Processo n.º 109/2023
(Autos de recurso em matéria cível)
Relator: Fong Man Chong
Data: 20 de Abril de 2023
ASSUNTOS:
- Ónus especificado de impugnação da matéria de facto em sede do recurso fixado pelo artigo 599º do CPCM
SUMÁRIO:
I - No âmbito de reapreciação da decisão de facto, de realçar que, em conformidade com o regime de recursos aplicável (artigo 599º do CPC), não cabe ao Tribunal ad quem proceder a um novo julgamento latitudinário da causa, mas apenas sindicar os invocados erros de julgamento da 1.ª instância sobre os pontos de facto especificamente questionados, mediante reapreciação das provas produzidas nesse âmbito, tomando por base os factos tidos por assentes, a prova produzida ou algum documento superveniente, oportunamente junto aos autos, que imponham decisão diversa.
II - A especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
III - É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC. É o caso quando o Recorrente/Exequente veio a pedir que uma boa parte dos Factos Assentes fixados pelo Tribunal a quo passe a ser considerada como FACTOS NÃO PROVADOS, sem indicar, porém, espeficidamente, quais os elementos concretos constantes dos autos que permitam sustentar a posição por ele defendida.
O Relator,
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Fong Man Chong
Processo nº 109/2023
(Autos de recurso em matéria cível)
Data : 20 de Abril de 2023
Recorrente : - C
Recorridos : - D
- F
- G
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Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I - RELATÓRIO
C, Recorrente, devidamente identificado nos autos, discordando da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, datada de 01/06/2022, veio, em 20/06/2022, recorrer para este TSI com os fundamentos constantes de fls. 230 a 236, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. 原審法院於2022年6月1日作出判決(下稱“被上訴判決”),裁定各被上訴人的異議部分成立,本執行案件僅能執行債務HKD861,339.40,並加上自2020年5月29日起以年利率36%計算之遲延利息,直至完全支付為止。
2. 除應有的尊重外,上訴人不認同被上訴判決中原審法院之見解及決定,尤其是關於原審法院對事實部分之判定,由於被上訴判決所認定之事實是基於對事實事宜之裁判結果,因而上訴人在針對原審法院之上述判決提起平常上訴之同時,亦對該事實事宜之裁判在本上訴中提起爭議。
3. 上訴人敗訴之主因,在於原審法庭認為上訴人未能證明由各被上訴人向上訴人支付的款項是用作支付各被上訴人拖欠上訴人的其他債務而非本案的債務,從而使得調查基礎內容事實第2點、第4點、第6點至第12點、第14點之事實得出了對被上訴人有利的結果。
4. 根據本卷宗主案第13至18頁之請求執行起訴狀之文件1(下稱“《借貸合同A》”),第一、第二、第三被上訴人與上訴人之間存在一筆具有擔保之貸款本金為HKD3,360,000.00之債務(下稱“消費借貸A”)。
5. 根據本卷宗附案A第66至70頁之異議反駁狀之文件1下稱“《借貸合同B》”,第一、第三被上訴人與上訴人之間存在一筆沒有擔保之貸款本金為HKD14,000,000.00之債務(下稱“消費借貸B”)。
6. 上訴人在異議之反駁狀中提交了《借貸合同B》後,各被上訴人並沒有根據《民事訴訟法典》第469條之規定作出爭執。
7. 即使根據《民事訴訟法典》第701條第2款的規定,作為被提出被上訴人的上訴人在提出反駁後,不得再提交其他訴辯書狀,但不妨礙第一及第三被上訴人對上訴人提出異議反駁狀時附同的《借貸合同B》上的簽名作出爭執。
8. 在第一及第三被上訴人沒有作出爭執的情況下,根據《民法典》第368條第1款及第370條第1款的規定,《借貸合同B》所載的第一及第三被上訴人對承擔消費借貸B債務之意思表示,具有完全證明力。
9. 因此,根據《民法典》第772條第1款及第773條第1款的規定,在本案中,由於各被上訴人並沒有證明其對於向上訴人支付之款項作出了履行之指定,故相關支付應優先履行上訴人較少擔保的債務,亦即優先履行金額為港幣14,000,000,00元的債務(即消費借貸B),而並非已有不動產作預約抵押,金額為港幣3,336,000.00元的債務(即消費借貸A)
10. 故此,在2020年2月9日前,各被上訴人向上訴人支付的HKD1,983,000.00,除了上訴人在異議反駁狀第17條所指的HKD67,666.67以外(有關內容在此視為全部轉錄),並不能證明是用作償還本案的債務。
11. 因此,應判處各被上訴人的異議理由僅部分成立,第二被上訴人針對本案的債務僅償還了HKD67,666.67(涉及已證事實第h項、第k項及第z項所指款項的1/3),至於其他的異議理由均不能成立。
綜上所述,現懇請尊敬的中級法院法官 閣下裁定上訴人的上訴理由成立,並裁定:
1. 上訴人依據《民事訴訟法典》第599條對原審法院在事實方面之裁判提出之爭執理由成立,因而對原審法院就事實事宜所作之裁判變更如下:
I. 將已證事實第o項、第q項、第s項、第t項、第v項、第w項、第y項,改為裁定有關事實均未獲得證實;
II. 將已證事實第p項下半部分、第r項及第u項,改為裁定有關事實中所指的款項的1/3,為用作償還本案之債務。
2. 因而應部分廢止被上訴判決,並裁定除了第二被上訴人針對本案的債務僅償還了HKD67,666.67以外,各被上訴人的其他異議理由均不能成立;
3. 針對上述第1項之請求,懇請中級法院根據《民事訴訟法典》第629條第3款之規定,再次調查現時載於卷宗之證據資料;但如法庭認為未具充分證據再次調查有關事實,則亦根據《民事訴訟法典》第629條第4款之規定,裁定發還並重新作出審理。
4. 判處由各被上訴人承擔本案之訴訟費用。
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D, F e G, ofereceu a resposta constante de fls. 242 a 252, tendo formulado as seguintes conclusões:
I) Sempre com o devido respeito, os Embargantes D, F e G, ora Recorridos, não consideram que as alegações de recurso apresentadas pelo Embargado C, ora Recorrente, faziam algum sentido para que o seu recurso seja julgado procedente;
II) Inconformado o Recorrente com a decisão proferida pelo Tribunal "a quo", mais concretamente, a convicção formulada pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal "a quo" que deu como provado os quesitos 2.°, 4.°, 6.° a 12.° e 14.° (correspondente às alíneas o), p), q) a w) e y) da matéria dada como provada) da base instrutória (doravante designada por "BI"), uma vez que lhe tinha concluído que as declarações constantes no alegado "Contrato de Mútuo B" ("借貸合同B") faz-se prova plena da existência de outra dívida, por não tendo os Recorridos impugnado, ao abrigo do disposto no artigo 361.° do Código Civil (doravante designado por "CC"), da sua exactidão (vd. artigo 21.° das alegações de recurso), e tendo em conta também não invocaram, no seu embargo, a qual dívida se destinavam os pagamentos descritos nos quesitos 2.º, 4.°, 6.° a 12.° e 14.°, logo estes, pagamentos, deviam ser imputados à liquidação da dívida resultante do "Contrato de Mútuo B", por força dos artigos 772.° n.º 1 e 773.° n.º 1, ambos do CC;
III) Sempre com o devido respeito, não podemos aceitar o raciocínio jurídico do Recorrente, na medida em que não fazia mínimo sentido, nem mínimo senso comum;
