Processo nº 412/2022
(Autos de Recurso Contencioso)
Data do Acórdão: 28 de Março de 2023
ASSUNTO:
- Indeferimento do pedido de renovação de autorização de residência
- Residência em comum dos cônjuges
- Residência habitual
SUMÁRIO:
- O pedido de autorização de residência “para agrupamento familiar” visa dar consagração legal ao artº 38º da Lei Básica permitindo que as famílias transfronteiriças possam estabelecer o centro da sua vida em Macau no qual um deles tenha o estatuto de residente;
- Contudo, exige-se que o centro da vida familiar, que a residência habitual da família, seja na RAEM. Nem faria sentido que fosse de outro modo, pois, sendo a autorização de residência concedida para o agrupamento familiar – da família de um residente cujos restantes membros não são residentes – não faria sentido que uma vez concedida a autorização a família não tivesse a sua residência habitual em Macau;
- Na base do indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência está o entendimento da Administração segundo o qual a falta de coabitação do Recorrente e do seu cônjuge na RAEM por um período que considera longo constitui obstáculo a essa renovação, uma vez que essa falta consubstancia, implica ou demonstra, o decaimento do pressuposto da reunião familiar que justificou a própria autorização;
- Porém, estando em causa a relação conjugal ou união de facto é fácil de entender que cessando esta – a relação conjugal ou análoga – deixe de se verificar o pressuposto com base no qual a autorização de residência foi concedida – artº 43º nº2 , 3) da Lei 16/2021 -, da mesma forma que, se o residente da RAEM não tiver aqui a sua residência não está verificado o pressuposto para que aquela seja concedida ou mantida, uma vez que não há com “quem” reunir;
- Mas entre uma e outra das situações enunciadas no parágrafo anterior há um elenco de casos possíveis que se impõe sejam avaliados e que podem acontecer no decurso dos sete anos iniciais em que a autorização de residência foi concedida e antes do autorizado residente não permanente passar a ser residente permanente, em que o residente determinante para que a autorização fosse concedida, ou o próprio autorizado, aqui não esteja a viver o tempo que se estima como pressuposto para concluir pela residência habitual, mas que ainda assim, a mesma – a residência habitual – continue a estar na RAEM;
- Limitando-se a Administração a verificar que, objectivamente, durante um determinado período o Recorrente viveu em Macau e o seu cônjuge permaneceu fora de Macau, mas não demonstra que a essa separação física correspondeu, juridicamente, a uma verdadeira separação de facto ou que a residência habitual da família tenha deixado de estar sedeada em Macau, nem que de um ou de ambos os cônjuges não houvesse o propósito de, assim que possível, voltarem a viver na RAEM, verifica-se um erro nos pressupostos de facto, o que é razão bastante para anular a decisão recorrida.
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Rui Pereira Ribeiro
Processo nº 412/2022
(Autos de Recurso Contencioso)
Data: 28 de Março de 2023
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança
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ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA RAEM:
I. RELATÓRIO
A, com os demais sinais dos autos,
vem interpor recurso contencioso do Despacho proferido pelo Secretário para a Segurança de 19.04.2022 que indeferiu o requerimento de autorização de residência, formulando as seguintes conclusões:
1. Tendo sido o Recorrente notificado a Comunicação n.º 201066/SRDARPNT/2022P, junto anexado no Ofício n.º 103597/CPSP-SRDARP/OFI/2022P, emitido pelo Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência, do Corpo de Polícia de Segurança Pública, da Região Administrativa Especial de Macau, donde por despacho de S. Exa. o Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, exarado no Relatório adicional n.º 300040/SRDARPEN/2022P, do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência, do Corpo de Polícia de Segurança Pública, foi “indeferido” a renovação de autorização de residência, em 19 de Abril de 2022, contra o Recorrente, nos termos e com os fundamentos constante do dito relatório;
2. Apesar da Comunicação n.º 201066/SRDARPNT/2022P não é o objecto do presente recurso contencioso, é notório que faltava o texto integral do acto administrativo e o prazo para a impugnação, nos termos dos artigos acima referidos, pelo que a comunicação em causa enferma do vício de falta de fundamento de direito;
3. Na sequência da decisão proferida por S. Exa. o Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau (doravante designado simplesmente por “entidade recorrida”), o Recorrente, salvo melhor respeito, discorda com a decisão recorrida, com os seguintes fundamentos de facto e direito:
4. O Recorrente contraiu o seu matrimónio com cônjuge, B, em 18 de Outubro de 1998, na Região Administrativa Especial de Hong Kong;
5. A cônjuge do Recorrente, B é titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau n.º …;
6. No início da relação matrimonial, o Recorrente e a cônjuge viviam em conjunto no domicílio de residência do Recorrente em Hong Kong, depois, o Recorrente gostou do ambiente da vida de Macau, aliás, a cônjuge era titular do BIRP de Macau, assim, começou a mudar o seu centro fixo da vida a Macau, e o Recorrente iniciou a sua vida e trabalho em Macau, por volta de 2012;
7. A cônjuge do Recorrente é administradora de uma companhia de Hong Kong, denominada “X Manufacturing Limited”, ao mesmo tempo, em 15 de Novembro de 2002, a cônjuge do Recorrente, foi contratada como gerente de contabilidade;
8. Mesmo que a cônjuge do Recorrente tinha que deslocar frequentemente a Hong Kong para o seu trabalho, a mesma depois de serviço até antes de serviço do dia seguinte ou sempre que esteja disponível, deslocava-se sempre entre Hong Kong e Macau, cujo objectivo é para reagrupar com o Recorrente nas refeição, habitação e convivência;
