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Processo nº 57/2022
(Autos de recurso civil e laboral)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Nos Autos de Inventário para partilha de bens na sequência do decretado divórcio de A e B (乙), proferiu-se decisão onde se considerou, (na parte que agora releva), que as “verbas 24° e 25° da relação de bens” – uma “fracção autónoma” e um “lugar de estacionamento”, respectiva e devidamente identificados – constituíam bens próprios do cabeça de casal, ex-cônjuge marido, cabendo à interessada, sua ex-esposa, o direito à compensação no valor de MOP$63.070,00; (cfr., fls. 644 a 649 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Oportunamente, e porque inconformada com o decidido, a dita interessada, (B), recorreu para o Tribunal de Segunda Instância que, por Acórdão de 17.02.2022, (Proc. n.° 742/2021), negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida nos seus precisos termos; (cfr., fls. 807 a 822).

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Ainda inconformada, a mesma interessada recorreu para este Tribunal de Última Instância, pedindo, a final, a revogação do Acórdão do Tribunal de Segunda Instância; (cfr., fls. 833 a 903).

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Admitido o recurso, e após contra-alegações do recorrido, (A), (cfr., fls. 931 a 951), foram os autos remetidos a esta Instância.

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Adequadamente processados, (e após novas “conclusões” pela recorrente apresentadas a convite do ora relator), cumpre decidir.

A tanto se passa.

Fundamentação

Dos factos

2. O Tribunal Judicial de Base considerou provados os seguintes “factos”, (que não foram impugnados no anterior recurso para o Tribunal de Segunda Instância):

“1. As partes, B e A, contraíram casamento em Macau no dia 22 de Maio de 2004, cujo regime de bens adoptado foi o da comunhão geral de bens (vide fls. 4 dos autos principais).
2. A interessada, B, propôs em 10 de Abril de 2014 acção de divórcio, registada sob o n.º FM1-16-0019-CDL. O Juízo decidiu em 29 de Abril de 2016 a dissolução do vínculo matrimonial entre a interessada B e o cabeça-de-casal A, e declarou a interessada B a única culpada (vide fls. 240 a 243 dos autos principais).
3. O cabeça-de-casal A celebrou em 18 de Julho de 1997 o contrato de transmissão do contrato-promessa de compra e venda de prédio, a fim de adquirir a qualidade de promitente-adquirente dos bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens (a fracção autónoma sita na [Endereço], 9.º andar D, na Taipa, Macau e o lugar de estacionamento n.º G490) (vide fls. 69 a 76 dos presentes autos).
4. O preço total dos bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens (dois bens imóveis) era de HKD$544.900 (vide fls. 71 a 75 dos presentes autos)
5. Na celebração do supra contrato de transmissão do contrato-promessa de compra e venda de prédio, o cabeça-de-casal A já pagou integralmente o respectivo preço.
6. Para o pagamento do preço dos dois bens imóveis acima referidos, o cabeça-de-casal A contraiu um empréstimo de valor de MOP$400.000 junto do C, e celebrou um contrato-promessa de constituição de hipoteca sobre tais bens imóveis (vide fls. 71 a 76 dos presentes autos).
7. Relativamente ao empréstimo de valor de MOP$400.000 contraído junto do C, devia ser reembolsado pelo cabeça-de-casal A em 108 prestações, cujo valor de cada prestação mensal era de MOP$5.436,26, ou seja, podendo este empréstimo ser integralmente reembolsado até 18 de Julho de 2006 (vide fls. 76 dos presentes autos).
8. Desde 18 de Julho de 1997, o cabeça-de-casal A começou a reembolsar, em prestações, o respectivo empréstimo hipotecário.
9. Posteriormente, o cabeça-de-casal A contraiu em 28 de Janeiro de 2003 um empréstimo de valor de MOP$191.000 junto do [Banco(1)], Sucursal de Macau, e celebrou um contrato-promessa de constituição de hipoteca sobre tais bens imóveis (vide fls. 78 a 79 dos presentes autos).
10. Ao mesmo tempo, o cabeça-de-casal A já reembolsou integralmente as dívidas do C.
11. Relativamente ao empréstimo de valor de MOP$191.000 contraído junto do [Banco(1)], Sucursal de Macau, deve ser reembolsado pelo cabeça-de-casal A em 240 prestações, cujo valor de cada prestação mensal é de MOP$1.060, ou seja, podendo este empréstimo ser integralmente reembolsado até 28 de Janeiro de 2023 (vide fls. 79 dos presentes autos).
12. O cabeça-de-casal A e a interessada B celebraram em 12 de Outubro de 2005 uma escritura de compra e venda relativa aos bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens, e constituíram hipoteca a favor do [Banco(1)], Sucursal de Macau (vide fls. 35 a 68 dos presentes autos)”; (cfr., fls. 644 a 644-v e 815 a 816).

Do direito

3. O presente recurso tem como objecto o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 17.02.2022, (Proc. n.° 742/2021), que negou provimento ao anterior recurso pela ora também recorrente interposto da sentença que homologou a partilha nos termos atrás referidos.

Antes de mais, para boa (e cabal) compreensão das razões do (pelas Instâncias recorridas) apreciado e decidido, vale a pena aqui recordar o consignado no seguinte trecho do Acórdão agora impugnado, onde, após se referir à “matéria de facto dada como assente” pelo Tribunal Judicial de Base, se transcreveu também a “fundamentação jurídica” exposta na sentença então recorrida e que tem o teor seguinte:

