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Processo nº 327/2022
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 20 de Abril de 2023

ASSUNTO:
- Falta de fundamentação
- Existência do perigo efectivo

SUMÁRIO:
- A fundamentação consiste na expressa e sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão que deve ser clara, congruente e suficiente.
- É um conceito relativo que depende do tipo legal do acto, dos seus termos e das circunstâncias em que foi proferido, devendo dar a conhecer ao seu destinatário as razões de facto e de direito em que se baseou o seu autor para decidir nesse sentido e não noutro, não se podendo abstrair da situação específica daquele e da sua possibilidade, face às circunstâncias pessoais concretas, de se aperceber ou de apreender as referidas razões, mormente que intervém no procedimento administrativo impulsionando o itinerário cognoscitivo da autoridade decidente.
- Não necessita de ser sempre uma exaustiva descrição de todas as razões que determinaram o acto, bastando-se com uma exposição suficientemente esclarecedora de tais razões, de modo a que o seu destinatário fique ciente desses motivos.
- A personalidade da Recorrente, a sua situação pessoal e as suas condições de vida, o seu anterior comportamento, o contexto fáctico que cerceou a atitude criminosa de que era suspeita e pela qual foi efectivamente condenada pelos tribunais permitem concluir pela existência de perigo para a segurança ou ordem públicas na RAEM.
O Relator,
Ho Wai Neng

Processo nº 327/2022
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 20 de Abril de 2023
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
A, melhor identificada nos autos, vem interpor o presente recurso contencioso contra o despacho do Secretário para a Segurança, de 14/03/2022, que decidiu confirmar e manter a decisão adoptada pelo Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública de cancelamento da sua autorização de permanência, concluíndo que:
1. O despacho ora recorrido padece de uma manifesta e ostensiva ausência de quaisquer elementos probatórios ou sequer indiciários aptos a fundar e sustentar as meras alegações pretensamente fundamentatórias na base da sua prolação e que, recorde-se, teriam vindo pretensamente suprir ou colmatar a “falta de fundamentação” reconhecidas pelo T.S.I. e pelo T.U.I. !
2. A entidade recorrida - ou, bem assim, os seus departamentos e serviços - não desenvolveu nem promoveu, uma vez mais, qualquer investigação própria nem qualquer actuação instrutória actualizada e actualizadora quanto à situação da recorrente e, como tal e pela segunda vez, a entidade recorrida não logrou produzir de per se quaisquer mínimos elementos indiciários (e, a fortiori, probatórios) aptos a fundar a convicção por si mesma meramente exteriorizada no seu acto quanto à personalidade, situação pessoal, condições de vida da recorrente, anterior comportamento, contexto fáctico da atitude criminosa da recorrente e pretensa disponibilidade de quartos para subarrendar na casa da mãe, que, decorrentemente, poderiam alegadamente afectar a segurança e a ordem públicas da Região.
3. A entidade recorrida como que se entregou inteiramente nas mãos daquilo que outras entidades decidiram na sua respectiva esfera, ou seja, uma vez mais omitiu-se por inteiro do seu poder-dever de praticar actos de investigação, próprios e por si determinados, aptos à captação adentro do seu próprio procedimento daqueles elementos eventualmente aptos a sustentar e dar corpo à prolação do acto aqui colocado em crise!
4. Seguidamente à sentença prolatada pelo 3.º Juízo Criminal, não existe qualquer outra investigação e diligência realizadas por qualquer outra autoridade de Macau, mormente pela entidade recorrida, sendo que tudo aquilo que a Administração invoca agora como fundamentação de facto para - pretendendo vir suprir a falta de fundamentação antes declarada pelo T.S.I. e pelo T.U.I. - sustentar o acto aqui recorrido, resultou afinal tão-somente de uma actuação heterónoma pretérita, que não de actos e diligências investigatórias autonomamente realizadas pela entidade recorrida.
5. Não houve qualquer anterior ou nova actividade instrutória ou investigativa por parte dos Serviços sob tutela do autor do acto aqui recorrido, antes a passiva recepção integral do que resultou estaticamente dessa decisão proveniente do 3.º Juízo Criminal.