IV) Há de ter em linha de conta, o artigo 361.° do CC diz respeito à veracidade das reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e quaisquer outras reproduções mecânicas de facto (ex: fotocópia de um contrato, in casu o aludido Contrato de Mútuo B) ou de coisas, ora, a falta de impugnação faz-se apenas prova plena da sua exactidão, da sua veracidade, ou seja, faz-se prova plena dos factos e das coisas que representam, isto é, in casu tal fotocópia do aludido "Contrato de Mútuo B" representar-se-á o seu original enquanto não a impugnar;
V) Portanto, faz-se prova plena da existência do original, contudo, nunca se faz a prova plena da veracidade do seu conteúdo, das declarações contidas no aludido "Contrato de Mútuo B";
VI) O Recorrente levantou-se também a questão da veracidade das assinaturas constadas no "Contrato de Mútuo B", por falta de impugnação parte dos Recorridos, nos termos do artigo 368.° n.º 1 do CC;
VII) Sobre esta questão a resposta dos 1.º e 3.° Recorridos é muito simples. Não tinham nada que impugnar as suas assinaturas e a do Recorrente, por sendo eles próprios que subscreveram o "Contrato de Mútuo B";
VIII) Na óptica do Recorrente o facto de os 1.º e 3.° Recorridos não terem impugnado quanto à exactidão da fotocópia do "Contrato de Mútuo B" e as assinaturas que ali constam, significa que, sem dúvida nenhuma, existe a alegada dívida, por estando, nos termos do artigo 370.° do CC, plenamente provada;
IX) Sempre com o devido respeito, achamos que este ponto de vista não faz sentido nenhum e apenas demonstra um erro manifestamente grave na interpretação do artigo 370.° n.º 1 do CC;
X) A prova plena referida no artigo 370.° n.º 1 do CC diz apenas respeito que as declarações constantes do aludido "Contrato de Mútuo B" são feitos pelos 1.º e 3.° Recorridos, ou seja, apenas se prova que as declarações foram feitas pelos seus autores, todavia, não prova que tais declarações não estejam porventura afectados de algum vício susceptível de as invalidar;
XI) Como VAZ SERRA explica: "(..) A eficácia probatória dos documentos diz respeito somente à materialidade das declarações neles feitas ou dos factos neles referidos, não aos efeitos jurídicos que essas declarações ou factos possam produzir. Ora, dispor que os factos se consideram exactos na medida em que forem contrários aos interesses do autor do documento (como faz o art.° 542.°), não é estatuir acerca da força probatória do documento, mas acerca da eficácia dos factos nele mencionados. Se as declarações vinculam o seu autor na medida em que forem contrárias ao seu interesse, não é porque o documento prove que o vinculam, mas por outra ordem de considerações: o documento prova apenas que as declarações foram feitas. (..). «A força probatória do documento não se estende aos factos que o documento não prova, v.g. à coincidência entre a vontade e a declaração ou à ausência de vícios da vontade. O documento prova apenas que o declarante fez as declarações constantes do documento: não prova que tais declarações não estejam porventura afectadas de algum vício susceptível de as invalidar. Estes vícios podem ser provados por qualquer meio probatório (código de Processo Civil, art.° 621.°»";
XII) Em suma, o facto de os 1.º e 3.° Recorridos não terem impugnados quanto à exactidão da fotocópia do "Contrato de Mútuo B" e as assinaturas que ali constam, apena faz-se a prova plena das declarações feitas por eles, mas nunca se prova, de forma plena, a existência da alegada dívida;
XIII) Por outras palavras, não se prova que os 1.º e 3.º Recorridos deve o Recorrente HKD14.000.000,00;
XIV) A situação já seria diferente se os mesmos subscreverem um documento de confissão da dívida, contudo, não fica afastada da existência dos eventuais vícios susceptíveis de invalidar as declarações;
XV) Como temos dito anteriormente que as presentes doutas alegações de recurso do Recorrente não faziam mínimo sentido e senso comum, na medida em que a questão ora levantada, a alegada existência da dívida resultante do "Contrato de Mútuo B", não fazia parte da matéria da causa para ser discutida em sede de audiência e de julgamento;
XVI) Se a questão for tão pertinente para apurar que os aludidos pagamentos são destinados para pagar a dívida do "Contrato de Mútuo B", então, por que razão o Recorrente não tinha reclamado do despacho saneador para que o artigo 11.º da sua contestação aos embargos esteja integrado na matéria de factos assentes ou na base instrutória;
XVII) Por outro lado, importa salientar que a execução dos presentes autos tinha sido movida no passado dia 9 de Setembro de 2020, e os Recorridos apresentaram as suas oposições, por meio de embargo, no dia 19 de Outubro de 2020;
XVIII) Recebido os embargos, o Recorrente apresentou a sua contestação no dia 7 de Dezembro de 2020, e antes desta data, mais concretamente no dia 4 de Dezembro de 2020, o Recorrente moveu outra execução (n.º CV2-20-0175-CEO) contra o 1.º e o 3.° Recorrentes, pedindo o pagamento integral de uma "dívida" no valor de HKD14.000.000,00, resultante do aludido "Contrato de Mútuo B";
XIX) Em termos de bom senso comum, se os pagamentos referidos nos quesitos 2.°, 4.°, 6.° a 12.° e 14.° da BI são destinados para liquidação da dívida respeitante ao aludido "Contrato de Mútuo B", então, resta-nos saber a razão pela qual o Recorrente não tinha invocado estes factos, para efeitos de defesa, na contestação aos embargos;