“Nos termos do disposto no art.º 1644º do Código Civil, dispõe-se:
“1. Os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se torna definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
2. Se a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio se retrotraiam à data, que a sentença deve fixar, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro.
3. Os efeitos patrimoniais do divórcio só podem ser opostos a terceiros a partir da data do registo da sentença ou decisão.”
Nos termos do disposto no art.º 1645º do Código Civil, dispõe-se: “O cônjuge declarado único ou principal culpado não pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.”
No caso vertente, pela razão de que a interessada B foi declarada pelo Juízo única culpada no processo de divórcio, a mesma não pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos.
Nestes termos, o Juízo não só deve atender aos bens que a interessada B pode adquirir em consequência do casamento contraído sob o regime da comunhão geral de bens, mas também deve calcular os bens que a interessada B pode adquirir em consequência do casamento contraído eventualmente sob o regime da comunhão de adquiridos.
Nos termos do disposto no art.º 1609º do Código Civil, dispõe-se:
“Se o regime de bens adoptado pelos cônjuges for o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei.”
Caso o cálculo seja efectuado em conformidade com o regime da comunhão geral de bens, os bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens devem ser considerados como bens comuns das partes.
Nos termos do disposto no art.º 1603º do Código Civil, dispõe-se:
“1. Se o regime de bens adoptado pelos cônjuges for o da comunhão de adquiridos, cada cônjuge conserva o domínio e fruição dos bens que lhe pertenciam à data do casamento ou da adopção superveniente desse regime de bens e passa a ser titular em comunhão com o outro cônjuge dos bens adquiridos por qualquer dos cônjuges na constância desse regime, que não sejam exceptuados por lei, nos termos dos artigos seguintes.
2. Os bens que nos termos do número anterior integrem a comunhão são qualificados como bens comuns e os restantes como bens próprios.”
Nos termos do disposto no art.º 1604º do Código Civil, dispõe-se:
“1. Não fazem parte da comunhão os bens que nos termos dos artigos 1584.º a 1590.º, aplicáveis com as devidas adaptações, sejam considerados excluídos do património em participação, bem como os demais bens indicados no artigo 1610.º
2. A compensação a que, no regime da participação nos adquiridos, haja lugar entre o património em participação e o património dela excluído é entendida para efeitos do presente regime como referida, respectivamente, ao património comum e aos patrimónios próprios dos cônjuges.”
Nos termos do disposto no art.º 1581º do Código Civil, dispõe-se:
“Se o regime de bens adoptado pelos cônjuges, ou aplicado supletivamente, for o da participação nos adquiridos, deve observar-se o disposto nos artigos seguintes.”
Nos termos do disposto no art.º 1583º do Código Civil, dispõe-se:
“Fazem parte do património em participação do cônjuge:
a) O produto do seu trabalho adquirido na constância do regime da participação nos adquiridos;
b) Os bens por si adquiridos na constância do regime da participação nos adquiridos que não sejam exceptuados nos termos dos artigos seguintes ou por lei especial.”
Nos termos do disposto no art.º 1589º do Código Civil, dispõe-se:
“1. Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens do cônjuge incluídos na participação e noutra parte com dinheiro ou bens dela excluídos integram-se no património em participação, se o valor daquela prestação for igual ou superior ao desta; de contrário, ficam excluídos do património em participação.
2. Fica, porém, sempre salva a compensação devida entre os patrimónios do cônjuge.”
No caso vertente, relativamente ao cálculo dos bens do casal sob o regime da comunhão de adquiridos, são os seguintes factos essenciais:
18 de Julho de 1997
A parte masculina adquiriu a qualidade de promitente-adquirente dos bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens e já pagou integralmente o respectivo preço de HKD$544.900.

A parte masculina contraiu um empréstimo de valor de MOP$400.000 junto do C, e celebrou um contrato-promessa de constituição de hipoteca sobre tais bens imóveis.

A parte masculina começou a reembolsar, em prestações, o respectivo empréstimo hipotecário. O pagamento foi efectuado em 108 prestações, cujo valor de cada prestação mensal era de MOP$5.436,26, ou seja, podendo este empréstimo ser integralmente reembolsado até 18 de Julho de 2006.
28 de Janeiro de 2003
A parte masculina já tinha integralmente reembolsado as dívidas do C, mas, contraiu um empréstimo de valor de MOP$191.000 junto do [Banco(1)], Sucursal de Macau, e celebrou um contrato-promessa de constituição de hipoteca sobre tais bens imóveis. O respectivo empréstimo deve ser reembolsado em 240 prestações, cujo valor de cada prestação mensal é de MOP$1.060, ou seja, podendo este empréstimo ser integralmente reembolsado até 28 de Janeiro de 2023.
22 de Maio de 2004
As partes contraíram casamento, cujo regime de bens adoptado foi o da comunhão geral de bens.
12 de Outubro de 2005
As partes celebraram uma escritura de compra e venda relativa aos bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens, e constituíram hipoteca a favor do [Banco(1)], Sucursal de Macau.
10 de Abril de 2014
A interessada, B, propôs acção de divórcio, registada sob o n.º FM1-16-0019-CDL. O Juízo decidiu em 29 de Abril de 2016 a dissolução do vínculo matrimonial entre as partes, e declarou a interessada B a única culpada.
Relativamente aos bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens, o empréstimo hipotecário devido pela parte masculina era de MOP$191.000 em 28 de Janeiro de 2003, sendo valor esse definitivamente inferior a metade do preço dos respectivos imóveis de HKD$544.900.
Relativamente a todos os empréstimos já reembolsados antes de 28 de Janeiro de 2003, foram todos pagos com bens próprios da parte masculina.
Assim, nos termos do disposto no art.º 1589.º, n.º 1 do Código Civil, os bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens pertencem à parte masculina, ou seja, os bens próprios do cabeça-de-casal A.
Isto é, caso o cálculo dos bens comuns do casal seja efectuado com base no regime da comunhão de adquiridos, os bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens não devem ser considerados como bens comuns do casal.
No entanto, nos termos do disposto no art.º 1583.º, al. a) do Código Civil, o produto do trabalho adquirido pelas partes na constância do matrimónio são bens comuns do casal.
Nestes termos, na constância do matrimónio das partes, ou seja, 22 de Maio de 2004 a 10 de Abril de 2014, relativamente ao empréstimo hipotecário já reembolsado pela parte masculina com o produto do seu trabalho adquirido, nos termos do disposto no art.º 1589º, n.º 2 do Código Civil, a interessada B tem direito a compensação, que deve ser metade do montante de MOP$126.140 (MOP$1060 x 119 meses), ou seja, MOP$63.070.
Uma vez que os bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25 da relação de bens são bens próprios do cabeça-de-casal A, pelo que a interessada B não deve assumir em conjunto as dívidas das verbas n.ºs 2 a 5 da relação de bens.
Daí pode-se ver que, nos termos do disposto no art.º 1645.º do Código Civil, o valor a ser calculado com base no regime da comunhão de adquiridos é o dos bens que a interessada B pode adquirir na presente causa.
Pelo exposto, relativamente à forma de distribuição das verbas n.ºs 1 a 23 da relação de bens, será processada conforme o acordo alcançado pelas partes na conferência de interessados (vide fls.435 a 436 dos autos).
Relativamente aos bens constantes das verbas n.ºs 24 e 25, à dívida constante da verba n.º 1 da relação de bens (dividas comuns) e, às dívidas constantes das verbas n.º 2 a 5 (as prestações devem ser efectuadas pela requerente B ao cabeça-de-casal), não devem ser calculados por não se tratarem de bens comuns do casal, mas, a interessada B tem direito à compensação no valor de MOP$63.070.
Ordene à Secretaria a elaboração do mapa da partilha em conformidade com o que acima ficou dito”; (cfr., fls. 816 a 818-v).