9. Entre 2018 a Março de 2020, a cônjuge do Recorrente, deslocava mensalmente entre Hong Kong e Macau por várias vezes.
10. Em 12 de Janeiro de 2022, o Recorrente apresentou o procedimento de renovação de autorização de residência acima referida;
11. Só que o Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência, do Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau, baseado nos dois anos transactos do Recorrente (a partir de 28 de Fevereiro de 2020 a 27 de Fevereiro de 2021 e de 28 de Fevereiro de 2021 a 04 de Fevereiro de 2022), o mesmo permaneceu de 254 dias em Macau no primeiro ano e de 222 dias em Macau no ano a seguir, ausentou-se de Macau em 18 de Dezembro de 2020 e só tinha regressado em Macau em 28 de Junho de 2021, pois, deixou de viver em Macau com mais de 6 meses; enquanto à cônjuge só viveu em Macau apenas com 12 dias no primeiro ano e não constava qualquer registo de permanência em Macau no ano a seguir, ausentou-se de Macau em 23 de Março de 2020 e só tinha regressada em Macau em 04 de Fevereiro de 2022, pois, deixou de viver em Macau com mais de 22 meses. Portanto, nos termos do artigo 38.º, n.º 2 da Lei n.º 16/2021, designadamente, a alínea 1), e do artigo 43.º, n.º 2, alínea 3), o requerimento de renovação de residência do Recorrente deve ser recusado;
12. Em 28 de Fevereiro de 2022, o Recorrente apresentou ao Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência a audiência escrita e os respectivos documentos;
13. Baseado o teor da supra audiência escrita, o Recorrente esclareceu sobre a situação de trabalho em Hong Kong de cônjuge, referindo ainda que devido a anormal passagem de fronteiras entre Hong Kong e Macau, aliás a cônjuge tinha que cuidar os pais com idades avançadas, fazendo com que fosse impossível a descolar entre Hong Kong e Macau. Ademais, o Recorrente conseguiu arranjar um emprego na qualidade de residente não permanente de Macau, em Março de 2022, assim, desejava que o Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência admita o conteúdo da audiência escrita do Recorrente, autorizando o respectivo requerimento de renovação;
14. A entidade recorrida baseou nos fundamentos lavrados no Relatório adicional n.º 300040/SRDARPREN/2022P, do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência, proferiu a decisão recorrida, em 19 de Abril de 2022;
15. Através do Ofício n.º 103597/CPSP-SRDARP/OFI/2022P, de 26 de Abril de 2022, foi enviada ao Recorrente, por forma de carta registada a supra decisão, e o mesmo recebeu em 03 de Maio de 2022;
16. Salvo melhor respeito, o Recorrente discorda com a decisão recorrida, entendendo que a decisão recorrida enferma de vícios de violação ou erro na aplicação de direito, e nulidade da decisão recorrida;
17. Em primeiro lugar, a decisão recorrida enferma de erro no pressuposto de facto, é notório que a decisão recorrida analisou erradamente os fundamentos de facto e direito do requerimento de residência do Recorrente e cônjuge;
18. A cônjuge do Recorrente trabalhava em Hong Kong e antes do aparecimento de pandemia ela deslocava frequentemente entre Hong Kong e Macau, cujo objectivo é para reagrupar com o Recorrente;
19. É de salientar, o Recorrente é residente permanente de Hong Kong, ele pode optar o regresso a Hong Kong a fim de reagrupar com a cônjuge que estava lá a trabalhar, e não era a cônjuge a deslocar frequentemente entre Hong Kong e Macau as duas regiões;
20. O Recorrente a partir da data de autorização de residência, durante os dois anos, o mesmo permaneceu em Macau de 254 dias e de 222 dias, respectivamente;
21. Caso o Recorrente e a cônjuge não se considerarem Macau como o centro fixo da vida e lugar da residência habitual, os mesmos não valem pena de praticar os actos acima referidos;
22. O mais importante é nos termos do artigo 38.º, n.º 2, alínea 1), da Lei n.º 16/2021: “2. Para efeitos da decisão referida no número anterior, devem ser ponderados, nomeadamente, os seguintes aspectos: 1) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade.”;
23. Em 28 de Fevereiro de 2019, foi autorizado o Recorrente a autorização de residência por forma de reagrupamento com a cônjuge, se a autoridade entendesse que a forma da vida do Recorrente e da cônjuge não atingirem o objectivo e a viabilidade de reagrupamento entre cônjuges, assim, devia ser logo indeferido o Recorrente na altura em que o mesmo tinha apresentado o requerimento de autorização de residência, cujo objectivo de reagrupamento com a cônjuge;
24. A entidade recorrida tinha já ponderada materialmente o facto de a cônjuge tinha que trabalhar frequentemente em Hong Kong, constante do requerimento de autorização de residência apresentado pelo Recorrente em 2019, e entendendo que este facto nada impedia o objectivo de reagrupamento entre o Recorrente e a cônjuge, pelo que foi autorizada a autorização de residência do Recorrente;
25. A cônjuge do Recorrente assumia um cargo importante na gestão da aludida companhia, ela tinha que trabalhar e comparecer pessoalmente na sede da dita companhia. Antes da pandemia, a mesma deslocava frequentemente entre Hong Kong e Macau as duas regiões, um lado a trabalhar em Hong Kong e por outro lado, sempre após o trabalho, regressava imediatamente a Macau a fim de reagrupar e conviver com o Recorrente;
26. Na altura em que Hong Kong desenvolveu numa fase grave de pandemia de novo coronavírus, tantos os funcionários públicos ou trabalhadores das empresas privadas eram permitidos de ficar em casa a trabalhar, mas a companhia de cônjuge do Recorrente não aplicou este método de trabalho aos trabalhadores, apenas optou o horário flexível de trabalho, fazendo com que a cônjuge obrigasse de comparecer na companhia a trabalhar;
27. Torna-se a salientar que a cônjuge do Recorrente tinha que cuidar os pais com idades avançadas e de fraca saúde, a fim de cumprir a sua obrigação e dever de filha, fazendo com que a mesma ficasse impossível ausentar-se de Hong Kong em longo tempo, durante a fase grave de pandemia e regressar a Macau, pois, é diferente o entendido pela entidade recorrida que a permanência em Hong Kong da cônjuge do Recorrente era uma opção pessoal;
28. Em Hong Kong, a pandemia ocorreu desde 31 de Dezembro de 2021 até uns dias atrás o aparecimento da “5.ª Fase de Pandemia de Novo Coronavírus”, os pais de cônjuge do Recorrente foram infeccionados em 25 de Fevereiro de 2022;
29. Os colegas de trabalho de cônjuge do Recorrente, foram sucessivamente infeccionados, fazendo com que a cônjuge do Recorrente preocupasse os estados dos pais infeccionados e da própria saúde por não saber quando iria ser infeccionada. Caso ficasse infeccionada e regressando a Macau, causará com certeza uma situação irrecuperável à sociedade de Macau.