XX) Mais, não se percebe a razão pela qual o Recorrente nem sequer tinha invocado, no seu requerimento de execução do "Contrato de Mútuo B" dos autos do processo CV2-20-0175-CEO, que tinha recebido dos 1.º e o 3.° Recorridos os pagamentos ditos nos quesitos 2.°, 4.°, 6.° a 12.° e 14.° da BI;
XXI) Não os invocaram porque não lhe quis;
XXII) O Recorrente sabia que tinha recebido dos pagamentos, bem como sabia o destino nos mesmos, mas, mesmo sabendo, optou-se por manter em silêncio, quer na contestação aos embargos dos presentes autos, quer no requerimento da execução dos autos do processo n.° CV2-20-0175-CEO, e vem, através do presente recurso, invocar os artigos 361.º, 368.° n.º 1, 370.° n.º 1, 772.° n.º 1 e 773.° n.º 1, todos do CC e os artigos 469.° n.º 1 e 701.° n.º 2 do CPC, para "fazer" imputar que aqueles pagamentos são destinados, por força legal, para liquidação da dívida resultante do "Contrato de Mútuo B", e para efeitos de impugnação da decisão que julgou como provado os factos descritos nas alíneas o), p), q) a w) e y) da douta sentença, o que não faz o mínimo sentido;
XXIII) Tudo isto só demonstra a má fé por banda do Recorrente;
XXIV) Importa salientar que o 1.º e 3.° Recorridos apresentaram devidamente o seu o embargo contra a execução dos autos do processo n.° CV2-20-0175-CEO, no qual responderam inequivocamente que não reconhece a existência daquela dívida de HKD14.000.000,00;
XXV) A única dívida que os 1.º e 3.° Recorridos reconhecem foi a dos presentes autos, logo, seria mais do que normal, em termos de bom senso, que nas suas oposições por meio de embargos, os Recorridos não tinham invocado qual o destino dos pagamentos em causa;
XXVI) se o Recorrente entender, como entendeu no presente recurso, que estes pagamentos deviam ser juridicamente destinados para a liquidação da dívida do aludido "Contrato de Mútuo B", deveria impugná-los logo na sua contestação aos embargos; e não devia, como o fez, juntar apenas à mesma, à sua contestação aos embargos, o aludido "Contrato de Mútuo B" e invocar simplesmente o artigo 773.° n.º 1 do CC como elementos de contraprova ou como elementos para demonstrar que os pagamentos em causa não se destinavam para a liquidação da dívida dos presentes autos;
XXVII) Na decisão da matéria de facto, o Tribunal "a quo" explicou de forma muito clara e detalhadamente sobre o destino dos pagamentos realizados pelos Recorridos, o que agora passa por transcrever para todos os devidos efeitos legais (cfr. Decisão da matéria de facto, págs. 5 a 7): "Da repartição do ónus de alegação e prova. Os factos relativos à impugnação do cumprimento pertence à parte que cumpriu, ao devedor, aqui embargantes. O exequente invocou uma dívida e os embargantes alegaram o pagamento. O exequente confessou que os alegados pagamentos lhe foram feitos (art. 9° da contestação) mas veio dizer que havia outra dívida e que os embargantes não disseram a qual dívida se destinavam os pagamentos que fizeram. Concluiu o embargado que os pagamentos feitos pelos embargantes devem ser imputados à outra dívida por aplicação das regras supletivas da imputação do cumprimento, pois que a outra dívida não tem garantia real como tem a dívida exequenda na execução apensa. Mas o embargado limitou-se a dizer conclusivamente que há outra dívida. Não alegou qualquer facto que possa levar o tribunal a concluir que tal dívida existe, nem a concluir que não existe. Com efeito, não foi alegado um contrato ou o seu incumprimento, uma situação de responsabilidade civil extracontratual, uma situação de enriquecimento sem causa, etc. Nada! O embargado limitou-se a afirmar a existência de uma dívida e a pendência de uma execução (nº CV2-20-0175-CEO) para cobrá-la (arts. 11º, 13°, e 20° da contestação). Mas, como resulta do documento junto na audiência de julgamento, nessa outra execução ("CV2") não disse o aqui embargado e ali exequente que recebeu os pagamentos aqui em discussão. Se, como diz o embargado em contestação, os pagamentos feitos pelos embargantes se destinassem àquela outra execução, então deveria ter feito a correspondente dedução no montante daquela execução ("CV2"), mas não fez. O comportamento processual do exequente/embargado aponta no sentido de que os embargantes pagaram designado a dívida destes autos como destinatária do pagamento. O comportamento processual dos embargantes aponte para que a dívida designada para imputação dos pagamentos seja a dívida da execução apensa a estes autos e não a dívida da execução "CV2". Com efeito, assim é de concluir do comportamento dos embargantes ao não admitirem a existência da outra dívida, como disseram nos embargos que apresentaram contra a outra execução "CV2" e que o tribunal aqui conhece oficiosamente. Portanto, o embarcado não alegou, como lhe competia, factos que permitam ao tribunal averiguar se é ou não é credor de outra dívida perante os embargantes. Assim, dizendo os embargantes que pagaram e não podendo o tribunal aferir se existe outra dívida, tem o tribunal de concluir que os pagamentos foram feitos pelos embargantes para pagamento da dívida em execução nos autos apensos aos presentes embargos de executado. Com efeito, se pertence aos embargantes o ónus de alegação e prova da imputação