Seguidamente, consignou o Tribunal de Segunda Instância o que segue:

“Posteriormente a este despacho veio a ser elaborado o mapa da partilha relativamente ao qual não foi deduzida reclamação e sentença de homologação da partilha.

Face ao disposto no nº 5 do artº 1011º do CPC este recurso da sentença da partilha visa impugnar o despacho determinativo da partilha quanto se considera que as verbas nº 24 e 25 são bens próprios do cabeça-de-casal e à interessada agora recorrente assiste apenas o direito à compensação no valor de MOP63.070,00.

Com base na factualidade constante do despacho determinativo da forma à partilha o que resulta apurado é que o cabeça de casal anos antes do casamento prometeu comprar duas fracções autónomas e pagou integralmente o respectivo preço de HKD544.900,00, tendo para o efeito contraído um empréstimo junto do C o qual vem a ser integralmente liquidado e substituído por outro empréstimo contraído junto do [Banco(1)] sucursal de Macau no valor de MOP191.000,00, tudo se passando entre 18.07.1997 e 28.01.2003.
Ou seja em 28.01.1993 do valor de HKD544.900,00 pelo qual as fracções autónomas haviam sido compradas havia apenas a pagar, em sede de empréstimo contraído para o efeito, o valor de MOP191.000,00, isto é HKD185.436,89, estando liquidado o valor de HKD359.463,11.
Cabeça-de-casal e interessada casaram um com o outro em 22.05.2004 segundo o regime de comunhão geral de bens.
Em 12.10.2005 o cabeça-de-casal e interessada celebram escritura de compra e venda das verbas descritas sob os nºs 24 e 25 da relação de bens e constituem hipoteca sobre as fracções em causa para garantia do empréstimo antes contraído pelo cabeça de casal junto do [Banco(1)] Sucursal de Macau.
Resulta ainda que este empréstimo contraído junto do [Banco(1)] era pago em 240 prestações de MOP1.060,00 cada uma.
Entre a data em que os interessados se casaram entre si e a data do divórcio foram pagas 119 prestações no valor global de MOP126.140,00.
O divórcio foi decretado por culpa exclusiva da cônjuge mulher agora Recorrente.

Entende a Recorrente que a decisão recorrida enferma de erro na aplicação do direito uma vez que, tendo as fracções sido adquiridas na pendência do casamento beneficia da presunção decorrente do registo e consequentemente aquelas são bem comum, sendo certo que quando se pede que se declare que sejam bem próprio do cabeça-de-casal não se pediu o cancelamento do registo.

Vejamos então.

Por força do disposto no artº 1645º do C.Civ. a interessada B não pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos.

De acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 do artº 1584º, “ex vi” nº 1 do artº 1604º todos do C.Civ. estão excluídos da comunhão “os bens ou valores do cônjuge, adquiridos na constância do regime” de comunhão nos adquiridos, “que lhe advierem (…) por virtude de direito próprio anterior ao casamento ou à adopção do regime de bens” de comunhão de adquiridos.
Estão também excluídos da comunhão os bens adquiridos com dinheiro do cônjuge excluído da comunhão, nos termos da alínea c) do artº 1587º “ex vi” artº 1604º ambos do C.Civ.

Ora, as escrituras de compra e venda das verbas nº 24 e 25 foram feitas durante a constância do casamento, mas o direito de crédito à aquisição dos mesmos vem de direito adquirido antes do casamento e o pagamento do respectivo preço – sem prejuízo do que se vier a decidir a posteriori quanto ao pagamento do empréstimo contraído para o efeito – foram feitos pelo cônjuge marido quando ainda era solteiro e como tal com dinheiro excluído da comunhão de adquiridos, por o ter antes do casamento.

Tem vindo a Doutrina e Jurisprudência a entender que os bens adquiridos na sequência de contrato de promessa de compra e venda celebrado antes do casamento são bens próprios.
Neste sentido veja-se Manuel Trigo em Lições de Direito de Família e Sucessões, Vol. II, pág. 231: «E quanto aos bens adquiridos por contrato prometido, em consequência de contrato-promessa celebrado antes da vigência de regime da comunhão de adquiridos? Pese embora a controvérsia, designadamente de que só se limita ao caso de o contrato-promessa ter eficácia real poder entender que se adquire por força de direito anterior, entende-se que os bens adquiridos durante o casamento em cumprimento de contrato-promessa celebrado anteriormente devem ser considerados próprios, tenha o contrato-promessa eficácia real ou apenas obrigacional, tal como quando são adquiridos com base no direito de preferência, real ou obrigacional, sem prejuízo de eventuais compensações entre patrimónios1.».
Em sentido idêntico se decidiu em Jurisprudência comparada de Portugal no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 08.02.2001 no processo nº 00066612:
«O artº 1722º CC prevê algumas situações em que bens adquiridos na constância do matrimónio são, não obstante, considerados bens próprios do cônjuge adquirente.
Então nesta situação os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior Nº 1, alínea c) daquele preceito.
O nº 2 enumera, com carácter meramente exemplificativo, algumas situações deste tipo.
Não é caso se antes da celebração do casamento o cônjuge celebrou, por documento particular, um contrato promessa de compra e venda tendo por objecto o andar em causa.
Como é próprio deste tipo de negócios, tal contrato apenas gerou efeitos meramente obrigacionais que, relativamente ao promitente comprador, consistem no direito a exigir do outro contraente a celebração do contrato prometido.
Deste modo, o facto de a aquisição do imóvel (que ocorreu na constância do matrimónio) ter sido precedida por um contrato promessa, não significa que tal aquisição ocorreu “por virtude de direito próprio anterior”.
Só assim seria se àquele contrato promessa tivesse sido atribuída eficácia real, pois nesse caso teria constituído, na esfera patrimonial do promitente comprador, um, direito real de aquisição, situação análoga à da usucapião; da compra anterior ao casamento, com reserva de propriedade; e da preferência; todas previstas ao nº 2 do citado artº 1722º, como exemplificando casos de bens adquiridos por virtude de direito próprio anterior. Entendimento diferente resultaria da circunstância de o adquirente, ao celebrar o contrato-promessa, ter pago, a título de sinal, a totalidade do preço.
Neste caso, justificar-se-ia a equiparação, para estes efeitos, do contrato promessa ao contrato de compra e venda, pois o pagamento da totalidade do preço realiza, da parte do comprador, a plenitude da prestação devida pela aquisição do bem que, considerando-se transmitido para o património do adquirente antes do casamento, seria sempre bem próprio do cônjuge marido.
Tal entendimento encontra também apoio (por analogia) na regra do artº 1723º, alínea c) do CC, na medida em que consagra o princípio segundo o qual os bens adquiridos com dinheiros próprios de um dos cônjuges são bens próprios do cônjuge adquirente.
Ora, se ainda ao estado de solteiro, o adquirente paga, mesmo a título de sinal, a totalidade do preço, aquele bem sempre manterá a qualidade de bem próprio após o seu casamento em regime de comunhão de adquiridos.».