6. Não se vislumbra no expediente em que se ancora o despacho a quo em que elementos - verbi gratia, documentais, periciais, inspectivos ou outros -, teria a entidade recorrida realizado para se sentir juridicamente habilitada a proceder a um juízo desfavorável quanto à personalidade, quanto à situação pessoal e quanto às condições de vida da recorrente.
7. Acaso a entidade recorrida sequer chamou e ouviu presencialmente em 2022 a recorrida ou a notificou em 2022 para responder ao que quer que seja que diga respeito às suas actuais - ou sequer, aliás, também às pretéritas - condições de vida ou à situação pessoal e personalidade da recorrente?
8. Não o fez! Nem antes nem, sobretudo, agora quando, alegadamente, teria vindo colmatar ou suprir a gritante falta de fundamentação do acto anteriormente cassado pelo T.S.I. e pelo T.U.I.!
9. Que sabe a entidade recorrida sobre a personalidade da recorrente? Que diligências fez agora - ou antes, igualmente - para saber quanto à personalidade da recorrente?
10. Que sabe a entidade recorrida sobre a situação pessoal da recorrente? Que diligências fez agora - ou antes, igualmente - para saber quanto à situação pessoal da recorrente?
11. Que sabe a entidade recorrida sobre as condições de vida da recorrente, designadamente onde e em que condições vive? Que diligências fez agora - ou antes, igualmente - para saber quanto às condições de vida da recorrente, designadamente onde e em que condições vive?
12. Que sabe a entidade recorrida sobre a por si invocada disponibilidade de quartos para subarrendar na casa da mãe da recorrente, designadamente se a casa é ou não propriedade da sua mãe, se a mãe da recorrente é ainda mera inquilina/sublocadora nessa casa ou sequer se a mãe da recorrente ainda reside em Macau? Que diligências fez agora - ou antes, igualmente - para saber quanto à por si invocada disponibilidade de quartos para subarrendar na casa da mãe da recorrente, designadamente se a casa é ou não propriedade da sua mãe, se a mãe da recorrente é ainda mera inquilina/sublocadora nessa casa ou sequer se a mãe da recorrente ainda reside em Macau?
13. Apurou ou não a entidade recorrida se a recorrente incorreu ou não na prática de qualquer outro acto ilícito ou se cometeu qualquer actuação desconforme com as leis vigentes em Macau, sobretudo após a decisão proferida pelo 3.º Juízo Criminal?
14. Nada, nenhumas, nada, nenhumas, nada, nenhumas, nada, nenhumas e não, correspectivamente!
15. Caso tivesse a entidade recorrida promovido os indispensáveis actos instrutórios, que voluntária e inexplicavelmente omitiu por inteiro pela segunda vez, teria sabido que a recorrente já não mora desde há mais de 18 meses na casa em que era sublocatária da sua mãe e, sobretudo, teria ainda tomado conhecimento que a mãe da recorrente igualmente abandonou Macau há mais de 1 ano!
16. A preterição dos poderes-deveres a cargo da Administração de, nos termos dos artigos 86.º, n.º 1, e 59.º, ambos do C.P.A., oficiosamente relevar todos os elementos, de facto ou de direito, que mais e melhor a habilitem à adopção de uma mais justa, sustentada e acertada decisão final, gera aquilo que a doutrina qualifica como omissão ou deficit de instrução, insuficiência instrutória essa que gera ilegalidade, desde logo por violação do princípio da legalidade e da prossecução do interesse público, apud art. 4.º do CPA, que obriga a Administração a verificar a ocorrência dos pressupostos do acto a produzir, situação que in casu foi preterida.
17. Ao assim não ter entendido, a decisão ora recorrida fez errada interpretação e aplicação dos artigos 3.º, n.º 1, 4.º, 10.º, 59.º, 86.º e 87.º, n.º 1, todos do C.P.A. e, consequentemente, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, ex vi do art. 124.º do C.P.A., invalidade que aqui se invoca como fundamento específico para a sua revogação por V. Ex.ª, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e a al. d) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
18. O “perigo” a que alude o art. 11.º, n.º 1, al. 3), da Lei 6/2004 é um perigo efectivo - em tudo semelhante àquele a que se refere o art. 12.º, n.º 3 da mesma Lei -, não podendo - nem, sobretudo, devendo - a Administração retirar essa conclusão de perigosidade sem qualquer fundamento legal ou fáctico concretamente apurado e rigorosamente determinado na sequência de actos de instrução por si realizados.