no cumprimento, já pertence ao ónus de alegação e prova do embargado a demonstração da existência de outra dívida. Embora ambas as partes desonerassem mal do respectivo ónus, foi o embargado que falhou totalmente ao não alegar factos constitutivos do seu outro crédito, ao passo que os embargantes ao dizerem que pagaram a única dívida que lhes é exigida na execução apensa deram suficiente cumprimento ao ónus de alegação dos factos relativos à imputação do cumprimento. A grande força probatória contra o embargado é esta: Se recebeu quantias dos embargantes e não disse que as recebeu na execução "CV2", intentada em último lugar, fica fortemente indiciado que aquelas quantias não se destinavam à execução "CV2", mas à execução "CV1" apensa (negro e sublinhado nosso). Além disso, compreende-se que o embargado queria imputar os pagamentos que recebeu à dívida sem garantias da execução "CV2". embora também se compreende que os embargantes pretendam imputá-la à dívida com garantia real. (..). Foi este o processo de formação da convicção do tribunal, baseando-se essencialmente na não impugnação dos pagamentos alegados pelos embargantes, que o embargado não impugnou na contestação aos embargos, e baseando-se ainda na falta de alegação e de prova de factos consubstanciadores da existência de outra dívida, porquanto o depoimento da testemunha inquirida e dos documentos juntos aos autos não permitem ancorar outra decisão com a segurança pertinente às decisões judiciais."; e
XXVIII) Conforme o que foi exposto deve considerar que os pagamentos referidos nos quesitos 2.º, 4.º, 6.º a 12.º e 14.º da BI, se destinam à liquidação da dívida dos presentes autos.
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Corridos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
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II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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III – FACTOS ASSENTES:
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
a) Em 8 de Novembro de 2018, o exequente e executado chegaram a um acordo sobre o empréstimo, ambas as partes concordaram que o exequente concedesse o empréstimo ao executado, no montante de HKD3.360.000,00, equivalente a MOP3.460.800,00, mediante a celebração de um Contrato de Mútuo e Promessa de Hipoteca com Eficácia Real.
b) O mencionado contrato foi celebrado no Cartório Notarial das Ilhas, Macau, por forma de termo de autenticação.
c) Conforme as instruções do Executado, na data de assinatura do Contrato de Mútuo, o exequente entregou ao executado HKD3.360.000,00 em numerário, como quantia emprestada por celebração do contrato de mútuo, com emissão de um recibo comprovativo ao exequente.
d) De acordo com a cláusula 5ª do contrato de mútuo, o empréstimo é sem juros mensais ou anuais; no entanto, caso passado o prazo não seja devolvido o capital do empréstimo, deve ser calculado os juros anuais de 36%, até o pagamento integral do capital do empréstimo.
e) Segundo a cláusula 6ª do contrato de mútuo, o executado deve restituir o capital do empréstimo de HKD3.360.000,00 até o dia 9 de Feveriro de 2019.
f) No dia 30 de Outubro de 2018, mediante duas transferências bancárias, foi depositado o valor total de HKD1.200.000,00, equivalente a MOP1.236.000,00 pela 2ª embargante para a conta bancária de Companhia de Promoção de Jogos I, S.A., sob o n.º 25-11-20-004678, conforme as instruções do embargado.
g) No dia 29 de Novembro de 2018, mediante um cheque do Banco OCBC Wing Hang, sob o n.º 002599, foi depositado o valor de HKD300.000,00, equivalente a MOP309.000,00, emitido em 29 de Novembro de 2018 pelo 1º embargante, juntamente com o seu associado da Agência Comercial J, a favor do embargado.
h) No dia 14 de Janeiro de 2019, mediante depósito bancário em numerário na máquina de ATM foi depositado para a conta bancária do embargado, nº 00182411100499511, o valor de HKD53.000,00, equivalente a MOP54.590,00.
i) No dia 29 de Janeiro de 2019, mediante o depósito de um cheque do Banco OCBC Wing Hang, sob o nº 0000804896480011809, emitido em 29 de Janeiro de 2019 pelo 1º embargante a favor do embargado, foi depositado o valor de HKD250.000,00, equivalente a MOP257.500,00.
j) No dia 29 de Janeiro de 2019, mediante o depósito de um cheque do Banco Tai Fung, sob o nº 101112725308008120, emitido em 29 d Janeiro de 2019 pelo 3º embargante a favor do embargado, foi depositado o valor de HKD250.000,00, equivalente a MOP257.000,00.
k) No dia 29 de Janeiro de 2019, foi depositado em numerário o valor total de HKD130.000,00, equivalente a MOP133.900,00, para a conta bancária do embargado.
l) Em Janeiro de 2019, ocorreu uma cessão de crédito no valor total de HKD600.000,00 equivalente a MOP618.000,00, cujo crédito que o 3º embargante tinha para com o seu devedor K, e foi cedida a favor do embargado, para efeitos de pagamento de uma parte da dívida que tinha para com este.
m) No dia 1 de Fevereiro de 2019, mediante o depósito de um cheque do Banco OCBC Wing Hang, sob o nº 002612, emitido em 1 de Fevereiro de 2019 pelo 1º embargante, juntamente com o seu associado da Agência Comercial J, a favor do embargado, foi depositado o valor de HKD400.000,00, equivalente a MOP412.000,00.