Por último consagra o artº 1589º “ex vi” artº 1604º ambos do C.Civ. que os bens adquiridos em parte com dinheiro incluído na comunhão e parte dela excluído, ficam excluídos do património comum, se a parte excluída da comunhão for superior àquela outra, sem prejuízo da compensação devida ao património comum.
Destarte, seja porque os bens são adquiridos na constância do casamento em virtude de direito anterior do cônjuge marido seja porque foram pagas quase na totalidade com dinheiro do cônjuge marido antes do casamento, seja porque o valor pago com dinheiro do cônjuge marido enquanto solteiro é consideravelmente superior ao que foi pago durante o casamento com dinheiro comum, impõe-se concluir que as duas fracções autónomas em causa são bens próprios do cônjuge marido, aqui cabeça-de-casal.

A tal não obsta a presunção decorrente do registo se estivermos no domínio das relações entre cônjuges.
Neste sentido vejam-se em Jurisprudência comparada de Portugal os Acórdãos da Relação de Lisboa de 02.07.2015, Procº 2978/12.2TBTVD.L1-22 e do STJ de 28.05.2015, Procº nº 2062/133.
Note-se que a jurisprudência que sustenta que os bens adquiridos na constância do casamento com base em contrato de promessa de compra e venda realizado por um dos cônjuges antes do casamento assenta na circunstância do empréstimo contraído para a aquisição desses bens ser pago e liquidado durante o casamento com dinheiro comum dos cônjuges sendo este valor bastante superior ao do eventualmente pago a título de sinal aquando da celebração do contrato de promessa, situação que não é a dos autos.
Assim sendo, com base em todo o exposto bem andou o tribunal “a quo” ao considerar as verbas nº 24 e 25 como bem próprio do cabeça-de casal e excluí-las da partilha de bens na sequência do divórcio.

Por fim, embora o tribunal não tenha de rebater toda a argumentação usada nas conclusões de recurso, para que dúvidas não subsistam, de igual modo não assiste razão à Recorrente quando vem invocar o direito ao incremento do valor patrimonial das fracções autónomas. Os cônjuges não são nem nunca foram casados no regime de participação nos adquiridos, nem é esse o regime que se aplica em função da Recorrente ter sido declarada culpada no divórcio.
Por outro lado, sendo a partilha feita quanto à Recorrente como estando casada no regime de adquiridos, sendo o bem próprio do cabeça-de-casal a valorização do mesmo cabe ao titular do bem, pelo que, improcede também este argumento do recurso assim como todos os demais em contrário ao exposto.

III. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
(…)”; (cfr., fls. 818-v a 822).

Feita a transcrição que antecede, debrucemo-nos sobre os “motivos do inconformismo” da ora recorrente.

Analisadas as suas longas (alegações e) “conclusões” – e fazendo-se aqui referência às “novas conclusões” apresentadas na sequência do convite para as sintetizar, mas que mesmo assim vem apresentadas em “87 números”, ocupando 20 páginas, (cfr., fls. 976 a 997) – verifica-se que, (em síntese que se nos mostra acertada), pela ora recorrente são-nos trazidas as seguintes (3) “questões” para apreciação:
- “violação de caso julgado”, (cfr., concl. 1ª a 29ª);
- “abuso do direito” e “violação do princípio da boa fé” pelo recorrido, (cfr., concl. 30ª a 55ª); e,
- “natureza dos bens descritos nas verbas 24° e 25° da relação de bens” e o “direito (fundamental) da recorrente quanto à sua propriedade”; (cfr., concl. 56ª a 85ª).

Reflectindo sobre o que os presentes autos nos dão conta, e ponderando o pelas Instâncias recorridas decidido, adequado se nos mostra desde já uma “nota preliminar”.

É a seguinte.

Nota-se que a recorrente “insiste” na “questão” da “natureza dos bens descritos nas verbas 24° e 25° da relação de bens” já tratada pelo Tribunal Judicial de Base e, (posteriormente), inteiramente confirmada pelo Tribunal de Segunda Instância, suscitando duas “novas questões”: relativamente à “violação de caso julgado” e “abuso do direito (e violação da boa fé)”.

Ora, como resulta – clara e expressamente – dos art°s 581°, 598° e 599° do C.P.C.M., os “recursos” são meios processuais por lei facultados às partes para “impugnar decisões judiciais proferidas”, e não – certamente – para provocar “decisões novas”, (sobre “matéria” ou “questões” antes não colocadas e que não foram objecto de pronúncia na decisão objecto do recurso).

Na verdade, (e como cremos ser firme e pacífico na doutrina sobre a matéria), os recursos visam possibilitar a reapreciação de questões de facto e/ou de direito que no entender do recorrente foram mal decididas (ou julgadas) no Tribunal a quo, não se destinando (portanto) a conhecer e decidir “questões novas”, ou seja, de questões que não tinham sido, (nem o tinham que ser, porque não suscitadas pelas partes), objecto da decisão recorrida; (cfr., v.g., João de Castro Mendes in, “Recursos”, 1980, pág. 27 e segs.; Lopes do Rego in, “Comentários ao C.P.C.”, Vol. I , 2ª ed., pág. 566; Amâncio Ferreira in, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9ª ed., pág. 153 a 158; Armindo Ribeiro Mendes in, “Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007”, 2009, pág. 81; e António Abrantes Geraldes in, “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2010, pág. 103 e segs., no mesmo sentido, e entre outros, o Ac. deste T.U.I. de 03.04.2020, onde em sumário se consignou que “O recurso (“ordinário”), como é o caso, é de “reponderação”, visando a reapreciação de uma decisão proferida atento os condicionalismos e elementos (até aí) disponíveis nos autos, não sendo o meio processual próprio para se colocar “questões novas”, não submetidas à apreciação do Tribunal recorrido”, podendo-se, também ver, mais recentemente, o Ac. de 24.02.2021, Proc. n.° 206/2020, de 18.06.2021, Proc. n.° 62/2021, de 18.05.2022, Proc. n.° 38/2022 e de 01.06.2022, Proc. n.° 13/2022).

