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Processo nº 4/2023
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (甲), (3°) arguido com os restantes sinais dos autos, respondeu no Tribunal Judicial de Base sob a acusação pública da prática como autor e em concurso real de 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, (na forma consumada), p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, e um outro crime de “consumo ilícito de estupefacientes agravado”, (na forma tentada), p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009.

A final, realizado o julgamento, o Colectivo do Tribunal Judicial de Base decidiu:
- absolver o dito (3°) arguido da prática do crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, (na forma consumada), p. e p. pelo art. 14°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009; e,
- condenar o mesmo arguido pela imputada prática de 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes agravado”, (na forma tentada), p. e p. pelo art. 14°, n.° 2 e art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), em conjugação com o art. 21° e 22°, n°s 1 e 2 do C.P.M., na pena de 3 anos e 3 meses de prisão; (cfr., fls. 702 a 722-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido o dito (3°) arguido recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 17.11.2022, (Proc. n.° 550/2022), negou provimento ao seu recurso, alterando oficiosamente a qualificação jurídico-penal pelo Tribunal Judicial de Base efectuada e condenando o aludido recorrente pela prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” na forma consumada – e não na forma tentada – mantendo, no restante, o Acórdão recorrido; (cfr., fls. 925 a 962-v).

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Inconformado, traz o recorrente o presente recurso para esta Instância, pedindo, (em apertada síntese), a revogação do decidido pelo Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 971 a 997).

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Em Resposta, é o Ministério Público de opinião que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 999 a 1003-v).

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Nesta Instância, e em sede de vista, manteve o Exmo. Representante do Ministério Público o entendimento antes assumido na resposta ao recurso; (cfr., fls. 1019).

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Adequadamente processados os autos, cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão “provados” e “não provados” os factos como tal elencados nos Acórdãos do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância, (cfr., fls. 707-v a 711-v e 943-v a 948-v), e que aqui se dão como integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

Do direito

3. Insurge-se o (3°) arguido A contra o decidido pelo Tribunal de Segunda Instância que, como se deixou relatado, negando provimento ao recurso que tinha interposto do Acórdão do Tribunal Judicial de Base, alterou (oficiosamente) a qualificação jurídico-penal aí efectuada, condenando-o como autor da prática de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes”, na forma consumada – e não tentada – p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, (na redacção introduzida pela Lei n.° 10/2016), mantendo, no restante, o Acórdão recorrido.

Coloca as seguintes “questões”:
- 1) “incumprimento do princípio do contraditório”;
- 2) “falta de fundamentação”;
- 3) “erro notório na apreciação da prova”, (especialmente, quanto às “conversas informais”); e,
- 4) “erro na decisão de alteração da qualificação jurídica”.

Pois bem, analisados os autos, ponderando no teor da decisão recorrida, e não estando esta Instância vinculada a conhecer dos “vícios” pelo recorrente assacados à decisão recorrida na mesma ordem em que vem invocados, mostra-se desde já evidente que nenhuma razão assiste ao recorrente no que toca às “questões” supra identificadas com os “números 2) e 3)”, pois que manifesto é que inexistente é qualquer “erro notório na apreciação da prova” em sede da decisão da matéria de facto – cfr., v.g., sobre a matéria, o recente Ac. deste T.U.I. de 15.03.2023, Proc. n.° 30/2023, até mesmo porque como já decidiu esta Instância em sede do Acórdão de 08.06.2016, Proc. n.° 17/2016, “As afirmações do arguido aos agentes policiais aquando da detenção ou da reconstituição dos factos, admitindo a prática do crime, ou revelando o modus operandi ou o local onde escondeu objectos do crime ou o corpo da vítima, podem ser objecto de depoimento daqueles agentes policiais em audiência e valorados pelo Tribunal” – apresentando-se-nos igualmente claro que a decisão recorrida se mostra adequadamente fundamentada, pois que embora se possa não concordar com a fundamentação exposta, tal não equivale a “falta de fundamentação”.

Porém, (e independentemente do que se deixou consignado), cremos que a decisão ora recorrida não se pode manter, pois que se verifica que o Tribunal de Segunda Instância efectuou uma “alteração oficiosa da qualificação jurídica” pelo Tribunal Judicial de Base antes efectuada, acabando por condenar o recorrente – não como acusado foi pelo Ministério Público, (cfr., fls. 540 a 545), e igualmente condenado tinha sido em sede do Tribunal Judicial de Base, (cfr., fls. 702 a 722), ou seja, como autor de 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes agravado” na forma “tentada”, mas – como autor do crime de “tráfico ilícito de estupefacientes” na forma “consumada”, sem que, previamente, e em devida observância do “princípio do contraditório”, ao mesmo recorrente tivesse sido dada oportunidade para sobre tal “alteração” se pronunciar como por bem entendesse, facultando-se-lhe assim o exercício do seu (legítimo) “direito processual” (de contraditar e de se defender), tal como preceituado é no art. 50° do C.P.P.M., onde se estatui que: “O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos direitos de: b) Ser ouvido pelo juiz sempre que ele deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte”; (cfr., n.° 1, al. b) do citado art. 50°).