30. Ademais, devido a evolução da “5.ª Fase de Pandemia de Novo Coronavírus”, em Hong Kong, causou a morte da mãe de cônjuge do Recorrente por infecção de pandemia de novo coronavírus, em 05 de Março de 2022;
31. É impossível a cônjuge do Recorrente deixar o seu pai de 89 anos de idade e recém-recuperado, a ficar sozinho a viver em Hong Kong;
32. A decisão recorrida baseou meramente os 12 dias de permanência em Macau da cônjuge do Recorrente, durante os dois anos transactos, assim, entendendo que o Recorrente e a cônjuge não viveram em conjunto, o que não reunindo o pressuposto de autorização de residência inicial deferido ao Recorrente, isto mostra-se que não tinha avaliado materialmente a situação real, pois, é notório que houve erro no pressuposto de facto;
33. É impossível a decisão recorrida basear meramente os números de dias de permanência em Macau de cônjuge do Recorrente, para avaliar se o Recorrente atingia ou não o objectivo e a viabilidade de residência em Macau, por contrário, deve ser avaliado globalmente todo o esforço feito pelo Recorrente a fim de reagrupar com a cônjuge;
34. Até aos 16 de Maio de 2022, de acordo com as novas medidas de prevenções de pandemia da RAEM, todos os residentes de Macau, que tiveram deslocados em Hong Kong, antes da sua entrada de fronteira, são obrigatórios apresentar o certificado com resultado negativo do teste de ácido nucleico, a contar a partir de 24 horas após da colheita de amostra e a realização de observação médica durante 14 dias, bem como a monotorização de auto-saúde, durante 7 dias;
35. A impossibilidade do regresso a Macau de cônjuge do Recorrente não era uma mera opção pessoal, foi causada por motivo das limitações de entrada e saída de fronteiras estipuladas entre as duas regiões contra a pandemia. A cônjuge do Recorrente sendo filha e administradora de uma companhia, existindo assim, uma questão base de responsabilidade e ela tem que assumir esta responsabilidade. Ademais, as limitações de entrada e saída de fronteiras, causando por um lado, a impossibilidade com uma vida de deslocação frequente entre as duas regiões, e por outro lado, era impossível por este motivo, deixar de cuidar os pais com idades avançadas e de fraca saúde, e muito menos era deixar o seu trabalho, perdendo o próprio rendimento económico;
36. O governo de Macau não aplicou as medidas que recusavam a entrada dos residentes, mas perante esta situação especial, continuando a obrigar a cônjuge do Recorrente a desistir o seu próprio trabalho de ganhar a vida e dos seus pais, cujo objectivo para viver em Macau junto do Recorrente a fim de satisfazer as condições de residência, essa exigência parece que estava a violar às razões humanitárias, nos termos do artigo 38.º, n.º 2, alínea 6), da Lei n.º 16/2021;
37. Pelos factos expostos, a decisão recorrida onde entendeu o acto de cônjuge do Recorrente de trabalhar em Hong Kong era uma opção pessoal, aliás, durante a pandemia não tinha aplicada aos residentes nenhuma medida de recusa de entrada de fronteira, o Recorrente e cônjuge eram titulares do BIR de Macau, podiam entrar e sair da fronteira livremente de acordo com o cumprimento das medidas de prevenções de pandemia, mas este fundamento parece que não reúne ao facto, por isso é notório que a decisão recorrida enferma de vício de erro no pressuposto do facto;
38. Por outro lado, a decisão recorrida enferma ao mesmo tempo os vícios de erro na aplicação e interpretação de direito;
39. A entidade recorrida proferiu a decisão recorrida nos termos do artigo 38.º, n.º 2 da Lei n.º 16/2021, designadamente, a alínea 1), e do artigo 43.º, n.º 2, alínea 3);
40. Prestamos atenção que a decisão recorrida proferida pela entidade recorrida foi baseada meramente nos termos do artigo 38.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2021, o que faltava ainda uma análise global e uma ponderação ao Recorrente se ele reunia ou não as condições consagradas nos termos do artigo 38.º, n.º 2 da lei supracitada;
41. O Recorrente começou a exercer actividade de construção e profissionalismo de obras em Macau, a partir de 2012, ele possuía a respectiva experiência com ou mais de 10 anos e o seu conhecimento era relevante para a área de obras em Macau, criando uma imagem positiva, e através deste emprego o Recorrente conseguia ganhar o seu meio de subsistência;
42. O Recorrente não consta nenhum registo criminal, compulsado o presente autos administrativos, também não se mostra o Recorrente visava qualquer procedimento criminal ou ser julgado, isto é, o Recorrente é cumpridor da lei durante a sua residência em Macau, contudo, não há qualquer fundamento para recusar a sua entrada da fronteira;
43. Os factos acima referidos estão lavrados nos autos administrativos, desde a apresentação do requerimento de residência do Recorrente até à sua audiência escrita feita, tendo ele apresentado todos os documentos e comprovativos em relação ao seu registo criminal e trabalho. É notório que no momento em que a entidade recorrida proferiu a decisão recorrida não ponderou globalmente a situação do Recorrente, nos termos do artigo 38.º, n.º 2, da Lei 16/2021, pelo que a decisão recorrida enferma de vício de violação de direito;
44. A entidade recorrida baseou ao mesmo tempo nos termos do artigo 43.º, n.º 2, alínea 3) da mesma lei e proferiu a decisão recorrida: “2. A autorização de residência na RAEM pode ser revogada, por despacho do Chefe do Executivo: 3) Quando o titular deixar de ter residência habitual na RAEM ou deixar de verificar-se algum dos requisitos, pressupostos ou condições subjacentes à concessão da autorização de residência.”