19. A “prática de crimes, ou a sua preparação, na R.A.E.M” é apenas uma das formas possíveis da sinalização de um eventual “perigo para a ordem e segurança públicas”, enquanto exemplo-padrão previsto pelo legislador tal qual ficou vertido no douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 26 ABR 2018 tirado no processo n.º 125/2017.
20. Tal formulação de um concreto juízo de perigosidade tem de ser sempre suficientemente fundamentado mediante uma análise efectiva e perscrutante dos factos concretos e objectivos para que, só assim, o órgão competente, no uso do seu poder-dever de tipo discricionário, possa concluir pela eventualidade de um quadro de perigosidade para a segurança e ordem públicas, não bastando remeter ou repetir as “palavras da lei” para fundamentar que existe perigo por parte da requerente para a segurança ou ordem públicas da R.A.E.M. num futuro próximo ou distante!
21. Tal como decidido pelo T.S.I. num processo semelhante, respeitante à medida de interdição de entrada, a «(...) Entidade Recorrida não pode, com base simplesmente na condenação penal do Recorrente, concluir a existência do perigo efectivo. Para o efeito, a Entidade Recorrida tem de pegar factos concretos e objectivos para o preenchimento do conceito indeterminado do perigo efectivo (...)» - cfr. acórdão do Tribunal de Segunda Instância de 8 FEV 2018 proferido no processo n.º 183/2017.
22. Na situação vertente uma vez mais ocorre uma gritante falta de adequada densificação e fundamentação da decisão a quo pois, perante o conceito de perigo para a ordem e segurança públicas, tal conceito indeterminado deveria ter levado a Administração a fundamentar o preenchimento do mesmo mediante factos concretos e objectivos - o que não logrou fazer desde logo atento porque nada investigou ou instruiu procedimentalmente - aptos a explicitar por que motivo sustenta que a recorrente possa porventura colocar futuramente em perigo a ordem e a segurança pública da R.A.E.M.
23. Ao assim não ter sido entendido, a decisão ora recorrida incorreu em errada interpretação e aplicação dos artigos 114.º e 115.º, ambos do C.P.A. e, consequentemente, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, ex vi do art. 124.º do C.P.A., invalidade que aqui se invoca como fundamento específico para a sua revogação por V. Ex.ª, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e a al. c) do n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
24. De acordo com o princípio da participação acolhido no art. 10.º do C.P.A., deve ser assegurada a participação dos interessados, designadamente através de audiência prévia, na formação das decisões que lhes digam respeito.
25. Todavia, a recorrente não foi pessoal e presencialmente ouvida nem foi convocada nem chamada a qualquer título para dizer o que quer que fosse, nem sequer por escrito!
26. Após prolacção da decisão de anulação administrativa do T.S.I. e do T.U.I, tudo se passou à margem, nas costas e, pois, sem o concurso da recorrente ou dos seus mandatários, pois que, com efeito, entre tais decisões do T.S.I. e do T.U.I. e a decisão a quo, nenhum acto por via do qual se obtivesse a obtivesse a participação ou se assegurasse o contraditório por parte da recorrente foi promovido pela entidade recorrida.
27. Caso tivesse a recorrente sido chamada a conformar e influir no procedimento e trâmites após tais decisões do T.S.I. e do T.U.I., outro teria sido necessariamente o sentido da decisão ora recorrida, pois que teria a recorrente tido oportunidade e ensejo para informar e dar a conhecer à entidade recorrida, nomeadamente, as suas actuais condições e situação de vida - designadamente, que mora desde há mais de 1 ano noutra casa -, a sua actuação, conduta e personalidade e, bem assim, entre o mais, a circunstância de a sua mãe ter sido anteriormente meramente inquilina e, por outro lado, já não viver sequer há mais de um ano na R.A.E.M.!
