreitada, devendo, assim, a acção prosseguir os seus termos até final.
(…)”; (cfr., fls. 1609-v a 1611, pág. 28 a 31 do Ac. do T.S.I.).

Ora, sem prejuízo do respeito devido a outra opinião, cremos que o decidido não merece censura.

Importa ter presente que – sob a epígrafe “Conceito de legitimidade” – prescreve o art. 58° do mesmo C.P.C.M. que:

“Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

E, como nota Miguel Teixeira de Sousa, (in “A Legitimidade Singular em Processo Declarativo”, B.M.J. n.° 292), a legitimidade “se refere à acção destinada a alterar uma certa situação jurídica, só indirectamente dizendo respeito ao sujeito ou ao acto jurídico. Liga a legitimidade à eficácia do acto, mas não como algo inerente, interno, ao acto. Afirma que se trata de um elemento exterior ao acto, que condiciona a sua potencial eficácia”; (cfr., também, Leitão Pais de Vasconcelos in, “A Autorização”, pág. 54 e 55).

Por sua vez, vale ainda a pena recordar Maria Beatriz S. de Sousa que no seu recente trabalho “A Ilegitimidade Singular”, (Almedina, 2022, pág. 43), salienta que “A legitimidade processual não é uma qualidade pessoal, mas sim uma "qualidade posicional" do autor ou do réu perante o objeto da ação, que lhes permite estar devidamente em juízo. Este é apreciado "em função da relação da parte com o objecto da acção". Deste modo, enquanto a personalidade judiciária e a capacidade judiciária são aferidas em abstrato, a legitimidade processual apenas pode ser afirmada atendendo ao caso concreto, à pretensa relação controvertida. Portanto, sempre que nos referimos à expressão "parte legítima" ou "parte certa" sem mais, esta pretende significar que a parte é legítima em relação ao objeto do processo em que se encontra. Ao afirmar a legitimidade asseguramos a idoneidade para participar na ação”.

E, (como igualmente nota Oliveira Ascensão), não há perfeita coincidência entre “legitimidade” e “titularidade”, podendo-se ser titular de uma situação jurídica e não se ter legitimidade para actuar, podendo-se também ter legitimidade e não ser titular da situação jurídica.

Isto dito, vejamos.

A decisão do Tribunal Judicial de Base declarou que ao 1° R. apenas assistia legitimidade quanto à matéria e pedido respeitante ao “enriquecimento sem causa” pela A. deduzido na sua petição inicial.

Considerou-se pois que, com excepção desta “parte”, (toda) a restante matéria da petição inicial tão só se referia – e resumia – a uma questão de “incumprimento de um contrato de empreitada entre A. e 2ª R. celebrado”, pelo que, em conformidade com o assim considerado, não sendo o 1° R., “parte neste contrato”, decidiu-se pela sua referida “parcial (i)legitimidade”.

Cremos, porém, que não se terá alcançado o teor da petição inicial apresentada em toda a sua extensão, aqui residindo o “lapso” que importa rectificar.

Com efeito, e com excepção do já referido “enriquecimento sem causa”, adequado não se mostra reduzir toda a restante matéria da petição inicial como (apenas) relativa ao contrato de empreitada entre A. e 2ª R. celebrado e ao seu incumprimento, como referido já foi.

Na verdade, e pese embora alguma confusão na sua alegação e redacção, somos de opinião que a verdadeira “causa de pedir” – que no caso é uma causa de pedir “complexa” – consiste numa alegada “conduta culposa e ilícita” que se assaca aos ditos RR., imputando-lhes a prática concertada de actos e negócios simulados e outros “acertos” entre si efectuados, levando a A. à celebração do dito contrato de empreitada, e, estando as obras de construção em andamento, (perto da sua conclusão), acabaram por a impedir de cumprir o acordado, (com uma alegada “resolução do contrato”), causando-lhe danos e prejuízos monetários vários cujo pagamento reclama com a acção proposta, havendo assim que se deslocar o “fundamento” dos (vários) pedidos deduzidos para o campo da “responsabilidade civil por factos ilícitos” (e por uma também imputada “responsabilidade contratual”), já que, como se alega na dita petição inicial, a obra da A., embora acordada com a 2ª R., destinava-se e pertencia ao 1° R., a quem, no âmbito do contrato, a A. (até) prestou uma caução bancária de MOP$10.000.000,00, (repare-se também que a obra até incluía a construção do edifício da sede do 1° R.), agindo, a 2ª R., tão só, no plano “formal”, a fim de não vincular o 1° R. ao acordado, e de, assim, evitar qualquer possibilidade da sua responsabilização pelo que pudesse vir a suceder.

Nesta conformidade, e em face do que se deixou exposto, temos para nós que adequada é a decisão do Tribunal de Segunda Instância que, por isso, se confirma.

Decisão

3. Nos termos de todo o expendido, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 12 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 03 de Março de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei
1 Viriato Lima, Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, pág. 215
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