Nesta conformidade, sendo de considerar as duas referidas questões agora colocadas – da “violação de caso julgado” e “abuso do direito (e violação da boa fé)” – como “questões novas”, (dado que não foram oportunamente suscitadas, nem foram objecto de pronúncia do Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância), seria caso para se concluir em conformidade, ou seja, pelo seu não conhecimento e rejeição.

Porém, e como por qualquer interessado (ou estudioso) da área do direito é – certamente – sabido, “toda a regra tem” – ou quase sempre tem – “a sua excepção”, sendo, exactamente, esta a situação.

Com efeito, atento o preceituado no art. 583°, n.° 2, al. a) do C.P.C.M., evidente se apresenta que o presente recurso deve prosseguir no que toca à invocada “violação de caso julgado” – pois que aí se preceitua que “O recurso é sempre admissível, independentemente do valor: a) Se tiver por fundamento a violação das regras de competência, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 34.º, ou a ofensa de caso julgado; (…)” – o mesmo sucedendo com o alegado “abuso do direito”, pois que como instituto jurídico basilar e estruturante, (cfr., art. 326° do C.C.M.), impensável seria a manutenção na ordem jurídica de decisões judiciais que representassem uma sua pública manifestação; (cfr., v.g., o Ac. de 03.11.2021, Proc. n.° 90/2021, onde expressamente se considera “questão de conhecimento oficioso”).

Isto dito, e esclarecido nos parecendo assim ficar que nada obsta a que esta Instância se pronuncie sobre (todas) as questões que nos são trazidas, eis o que em relação às mesmas se nos mostra adequado consignar.

–– Pois bem, em prol do princípio da economia processual, apresenta-se de aqui acolher e confirmar, na íntegra, o que se decidiu relativamente à “natureza dos bens descritos nas verbas 24° e 25°”, pois que o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância ora recorrido tratou da dita “questão” – que em sede do recurso então aí interposto foi igualmente suscitada – de forma (absolutamente) clara e adequada, identificando e justificando, judiciosamente, as razões da solução a que se chegou de forma (perfeitamente) completa e correcta, nada havendo a acrescentar, (especialmente, atento o que pela ora recorrente vem agora alegado e concluído, e que, em boa verdade, nenhum “argumento novo” apresenta, limitando-se, muito infelizmente, a explanar, o que se pode apelidar de meros “estados de alma” que, sem prejuízo do muito respeito a melhor opinião, apresentam-se totalmente descabidos no âmbito do que na presente lide recursória deve ser, e se tem, como relevante).

–– Nesta conformidade, e necessárias não se justificando mais considerações sobre a referida questão, avancemos para as restantes duas, atrás referenciadas como “novas”.

Ora, também em relação a estas, muito não se afigura de dizer, pois que, em nossa opinião, manifesto é que nenhuma razão tem a ora recorrente que – a todo o custo, e como se irá ver – se limita a alegar o que – pura e simplesmente – não existe…

Vejamos.

Quanto à alegada “violação do caso julgado”, eis o que em sede das suas – novas – “conclusões” diz a ora recorrente:

“(i) Excepção dilatória da infracção de caso julgado – existência do despacho homologatório da transacção e o conhecimento oficioso