28. Todos esses factos, pretéritos e supervenientes, que teriam dado contexto e enquadramento ao procedimento no qual se gerou o acto a quo, ficaram por conhecer por exclusiva omissão da entidade recorrida e, por isso, não puderam influir e conformar o conteúdo e o sentido decisório do acto a quo.
29. A participação procedimental deve ser um processo comunicativo contínuo em que o fluxo de inputs e indagações acertativas da realidade não só se não devem evitar e tentar contornar como, sobretudo, devem impor-se e promover-se activamente por banda da Administração.
30. Não se está in casu em sede do quadro normativo dos artigos 96.º e 97.º do C.P.A. ao abrigo dos quais inexistiria ou seria inelutavelmente de dispensar a participação procedimental da aqui recorrente.
31. Ao assim não ter sido entendido, a decisão ora recorrida incorreu em errada interpretação e aplicação dos art. 10.º, 96.º e 97.º, todos do C.P.A. e. consequentemente, a decisão a quo configura-se como um acto anulável, ex vi do art. 124.º do C.P.A., invalidade que aqui se invoca como fundamento específico para a sua revogação por V. Ex.ª, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e o n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
32. O acto recorrido ofende ainda o princípio de proporcionalidade acolhido no art. 5.º, n.º 2, do C.P.A.
33. Com a revogação da sua autorização de permanência ficou a recorrente privada não apenas directamente do direito a permanecer legalmente em Macau como também, inerente e indirectamente, do direito a trabalhar em Macau com o que isso implica na imediata perda da sua fonte única de rendimentos, estando por isso caracterizado um estado de incapacidade de sobrevivência da mesma.
34. A tal quadro contrapõem-se os interesses alegadamente prosseguidos com o acto a quo, concretamente as invocadas segurança e ordem públicas que seriam putativamente atingidas pela recorrente, sendo que uma tal alegada lesão futura e hipotética desses interesses públicos, sobretudo atenta a circunstância de estar a sua invocação desguarnecida - conforme acima de demonstrou - da necessária instrução procedimental e das necessárias fundamentação e densificação, sempre seria relativa e tendencialmente secundária face à perda imediata da única fonte de rendimentos da aqui recorrente.
35. A aventada e hipotética lesão dos interesses públicos alegadamente subjacentes ao acto recorrido mostra-se desproporcional - isto é, inferior e secundária - face aos interesses primordiais imediatamente sacrificados pelo acto a quo, que são, sem mais, a perda de toda e qualquer fonte de rendimento para sustento da recorrente.
36. Ao assim não ter sido entendido, a decisão ora recorrida incorreu em errada interpretação e aplicação dos art. 5.º, n.º 2, do C.P.A., pelo que a decisão a quo se configura como um acto anulável, ex vi do art. 124.º do C.P.A., invalidade que aqui se invoca como fundamento específico para a sua revogação por V. Ex.ª, conforme o permitem, entre outros, o art. 20.º e o n.º 1 do art. 21.º do C.P.A.C.
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Regularmente citada, a Entidade Recorrida contestou nos termos constantes a fls. 44 a 66 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
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O Mº Pº emitiu o parecer constante de fls. 80 a 83 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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II – Pressupostos Processuais
O Tribunal é o competente.
As partes possuem a personalidade e a capacidade judiciárias.
Mostram-se legítimas e regularmente patrocinadas.
Não há questões prévias, nulidades ou outras excepções que obstam ao conhecimento do mérito da causa.
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III – Factos
Com base nos elementos existentes nos autos e no respectivo P.A., é assente a seguinte factualidade com interesse à boa decisão da causa:
1- A Recorrente é portadora do Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente nº XXX, válido até 29/09/2020.
2- Em 29/06/2020, o Ministério Público deduziu acusação contra a Recorrente por ter cedido um quarto ao seu suposto namorado, mediante o pagamento de uma renda mensal de MOP1,500 à sua mãe, arrendatária da casa, onde a Recorrente também reside, sem que cuidasse de averiguar se ele se encontrava em situação regular em Macau.
3- Em 07/10/2020, por despacho do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública, foi revogada a autorização de permanência na RAEM como trabalhadora não residente que havia sido concedida à Recorrente.