45. Quanto ao conceito de residência habitual, segundo o Acórdão n.º 268/2021, do douto Tribunal de Segunda Instância, tendo citado a interpretação do académico português (Mota Pinto. Teor. Ger. Dir. Civ., 3.ª ed.-258): “- Sem prejuízo do conceito legal de residência habitual fixado no artigo 30.º/2 do CCM, a doutrina entende por residência habitual o local onde a pessoa vive normalmente, onde costuma regressar após ausências mais curtas ou mãos longas em prejuízo de ausência prolongada por motivos ponderosos.”;
46. O Recorrente foi autorizado a sua autorização de residência, a partir de 28 de Fevereiro de 2019, durante dois anos, o Recorrente permaneceu em Macau de 254 dias e 222 dias, respectivamente, ao mesmo tempo, o Recorrente trabalhava sempre nesta região, é sem dúvida que o Recorrente considerava Macau como a sua residência habitual;
47. A decisão recorrida indicou que a cônjuge do Recorrente só tinha permanecida 12 dias em Macau, durante os dois anos transactos, assim, pelo que entendendo que o Recorrente e a cônjuge não viveram em conjunto em Macau;
48. É de salientar, nos termos da Lei n.º 16/2021, nunca obrigava aos indivíduos com residência habitual em Macau tem que permanecer em certos dias por ano em Macau;
49. Identicamente, no Acórdão n.º 268/2021, do douto Tribunal de Segunda Instância, referiu que: “- Em direito administrativo, residência habitual é um conceito impreciso classificatório, cujo preenchimento solicita a constatação de dados descritos-empíricos e a sua imprecisão se dissolve em sede de interpretação, logo o juíza pode repetir a interpretação feita pela Administração Pública.”;
50. Segundo o acórdão e a doutrina acima referidos, a residência habitual ou não em Macau é um conceito indeterminado para o conhecimento do tribunal, pelo que deve ser analisado de uma forma concreta para saber o motivo de ausência de Macau do Recorrente, assim, que decida a cônjuge do Recorrente se reside habitualmente em Macau ou não;
51. Tendo também no Acórdão n.º 268/2021, do douto Tribunal de Segunda Instância, citado: “Tratando-se de um conceito indeterminado, em circunstâncias especiais autorização-permanência-justificada admitem-se desvios no que toca aos padrões normalmente seguidos para densificar o conceito de residência habitual, visto que em várias situações o/a interessado/a pode ausentar-se do local por motivos variados (ex. pro motivo de reciclagem ou estudo profissional; ou por motivo profissional o interessado vais ser destacado para uma companhia filial situada fora de Macau (…) e exclusivos para determinar a residência habitual de uma pessoa.”;
52. A entidade recorrida não analisou, nem ponderou globalmente o motivo de ausência temporária de Macau de cônjuge do Recorrente. Baseado em todos os factos, reflectem que a cônjuge do Recorrente considerava sempre Macau como a sua residência habitual e centro fixo da vida, senão, não valia pena a mesma deslocar-se frequentemente entre as duas regiões, Hong Kong e Macau, antes de pandemia;
53. Durante a ausência temporária de Macau de cônjuge do Recorrente, isto é, de 28 de Fevereiro de 2020 a 27 de Fevereiro de 2021 e de 28 de Fevereiro de 2021 a 04 de Fevereiro de 2022, a mesma permaneceu em Macau apenas 12 dias. As datas acima referidas são notórias que coincidem com o período de passagem anormal de fronteiras entre Macau e Hong Kong, devido a aplicação das medidas de prevenções de pandemia. A entidade recorrida também não tinha ponderada que a cônjuge do Recorrente foi contratada por uma companhia de Hong Kong nessa altura, fazendo com que a mesma ficasse obrigada a permanecer em Hong Kong;
54. Quanto ao sentido de “residência habitual”, o legislador indicava, expressamente, que os dias de permanências em RAEM não considera como o único critério para definir Macau como residência habitual;
55. Não podemos não tocar nos termos do artigo 35.º da Lei Básica da RAEM, que: “Os residentes de Macau gozam da liberdade de escolha de profissão e de emprego.”;
56. É claro que a cônjuge do Recorrente escolheu a trabalhar em Hong Kong, isto não significa que a sua residência habitual ou centro fixo da vida passava a ser em Hong Kong;
57. Por fim, a decisão recorrida violou o princípio da boa fé nos termos do artigo 8.º do Código do Processo Administrativo Contencioso (sic.). (nota do tradutor: o código referido deve ser Código do Procedimento Administrativo)
58. Na fase de audiência, tendo o Recorrente apresentado à entidade recorrida o contrato de trabalho, onde o Recorrente esclareceu que foi contratado na qualidade de residente de Macau, só que a entidade recorrida proferiu na decisão recorrida que seja reavida o bilhete de residente não permanente do Recorrente, assim, fazendo com que o Recorrente deixasse de deter o documento autorizado legalmente para o trabalho e enfrentasse a questão de perda imediata do emprego. Esta situação causaria ao Recorrente uma influência irrecuperável;