1. O bem alínea 24 dentro da relação de bens no caso em apreço refere-se à fracção autónoma sita na [Endereço], 9.º andar D, na Taipa, Macau; o bem alínea 25 dentro da relação de bens refere-se ao lugar de estacionamento n.º G490 sito na [Endereço], Macau.
2. Pela acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos e pelo despacho a fls. 461 dos autos já está confirmado desde há muito tempo que a propriedade dos bens alíneas 24 e 25 acima referidos foi adjudicada ao recorrido e que o recorrido devia pagar MOP 3.700.000 à recorrente a título de tornas, o que constituía o acordo de transacção.
3. A acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos é contrato de transacção previsto pelo art.º 1172.º do CC e é conforme a forma escrita prevista pelo art.º 1174.º do CC. Tanto a acta como o despacho acima referido reconhecem que tal foi transacção judicial.
4. O acordo acima referido realizou-se com a presença da recorrente, o mandatário do recorrente, o recorrido e o mandatário do recorrido. Perante a Mm.ª Juíza do tribunal a quo, a recorrente e o recorrido atingiram o acordo acima referida que foi registrado por escrito. O acordo nasceu do consenso chegado de forma livre, voluntária e consciente (art.º 224.º, n.º 1 do CC, a sensu contrario)
5. Um período de tempo suficientemente longo para preparativo e reflecções precedem o acordo acima referido que se fixou em 03/10/2018;
6. A recorrente e o recorrido obrigam-se a cumprir pontualmente tal acordo (art.º 400.º, n.º 1 do CC).
7. No encontro para reconciliação presidido pelo tribunal a quo, como o acordo de transacção proposto por ambas as partes é em conformidade com a lei, o tribunal a quo não pôde fazer outro senão homologar tal acordo. Não existiu nada como uma decisão judicial de "homologação temporária" ou de "homologação provisória";
8. O despacho acima referido que "homologou provisoriamente" o acordo baseava-se em que desde que a recorrente e o recorrido não interpusessem recurso do despacho no prazo de 10 dias depois de ambos terem tomado conhecimento do despacho (art.º 582.º do CPC), o despacho acima referido que "homologou provisoriamente" o acordo transitaria num despacho confirmativo do acordo.
9. Sem qualquer recurso interposto do recurso, o recurso passou da homologação provisória para a homologação definitiva.
10. Tal como afirma o advogado português Dr. Abílio de Neto sobre a sentença homologatória de transacção transitada em julgado, «5. I- A transacção judicial, desde que homologada por sentença transitada em julgado e, no caso de ter sido efectuada por documento autêntico ou particular, desde que satisfeitas estejam as exigências de forma da lei substantiva, pode operar a transmissão de imóveis; ……6.I - A sentença homologatória, embora não conheça do mérito da causa, no entanto ao apropriar-se das cláusulas do contrato de transacção e, em conformidade com o aí concertado pelas partes e tendo ainda por referente a própria controvérsia litigiosa, condenando-as ou absolvendo-as correspondentemente, chama a si a solução de mérito para que aponta tal contrato, acabando por dar ela própria, em concordância com vontade daquelas, a solução do litígio. II - Assim, tal sentença, no caso de aquisição de um direito real por usucapião, é título bastante para comprovar que os autores adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio objecto de registo (Ac. RP, de 9.3.2000: Col. Jur., 2000, 2.º 186).»
11. A acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos e o despacho a fls. 461 dos autos é a sentença homologatória do acordo acima referido (art.º 242.º, n.º 1 e n.º 4 do CPC)
12. Tal como afirma o juiz português Dr. Jacinto Fernandes Bastos sobre a eficácia da decisão judicial homologatória de transacção como caso julgado, «Quanto à confissão e à transacção desde sempre se entendeu que, uma vez homologadas, têm a força de caso julgado; o que as partes acordarem ou o réu confessar tem a eficácia e o âmbito de uma decisão judicial sobre o litígio.»
13. O acordo acima referido já foi homologado e tem a força de caso julgado. Quer dizer que pelo acordo homologado na reunião dos interessados já está resolvido o litígio sobre os bens nas alíneas 24 e 25 no caso em apreço. O recorrido é proprietário de tais bens, sim; mas o recorrido deve pagar à recorrente as tornas acima referidas (art.º 1072.º, n.º 1 do CC e art.º 236.º do CPC)!
14. Em 04/12/2018, a recorrente já comunicou por escrito o tribunal a quo que o recorrido não tinha contactado a recorrente e que não lhe tinha pago as tornas acima referidas (a fls. 464 dos autos).
15. Em 12/12/2018, o recorrido respondeu por escrito que não tinha meios para arranjar tais tornas (a fls. 465 dos autos).
16. Lê-se na acta da reunião dos interessados a fls. 509 a 510 dos autos, «com a conciliação da Mm.ª Juíza, o cabeça-de-casal e a interessada acordaram no seguinte:
1. Ambas as partes declararam não manter o teor do acordo a fls. 499 a 500 dos autos, mas manter o teor do acordo a fls. 435 a 436 dos autos;
2. Ambas as partes concordaram em vender os bens nas alíneas 24 e 25 (imóveis) da relação de bens através de venda judicial.
3. Ambas as partes concordaram em que o cabeça-de-casal servisse de depositário. …
DESPACHO
Considerando a vontade do cabeça-de-casal, da interessada e do credor, este juízo decidiu proceder à venda judicial, pelo qual se cumpra o art.º 755.º do CPC…»
17. De modo algum o despacho acima referido confirmou o art.º 1.º do acordo e a acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos e o despacho a fls. 461 dos autos como decisão judicial despachada homologatória do acordo acima referido.
18. Com tal despacho igualmente já transitado em julgado, o despacho tem a força de caso julgado. Não consente que a recorrente ou o recorrido deite abaixo arbitrariamente o despacho que já homologou a transacção acima referida, assim ofendendo a dignidade e a seriedade da decisão judicial, comprometendo a estabilidade de direito, violando o princípio de "quando a lei não o permite, o proíbe" que se tem sempre seguido no direito público.
19. O despacho acima referido confirmou apenas que tanto a recorrente como o recorrido concordaram em vender os bens nas alíneas 24 e 25 através de venda judicial. De modo algum confirmou a cláusula 1.ª do acordo acima referido. O motivo é que já desde há muito o douto tribunal a quo estava ciente de que pela acta da reunião realizada em 03/10/2018 entre os interessados a fls. 458 a 459 dos autos e pelo despacho a fls. 461 dos autos proferido pelo douto tribunal a quo já estava confirmado desde há muito tempo que a propriedade dos bens alíneas 24 e 25 acima referidos tinha sido adjudicada ao recorrido e que o recorrido devia pagar MOP 3.700.000 à recorrente a título de tornas, o que constituía o acordo de transacção.
20. Realizada a venda judicial e com a venda judicial bem-sucedida dos bens alíneas 24 e 25, o douto tribunal a quo despachou em 12/01/2021 (a fls. 617 dos autos), comunicando a recorrente e o recorrido de que pudessem pronunciar-se sobre a forma de partilha.
21. Através do despacho (de 10/02/2021) a fls. 644 647v (sic – N. da T.) dos autos, decidiu-se que quanto à propriedade do recorrido sobre os bens nas alíneas 24 e 25, era caso de violação total do caso julgado com decisão com trânsito em julgado de que pela acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos e pelo despacho a fls. 461 dos autos já está confirmado desde há muito tempo que a propriedade dos bens alíneas 24 e 25 acima referidos foi adjudicada ao recorrido e que o recorrido devia pagar MOP 3.700.000 à recorrente a título de tornas, o que constituía o acordo de transacção.
22. O douto tribunal a quo até ordenou a elaboração do mapa de partilha de bens com a forma de partilha constante do despacho e em 17/03/2021 proferiu a decisão que confirmou a decisão homologatória a fls. 647 a 648 dos autos e o despacho de admitir o recurso interposto pela recorrente ao TSI (a fls. 654 a 655 dos autos).
23. Tal como afirma Dr. Manuel Leal-Henriques, juiz já aposentado do STJ de Portugal, sobre a decisão judicial homologatória, «Esta 2.ª fase do processo de inventário conclui-se com a sentença homologatória da partilha constante do mapa e operações de sorteio, a proferir pelo juiz no prazo de 5 dias a contar da colusão do processo para o efeito (art.º 1020.º, n.º 1). Esta sentença, porém, não constitui uma decisão igual à aquelas que normalmente são proferidas nos processos, após o respectivo julgamento, pois que, como o próprio nome indica, ela se destina tão simplesmente a autenticar, ou seja, a homologar o que resultou de acordos entre os interessados ou das licitações.»
24. Tal sentença homologatória também violou o caso julgado de que pela acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos e pelo despacho a fls. 461 dos autos já está confirmado desde há muito tempo que a propriedade dos bens alíneas 24 e 25 acima referidos foi adjudicada ao recorrido e que o recorrido devia pagar MOP 3.700.000 à recorrente a título de tornas, o que constituía o acordo de transacção!
25. Ao abrigo do art.º 412.º, n.º 2, do art.º 413.º, alínea j), do art.º 414.º, do art.º 416.º e do art.º 417.º do CPC, compete ao tribunal conhecer oficiosamente da excepção dilatória da violação de sentença transitada em julgado.
26. A acta da reunião dos interessados a fls. 499 a 500 dos autos também admite que a transacção à parte atingida dentro da mesma reunião se difere da transacção atingida na reunião dos interessados realizada em 03/10/2018, enquanto o douto tribunal a quo também indicou ter homologado provisoriamente a transacção acima referida. Portanto, a transacção homologada provisoriamente pelo despacho constante da acta já se tornou caso julgado substancial, então, violou-se a decisão com trânsito em julgado no caso em apreço por ter-se convocado mais de uma reunião dos interessados que deram origem a mais de um caso julgado substancial de homologação da transacção.
27. No presente caso, o caso julgado de que pela acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos e pelo despacho a fls. 461 dos autos já está confirmado desde há muito tempo que a propriedade dos bens alíneas 24 e 25 acima referidos foi adjudicada ao recorrido e que o recorrido devia pagar MOP 3.700.000 à recorrente a título de tornas, o que constituía o acordo de transacção, o qual está a resolver a questão da atribuição da propriedade dos bens nas alíneas 24 e 25 e a da necessidade de pagar as tornas, prevalece vis-à-vis o outro caso julgado substancial proferido em 19/06/2019, porque é a mesma a relação jurídica controvertida visada nos dois casos julgados, enquanto as soluções, opostas (art.º 580.º, n.º 1 do CPC).
28. A sentença proferida pelo douto tribunal a quo violou o caso julgado substancial de que pela acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos e pelo despacho a fls. 461 dos autos já está confirmado desde há muito tempo que a propriedade dos bens alíneas 24 e 25 acima referidos foi adjudicada ao recorrido e que o recorrido devia pagar MOP 3.700.000 à recorrente a título de tornas, o que constituía o acordo de transacção, o qual está a resolver as questões de a relação controvertida da atribuição da propriedade dos bens nas alíneas 24 e 25 e da necessidade de pagar as tornas.
29. O douto TSI, por ter sustentado no acórdão de 17/02/2022 (fls. 807 a 822 dos autos) a decisão homologatória proferida pelo tribunal a quo acima referida, enferma do vício de excepção de violação da decisão com trânsito em julgado”; (cfr., concl. (i), pontos 1° a 29°, a fls. 978 a 984 e 165 a 173 do Apenso).