4- Em 28/10/2020, a Recorrente interpôs recurso hierárquico necessário dessa decisão.
5- No dia 16/11/2020 o Senhor Secretário para a Segurança proferiu o despacho que decidiu confirmar e manter a decisão adoptada pelo Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública de cancelamento da sua autorização de permanência.
6- Na sequência do recurso contencioso de anulação interposto pela Recorrente do despacho que em sede de recurso hierárquico necessário decidiu, em 16/11/2020, confirmar o acto praticado pelo CPSP que lhe revogou a autorização de permanência na qualidade de trabalhadora não residente, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) proferiu, em 16/09/2021, acórdão julgando procedente o recurso e, com base na verificação do vício de falta de fundamentação, anulou o despacho impugnado.
7- A Entidade Recorrida interpôs o recurso dessa decisão.
8- O Tribunal de Última Instância (TUI) foi negado provimento ao recurso jurisdicional interposto daquele aresto.
9- No dia 14/03/2022 o Senhor Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho:
“…
Na sequência do recurso contencioso de anulação interposto por A do despacho que em sede de recurso hierárquico necessário decidiu, em 16.11.2020, confirmar o acto praticado pelo CPSP que lhe revogou a autorização de permanência na qualidade de trabalhadora não residente, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) proferiu, em 16.09.2021, acórdão julgando procedente o recurso e, com base na verificação do vício de falta de fundamentação, anulou o despacho impugnado.
Uma vez que, em 27.01.2022, por decisão sumária do Tribunal de Última Instância (TUI) foi negado provimento ao recurso jurisdicional interposto daquele aresto, cumpre, agora, executar o julgado com a prolação de novo acto (substitutivo), expurgado da violação detectada, o que se faz, nos seguintes termos:
Da análise do processo instrutor, resulta existirem fortes indícios de que a Recorrente A, em Fevereiro de 2020, terá cedido um quarto na casa arrendada pela sua mãe (onde também vive num outro quarto) ao seu suposto namorado, de nacionalidade indiana, mediante o pagamento de uma renda mensal de 1.500MOP, sem que cuidasse de averiguar em que condições este se encontrava em Macau.
Ademais, em 05.06.2020, após ter sido interceptado pela polícia, constatou-se que aquele indivíduo terá entrado no território em Março de 2019, munido de um passaporte indiano, e permanecido para lá do período legal de estadia, bem sabendo a Recorrente que tal período é muito curto e, ainda assim, permitiu que ele se instalasse na referida casa, aceitando o facto de possivelmente estar em situação de imigração ilegal conduta que, segundo a acusação (fls.45 e verso) deduzida, em 29.06.2020, pelo Ministério Público consubstancia a prática do crime de acolhimento, previsto no art.15º, nº1. da Lei nº 6/2004, de 2 de Agosto.
A conduta criminosa da Recorrente ficou demonstrada na sentença proferida, em 22.10.2020, pelo 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, onde foi condenada em quatro meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, pela prática de um crime consumado de acolhimento, tendo o recurso por si interposto para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) sido julgado improcedente por acórdão de 10.03.2022.
Ponderando tal factualidade, cabe dizer que, além de ser autora material daquela actividade criminosa, a Recorrente ainda obteve vantagem patrimonial e benefício material para terceiro - no caso a sua mãe - como recompensa pela prática daquele crime, na medida em que esta recebia uma renda mensal pela cedência do referido quarto a esse imigrante ilegal.
Perante as referidas decisões judiciais e a condenação da Recorrente pela prática do crime de acolhimento, previsto e punido pelo art. 15º da Lei nº 6/2004, deixou de ser possível o necessário juízo de prognose favorável que constituiu o pressuposto da (anterior) autorização da sua permanência na RAEM (cfr. art. 24.º, nº 1 do Regulamento Administrativo nº 5/2003 e art. 9º, n.º2, alínea 1) da Lei nº 4/2003).
A personalidade da Recorrente, a sua situação pessoal e as suas condições de vida, o seu anterior comportamento, o contexto fáctico que cerceou a atitude criminosa de que era suspeita e pela qual foi efectivamente condenada pelos tribunais permitem concluir pela existência de perigo para a segurança ou ordem públicas na RAEM.