n) Nos dias 6 e 28 de Maio de 2020, os embargantes/executados pagaram ao exequente a quantia total de MOP1.200.000,00. (Q 1º)
o) Os embargantes entregaram ao embargado a quantia total de HKD1.983.000,00, antes de 09/02/2019, para pagamento da quantia exequenda nos autos de execução apensos a estes autos de embargos de executado. (Q 2º)
p) No dia 02/07/2019 o terceiro embargante transferiu para o embargado o seu direito relativo ao uso de um cofre de cinzas para pagamento de, pelo menos, HKD120.000,00 da dívida em execução nos autos apensos; no dia 29/08/2019 os embargantes transferiram para a conta bancária do embargado a quantia de HKD20.000,00 para pagamento da dívida em execução nos autos apensos. (Q 4º)
q) A quantia referida na alínea G) dos factos assentes foi para pagar a dívida exequenda nos autos de execução apensos. (Q 6º)
r) A quantia referida na alínea H) dos factos assentes foi para pagar a dívida dos três executados em questão na presente acção. (Q 7º)
s) A quantia referida na alínea I) dos factos assentes foi para pagar a dívida exequenda nos autos de execução apensos. (Q 8º)
t) A quantia referida na alínea J) dos factos assentes foi para pagar a dívida exequenda nos autos de execução apensos. (Q 9º)
u) A quantia referida na alínea K) dos factos assentes foi para pagar a dívida dos três executados em questão na presente acção. (Q10º)
v) A quantia referida na alínea L) dos factos assentes foi para pagar a dívida exequenda nos autos de execução apensos. (Q 11º)
w) A quantia referida na alínea M) dos factos assentes foi para pagar a dívida exequenda nos autos de execução apensos. (Q 12º)
x) Até 9 de Fevereiro de 2020 os embargantes pagaram ao embargado o valor total de HKD1.983.000,00. (Q 13º)
y) No dia 2 de Julho de 2019 tinha o 3º embargante transferiu o seu direito de uso do cofre de cinzas no Taipa Hills Memorial Garden (永念庭), a favor do embargado, para efeitos de pagamento de uma parte da dívida que tinha para com ele, cujo valor era, na altura, pelo menos, HKD120.000,00. (Q 14º)
z) Em 29 de Agosto de 2019, foi depositado através da máquina de ATM para a conta bancárias do embargado, no valor de HKD20.000,00, equivalente a MOP20.600,00. (Q 15º)
* * *
IV – FUNDAMENTAÇÃO
O Recorrente/Exequente veio a atacar a matéria de facto, formulando o pedido nos seguintes termos:
“(…)
3. 上訴人敗訴之主因,在於原審法庭認為上訴人未能證明由各被上訴人向上訴人支付的款項是用作支付各被上訴人拖欠上訴人的其他債務而非本案的債務,從而使得調查基礎內容事實第2點、第4點、第6點至第12點、第14點之事實得出了對被上訴人有利的結果。
4. 根據本卷宗主案第13至18頁之請求執行起訴狀之文件1(下稱“《借貸合同A》”),第一、第二、第三被上訴人與上訴人之間存在一筆具有擔保之貸款本金為HKD3,360,000.00之債務(下稱“消費借貸A”)。
5. 根據本卷宗附案A第66至70頁之異議反駁狀之文件1下稱“《借貸合同B》”,第一、第三被上訴人與上訴人之間存在一筆沒有擔保之貸款本金為HKD14,000,000.00之債務(下稱“消費借貸B”)。
6. 上訴人在異議之反駁狀中提交了《借貸合同B》後,各被上訴人並沒有根據《民事訴訟法典》第469條之規定作出爭執。
7. 即使根據《民事訴訟法典》第701條第2款的規定,作為被提出被上訴人的上訴人在提出反駁後,不得再提交其他訴辯書狀,但不妨礙第一及第三被上訴人對上訴人提出異議反駁狀時附同的《借貸合同B》上的簽名作出爭執。
(…)
綜上所述,現懇請尊敬的中級法院法官 閣下裁定上訴人的上訴理由成立,並裁定:
1. 上訴人依據《民事訴訟法典》第599條對原審法院在事實方面之裁判提出之爭執理由成立,因而對原審法院就事實事宜所作之裁判變更如下:
I. 將已證事實第o項、第q項、第s項、第t項、第v項、第w項、第y項,改為裁定有關事實均未獲得證實;
II. 將已證事實第p項下半部分、第r項及第u項,改為裁定有關事實中所指的款項的1/3,為用作償還本案之債務。
2. 因而應部分廢止被上訴判決,並裁定除了第二被上訴人針對本案的債務僅償還了HKD67,666.67以外,各被上訴人的其他異議理由均不能成立;
3. 針對上述第1項之請求,懇請中級法院根據《民事訴訟法典》第629條第3款之規定,再次調查現時載於卷宗之證據資料;但如法庭認為未具充分證據再次調查有關事實,則亦根據《民事訴訟法典》第629條第4款之規定,裁定發還並重新作出審理。
4. 判處由各被上訴人承擔本案之訴訟費用。”
Em rigor das coisas, desconhece-se, afinal, quais matérias que o Recorrente/Exequente pretende atacar e que seja alterada, uma vez que as conclusões do recurso são muito deficientes e confusas!
A propósito da impugnação da matéria de facto, o legislador fixa um regime especial, constante do artigo 599º (Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto) do CPC, que tem o seguinte teor:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
Ora, a especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC.
*
Repita-se, ao Tribunal de recurso não compete reapreciar todas as provas produzidas e analisadas pelo Tribunal a quo, mas só aqueles pontos concretos indicados pelo Recorrente como errados ou omissos!