59. O Recorrente tratava-se sempre Macau como sua residência habitual, antes e depois da sua autorização de residência, o mesmo já residia e trabalhava sempre em Macau, respectivamente. Desde o requerimento de renovação de autorização de residência até aos ulteriores fase de audiência escrita sempre alegava que o mesmo foi contratado na qualidade de residente de Macau, a entidade recorrida não tinha ponderada a situação do Recorrente e proferiu na decisão recorrida para reaver o documento do Recorrente, fazendo com que o Recorrente perdesse imediatamente a oportunidade do emprego, pois, é notório que violou o princípio da boa fé;
60. Pelo exposto, devido a sentença recorrida enferma de vícios de pressuposto de facto, erro de interpretação e aplicação do artigo 38.º, n.º 2 da Lei n.º 16/2021 e do artigo 43.º, n.º 2, alínea 3), da mesma lei, e enferma de vícios de violação de direito e princípio da boa fé, assim, nos termos do artigo 21.º, n.º 1, alínea d) do Código do Processo Administrativo Contencioso e do artigo 124.º do Código do Procedimento Administrativo, deve ser revogada a decisão recorrida proferida pela entidade recorrida.
Citada a Entidade Recorrida veio o Senhor Secretário para a Segurança contestar, não apresentando, contudo, conclusões.
Notificadas as partes para apresentarem alegações facultativas, ambas silenciaram.
Pelo Ilustre Magistrado do Ministério Público foi emitido parecer.
Foram colhidos os vistos.
II. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas.
Não existem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Cumpre assim apreciar e decidir.
III. FUNDAMENTAÇÃO
a) Dos factos
A factualidade com base na qual foram praticados os actos recorridos consiste no seguinte:
1. O Recorrente obteve, por despacho do Secretário para a Segurança de, 28.02.2019, autorização de residência para se reunir com a sua esposa B, residente em Macau – cfr. fls. 95-96 e 97 – 98 do PA;
2. O pedido de renovação da autorização de residência do Recorrente apresentado em 22.01.2020 foi deferido, ao abrigo da subdelegação do Comandante do CPSP, por despacho de 25.02.2020 do Chefe do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência Substº - cfr. fls. 118 e 120 do PA;
3. Terminado em 28.02.2022 a validade dessa autorização, o Recorrente veio, em 12.01.2022, solicitar nova renovação, nos termos do artº 36º do Regulamento Administrativo nº 38/2021 – cfr. fls. 124 e 183 do PA;
4. O Recorrente saiu de Macau em 18.12.2020 e regressou em 28.06.2021, enquanto a sua mulher saiu em 23.03.2020 regressando apenas em 04.02.2022 - cfr. fls. 162-163 e 166-167 do PA;
5. Nos últimos dois anos, de acordo com os registos dos movimentos fronteiriços, o Recorrente e a sua mulher permaneceram na RAEM, no período de 28 Fevereiro 2020 a 27 Fevereiro 2021, apenas por 254 e 12 dias e no período de 28 Fevereiro 2021 a 27 Fevereiro 2022, por 245 e 24 dias, respectivamente – cfr. fls. 162-163 e 166-167 do PA1;
6. Em face de tal situação, após ter sido notificado da intenção de indeferimento daquele pedido de renovação da autorização de residência, o Recorrente pronunciou-se, em sede de audiência prévia, nos termos do requerimento apresentado em 28.02.2022, onde deu a conhecer que foram os compromissos profissionais da sua mulher em Hong Kong e a necessidade de esta cuidar dos seus pais idosos que a impediram de regressar à RAEM – cfr. fls. 148-155 e 156 do PA;
7. Em concordância com a informação nº 300040/SRDARPREN/2022P, de 14.03.2022, e com o Director do Departamento para os Assuntos de Residência e Permanência, foi proposto pelo CPSP, em 07.04.2022, o indeferimento da renovação da autorização de residência de que o Recorrente beneficiava, ao abrigo da alínea 1) do nº 2 do artº 38º e artº 43º, nº 2, alínea 3) da Lei nº 16/2021 – cfr. fls. 185-187 do PA;
8. Tal proposta foi submetida à consideração do Secretário para a Segurança, o qual proferiu, em 19.04.2022, o seguinte despacho “INDEFIRO nos termos e com os fundamentos do parecer constante desta informação” – cfr. fls. 185-187 do PA;
9. Desse despacho foi o Recorrente notificado através do ofício do CPSP datado de 26.04.2022 e do documento ali anexo, expedidos por via postal – cfr. fls. 188-189 do PA.
b) Do Direito
É do seguinte teor o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério Público:
«1.
A, melhor identificado nos autos, veio instaurar o presente recurso contencioso do acto praticado pelo Secretário para a Segurança em 19 de Abril de 2022 que indeferiu o seu pedido de renovação da autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (RAEM), pedindo a respectiva anulação.
A Entidade Recorrida, devidamente citada, apresentou douta contestação na qual pugnou pela improcedência do recurso contencioso.
2.