Efectivamente, a permanência da Recorrente em Macau representa um perigo para a segurança ou ordem públicas, já que um juízo de prognose não permite afastar a hipótese de ela continuar a auxiliar a permanência, de forma ilegal, de sujeitos no território, até porque a disponibilidade de quartos para subarrendar na casa da sua mãe constitui uma situação potenciadora para que tal venha a suceder.
Encontra-se, hoje, confirmada a responsabilidade criminal da Recorrente e, por sua vez, as suspeitas do comportamento criminoso que estiveram na génese do acto do CPSP de 07.10.2020 e que criaram na Entidade Recorrida a convicção de que a conduta da Recorrente era passível de colocar em risco a segurança e a ordem públicas, situação enquadrável na alínea 3) do nº 1 do art. 11º da Lei nº 6/2004, de 2 de Agosto aplicável ex vi do art. 15º, nº 1 do Regulamento Administrativo nº 8/2010, de 19 de Abril.
Por conseguinte, se já na altura da interposição do presente recurso hierárquico, a alegada violação do princípio da presunção da inocência carecia de sentido - quer por estar em causa uma situação de fortes indícios e não de meros indícios, quer por estarmos no âmbito de um procedimento administrativo, de carácter securitário (não sancionatório) com o desígnio de garantir a segurança e estabilidade da sociedade e onde não releva a efectiva punição em sede de processo-crime - por maioria de razão, perante as referidas condenações judiciais, toda a argumentação respeitante à verificação deste vício ruiu.
Por outro lado, limitando-se a Recorrente a afirmar que não representa perigo algum para a segurança e ordem públicas, o que evidencia, desde logo, a manifesta a falta de consubstanciação do alegado vício de errada interpretação e aplicação da alínea 3) do do nº 1 do art. 11º da Lei nº 6/2004, de 2 de Agosto, convém não olvidar a dificuldade de um controlo efectivo da actividade da Recorrente, sendo certo que, a avaliação da sua personalidade e um juízo de prognose, permitem concluir que a sua permanência na RAEM constitui uma efectiva ameaça aos valores que a lei visa preservar, na medida em que o risco de continuar a adoptar o mesmo comportamento não se encontra afastado.
Assim sendo, decido, ao abrigo do disposto no nº 1 do art.161º do CPA, confirmar o acto recorrido e negar provimento ao recurso hierárquico necessário apresentado em 28.10.2020.
…”.
*
IV – Fundamentação
O Mº Pº emitiu o seguinte parecer:
“…
Na petição inicial, a recorrente solicitou a anulação do despacho em escrutínio (vide. fls.34 a 35 dos autos), invocando sucessivamente a omissão de instrução procedimental, a violação do dever de fundamentação e a violação dos princípios da participação e da proporcionalidade.
*
Ora, o documento de fls.34 a 35 dos autos demonstra, com clareza e certeza, que o despacho in questio se destina a executar a douta Decisão Sumária do TUI (vide. fls.167 a 172 do P.A.), traduzida em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto do Acórdão proferido pelo Venerando TSI no seu Processo n.º19/2021 (cfr. fls.156 a 164 do P.A.).
Importa assinalar que nesse Acórdão, o Venerando TSI anulou o despacho aí recorrido (cide. fls.86 a 87 do P.A.), com único fundamento de se verificar a falta de fundamentação, julgando inexistentes a usurpação do poder, a violação do princípio da presunção de inocência, a omissão do dever de instrução e a violação do princípio da proporcionalidade, invocadas na petição inicial do referido Processo n.º19/2021.
A jurisprudência mais autorizada assevera (cfr. Acórdão do TUI no Processo n.º80/2012): II – As sentenças, transitadas em julgado, que não anulam acto administrativo, julgando improcedente o recurso contencioso, bem como as que anulam acto, mas na parte em que julgam não verificados vícios do acto, fazem caso julgado material, nos termos do artigo 574.º, n.º1, do Código de Processo Civil. III – Anulado um acto administrativo que pode ser renovado, ficam definitivamente decididas as questões de ilegalidade em cuja não verificação o tribunal assentou; e, renovado o acto nos mesmos termos, obsta em novo recurso, a uma segunda pronúncia sobre elas, por relativamente às mesmas se verificarem todos os requisitos do caso julgado.