E, nesta conformidade, vista cremos que está a solução.

Na verdade, tem-se hoje por – indubitavelmente – adquirido que o processo penal tem de ser um “processo equitativo” (e “leal”), no qual, para além de se dever assegurar a possibilidade de se efectivar o “ius puniendi”, imperativo é reconhecer-se a todo e qualquer indivíduo, as necessárias garantias para o proteger contra eventuais abusos que se possam vir a cometer no seu exercício.

Daí, ser de se considerar ilegítimas quer eventuais normas processuais quer procedimentos aplicativos delas que impliquem um encurtamento (inadmissível) das possibilidades de defesa do arguido.

Em sintonia com o assim entendido, tem-se afirmado que o processo penal deve configurar-se como um “due process of law” – “a fair process” ou “um processo justo” – assegurando-se ao arguido todas as garantias de defesa, sendo de se considerar violadas tais garantias quando àquele não se assegura, de modo pleno e efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa, ou seja, quando não se lhe é reconhecida plena liberdade na escolha dos meios mais apropriados para, em cada momento, apresentar as suas razões e de valorar a sua conduta; (podendo-se, sobre a matéria, ver, v.g., Manuel Leal-Henriques in, “C.P.P.M. Anotado”, pág. 740).

Com efeito, e como é sabido, o “princípio do contraditório” (“audiatur et altera pars”) – também ínsito no art. 36° da L.B.R.A.E.M., assim como no art. 14° do “Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, publicado no B.O. n.° 52 de 31.12.92, e cuja vigência em Macau está expressamente declarada pela dita L. Básica no seu artº 40º”, (vd. sobre o P.I.D.C.P. e o Processo Penal de Macau, A. Henriques Gaspar in, “Comunicação apresentada nas Jornadas do Novo C.P.P.”, Macau, 1997) – assenta no “direito de defesa”, traduzindo-se, desde logo, num “direito a ser ouvido”.

E, em conformidade com tal princípio, nenhuma decisão – “surpresa” – pode ser tomada contra o arguido sem que o mesmo tenha tido a possibilidade de discuti-la em condições de plena liberdade e igualdade com os restantes actores processuais, (designadamente, o Ministério Público).

Efectivamente, é da própria natureza do processo penal assegurar-se ao arguido todas as garantias de defesa, e assim, todos os direitos e instrumentos necessários (e adequados) a fim de poder defender a sua posição e contrariar o que lhe for, porventura, desfavorável.

Tal “direito de defesa”, (de “audição”), implica (e exige) que as partes se encontrem colocadas em posição de perfeita “igualdade (de armas)”, mediante um adequado funcionamento da “dialéctica processual”.

Na verdade, e em suma, o processo penal deve pois configurar-se – como se referiu – em termos de ser um (verdadeiro) “due process of law”, devendo considerar-se ilegítimos, todos os procedimentos que impliquem um encurtamento ou restrição inadmissível das possibilidades de uma ampla e efectiva defesa do arguido, sob pena de deixar de ser, ou não constituir, o já referido “fair trial” ou “processo leal”.

Aliás, e como tratando de uma situação próxima já decidiu este Tribunal de Última Instância:

“(…) ao lado da defesa factual, em que a mudança da incriminação prejudica a estratégia da defesa, evidente no exemplo dado, o arguido também procede (ou pode proceder) a uma defesa jurídica, tanto na contestação, como na alegação oral em julgamento (arts. 297.º e 341.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Ora, é natural que, nessas peças processuais, o defensor do arguido se debruce sobre a construção jurídica da acusação que é feita ao arguido. Se na sentença vem a ser condenado com base em outra construção jurídica, toda a estratégia da defesa ficou prejudicada e saiu frustrada por essa surpresa”.