(i)
Está em causa no presente recurso contencioso o acto administrativo praticado pela Entidade Recorrida através do qual esta decidiu indeferir o pedido formulado pelo Recorrente de renovação da autorização de residência na RAEM.
Baseou-se o referido indeferimento nas normas legais conjugadas da alínea 1) do n.º 2 do artigo 38.º e da alínea 3) do n.º 2 do artigo 43.º da Lei n.º 16/2021, ou seja, em virtude de a Administração ter considerado que deixou de se verificar o pressuposto subjacente à autorização de residência e que foi, segundo vem afirmado, o da reunião familiar da Recorrente com o seu cônjuge.
Em concreto, como decorre da fundamentação do acto recorrido, a Administração extraiu aquela conclusão no sentido do decaimento do dito pressuposto impediente da renovação, a partir do apuramento factual que levou a efeito e do qual resulta que a mulher do Recorrente se ausentou de Macau durante 22 meses, o que, depreende-se, seria revelador de que o Recorrente e o seu cônjuge não teriam coabitado em Macau por um período superior a 16 meses.
Formulando de outro jeito: na base do indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência está o entendimento da Administração segundo o qual a falta de coabitação do Recorrente e do seu cônjuge na RAEM por um período superior de 22 meses constitui obstáculo a essa renovação, uma vez que essa falta consubstancia, implica ou demonstra, o decaimento do pressuposto da reunião familiar que justificou a própria autorização.
Trata-se de uma interpretação da lei que, com todo o respeito pela opinião contrária, não podemos acompanhar. Pelo seguinte.
(ii)
(ii.1)
Aceitamos e temo-lo sustentado em diversos processos que, se a autorização de residência na RAEM for concedida a uma pessoa não residente com fundamento no seu casamento com uma pessoa que tenha o estatuto de residente, em particular, o estatuto de residente permanente, a manutenção de tal autorização dependerá da existência, não só do vínculo jurídico do casamento, mas também de uma verdadeira comunhão de vida, a qual, por sua vez, pressupõe a existência de coabitação entre os cônjuges. Isto porque, o que, em primeira linha, justifica a concessão da autorização de residência com base na chamada reunião familiar - conceito do qual, aliás, a lei n.º 16/2021 não se socorre, contrariamente noutros ordenamentos jurídicos - é a garantia do direito do residente à fruição de uma vida familiar plena e estável a que a Lei Básica, no seu artigo 38.º, defere evidente e justificada protecção (apontando no mesmo sentido, de que o desiderato do chamado reagrupamento familiar por referência do Direito da União Europeia, é o de possibilitar a manutenção da unidade familiar, veja-se a Diretiva 2003/86/CE do Conselho, de 22 de Setembro de 2003, relativa, justamente, os direitos ao reagrupamento familiar).
Quer isto dizer, portanto, que a autorização de residência que se tenha fundado no casamento do beneficiário da autorização com um residente, pode não ser renovada se a Administração verificar que, entretanto, ocorreu o divórcio ou a separação de facto entre os cônjuges, uma vez que, numa e noutra situação, o pressuposto que esteve na base da concessão da autorização terá deixado de se verificar e, consequentemente, a dita autorização deixou de se justificar face à finalidade que a determinou, podendo, inclusivamente, justificar-se a respectiva revogação.
Mas, por outro lado, se a situação familiar não tiver sofrido alteração, isto é, se o casamento se mantiver sem que tenha havido separação de facto entre os cônjuges, é dizer se o vínculo conjugal se mantiver em pleno e não apenas formal ou juridicamente, já não haverá aí razão para considerar a existência, a esse nível, de qualquer alteração dos pressupostos justificativos da autorização de residência.
(ii.2)
No caso, é incontroverso que a Recorrente não se divorciou do seu cônjuge. Por isso, aquilo que importa verificar na perspectiva da aferição da legalidade do acto, é se os mesmos se separaram de facto pois que só isso poderia justificar, em princípio e como vimos, o indeferimento da renovação da autorização de residência aqui impugnado, com base no desaparecimento do pressuposto que, num primeiro momento, justificou a própria autorização.
Como já vimos, a Administração, para justificar a sua actuação, bastou-se, essencialmente, com a verificação de que a Recorrente esteve ausente de Macau durante 22 meses. A partir dessa constatação terá concluído que entre eles não houve coabitação por esse mesmo período e que, por isso, o pressuposto da autorização de residência havia deixado de se verificar, certamente por ter entendido que tal implicava a existência de uma situação de separação de facto.
Não nos parece, com todo o respeito, que assim seja. Procuraremos demonstrar porquê.
(ii.2.1)
A coabitação entre os cônjuges não é um conceito susceptível de apreensão puramente fáctica ou naturalística, ao contrário daquilo que a Administração parece entender. Pelo contrário, aliás. Trata-se de um conceito jurídico que reveste uma grande plasticidade e que, por isso, não dispensa uma análise casuística das concretas circunstâncias que em cada situação ocorram, de forma a procurar desvelar, não só a objectividade da falta de vida em comum, em regra em lugares separados, mas, também, o indispensável elemento subjectivo, qual seja, o propósito de ambos ou, ao menos de um dos cônjuges, de não restabelecer a vida em comum. Sem este elemento subjectivo não pode falar-se de quebra do dever de coabitação e, portanto, não pode dizer-se que os cônjuges deixaram de coabitar ou que estejam separados de facto. É isto o que resulta de forma claríssima do disposto no n.º 1 do artigo 1638.º do Código Civil (aí se preceitua: «entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer»). É por isso que, por exemplo, se um dos cônjuges emigra para um outro país e está fisicamente ausente da casa de morada da família, e separado do outro cônjuge por largos períodos de tempo, como tantas vezes acontece, daí não resulta a quebra da comunhão de vida, nem do dever de coabitação. De resto, da norma do artigo 1534.º do Código Civil decorre, inequivocamente, que os cônjuges podem ter residências separadas, existindo motivos ponderosos que o justifique.