Não há margem para dúvida de que o despacho anulado no sobredito Processo n.º19/2021 é acto renovável, e de que o despacho objecto do presente recurso se destina a executar a Decisão Sumária e, no fundo, o Acórdão do TSI supra aludidos, e renova exactamente a decisão contida no supramencionado despacho anulado, decisão que consiste em negar provimento ao recurso hierárquico necessário.
Tudo isto leva-nos a concluir que o despacho atacado nestes autos não enferma da omissão de instrução procedimental, nem da violação do princípio da proporcionalidade, na medida em que a inexistência destes dois vícios fica abrangida pelo caso julgado derivado do aresto emanado pelo Venerando TSI no Processo n.º19/2021.
*
No que respeite aos requisitos da fundamentação no ordenamento jurídico de Macau, o n.º1 do art.115.° do CPA prescreve categoricamente que a fundamentação consiste na expressa e sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão; à luz do n.º2 do mesmo preceito legal, a fundamentação deve ser clara, congruente e suficiente.
Bem, é generalizadamente aceite a inculca do STA (a título do direito comparado, cfr. o seu aresto no Processo n.º44302), no sentido de que a fundamentação é um conceito relativo que depende do tipo legal do acto, dos seus termos e das circunstâncias em que foi proferido, devendo dar a conhecer ao seu destinatário as razões de facto e de direito em que se baseou o seu autor para decidir nesse sentido e não noutro, não se podendo abstrair da situação específica daquele e da sua possibilidade, face às circunstâncias pessoais concretas, de se aperceber ou de apreender as referidas razões, mormente que intervém no procedimento administrativo impulsionando o itinerário cognoscitivo da autoridade decidente.
Convém ter presente a douta jurisprudência que reza (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º619/2013): A fundamentação não necessita de ser sempre uma exaustiva descrição de todas as razões que determinaram o acto, bastando-se com uma exposição suficientemente esclarecedora de tais razões, de modo a que o seu destinatário fique ciente desses motivos.
No caso sub judice, o próprio despacho em questão patenteia concludentemente que do qual consta a indicação da base legal – disposições na alínea 1) do n.º1 do art.9.º do Lei n.º4/2003 e no n.º1 do art.24.º do Regulamento Administrativo n.º5/2003. O mesmo despacho diz ainda:
Da análise do processo instrutor, resulta existirem fortes indícios de que a Recorrente A, em Fevereiro de 2020, terá cedido um quarto na casa arrendada pela sua mãe (onde também vive num outro quarto) ao seu suposto namorado, de nacionalidade indiana, mediante o pagamento de uma renda mensal de 1.500MOP, sem que cuidasse de averiguar em que condições este se encontrava em Macau.
Ademais, em 05.06.2020, após ter sido interceptado pela polícia, constatou-se que aquele indivíduo terá entrado no território em Março de 2019, munido de um passaporte indiano, e permanecido para lá do período legal de estadia, bem sabendo a Recorrente que tal período é muito curto e, ainda assim, permitiu que ele se instalasse na referida casa, aceitando o facto de possivelmente estar em situação de imigração ilegal conduta que, segundo a acusação (fls.45 e verso) deduzida, em 29.06.2020, pelo Ministério Público consubstancia a prática do crime de acolhimento, previsto no art.15º, nº1 da Lei n.º6/2004, de 2 de Agosto.
A conduta criminosa da Recorrente ficou demonstrada na sentença proferida, em 22.10.2020, pelo 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, onde foi condenada em quatro meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, pela prática de um crime consumado de acolhimento, tendo o recurso por si interposto para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) sido julgado improcedente por acórdão de 10.03.2022.
Ponderando tal factualidade, cabe dizer que, além de ser autora material daquela actividade criminosa, a Recorrente ainda obteve vantagem patrimonial e benefício material para terceiro – no caso a sua mãe – como recompensa pela prática daquele crime, na medida em que esta recebia uma renda mensal pela cedência do referido quarto a esse imigrante ilegal.