No caso é de ver que o Recorrente não cumpriu este ónus especial, não indicando quais elementos probatórios concretos dos autos que permitam chegar-se a uma conclusão diferente da tirada pelo Tribunal a quo, é muito curioso o Recorrente/Exequente nesta sede do recurso veio a formular os seguintes pedidos:
“綜上所述,現懇請尊敬的中級法院法官 閣下裁定上訴人的上訴理由成立,並裁定:
1. 上訴人依據《民事訴訟法典》第599條對原審法院在事實方面之裁判提出之爭執理由成立,因而對原審法院就事實事宜所作之裁判變更如下:
I. 將已證事實第o項、第q項、第s項、第t項、第v項、第w項、第y項,改為裁定有關事實均未獲得證實;
II. 將已證事實第p項下半部分、第r項及第u項,改為裁定有關事實中所指的款項的1/3,為用作償還本案之債務。
2. 因而應部分廢止被上訴判決,並裁定除了第二被上訴人針對本案的債務僅償還了HKD67,666.67以外,各被上訴人的其他異議理由均不能成立;
3. 針對上述第1項之請求,懇請中級法院根據《民事訴訟法典》第629條第3款之規定,再次調查現時載於卷宗之證據資料;但如法庭認為未具充分證據再次調查有關事實,則亦根據《民事訴訟法典》第629條第4款之規定,裁定發還並重新作出審理。”
Veio o Recorrente pedir que os Factos Assentes fixados pelo Tribunal a quo sejam alterados para “Não Provados”!! Mas, pergunta-se, com que base é que o Tribunal ad quem atende a esse pedido?? Porque o Recorrente assim requer? Obviamente ele não pode ser atendido! Porque tais factos não foram objecto de impugnação nem existem elementos nos autos que permitam sustentar tal possibilidade!
Pelo que, é de rejeitar esta parte do recurso por não respeitar o artigo 599º do CPC.
*
Prosseguindo,
Como o recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, importa ver o que o Tribunal a quo decidiu. Este afirmou na sua douta decisão:
I – RELATÓRIO
O núcleo essencial da controvérsia dos presentes embargos de executado reporta-se à imputação do cumprimento e resume-se assim:
- O exequente intentou a execução apensa pretendendo a cobrança coerciva de uma dívida e os executados vieram dizer que já pagaram tal dívida, mas o exequente retorquiu dizendo que os pagamentos que os embargantes fizeram devem ser destinados a pagar outra dívida diferente da dívida exequenda.
Vejamos então mais detalhadamente.
C, titular do BIRM n.º 51*****(4), intentou a execução apensa para pagamento de quantia certa na forma ordinária contra D, F e G, todos com outros elementos de identificação nos autos.
Pretende a exequente a cobrança coerciva da obrigação de restituir determinada quantia monetária no montante de HKD3.360.000,00 acrescida de juros de mora, obrigação resultante de um contrato de mútuo que o exequente, como mutuante, alegadamente celebrou com os executados e que estes, como mutuários, não cumpriram. Como título executivo juntou o documento de fls. 13 a 16 dos autos de execução apensos.
Os executados intentaram os presentes embargos de executado pretendendo que seja extinta a execução que o embargado lhes move, embora não tenham expressado a sua intenção se forma tão sucinta. Como fundamento da sua pretensão disseram que já entregaram ao embargado uma quantia total de HKD3.183.000,00 destinada a pagar parte da quantia exequenda e que o 3º embargante transferiu o seu direito relativo ao uso de um cofre de cinzas a favor do embargado para pagamento de, pelo menos, HKD210.000,00. Dizendo que o embargado sabia que a obrigação exequenda foi paga e alegou o contrário, pediram ainda os embargantes a condenação do embargado, como litigante de má-fé, em multa e indemnização.
Respondeu o embargado/exequente confessando que recebeu dos embargantes as quantias por estes alegadas, mas dizendo que de tais quantias apenas HKD67.666,67 se destinavam a pagar a quantia exequenda e que as demais se destinavam a pagar outra dívida dos executados. Confessou ainda que adquiriu o direito de uso do cofre de cinzas, mas referiu que o seu valor de mercado era de cerca de HKD120.000,00. Concluiu pela improcedência dos embargos com excepção do respeitante à quantia de HKD67.666,67 e concluiu também pela improcedência da pretensão da sua condenação como litigante de má-fé.
Foi proferido despacho saneador e de selecção da matéria de facto a fls. 78 a 80v.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto sem reclamação e tendo o embargado apresentado alegações de Direito.
*
II – SANEAMENTO
A instância mantém-se válida e regular, como decidido no despacho saneador.
Diga-se no entanto que o pedido formulado pelos embargantes para julgar extinto o contrato de mútuo gerador da obrigação exequenda não é próprio dos embargos de executado e aqui será considerado como causa de pedir a extinção da execução e não como pedido propriamente dito de declaração de extinção do contrato. Com efeito, os embargos de executado destinam-se a conhecer dos fundamentos da oposição à execução, não configurando um meio declarativo para conformar a relação substantiva das partes.
*
III – QUESTÕES A DECIDIR
Tendo em conta o relatório que antecede, a única questão a decidir além da eventual litigância de má-fé consiste em saber se a obrigação exequenda foi extinta pelo pagamento por deverem ser imputados a tal pagamento as quantias de dinheiro que os embargantes entregaram ao embargado.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO
A) – Motivação de facto
Estão assentes os seguintes factos:
(...)
B) – Motivação de direito
Através dos presentes embargos pretendem os embargantes que seja extinta a execução, dizendo que já restituíram ao embargado a quantia por este emprestada, tendo entregue ao embargado, em várias vezes, uma quantia total de HKD3.183.000,00 e tendo o 3º embargante transferido para o embargado o seu direito ao uso de um cofre de cinzas no valor de HKD210.000,00, pelo que o embargado recebeu mais do que a quantia que emprestou.
O fundamento dos embargos é, pois, a extinção da dívida exequenda. Efectivamente, o pagamento é um meio de extinção das obrigações.
Da repartição do ónus da prova.
Como facto extintivo da obrigação exequenda, o pagamento pode servir de fundamento aos embargos de executado (art. 699º e 697º, al. g) do CPC) e o ónus da respectiva prova cabe ao embargante (art. 335º, nº 2 do CC).
O embargado disse que os pagamentos feitos pelos embargantes não se destinavam a pagar a quantia exequenda e disse também que tais pagamentos se destinavam a cumprir outra obrigação dos executados.
Dos factos provados não resulta dúvida que os embargantes pagaram, mas a imputação do cumprimento é ainda um aspecto do cumprimento e, como tal, recai, em princípio e genericamente, no âmbito do ónus da prova do devedor embargante.