Isto que flui de disposições legais relevantes do nosso Direito da Família não pode deixar de se projectar na avaliação administrativa da existência e da manutenção dos pressupostos de determinado acto administrativo se, como no caso, o interesse público prosseguido por esse acto consiste, como dissemos, na garantia de uma vida familiar plena e estável aos residentes da RAEM. A unidade do sistema jurídico, neste específico contexto, reclama que a Administração, num primeiro momento e o juiz administrativo em eventual fiscalização da actuação administrativa, não deixem de interpretar e aplicar conceitos e institutos que são próprios do Direito da Família à luz dos respectivos cânones.
(ii.2.2)
Ora, no caso em apreço, afigura-se-nos, com todo o respeito, que a Administração se limitou a verificar que, objectivamente, durante um período de aproximadamente 22 meses, o Recorrente viveu em Macau e o seu cônjuge que tem o estatuto de residente permanente permaneceu fora de Macau, concretamente em Hong Kong. A verdade, no entanto, é que se não demonstra que essa separação física tenha correspondido a uma verdadeira separação de facto e, portanto, que tal período tenha representado uma ausência de comunhão de vida, ou de uma coabitação em sentido juridicamente relevante. Com efeito, dos elementos colhidos no decurso do procedimento administrativo nada indicia que de um ou de ambos os cônjuges não houvesse o propósito de, assim que possível, voltarem a viver no mesmo lugar. Isto é tanto mais assim se levarmos em linha de ponderação que, no período em causa, foram muito significativos os constrangimentos à entrada e à saída da Região, mesmo por parte dos seus residentes, mercê das medidas de combate à pandemia de SARS-Cov2 decretadas pelo Governo, destacando-se, em particular, as medidas de observação médica por períodos de 14 dias em hotéis designados para quem viesse da Região Administrativa Especial de Hong Kong.
Pode assim dizer-se que na aplicação da «norma» que construiu no exercício dos seus poderes discricionários, segundo a qual a falta de coabitação em Macau por um período de 22 meses pode levar à não renovação da autorização de residência, a Administração incorreu em manifesto erro quando partiu da consideração de que o Recorrente deixou de coabitar com o seu cônjuge, pelo que ocorre fundamento para a anulação do acto recorrido (no mesmo sentido decidiu o Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 395/2021).
3.
Face ao exposto, salvo melhor opinião, somos de parecer de que o presente recurso contencioso deve ser julgado procedente, anulando-se, em consequência, o acto recorrido.».
Concordamos no essencial com aquele parecer, o qual acompanhamos, fazendo apenas uma reserva caso do mesmo se extraia o entendimento que apenas em casos de separação de facto possa ser justificada a cessação da autorização de residência, o que salvo melhor opinião, pensamos dele não resultar.
O pedido de autorização de residência “para agrupamento familiar” previsto na alínea 5) do nº 1 do artº 32º da Lei nº 16/2021 visa dar consagração legal ao artº 38º da Lei Básica permitindo que as famílias transfronteiriças possam estabelecer o centro da sua vida em Macau no qual um deles tenha o estatuto de residente.
Contudo, exige-se que o centro da vida familiar, que a residência habitual da família, seja na RAEM.
Nem faria sentido que fosse de outro modo, pois, sendo a autorização de residência concedida para o agrupamento familiar – da família de um residente cujos restantes membros não são residentes – não faria sentido que uma vez concedida a autorização a família não tivesse a sua residência habitual em Macau.
Porém, estando em causa a relação conjugal ou união de facto é fácil de entender que cessando esta – a relação conjugal ou análoga – deixe de se verificar o pressuposto com base no qual a autorização de residência foi concedida – artº 43º nº2 , 3) da Lei 16/2021 -, da mesma forma que, se o residente da RAEM não tiver aqui a sua residência não está verificado o pressuposto para que aquela seja concedida ou mantida, uma vez que não há com “quem” reunir.
Mas entre uma e outra das situações enunciadas no parágrafo anterior há um elenco de casos possíveis que se impõe sejam avaliados e que podem acontecer no decurso dos sete anos iniciais em que a autorização de residência foi concedida e antes do autorizado residente não permanente passar a ser residente permanente, em que o residente determinante para que a autorização fosse concedida, ou o próprio autorizado, aqui não esteja a viver o tempo que se estima como pressuposto para concluir pela residência habitual, mas que ainda assim, a mesma – a residência habitual – continue a estar na RAEM.
A título de exemplo podemos elencar casos de doença que o obriguem a tratamento fora de Macau, prestação de trabalho fora de Macau, formação académica e, ou profissional fora de Macau, prestação de cuidados a familiares ou pessoas a cargo residentes no exterior, etc., que podem levar a que o residente de Macau2 que foi determinante para que a autorização do não residente fosse concedida esteja a viver fora de Macau.
O importante para a solução do problema não está em definir o quanto tempo nem os motivos ao abrigo dos quais pode ficar fora de Macau o residente que foi determinante para a concessão da autorização de residência ou o autorizado.
O conceito que se impõe definir como determinante para a concessão e manutenção da autorização de residência é ser Macau o domicílio da residência habitual daquela família.
Se a família continua a manter na RAEM o centro da sua residência habitual esse é o requisito que se impõe ser avaliado e não o número de dias que aqui se vive, sem prejuízo deste ser um indício a que se recorre e que em circunstâncias normais o demonstra, mas não é o único nem absoluto.