E, mais concretamente sobre a necessidade de se observar o “princípio do contraditório”, consignou-se também que:

“A questão de saber se qualquer alteração da qualificação jurídica obriga o juiz a comunicar a alteração ao arguido
6. Para os fins do caso dos autos, importa, agora, apurar se qualquer alteração da qualificação jurídica1 obriga o juiz a comunicar a alteração ao arguido e a conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo para a preparação da defesa.
Na hipótese de a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada é manifesto que o juiz tem sempre de observar o contraditório.
Nas hipóteses de a alteração implicar a aplicação de penalidade igual ou inferior à que constava da acusação, temos de distinguir.
Em regra, será necessário proceder à comunicação da alteração ao arguido, visto que a estratégia de defesa estruturada para determinada configuração jurídica não valerá para outra, mesmo que para infracção menos grave, em termos de penalidade aplicável em abstracto.
Por exemplo, se o arguido vem acusado de crime de furto, previsto e punível pelo art. 197.º, n.º 1, do Código Penal e na sentença vem a ser condenado pelo crime de burla, previsto e punível pelo art. 211.º, n.º 1, do Código Penal, é completamente surpreendido, apesar de se tratar de crimes a que cabe a mesma penalidade.
O mesmo se diga se o arguido vem acusado de crime de furto (punível com prisão até 3 anos ou pena de multa – art. 197.º, n.º 1, do Código Penal) e é condenado pelo crime de extorsão de documento (punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias – art. 216.º do Código Penal).
Já assim não será nos casos apontados por MAIA GONÇALVES2, em «que não é necessária a comunicação ao arguido quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois que o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar. Aqui podem apontar-se os casos de convolação de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o crime simples; de crime doloso para o crime por negligência e, de um modo geral, sempre que entre o crime da acusação ou da pronúncia e o da condenação há uma relação de especialidade3 ou de consunção e a convolação é efectuada para o crime menos gravoso,4 rectius do crime especial ou qualificado para o simples ou para o que seria consumido pelo da acusação ou da pronúncia. Muitos exemplos se podem aqui apontar: Convolação de furto de valor elevado para furto simples; de roubo para furto; de homicídio ou de ofensas à integridade física cometidos dolosamente para os mesmos crimes por negligência; de violação para coacção sexual; de homicídio para homicídio privilegiado, etc.»”; (cfr., v.g., o Ac. de 18.07.2001, Proc. n.°
8/2001, podendo-se também sobre a matéria ver o Ac. de 23.04.2003, Proc. n.° 6/2003, de 09.07.2003, Proc. n.° 11/2003 e de 27.11.2009, Proc. n.° 34/2009).

Na verdade, tem-se em (síntese) entendido que:
- à questão da alteração da qualificação jurídica da acusação para a sentença, em processo penal, não está regulada expressamente no C.P.P.M.;
- à alteração da qualificação jurídica deve aplicar-se, por analogia, o disposto no n.° 1, do art. 339° do C.P.P.M., devendo o juiz comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa;
- quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada o juiz tem sempre de observar o contraditório; (cfr., também v.g., Manuel Leal-Henriques in, “Anotação e Comentário ao C.P.P.M.”, Vol. II, 2014, pág. 718 e 719, onde salienta igualmente que “seguro que o juiz, garantido os direitos de defesa do arguido, reconhecidos expressamente no art.° 50.°, n.° 1, al. b), pode proceder à requalificação jurídica dos factos que venham a ser sujeitos ao seu julgamento, sempre e quando o anterior enquadramento não lhe parecer correcto e apropriado”).

Motivos não havendo para se alterar o entendimento que se deixou retratado, verificando-se que, sem (prévia) observância do contraditório, alterou o Tribunal de Segunda Instância a “forma de cometimento” e o próprio “tipo” de crime imputado ao arguido, ora recorrente, (implicando – ainda que em abstracto – uma possível aplicação de uma pena mais grave), impõe-se, em face da “omissão” – de uma “diligência” que não se pode deixar de reputar “essencial” e “fundamental” à própria natureza do processo penal – e, assim, da incorrida “nulidade”, decidir no sentido da devolução dos autos ao Tribunal de Segunda Instância para, pelo mesmo Coletivo de Juízes, (e outro motivo não havendo), ser a mesma sanada, proferindo-se, oportunamente, nova decisão, (prejudicado ficando o conhecimento de qualquer outra questão pelo arguido/recorrente colocada).

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso, devendo os autos voltar ao Tribunal de Segunda Instância para os exactos termos consignados.

Pelo seu decaimento pagará o arguido a taxa de justiça de 5 UCs.

Registe e notifique.

Macau, aos 22 de Março de 2023


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Salvaguardado o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa, em que se deverá aplicar o disposto no n.º 2, do art. 339.º do Código de Processo Penal.
2 MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, Livraria Almedina, Coimbra, 11.ª edição, 1999, p. 647 e 648.
3 Contra, ao que parece, G. MARQUES DA SILVA, Curso..., p. 272.
4 Os sublinhados são nossos.
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Proc. 4/2023 Pág. 21