A imputação no cumprimento é a designação ou identificação da dívida a que o cumprimento se refere e se destina. Cabe ao devedor fazer tal designação, embora o credor se possa opor em determinados casos (arts. 772º a 774º do CC). É certo que a questão da imputação do cumprimento só se coloca se o devedor tiver mais que uma dívida da mesma espécie para com o mesmo credor e, por isso, cabe a quem pretender que o pagamento seja imputado em determinada dívida alegar e provar a existência dessa dívida. No caso dos autos cabe ao credor que recebeu o pagamento e pretende que seja imputado no cumprimento de determinada obrigação alegar e provar que o devedor tinha essa dívida onde pretende que seja feita a imputação. Ou seja, o devedor tem de demonstrar que pagou, o credor tem de demonstrar que o devedor tinha para consigo mais que uma vívida e, se se provar a existência de mais de uma dívida, o devedor tem de demonstrar qual das dívidas designou para nela ser imputado o pagamento que fez, sob pena de a imputação se fazer de acordo com as regras supletivas ou de improceder a excepção de pagamento se aquela imputação supletiva não puder ser feita.
Mesmo havendo dúvidas sobre a quem deve pertencer o ónus da prova da existência de mais que uma obrigação, esta dúvida deve resolver-se no presente caso contra o exequente. Na verdade as regras de repartição do ónus da prova nos embargos de executado são idênticas às da acção declarativa, pelo que vale aqui a regra que determina que é a quem alega um direito (o autor, o reconvinte, o exequente) que cabe a prova dos factos constitutivos desse direito a que se arroga. E vale aqui também a regra que determina que “em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito” (art. 335º, nºs 1 e 3 do CC). Vale ainda aqui a regra estabelecida no art. 437º do CPC: “a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”. No caso presente, a existência de duas dívidas onde imputar o cumprimento aproveita ao exequente para conseguir que a execução não se extinga ou não seja reduzida.
O exequente veio executar uma obrigação sem dizer que havia outra dívida e os embargantes alegaram que pagaram a obrigação exequenda. Assim, se só estava em causa nestes autos uma obrigação, não tinham os embargantes que dizer que designaram a obrigação exequenda como destinatária do pagamento. O embargado é que trouxe aos autos a existência de outra obrigação em articulado de contestação a que os embargantes não podiam responder (art. 700º, nº 2 do CPC). Portanto, só o embargado tinha o ónus de demonstrar a existência de outra obrigação. Os embargantes, ao afirmarem que pagaram a obrigação exequenda, tacitamente disseram que a designaram como destinatária do pagamento. Até porque, como se referiu na fundamentação da decisão da matéria de facto, nos embargos que foram deduzidos na execução onde se executa a outra obrigação que o embargado afirma existir, os ali embargantes negam a existência de tal obrigação.
Do que fica dito é de concluir que é àquele que invocar o direito de imputar o cumprimento em determinada obrigação que cabe provar os factos constitutivos de tal direito, designadamente a existência de mais que uma obrigação e a existência da obrigação onde pretende fazer a imputação. E no caso presente foi o embargado que invocou a existência de outra obrigação.
Vistas as regras de distribuição do ónus da prova, temos que:
- Os embargantes alegaram e provaram que fizeram pagamentos ao embargado;
- O embargado alegou mas não provou que, além da dívida exequenda, os embargantes tinham outra dívida.
Não se tendo provado que os embargantes tivessem outra dívida para com o embargado, terão os pagamentos feitos pelos embargantes de ser imputados na única dívida que se conhece.
Deve, no entanto esclarecer-se que o pagamento constante da al. f) dos factos provados não pode ser considerado como pagamento parcial da dívida exequenda. Por um lado, como referido na fundamentação da decisão da matéria de facto, tal pagamento foi realizado antes de contraída a obrigação exequenda. Por outro lado, tal pagamento não consta “contabilizado” nas alíneas o) e x) da factualidade provado como tendo sido feito para cumprimento da obrigação exequenda.
Provou-se que embargados e embargante acordaram que a obrigação exequenda (HKD3.360.000,00) deveria ser cumprida até dia 9/02/2019 (al. e) dos factos provados). E provou-se que até essa data os embargantes pagaram HKD1.983.000,00. Ficaram, pois, em dívida HKD1.377.000,00.
Provou-se também que foi acordado pelas partes que no caso de a quantia emprestada não ser devolvida no referido prazo venceria juros anuais de 36%, até o pagamento integral do capital do empréstimo (al. d) dos factos provados).
Está também assente nos autos, por falta de impugnação do alegado no art. 15º do requerimento inicial da execução, que foi acordado que os embargantes pagariam despesas de cobrança coerciva no valor de MOP.150.000,00 (HKD145.631,00).
Assim, em 10/02/2019 iniciou-se a contagem de juros anuais à taxa de 36% sobre a quantia de HKD1.377.000,00, o que resulta na quantia diária de HKD1.358,10 (arredondada às décimas: 1.377.000,00 x 0.36 : 365).
No dia 2 de Julho de 2019 o 3º embargante transferiu, a favor do embargado, o direito de uso do cofre de cinzas no Taipa Hills Memorial Garden (永念庭) no valor de HKD120.000,00, para efeitos de pagamento de uma parte da dívida que tinha para com ele. Em 29 de Agosto de 2019, foi depositado através da máquina de ATM para a conta bancárias do embargado, no valor de HKD20.000,00.
Estas quantias são insuficientes para pagar as despesas de cobrança referidas. Ora, não se tendo provado que, aquando do pagamento fosse referido que tais quantias se destinavam a pagar o capital em dívida, devem essas quantias ser imputadas ao pagamento das despesas de cobrança, nos termos do disposto no art. 774º, nº 1 do CC, ficando ainda em dívida parte dessas despesas (HKD5.631,00).