Pois bem – em apertada síntese, mas que temos como esclarecedora – e como (igualmente) se retira do que se deixou transcrito, é a recorrente de opinião que ocorre “violação de caso julgado” porque o que se veio a decidir não respeitou o (já) deliberado na “reunião de interessados constante da acta de fls. 458 a 459 e a homologação do assim deliberado por despacho de fls. 461”; (cfr., concl. 11ª).

Ora, evidente se nos mostra que o assim entendido não pode prosperar, pois que como a própria alega (e reconhece):

“Pela acta da reunião dos interessados a fls. 458 a 459 dos autos e pelo despacho a fls. 461 dos autos já está confirmado desde há muito tempo que a propriedade dos bens alíneas 24 e 25 acima referidos foi adjudicada ao recorrido e que o recorrido devia pagar MOP 3.700.000 à recorrente a título de tornas, o que constituía o acordo de transacção”; (cfr., concl. 2ª), sucedendo, porém, que posteriormente, em nova “conferência de interessados”, (cfr., fls. 509 a 510), e “com a conciliação da Mm.ª Juíza, o cabeça-de-casal e a interessada acordaram no seguinte:
1. Ambas as partes declararam não manter o teor do acordo a fls. 499 a 500 dos autos, mas manter o teor do acordo a fls. 435 a 436 dos autos;
2. Ambas as partes concordaram em vender os bens nas alíneas 24 e 25 (imóveis) da relação de bens através de venda judicial.
3. Ambas as partes concordaram em que o cabeça-de-casal servisse de depositário. …
DESPACHO
Considerando a vontade do cabeça-de-casal, da interessada e do credor, este juízo decidiu proceder à venda judicial, pelo qual se cumpra o art.º 755.º do CPC…”; (cfr., concl. 16ª, notando-se, que na sua concl. 26ª, faz ainda a mesma recorrente referência a uma outra “conferência de interessados de fls. 499 a 500”, parecendo que o “Processo de Inventário” constitui um “processo sem fim”, como muito infelizmente parece querer ser o que agora nos ocupa).

Que dizer?

Antes de mais, cabe recordar que em sede do “processo especial de inventário”, prescrevendo sobre o seu “momento final”, e sob a epígrafe “Sentença homologatória da partilha”, prescreve o art. 1020° do C.P.C.M. que:

“1. O processo é concluso ao juiz para, no prazo de 5 dias, proferir sentença homologando a partilha constante do mapa e as operações do sorteio.
2. Da sentença homologatória da partilha cabe recurso ordinário para o Tribunal de Segunda Instância, com efeito meramente devolutivo”.

E, em consonância com o assim estatuído, e sob a epígrafe “Valor da sentença transitada em julgado”, preceitua também o art. 574° do mesmo código que:

“1. Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 416.º e seguintes, sem prejuízo do disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiro.
2. Têm o mesmo valor que a decisão referida no número anterior os despachos que recaiam sobre o mérito da causa.
3. Se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação”.

Nesta conformidade, e, à primeira vista, (em resultado de uma análise menos cuidada sobre as especificidades dos “institutos jurídicos em questão”), poder-se-ia – eventualmente – considerar defensável o raciocínio e entendimento pela ora recorrente assumido.

De facto, havendo (já) uma “sentença homologatória da partilha”, da mesma tão só caberia “recurso ordinário para o Tribunal de Segunda Instância”, (cfr., o cit. art. 1020°, n.° 1), e, após o seu “trânsito em julgado”, (por eventual falta de recurso), a mesma “fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele (…), sem prejuízo de recurso de revisão e de oposição de terceiro”; (cfr., art. 574°, n.° 1).

Assim, não tendo havido recurso da homologação do deliberado na “conferência de interessados de fls. 458 a 459”, seria caso para se concluir, (como, efectivamente, conclui a recorrente), que “(…) está resolvido o litígio sobre os bens nas alíneas 24 e 25 no caso em apreço. O recorrido é proprietário de tais bens, sim; mas o recorrido deve pagar à recorrente as tornas acima referidas (art.º 1072.º, n.º 1 do CC e art.º 236.º do CPC)!”, (cfr., concl. 13ª), e que “tudo o que se vier a decidir em desrespeito do assim homologado” constitui “violação de caso julgado”.

Porém, como se deixou adiantado, (e recordando que existem sempre “excepções”…), o desta forma “considerado”, apenas – aparentemente – se apresenta ser a “(boa) solução”, não constituindo a que efectivamente corresponde à prevista no regime – especialmente – estatuído para o “Processo (especial) de Inventário”.