Se é certo que a não residência em Macau por anos consecutivos sem qualquer justificação suficiente para o efeito faz pressupor que a família não tem aqui o centro da sua vida, também não é menos certo, que a ausência do residente que determinou a concessão da autorização durante um período longo mas justificado estando o autorizado a residir em Macau, também, não é bastante para concluir por si só que a família aqui não tem o centro da sua vida familiar.
Mais ainda, se essa ausência decorre durante o período de pandemia que se viveu, com limitações para passagens nas fronteiras as quais por várias vezes foram encerradas, exigências de estar em quarentena que chegaram a ser de 3 semanas na chegada ao território, impossibilidade de passar fronteiras em situação de doença, etc, há que usar de redobrado cuidado ao analisar a situação.
No que respeita a Macau, Hong Kong e China Continental basta pensarmos no número de pessoas que residem numa das regiões e trabalham noutra e se necessário ainda têm pessoas a seu cuidado ou filhos a estudar na terceira. Em circunstâncias normais tudo isto se processa sem que se dê sequer conta, tendo a família a sua residência habitual estabelecida numa das RAE ou na China Continental.
A situação é de tal forma relevante que o nº 5 do artº 43º da Lei nº 16/2021 consagrou que basta que o titular – leia-se o titular da autorização de residência não permanente - se desloque regular e frequentemente para exercer actividade de estudo ou profissional remunerada ou empresarial para que se considere que tem residência habitual na RAEM ainda que aqui não pernoite.
Ou seja, a lei que regula o regime de migração e das autorizações de permanência e residência na RAEM vai até para além do conceito de residência habitual civilista e que consiste em ser o local onde se tem a vida doméstica instalada, a casa de morada de família, onde se pernoita, toma refeições, recebe visitas, correspondência, etc, admitindo que basta vir a Macau para exercer actividades de estudo ou profissionais para se ter a RAEM como residência habitual ainda que a casa de morada de família esteja numa região vizinha – uma vez que aqui nem sequer se pernoita -.
Destarte, acompanhamos o Douto Parecer do Ilustre Magistrado do Ministério no sentido de que era exigido à Administração que houvesse demonstrado que a residência habitual do agregado familiar do Recorrente e seu cônjuge havia deixado de ser em Macau, não sendo a circunstância do cônjuge residente e que determinou a concessão da autorização raramente não se ter deslocado a Macau, ou pouco se ter deslocado, no período em causa suficiente para se extrair essa conclusão, tanto mais que, no mesmo se viveu uma situação de pandemia com encerramentos de fronteiras, limitação de passagem das mesmas, quarentenas e toda a incerteza e imprevisão que envolveu a situação a nível mundial e que é do conhecimento comum.
Cuidar de justificações para o efeito seria relevante em tempos em que a vida se processa com normalidade.
Em período de pandemia é irrelevante procurar razões pois basta o sentimento de segurança ser maior numa região do que noutra para justificar a opção.
Assim sendo, não exigindo a lei sequer que o autorizado tenha a casa de morada de família na RAEM – cf. nº 5 do artº 43º da Lei nº 16/2021 -, entendemos que os argumentos invocados no despacho recorrido não são suficientes para se concluir que o Recorrente - nem o Recorrente e o seu cônjuge - deixou de ter residência habitual na RAEM ou que deixaram de se verificar os requisitos, pressupostos ou condições subjacentes à concessão da autorização de residência, pelo que enferma o mesmo de erro nos pressupostos de facto.
O vício de violação de lei «é o vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis» - Cit. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 4ª Ed., Vol. II, pág. 350.
«O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. A ofensa não se verifica aqui nem na competência do órgão, nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste, nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objecto do ato.
Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre a decisão tomada ou os efeitos de direito determinados pela Administração e o que a norma ordena.
(…)
A violação de lei, assim definida, comporta várias modalidades:
a) A falta de base legal, isto é, a prática de um ato administrativo quando nenhuma lei autoriza a prática de um ato desse tipo;
b) O erro de direito cometido pela Administração na interpretação, integração ou aplicação das normas jurídicas;
c) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato administrativo;
d) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do objeto do ato administrativo;
e) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos, de facto ou de direito, relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato administrativo:
f) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato – designadamente, condição, termo ou modo -, se essa ilegalidade for relevante, nos termos da teoria geral dos elementos acessórios;
g) Qualquer outra ilegalidade do ato administrativo insuscetível de ser reconduzida a outro vício. Este último aspeto significa que o vício de violação de lei tem um carácter residual, abrangendo todas as ilegalidades que não caibam especificamente em nenhum dos outros vícios.» - Diogo Freitas do Amaral, Ob. Cit. pág. 351 a 353 -.
Termos em que enfermando o despacho recorrido de erro nos pressupostos de facto com base nos quais foi proferido, está o mesmo inquinado com vício de violação de lei o que nos termos do artº 124º do CPA determina a sua anulabilidade, havendo que decidir em conformidade.
No mesmo sentido se decidiu neste tribunal nos Acórdãos de 27.01.2022 proferido no processo nº 268/2021 e de 28.04.2022 proferido no processo nº 395/2021.
IV. DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, concedendo-se provimento ao recurso revoga-se a decisão recorrida.
Sem custas por delas estar isenta a Entidade Recorrida.
Registe e Notifique.
RAEM, 28 de Março de 2023
Rui Pereira Ribeiro
(Relator)
Fong Man Chong
(Primeiro Juiz Adjunto)
Ho Wai Neng
(Segundo Juiz Adjunto)
Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto do Ministério Público)
1 E com base nos dias que entrou e permaneceu em Macau de acordo com o que consta do relatório e dado por assente na alínea anterior.
2 E até o autorizado.
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412/2022 REC CONT 66