Perante as referidas decisões judiciais e a condenação da Recorrente pela prática do crime de acolhimento, previsto e punido pelo art.15º da Lei nº6/2004, deixou de ser possível o necessário juízo de prognose favorável que constituiu o pressuposto da (anterior) autorização da sua permanência na RAEM (cfr., art.24º, nº1 do Regulamento Administrativo nº5/2003 e art.9º, nº2, alínea 1) da Lei nº4/2003).
A personalidade da Recorrente, a sua situação pessoal e as suas condições de vida, o seu anterior comportamento, o contexto fáctico que cerceou a atitude criminosa de que era suspeita e pela qual foi efectivamente condenada pelos tribunais permitem concluir pela existência de perigo para a segurança ou ordem públicas na RAEM.
Efectivamente, a permanência da Recorrente em Macau representa um perigo para a segurança ou ordem públicas, já que um juízo de prognose não permite afastar a hipótese de ela continuar a auxiliar a permanência, de forma ilegal, de sujeitos no território, até porque a disponibilidade de quartos para subarrendar na casa da sua mãe constitui uma situação potenciadora para que tal venha a suceder.
Com todo o respeito pela opinião diversa, inclinamos a colher que a fundamentação do despacho ora em crise é clara, congruente e capaz de dar à recorrente a conhecer os alicerces de facto e de direito nos quais se estriba a decisão administrativa de revogar a autorização de permanência da recorrente como trabalhadora-não-residente.
Vale pena sublinhar que a falta de fundamentação dá luz a vício de forma e se distingue de falta de fundamento; a falta, inexactidão ou erro de fundamento invocado pela Administração para sustentar a sua decisão já constitui questão de mérito (a título exemplificativo, cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º412/2010). O que implica que mesmo seja insólito ou exagerado o juízo da Administração quanto perigosidade da recorrente para a segurança e ordem públicas de Macau, isso não germina a falta de fundamentação.
Tudo isto conduz-nos a concluir que o despacho atacado nestes autos não eiva da falta de fundamentação, portanto é infundada a arguição da violação do dever de fundamentação.
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Nos termos da disposição no n.º3 do art.174.º do CPAC e dado que a falta de fundamentação constitui, no vertente caso, o único fundamento da anulação decretada pelo douto TSI no Processo n.º19/2021, o integral cumprimento desse Acórdão exige apenas que se extirpe e expurgue tal vício conducente à anulação. O que significa que para efeitos do integral cumprimento do caso julgado da referida anulação, basta um acto dotado de uma fundamentação clara, congruente e suficiente, sem necessidade de proceder a diligências ou instrução complementares.
Para além disso, é de salientar que o despacho anulado pelo TSI no Processo n.º19/2021 incide no recurso hierárquico necessário interposto pela ora recorrente, e o despacho recorrido nestes autos foi proferido para dar cumprimento ao sobredito caso julgado e sucede, na prática, que não se realizara qualquer instrução precedente a tal despacho.
Sendo assim e em esteira da sensata jurisprudência que inculca que não há lugar a audiência de interessados se não houver instrução (cfr. Acórdão do TSI no Processo n.º841/2015), não podemos deixar de colher que à recorrente não assiste o direito à audiência prévia ao despacho em causa e, por isso, é insubsistente a arrogada violação do princípio da participação.
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   Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso contencioso.
   …”.
Trata-se duma posição com a qual concordamos na sua íntegra.
Assim e em nome do princípio da economia, fazemos, com a devida vénia, como nossa posição para julgar improcedente o recurso.
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V – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em julgar improcedente o presente recurso contencioso, confirmando o acto recorrido.
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Custas pela Recorrente com 8UC taxa de justiça.
Notifique e registe.
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RAEM, aos 20 de Abril de 2023.

Ho Wai Neng
(Relator)

Tong Hio Fong
(1º Adjunto)

Rui Carlos dos Santos P. Ribeiro
(2º Adjunto)

Mai Man Ieng
(Procurador-Adjunto do Ministério Público)

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