Com efeito, de olvidar não é que – no Capítulo referente à “Emenda e anulação da partilha”, e sob a epígrafe “Emenda por acordo” – prescreve o art. 1024° do C.P.C.M. que:

“1. A partilha, mesmo depois de transitar em julgado a sentença homologatória, pode ser emendada no mesmo inventário por acordo de todos os interessados ou dos seus representantes, se tiver havido erro de facto na relação ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.
2. O disposto neste artigo não obsta à aplicação do artigo 570.º”; (cabendo referir que este normativo do art. 570° se refere à mera “rectificação de erros materiais”).

In casu, (e em nossa opinião), foi – exactamente – o que sucedeu.

Em face das “vicissitudes” que foram surgindo ao longo do processado e tramitado, as partes, a ora recorrente e recorrido, foram “emendando”, (alterando), de comum acordo, a partilha antes homologada e entretanto transitada em julgado, visto estando assim que nenhuma “violação de caso julgado” ocorreu e que (totalmente) improcedente terá de ser o presente recurso no que a esta questão diz respeito.

Admite-se que se podia – eventualmente – “discutir” se integralmente respeitados foram os “pressupostos” do preceituado no transcrito art. 1024° do C.P.C.M..

Porém, como é bom de ver, cabe acentuar que toda a “alteração” respeitou, totalmente, e foi de completo acordo com a “vontade das partes”, não sendo de se perder de vista que tal “questão”, para além de não suscitada, nada tem a ver, (ou em nada se relaciona), com a alegada “violação do caso julgado”, mais não se mostrando assim de consignar para a solução a que se chegou e que efectivamente se nos apresenta de adoptar.

Vejamos, agora, do pela recorrente alegado “abuso do direito” (e violação do princípio da boa fé).

Pois bem, se até aqui, o presente recurso – como cremos que se deixou exposto – era (manifestamente) improcedente, em sede da presente questão, “raia a má fé…”.

Na verdade, se as sucessivas “conferências de interessados” com as referidas “emendas à partilha” (antes já homologada) foram o resultado do (livre) “acordo” da ora recorrente e recorrido, como considerar que incorreu este último em qualquer forma ou modalidade “abuso do direito” ou “violação do princípio da boa fé”?

Alegando a própria recorrente que na “reunião dos interessados a fls. 509 a 510 dos autos, «com a conciliação da Mm.ª Juíza, o cabeça-de-casal e a interessada acordaram no seguinte: 1. Ambas as partes declararam não manter o teor do acordo a fls. 499 a 500 dos autos, mas manter o teor do acordo a fls. 435 a 436 dos autos; 2. Ambas as partes concordaram em vender os bens nas alíneas 24 e 25 (imóveis) da relação de bens através de venda judicial. (…)”, (cfr., concl. 16), como pretender uma decisão (favorável) nos termos que agora requer?

Como se crê se terá deixado claro, evidente se apresenta a resposta, havendo pois que se atentar no regime jurídico (especial) que regula os termos do Processo de Inventário; (no caso, iniciado em 2016, e que, com o ora decidido, esperemos, atinja o seu términus…).

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expendidos, em conferência, acordam negar provimento ao presente recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Pagará a recorrente as custas do presente recurso com a taxa de justiça que se fixa em 15 UCs.

Registe e notifique.

Oportunamente, e nada vindo aos autos, remetam-se os mesmos ao T.J.B. com as baixas e averbamentos necessários.

Macau, aos 17 de Novembro de 2022


Juízes: José Maria Dias Azedo (Relator)
Sam Hou Fai
Song Man Lei

1 Veja-se a posição e a argumentação de ADRIANO PAIVA, A Comunhão de Adquiridos, pp. 115 a 160, em que conclui: “As razões que nos levam a considerar o direito do promissário como um direito próprio anterior são as mesmas que levaram o legislador a incluir o direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento nos exemplos previstos no art. 1722.º, n.º2. Note-se, antes de mais, que o direito de preferência vale aqui, independentemente de estar dotado de eficácia real. Por outro lado, em ambas as situações há um direito nascido no património do adquirente antes do casamento que lhe confere uma situação de vantagem para a qual o outro cônjuge não participou. O legislador, a título meramente exemplificativo, entendeu que os bens adquiridos no exercício de um desses direitos devem ser considerados próprios por virtude de direito próprio anterior. Ora, estando em causa os mesmos interesses e não sendo a enumeração apresentada no art. 1722.º, n.º 2, taxativa, a única solução que nos parece defensável é a de tratar o direito do promissário à celebração do contrato prometido, decorrente de promessa anterior ao casamento, como um direito próprio anterior e, consequentemente, qualificar os bens adquiridos por força desse contrato como bens próprios do promissário. A atribuição de eficácia real ao contrato-promessa não justifica uma solução diferente. Apenas permite que o direito do promissário seja protegido em relação a terceiros.”.
2 25. I - No regime de comunhão de adquiridos, a regra de que os bens adquiridos na constância do casamento são comuns pode ser afastada, entre outros casos, demonstrando-se a sub-rogação indirecta nesses bens de bens próprios de qualquer dos cônjuges, desde que, como resulta da al. c) do art. 1723.º do CC, a proveniência dos bens e valores utilizados na aquisição seja mencionada no documento que titula o acto aquisitivo ou em documento com intervenção de ambos os cônjuges. Inexistindo estes requisitos, o bem deve ser havido como comum. II – Admite-se que as formalidades exigidas na al. c) do citado normativo possam ser supridas por qualquer meio de prova que demonstre que o pagamento foi feito apenas com dinheiro de um dos cônjuges ou com bens próprios de um deles, apenas se estiverem unicamente em causa os interesses dos próprios cônjuges, i.e., nas relações internas entre cônjuges (Ac. RL. de 2.7.2015: Proc. 2978/12.2TBTVD.L1-2.dgsi.Net).
3 24. I – Tendo resultado provado que o autor recebeu um a indemnização de Euros 60 000 decorrente de acidente de viação de que foi vítima, e que o impossibilitou do exercício e vontade sexuais, torna-se inequívoco que tal reparação é um bem exclusivamente seu, por força do disposto no art.1723.º, n.º 1, al. d), do CC. II – Não retira a natureza de bem próprio a circunstância de tal quantia ter sido depositada numa conta comum do casal (Ac. STJ. de 28.5.2015, Proc. 2062/13: Sumário, Maio/2015, p. 66)
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