Mais tarde, nos dias 6 e 28 de Maio de 2020, os embargantes/executados pagaram ao exequente a quantia total de MOP1.200.000,00 (al. n) dos factos provados). Esta quantia já excede a parte das despesas de cobrança ainda não pagas e os juros entretanto vencidos entre 10/02/2019 e 28/05/2020 (total de 474 dias: - HKD643.756,90) e integralmente por pagar. Assim, a quantia de MOP1.200.000,00 (HKD1.165.048,50) deve ser imputada primeiramente no pagamento da parte das despesas de cobrança ainda não paga (HKD5.631,00), depois nos juros vencidos e integralmente por pagar (HKD643.756,90) e, a parte sobrante, no pagamento do capital (1.165.048,50 – 5.631,00 - 643.756,90 = 515.660,60).
Do que antecede, resulta que a dívida exequenda e a execução devem ser reduzidas em conformidade (1.377.000,00 – 515.660,60 = 861.339.40).
Da litigância de má fé.
Os embargantes, dizendo que já haviam cumprido a obrigação exequenda, acusaram o embargado de litigar de má-fé ao recorrerem a juízo para executar uma obrigação que sabiam estar extinta. Não se provou a matéria quesitada no quesito 16º e conclui-se que a obrigação exequenda só está parcialmente cumprida. Assim, não se encontra litigância de má-fé por parte do embargado, pois que, para além de não estar extinta a totalidade da obrigação, a divergência quanto à imputação do pagamento não configura litigância de má-fé.
*
V – DECISÃO
Pelo exposto, julgam-se parcialmente procedentes os embargos e, em consequência, determina-se a redução da quantia exequenda de forma que a execução prossiga apenas para pagamento da quantia de HKD861.339.40, acrescida de juros à taxa anual de 36%, contados desde 29/5/2020 até integral pagamento.
*
Custas por embargantes e embargado na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.
*
Quid Juris?
Antes de tudo, importa recapitular-se os seguintes alguns (entre os outros) Factos Assentes fixados pelo Tribunal a quo:
“(…)
f) No dia 30 de Outubro de 2018, mediante duas transferências bancárias, foi depositado o valor total de HKD1.200.000,00, equivalente a MOP1.236.000,00 pela 2ª embargante para a conta bancária de Companhia de Promoção de Jogos I, S.A., sob o n.º 25-11-20-004678, conforme as instruções do embargado.
g) No dia 29 de Novembro de 2018, mediante um cheque do Banco OCBC Wing Hang, sob o n.º 002599, foi depositado o valor de HKD300.000,00, equivalente a MOP309.000,00, emitido em 29 de Novembro de 2018 pelo 1º embargante, juntamente com o seu associado da Agência Comercial J, a favor do embargado.
h) No dia 14 de Janeiro de 2019, mediante depósito bancário em numerário na máquina de ATM foi depositado para a conta bancária do embargado, nº 00182411100499511, o valor de HKD53.000,00, equivalente a MOP54.590,00.
i) No dia 29 de Janeiro de 2019, mediante o depósito de um cheque do Banco OCBC Wing Hang, sob o nº 0000804896480011809, emitido em 29 de Janeiro de 2019 pelo 1º embargante a favor do embargado, foi depositado o valor de HKD250.000,00, equivalente a MOP257.500,00.
j) No dia 29 de Janeiro de 2019, mediante o depósito de um cheque do Banco Tai Fung, sob o nº 101112725308008120, emitido em 29 d Janeiro de 2019 pelo 3º embargante a favor do embargado, foi depositado o valor de HKD250.000,00, equivalente a MOP257.000,00.
k) No dia 29 de Janeiro de 2019, foi depositado em numerário o valor total de HKD130.000,00, equivalente a MOP133.900,00, para a conta bancária do embargado.
(…)”.
O quadro factual provado demonstra que tal dívida de HK$1200000.00 já foi paga mediante transferência bancária, agora o Recorrente/Exequente veio a dizer que tal dívida ainda não foi liquidada!
Os elementos constantes dos autos demonstram que houve transferência bancária com o mesmo valor! Agora cabe ao Recorrente/Exequente provar que tal não corresponde à verdade, mas não chegou a apresentar provas concretas para impugnar este ponto, para além das afirmações abstractas.
Quanto ao demais, como a sentença recorrida já analisou praticamente todas as questões levantadas, ficamos dispensados de voltar as tocar nesta sede.
Nestes termos, é da nossa conclusão que o Tribunal a quo fez uma análise ponderada dos factos e uma aplicação correcta das normas jurídicas aplicáveis, tendo proferido uma decisão conscienciosa e legalmente fundamentada, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto no artigo 631º/5 do CPC, é de manter a sentença recorrida.
*
Síntese conclusiva:
I - No âmbito de reapreciação da decisão de facto, de realçar que, em conformidade com o regime de recursos aplicável (artigo 599º do CPC), não cabe ao Tribunal ad quem proceder a um novo julgamento latitudinário da causa, mas apenas sindicar os invocados erros de julgamento da 1.ª instância sobre os pontos de facto especificamente questionados, mediante reapreciação das provas produzidas nesse âmbito, tomando por base os factos tidos por assentes, a prova produzida ou algum documento superveniente, oportunamente junto aos autos, que imponham decisão diversa.
II - A especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem questionar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio delimitam o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de base para a reapreciação do Tribunal de recurso, ainda que a este incumba o poder inquisitório de tomar em consideração toda a prova produzida relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no artigo 629º do CPC.
III - É, pois, em vista dessa função delimitadora que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação da decisão de facto com a sanção máxima da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afectada, nos termos do artigo 599º/2 do CPC. É o caso quando o Recorrente/Exequente veio a pedir que uma boa parte dos Factos Assentes fixados pelo Tribunal a quo passe a ser considerada como FACTOS NÃO PROVADOS, sem indicar, porém, espeficidamente, quais os elementos concretos constantes dos autos que permitam sustentar a posição por ele defendida.
*
Tudo visto e analisado, resta decidir.
* * *
V ‒ DECISÃO
Em face de todo o que fica exposto e justificado, os juízes do Tribunal de 2ª Instância acordam em negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
*
Custas pelo Recorrente/Exequente.
*
Registe e Notifique.
*
RAEM, 20 de Abril de 2023.
Fong Man Chong
(Relator)
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Tong Hio Fong
(Segundo Juiz-Adjunto)
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